Na penumbra, apenas uma silhueta era visível. O homem acendeu uma vela em uma espécie de fogão a lenha, que fumegava preguiçosamente. A pequena luz abriu espaço por entre a escuridão, mostrando os longos cabelos loiros e profundos olhos azuis que a sustentavam. Ele se sentou na cadeira rústica de madeira, pegando um caderno em branco, de capa escura, e a caneta-tinteiro que estavam em cima da mesa empoeirada e começou a escrever.
Se alguém estiver lendo este diário, provavelmente estarei a muito morto. Ou talvez algo me salve antes que o triste véu da morte paire sobre meu rosto ou que eu me perca em mim mesmo e nessas aturdidas lembranças e visões. Mas não estou aqui para discutir isso. Pretendo narrar os fatos que me levaram a tomar a decisão que me aflige, para que quando eu ficar como louco, pelo menos uma parte de meu ser permaneça são, na forma deste relato.
Meu nome é Shaka Phalke, filho de um poderoso barão, dono estas terras onde este casebre se encontra, hoje já falecido. Minha mãe também não se encontra mais neste mundo, morrera no parto de meu irmão um ano mais moço, Asmita, que nasceu cego.
Tive uma infância feliz e uma mocidade de muitas responsabilidades para com os negócios de minha família e para com meus estudos, que fique bem claro que os motivos de minha loucura nada tem a ver com algum trauma infantil.
Todo meu tormento começou, na verdade, quando eu já estava casado com a herdeira Heinstein, ainda na lua-de-mel. Certa noite, quando eu lia um livro para aplacar a insônia que sempre me acompanhou, vi um homem em frente a mim, na biblioteca da mansão que minha esposa Pandora herdara e onde eu agora morava.
Ele era alto, moreno, de feições fortes, profundos olhos azuis amendoados. O que mais me espantou em tal figura foram suas roupas estranhas, uma espécie de ceroula ou calça de caça, não sei, de um tom de azul que eu nunca tinha visto. As botas em seus pés eram de um modelo que eu não conheço e a camisa que ele usava tinha desenhos estranhos pintados na parte da frente. Ele olhava diretamente para mim, como seu eu não devesse estar ali. Depois ele disse alguma coisa que para mim não passou de um sussurro inaudível, que não me parecia ser diretamente direcionado. De repente, ele desapareceu tão abruptamente quanto surgiu. Achei estranha a aparição, mas assumi que tinha sido fruto do sono, que já me pregava peças a essa hora. Foi meu principal erro, que trouxe minha ruína.
Depois que o espectro deixou o local, Shaka se levantou da poltrona que estava sentado, marcando o livro que lia. Não deu muita importância para aquilo, mesmo que agora sua mente não pensasse em outra coisa.
Saindo da biblioteca, andou pelos corredores escuros até chegar ao quarto que lhe pertencia. Sua esposa dormia tranquilamente. Deitou-se ao lado dela, cobrindo-se com as cobertas pesadas e a abraçando. Sentindo o cheiro de morango que os cabelos dela exalavam, adormeceu.
Nessa noite eu sonhei com ele. Ele vestia as mesmas roupas estranhas, acompanhado de alguns amigos, que se vestiam de forma parecida com a dele. Nós – por que eu também estava lá – conversávamos sobre um assunto da qual não me recordo. Só me lembro de pequenas coisas, como a escada em forma de caracol que ele e uma moça loira estavam sentados, do carinho que ele a tratava, da chuva insistente e do barulho que ela fazia e da alegria que permeava o local. O resto para mim é escuridão.
O sol batia forte quando Pandora decidiu acordar o marido, que tinha um sono profundo. Doía ter que fazer isso – ela bem sabia o quanto era difícil para o marido dormir – mas era necessário.
- Shaka, acorde. – Ela sacudiu levemente o ombro do marido, que abriu os olhos momentos depois – O herdeiro dos Camus¹ está lá em baixo te esperando.
- Certo, diga que estarei lá em alguns instantes.
Depois que a esposa deixou o quarto, Shaka fez sua higiene matinal e vestiu uma roupa que o deixasse apresentável no menor tempo possível. Assim que estava acabado desceu rapidamente as escadas, encontrando com o homem que o esperava no hall de entrada.
