Nêmesis Cap.1

As planícies extensas, totalmente cobertas de gelo, deixavam claro a qualquer um que estávamos num dos extremos gelados do mundo.

Era a época mais violenta do inverno polar, e depois de passar quatro anos vivendo no extremo sul Hyoga voltava para o lugar onde sua mãe havia morrido num naufrágio e onde havia sido treinado por Kamus de Aquário para se tornar o Cavaleiro de Cisne.

Apesar do frio intenso, Hyoga parecia não sentir frio, há muito tempo havia aprendido a usar a energia do cosmo para manter estável a temperatura do corpo.

Mas o que o trazia de volta aquele lugar nada tinha a ver com o fato de um dia ter sido um cavaleiro. Talvez se tivesse tido como homem a mesma coragem que sempre teve como defensor de Athena, não tivesse voltado pelo motivo que voltou.

Acariciou novamente o rosto pálido da jovem cujo corpo repousava nos braços de Shiryu, única testemunha daquele triste ritual e do sofrimento que agora dilacerava o coração do amigo.

- Isso está te matando Hyoga, deixe que eu faça!

- Não Shiryu, eu devo fazer isso, devo beber cada amarga gota de sofrimento e dor que me foi reservada. – ele fez uma pausa e respirou fundo – Eu devo isso a ele, por tudo que eu deixei de fazer.

Com cuidado tomou o corpo dela em seus braços. Uma rajada forte de vento afastou os cabelos vermelhos do rosto sem vida. Mesmo assim, seu belo rosto parecia tão sério!

Aproximou-se da enorme cratera que ele mesmo havia criado na grossa camada de gelo e mergulhou.

- Andrei! – chamou Susan mais uma vez.

- Sabe que ele não vai sair dali, não enquanto a mãe não voltar! – disse James à esposa diante do esforço inútil de trazer o menino de volta para dentro de casa.

- Nós dois sabemos que nem Kassandra nem nosso Lucas voltarão, Jim – Susan tinha um olhar cansado de quem já havia se conformado – mesmo que estejam vivos, só Deus sabe o que aqueles monstros farão com eles!

De um cômodo próximo um choro infantil chamou a atenção do casal e preocupados com a pequena Gária subiram em direção ao quarto onde estava a menina de apenas 11 meses de idade, mas não sem antes lançar um último olhar ao menino ruivo lá fora.

Andrei começava a sentir o corpinho frágil de criança tremer com o vento frio do inicio da noite, mas não estava disposto a entrar.

"Ela prometeu!", pensou, e por segundos um sorriso começou a surgir em seu rosto sempre sério ao avistar um vulto se aproximando do jardim da casa dos Goldman. Um sorriso que logo se transformou numa expressão triste demais para uma criança ao perceber que não era a silhueta de uma mulher. E as primeiras lágrimas brotaram em seus olhos enquanto ele corria para os braços do pai, que por anos vinha visitá-lo em segredo, sempre naquele mesmo dia, no aniversário dele.

- Ah filho, - disse Hyoga apertando o menino em seus braços como se com isso pudesse arrancar a tristeza daquele jovem coração – eu queria tanto poder dizer que ela está bem e que logo vai voltar, eu queria tanto!

Como todo pai, tudo que Hyoga queria era proteger o filho do sofrimento, mas como esconder a verdade do filho se não podia ocultar a própria dor? Fez então o que podia, usando o cosmo induziu o menino a um sono profundo.

Susan e James que tentavam acalmar a menina viram surpresos o ex cavaleiro entrar no quarto com Andrei adormecido nos braços, colocá-lo na cama e sentar-se ao lado dele.

Mas quem ele pensa que é? – disse Susan indignada com o homem que havia abandonado a nora.

-Não Sus, hoje é disso que nosso menino precisa, ele precisa do pai, não podemos negar isso a ele.

- Pai... - suspirava Deinrich em seus sonhos, enquanto sua mãe Freya contemplava seu rostinho triste.

