A Memory Of My Life

by: Maru

– Vamos começar? – perguntou o homem à sua frente. Figurinha atraente, até. Mas pela postura séria não era muito dado a diversões.

Acomodou-se melhor, observando o homem. Uma entrevista...

Riu-se ao pensar nisso e lembrar-se de "Entrevista com o Vampiro".

– Talvez o que ouça aqui não seja o que procuram. – avisou. – Querem um drama, tenho um conto erótico pervertido e terão que se virar com ele.

Ajeitou-se melhor outra vez à cadeira de respaldo alto, cruzando as pernas enquanto analisava o homem à sua frente sem grandes demonstrações de interesse, o que fez com que o repórter, mais velho e experiente, quase risse gentilmente, mas considerou pouco apropriado para o momento, sob o risco de ser mal interpretado.

– Pode rir se quiser não me incomoda. – o loiro comentou em meio a um sorrisinho torto e divertido. Mas indiferente.

O repórter apenas encarou-o por um momento, erguendo as sobrancelhas finas em ar paciente e apreciativo. – Então este é o momento em que você diz que é um vampiro e acende a luz? [1]

– Então também gosta de Anne Rice, ou apenas assistiu ao filme?

– Realmente o filme é um clássico, mas pensei que fosse eu a fazer as perguntas... – brincou, enquanto pegava delicadamente um maço de cigarros do bolso interno do casaco. – Importa-se se eu fumar? Velhos hábitos... – ergueu ligeiramente as sobrancelhas, numa placidez que fez lembrar-se de Marius.[2]

– Não se me oferecer um. – replicou em meio a um sorrisinho mais caloroso junto a sua comparação.

– Por favor...

O homem lhe estendeu o maço e ele, ainda sorrindo minimamente, pegou o rolinho negro, analisando melhor a caixa.

– Não conheço a marca... – murmurou.

– Hum... É importado. Ganhei de presente. – disse então, lembrando-se de um detalhe enquanto acendia o seu. – Ele não tem gosto, sim? Prefiro, pois esses com gosto têm um cheiro insuportável e são muito fracos.

Mas diminuiu o tom de voz à surpresa de ver o outro inclinar-se sobre si, acendendo o rolinho negro que lhe dera na mesma chama que acendia o seu. Uma cena quase provocante, não fosse o descaso no rosto jovem à frente do seu. – Melhor assim... – ouviu-o dizer, ainda em tom baixo. – Podemos começar a entrevista.

– Certo. – concordou prontamente com um aceno, colocando o gravador moderno sobre a mesa e ligando-o. – Por onde prefere começar?

Quer que comece como David Copperfield? "Eu nasci, cresci..." ou quando nasci para a escuridão, como gosto de dizer? – parafraseou do que se lembrava daquele filme. Adorava-o. Identificava-se um pouco com Louis, ainda que se considerasse um tanto mais como Lestat e preferisse Armand e sua historia. Riu outra vez aquela risada debochada. – Sinto muito, sempre penso por alto neles quando falo de mim, nos vampiros... Gostaria de ser um dos personagens dela. Um dos que morrem ou enlouquecem, ou apenas um personagem pouco explorado, que fosse. Mas creio que minha história tem muito menos poesia, menos drama e pensamentos profundos e muito mais violência e indecências. Jamais daria um bom livro, essa história suja. Mas querem-na e o que posso fazer senão compartilhá-la com o maior numero possível de pessoas para que elas se horrorizem e sejam menos monstruosas? Apenas um pouco? Oh não... Não sou uma vítima, na verdade. Sou indecente por que gosto. Adoro o prazer e cultuo-o de todas as formas possíveis, mas já vivi quase inteiramente sem ele, não fosse por meu companheiro de infortúnios e de libertinagens.

Viu o olhar do homem sobe si, algo um tanto surpreso, questionador. Mas ai invés de julgá-lo como louco e sair, apenas em tom suave, mas cauteloso. – Não deseja dividir isto com o publico? O porquê de pensar isto?

– E como devo começar? Me apresentando? – perguntou pouco interessado, analisando com ar de enfado as próprias unhas perfeitas. – Nem mesmo sabia meu nome até o ano passado. Até três anos e meio atrás nem mesmo documentos eu tinha e agora tive de refazê-los. –percebeu o tédio em sua voz dar lugar à eterna ironia que permeava tudo. – Lembro dos rostos dos meus pais, lembro deles me chamando de algo, mas apesar de agora saber o nome, não me lembro da voz deles dizendo-o.