- Perdoe-me a demora. – disse enquanto se dirigia ao homem ruivo impecavelmente bem vestido – Perdi o sono esta noite e não me dei conta que o sol já caminhava rápido.
- Não há problemas – O homem respondeu educadamente – Eu não estou aqui há muito.
- Sou Shaka Phalke, me chame apenas de Shaka.
- Etienne Camus. Camus está de bom tamanho.
- Certo.
Apertaram as mãos, caminhando silenciosamente enquanto se dirigiam à mesa de café da manhã. O anfitrião educadamente ofereceu um acento ao convidado, que recusou com um aceno de cabeça.
- Fique a vontade, Shaka. Precisará de muita energia para nossas atividades de hoje.
Assim que terminou o café da manhã, Shaka e Camus cavalgaram em direção às terras que estavam em discussão no dia. Repentinamente o cavalo que o loiro montava parou e ele o viu novamente.
Quando cavalgava com Camus em direção às terras que estávamos negociando, meu cavalo empacou. Desci do animal, enquanto meu amigo dava meia volta em minha direção.
Tentei fazer o cavalo andar novamente, mas quando tentava, o vi outra vez.
Ele estava com a mesma roupa, montado displicentemente em um cavalo negro. Ele olhou profundamente em meus olhos, descendo da cela. Andou em minha direção, passando por dentro de Camus como se fosse fumaça, fazendo-o sentir calafrios. Quando estava a não mais que um palmo de distância de mim, ouvi a voz rouca e melodiosa que ele possuía pela primeira vez.
- Você não existe, não deveria estar aqui.
Confesso que fiquei irritado por ser tachado que inexistente por um fantasma. Ele deve ter ficado irritado comigo por não sumir também, já que suas sobrancelhas se franziram, quase apagando a cicatriz que ele possuía entre elas.
Ele riu de lado, deu as costas para mim e voltou a montar em seu cavalo-fantasma. Camus chegou logo depois, preocupado comigo.
Era a terceira vez que eu o via em menos de um dia. Ele agia como se existisse, como se fosse alguém, apesar de atravessar pessoas e esvanecer no ar.
Como se ele simplesmente fosse.
Depois que a visão desapareceu e convenceu Camus que sua palidez era normal e que estava tudo bem, passaram o resto do dia discursando sobre negócios, sem que nada anormal tenha acontecido.
Ao entardecer, quando Shaka retornava sozinho, o encontrou sentado ao pé de uma árvore que estava no caminho, esperando. Quando o loiro estava passando por perto, ele se levantou e falou.
Quando eu estava voltando de um exaustivo dia de negociações – a qual eu acabei ficando amigo de Camus – o encontrei sentado ao pé de um pessegueiro. Ele se levantou assim que eu passei por perto e falou comigo novamente.
- Passei a tarde te esperando, loiro.
- Não te dei liberdades para que me chame assim. – Ele era um fantasma, pelo amor de Deus! Eu não deveria falar com fantasmas!
Ele riu com a minha resposta, se divertindo.
- Eu não sabia que fantasmas tinham personalidade.
Já era a segunda vez que ele afirmava que eu não existia de verdade e eu estava começando a duvidar de minhas faculdades mentais. Ficamos em silêncio durante um tempo, mas acabei descendo da cela sozinho quando ele me pegou pela cintura e quase me derrubou da mesma. Achei estranho, levando em consideração que mais cedo ele passara por dentro de Camus. Como agora ele me tocava?
- Quero falar com você, loiro.
- Em primeiro lugar, eu tenho nome, não me chame de loiro. Em segundo lugar, você por duas vezes afirmou que eu não existia ou não deveria fazê-lo. Por que motivo então conversas comigo?
- Se você tivesse me dito seu nome eu te chamava por ele.
- Shaka.
Ele não desapareceria, então não achei por mal conversar com ele. Acreditei piamente que não se repetiria.
- O meu é Ikki. Prazer em te conhecer, Shaka.