No dia anterior havia sido o aniversário de cinco anos do menino e pela primeira vez seu pai não tinha aparecido. Freya sempre soube que isso cedo ou tarde aconteceria.

Quando se reencontraram há alguns anos atrás, ele tinha avisado dos riscos de uma vida ao lado dele. Mesmo depois da morte de Athena, mesmo depois de não ser mais um cavaleiro, grandes responsabilidades pesavam sobre suas costas. Mas havia muito mais além disso, por mais que Freya tentasse negar, no fundo ela sabia que havia muito mais coisas por trás daquelas ausências, mesmo antes de Deinrich nascer.

Tentou em vão afastar esses pensamentos de sua cabeça, beijou o rosto angelical do menino e saiu do quarto deixando o menino com seus sonhos infantis.

Depois de alguns minutos a janela foi aberta por um vento suave e frio que acabou por acordar o jovem herdeiro de Asgaard.

- Pai! - disse o menino se atirando nos braços do homem loiro que estava parado diante da janela aberta.

- Eu sinto muito Deinrich, sinto ter perdido seu aniversário!

- Por que papai, por que você não veio?

Hyoga suspirou alto, pensando na melhor maneira de contar ao menino o que havia acontecido ao seu meio irmão.

- Eu tive que ajudar um outro menino. Ele havia perdido a mãe e estava tão triste por isso, pode imaginar como é triste perder alguém que se ama? Pode me perdoar por isso?

Deinrich parou por um instante refletindo sobre o que o pai havia dito.

- Tá, eu perdôo...

- Sabe de uma coisa?- disse Hyoga dando um abraço apertado no filho - Eu não mereço um filho tão bom como você!

- Pai - disse o menino ainda abraçado ao pai.

-O que foi?

-Quantos anos o menino tinha?

-Ele fez cinco anos ontem, exatamente como você.

Na cidade dos anjos um menino acordava sozinho. Seu pai já não estava mais lá e sua mãe havia deixado sua vida para sempre.

Ele não tinha muitas escolhas, mas no íntimo já sabia o que deveria fazer.

Podia ficar chorando pelo resto de sua vida, se lamentando por tudo que o destino havia lhe reservado ou amadurecer.

Então Andrey se lembrou da irmãzinha no berço no quarto de sua avó e fez o que deveria fazer. Levantou-se da cama sem uma única lágrima no rosto, deixou o quarto e atravessou o corredor.

Já era tarde e sua avó com o rosto abatido de quem havia perdido um filho estava sozinha diante de um almoço que ela não havia tocado.

- Andy você acordou, meu anjo!

A mulher se levantou e foi até o menino, prendendo-o num abraço apertado, como se consolando o garoto pudesse esquecer-se da própria dor.

- Está com fome?

O pequeno Kanmenev encarou a avó e disse com uma determinação quase adulta:

- Não, mas eu preciso comer. Eu vou ficar forte vovó, vou ser forte o suficiente para cuidar da minha irmãzinha, de você e do vovô. Vou fazer isso pela mamãe.

Susan ficou completamente sem palavras diante da atitude tão madura do garoto e fez então tudo o que podia fazer, expressando todo o orgulho que sentia do neto.

- Me diga Andy, quando foi que você deixou de ser um garotinho para se tornar um pequeno homem?

Enquanto tudo isso acontecia uma jovem assustada e ferida se escondia na escuridão.

Seus olhos e seu coração ainda guardavam a dor de tudo o que havia presenciado.

Sem poder fazer nada, viu cada um daqueles a quem amava caírem, um após o outro.

Mas ela ainda estava viva e por mais que a dor em seu coração pedisse pelo alívio da morte, ela não deixaria que Eles a pegassem.

Não por ela mesma, porque desde a noite anterior Gerda já se sentia morta também, mas pelos amigos que haviam partido.

Correu a noite toda se escondendo em becos, indo de sombra em sombra, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Estava cansada, mas não iria desistir, não ainda.