– Diga como veio parar aqui.

– Bom ponto. Foi um seqüestro. Mataram meus pais na minha frente quando tinha apenas oito anos. – parou por um momento, tragando do cigarro negro que tanto chamara sua atenção. – Depois me venderam, acho. Talvez tenham abusado de mim, não sei... Era um garotinho interessante, sei hoje, mas não sei se fizeram. Mas sei que me drogaram, por isso não sei como vim parar aqui. Era um lugar estranho e não sabia falar inglês.

'Então fugi. Também não sei como, mas o fiz. Parei em albergues e depois nas ruas e sobrevivi de meus préstimos, por ser bonito. Aprendi inglês bastante rápido nesse meio tempo, ainda que não fizesse idéia de como se escrevia o que quer que fosse. Palavrões e toda a sorte de palavras de baixo calão eu aprendi com meus clientes. – tragou outra vez, liberando a fumaça de seus pulmões lentamente. – Era muito requisitado, e doía toda vez. Esse tipo de gente não sabe ser gentil. Mas sempre tinham plástico, e usavam com medo de que eu tivesse alguma doença, talvez por isso nunca tenha contraído nenhuma.

– Você era garoto de programa? – o homem perguntou em ar sério, obviamente intrigado e chocado com a história que era contada.

Puto? Sim. – concordou em outro sorriso sínico. – Foi a forma que encontrei para sobreviver após um ano e meio fugindo de albergues. Mas, não tenha dó da minha sorte não, viu? A primeira vez que deixei "me comerem", não era um cliente. Era outro garoto como eu. Eu quis...

'Também saiu das ruas, antes mesmo de mim, por ter tido a sorte de encontrar alguém que o protegesse. O que depois ocorreu comigo, mas é história demais para uma introdução...

– Vocês ainda se vêem?

– Muito. Tranzo com ele toda a vez que ele me procura por... Motivos adversos... Melhor não entrar em detalhes, ou ele nunca mais irá querer olhar na minha cara, mas tanto faz, ele iria ter que olhar ao fim das contas. Temos aquilo que chamam de amizade, mas talvez seja mais que isso. Dois moleques, putos, dormindo ao relento e tomando banhos de chuva como se fosse a maior dádiva do mundo. Nada do que fizermos agora pode apagar o que passamos um pelo outro.

Outra pausa. Esta mais longa, enquanto fumava o cigarro despreocupadamente, vendo-o se acabar entre seus dedos.

– Sexo só era bom com ele. E ainda é, ainda que agora tenham outros muito bons também. V soprou a fumaça dos pulmões. – Mas o vínculo que há, muda a coisa. Sexo por carência, não por necessidade. Mas... Voltando à história... Vivi desse jeito durante anos, até ser preso. Coisa essa... Que só vou contar mais para frente. O porquê, o que houve antes de ir preso...

– Mas você era menor de idade, não era? – perguntou, incitando o loiro a falar e falar. Estava estupefato com a história que lhe era contada, fascinado. E queria saber mais.

– Tinha carinha de bebê e jeitinho de gente grande. Preferiram acreditar no jeito, no meu corpo definido... – deu de ombros, como se aquilo não lhe significasse nada. – Mas eu sabia minha idade. Lembro do dia que faço ano, nunca me esqueci, ou deixei de contar. Devo ter ficado um mês preso e só fui solto por falta de provas. Sei que um dos guardinhas que ficavam na porta da cela acreditava em mim, também tem sua parte na minha história, ele, mas mais pra frente. Vivi bastante surpresas depois de sair das grades. E sei que apesar de estar perguntando, ouviu sobre as notícias... "O Garoto do Motel"... "O pequeno Afrodite"... Tudo sobre o caso que me levou da prisão para a quase-fama. Fui chamado para ser modelo. "O grande Afrodite" agora, inspiração na compra de cuecas, calças... Acho que é isso para começar. Oito anos de vida, mais outros oito de sobrevivência e agora estou no meu quanto ano de "normalidade". Fiz suplência, hoje faço faculdade... Creio estar bom. Ainda não é a hora para dizer-me "desapaixonado e vazio"... Está pronto para ouvir a real história?

– Estou. – concordou.

– Então vamos à parte em que você deixa que eu seja "aquele que esbraveja".

–x–

[1] Cena de "Entrevista com o Vampiro".

[2] Mestre e criador do vampiro Armand (Crônicas vampirescas de Anne Rice, citado primeiramente em "O Vampiro Lestat")