Ainda hoje não entendo como ele encarava aquilo com naturalidade. Ele acreditava que eu não era e mesmo assim conversava comigo como se eu fosse. Mesmo que eu fosse parte daquele bizarro diálogo e que parecidos com ele tivessem se repetido, demorei muito para que me parecesse natural.
- Bem, Shaka, o que é você?
- Sou um homem.
- É, eu não esperava mesmo que você dissesse que era algum tipo de materialização de minha imaginação fértil. Antes que você pergunte, também acho que sou um homem e que sou real, certo?
- O que quer comigo?
- Conversar, já que te encontrei outras três vezes desde essa madrugada.
- Também te vi nessas três vezes e nem por isso puxaria papo com algo que só eu vejo. Se era só isso, com sua licença.
Fiz menção de sair, mas ele segurou meu pulso.
- Tive uma idéia; me veja como sua consciência. Não há problema nenhum em conversar com a própria consciência.
- Minha consciência saberia meu nome, não acha?
Livrei-me dele, voltando a cavalgar, e voltei para casa, chegando apenas à noite.
Enquanto cavalgava, olhava para trás e ainda o via, olhando para mim.
Quando Shaka chegou em casa pálido e ofegante, Pandora olhou preocupada para o marido, recolhendo as vestes pesadas.
- O que lhe aconteceu, Shaka?
- Não foi nada, Pandora.
- O jantar está pronto, eu estava te esperando.
- Obrigado.
Foram jantar e passaram a maior parte da refeição em silêncio.
- Shaka, o que te aflige?
Ele suspirou pesadamente, nada respondendo.
- Shaka, sou sua esposa há pouco, mas te conheço o suficiente para saber que tem alguma coisa acontecendo. O que é? Algum problema com a conversa que teve com Camus hoje?
- Não foi nada, Pandora. Só estou com sono.
Afagou os cabelos negros da esposa e subiu em direção ao quarto. Deitou-se na cama e nesse dia não demorou a dormir.
Dormi fácil nesse dia, apesar da insistência falsa da Pandora em saber se tinha algo errado acontecendo. Sonhei com Ikki novamente essa noite, mas deste sonho me lembro bem.
Estávamos em uma casa no meio de um vasto campo gramado, plano até perder de vista. O céu parecia perigosamente grande, bem maior do que teria direito de ser. Não havia nenhuma nuvem, o sol brilhava fraco e claro e uma brisa fresca soprava. Aqui e ali, algumas flores e frutos silvestres e poucas árvores. A casa era branca, de dois andares, feita inteiramente de madeira e margeava um lago repleto de peixes.
Eu estava sentado em um banco de madeira entalhada, ao lado de Ikki. Eu olhava diretamente para o campo e tinha a cintura abraçada por ele.
- Shaka, eu nunca imaginei que minha vida pudesse ser tão perfeita.
Dizendo isso, ele me beijou os lábios. Eu não fiquei espantado. Era como se fosse normal, comum.
Não me esqueço da sensação do beijo; era quente e tinha gosto forte. No sonho, eu gostava muito. Fora dele, aprendi a gostar também.
- Até parece um sonho, não acha?
Eu o olhei ternamente, como sei que nunca antes olhei para minha família ou minha esposa.
- Volto logo.
Ele me abraçou mais forte por um breve instante e adentrou a casa. Fiquei sozinho e não me senti desolado como imaginei que me sentiria. Me senti confortado por saber que ele voltaria.
E ele o fez.
Voltou com um copo cheio de chocolate quente que colocou em minhas mãos. Sorvi a bebida com gosto. Ele voltou a sentar ao meu lado com o próprio copo e eu pude reparar o cordão que ele usava. Era uma espécie de estrela, com a inscrição "Para Sempre Seu". Sorri involuntariamente quando vi aquilo.
Bebemos em silêncio. Quando já tínhamos acabado, ele pegou os copos para levar de volta e eu fiquei sozinho algo tocar e Ikki conversar com alguém. Me levantei e andei em direção ao campo, mas quando pus os pés nele estavam em outro local.
Era uma espécie de carruagem sem cavalos. E, como no outro sonho, me era comum. Acho que o nome é carro. Eu estava sentado ao lado de Ikki, que "controlava" a carruagem. Estávamos em silêncio; não um silêncio aconchegante como o da cabana. Era um silêncio fúnebre. Os olhos dele estavam lacrimosos e uma ou outra lágrima corria pela face. Ele parecia nitidamente perturbado e eu me perguntei por que eu não tomava o controle da direção. Andávamos rápido e olhando pela janela vi construções estranhas e mais carruagens sem carro. O dia parecia triste como Ikki. Chovia muito. Paramos só quando chegamos a um hospital.
Ikki foi correndo direto para conversar com a recepcionista e eu fui correndo atrás. Quando eu cheguei ele já estava seguindo as coordenadas passadas pela moça e ele continuou correndo. O perdi de vista e o reencontrei olhando para a porta de um quarto, a qual um jovem estava moribundo, deitado em uma cama lá dentro.
- Estou com medo, Shaka.
- Não precisa ter medo. Vai dar tudo certo.
Ele me olhava com olhos suplicantes que não combinavam com ele. Eu não gostava de vê-lo daquela maneira, tão frágil, tão inocente, tão choroso.
- Shaka, foi por isso que o Shun me deu o colar antes de irmos para a cabana. – nessa hora as lágrimas rolavam soltas pelo rosto dele – Ele sabia que aconteceria.
Eu não pude fazer nada além de abraçá-lo. Senti meu rosto úmido e as lágrimas quentes dele molhando meu ombro. Ele necessitava realmente daquilo.
Então acordei. Abri meus olhos e não vi Pandora ao lado de minha cama, mas quando olhei para frente vi Ikki olhando para mim com os mesmos olhos chorosos do sonho.
Realmente não combinava com ele.
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¹ Bem, Camus é um sobrenome, afinal de contas. E eu não queria colocar como o nome dele. Achei melhor colocar como sobrenome, colocar um nome no Pinguim e colocar o Shaka chamá-lo pelo sobrenome mesmo, para evitar confusão. ;D
O nome do Shaka que estou usando (Phalke) é da Sion Neblina, viu?
Oi povo!
Cá estou eu com mais uma fic! o/
Eu ia digitar tudo antes de postar mas eu não agüento! Eu preciso mesmo saber a opinião de vocês durante o processo!
Pretendo, PRETENDO, postar um capítulo por semana (se depender de minha overdose inspirativa vai sair sim, um por semana) e a minha previsão é de uns sete capítulos.
Sobre a trama: é algo meio surreal sim. Eu sempre quis fazer algo assim. Parece meio estranho, meio surreal até demais e até mesmo confuso, então vou fazer o impossível para deixar o mais explicadinho possível! Então, qualquer dúvida é só me perguntar que eu respondo!
Meu objetivo é fazer uma fic bonita, tocante, então eu posso ter tirado idéias de muitas fics bonitas que eu li por aí, muitos filmes e livros também. Qualquer semelhança com algo é mera coincidência.
Exceto uma certa fic de Harry Potter que eu li há muito tempo no fanfiction ponto net, Debaixo da mais não-sei-o-quê árvore ou algo assim. É Harry/Draco e é uma das fics mais lindas que eu já li. Não lembro a autora e muito menos o título completo (Eita título grande!) então quando eu descobrir eu digo o nome da fic e da autora, ta?
Lembrando que a fic me serviu de inspiração. Essa não é cópia daquela, não tirei minhas idéias de lá. A única coisa que me inspirei naquela fic é o sentimento de confusão real-não-real e do sentimento de "que-fic-linda" que eu quero (e não sei se conseguirei) deixar.
Ah! Sobre uma possível OOC do Ikki: o próximo capítulo é dele (assim como esse foi do Shaka) e vai explicar melhor o lado do nosso querido leonino, OK? E é até por isso que eu não fiz esse capítulo maior e coloquei direto a parte do Ikki aqui; achei melhor colocar um capitulo só para o Ikki e além do mais ficaria demasiado confuso,já que eu mexi com dois tempos diferentes em três narrativas nesse capítulo; inserir outro ponto de vista em outro mundo paralelo (ou algo assim) seria confuso demais, não acham?
Beijos, pessoas amadas, até o próximo capítulo!
