Abraço no Escuro - Parte I

"E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace"

Eu estava há muito tempo no escuro, desacordado, dolorido, desesperado. Acreditava que iria morrer. Por que duvidaria, por que teria esperanças? Ainda assim, meus olhos continuavam se abrindo, eu continuava olhando o escuro à minha frente como se aguardasse, como se houvesse alguma chance. Mas não havia, eu estava perdido.

Fechei meus olhos pelo que jurei ser a última vez. Não fez diferença alguma, eu continuava não enxergando nada. Quase pude sentir minha alma escorrendo por todos os poros do meu corpo, fugindo para longe da dor, do sofrimento, do mundo. Será que reencontraria Dumbledore esperando por mim?

Dessa vez a morte parecia bem menos heróica e indolor, mas eu não tinha mais forças para gritar de desespero. E assim eu me fui, para longe... para...

xXx

Luz. Era a luz no fim do túnel, a luz da Kingscross. Como da última vez, eu só precisava me levantar. Mas eu não conseguia me mover, sentia meu corpo, sentia a dor amortecida pela quase inconsciência, mas acima de tudo eu me sentia preso. Não, não era preso... alguém... me segurando? Era quente. Senti um cheiro que não era o de podridão ou dos dejetos da minha cela. Era um cheiro macio, com boas e amargas lembranças. Um cheiro que me fez voltar lentamente a inconsciência.

- Fique acordado, Potter – disse uma voz rascante. Eu lembrava dela, lembrava daquele tom frio, imperioso. Dessa vez tinha algo a mais. Preocupação? Talvez desespero. Não, impossível. Aquela voz nunca me mostrava nada além de desprezo, pelo menos até quando eu me lembrava dela. – Vamos Potter, não seja tão ridículo. Não está na hora de você morrer.

Mas acontece que aquele cheiro, aquele corpo aquecendo o meu, há tanto tempo desnudo e machucado, tornava impossível querer ficar acordado. Tudo o que eu queria era me encostar nele e dormir, talvez para sempre. Era uma boa forma de morrer, não em um chão sujo de pedra fria, mas com alguém me abraçando e pedindo para eu ficar. Talvez fosse uma alucinação, uma das melhores da minha vida. A última coisa que eu ouvi foi um xingamento.

- Ora, seu idiota, não desmaie!

E tudo voltou a ficar escuro. Ouvi um rugido ao longe e pensei, aquele anjo estava me salvando dos demônios do inferno, era isso. Mas não tive forças para continuar lutando.

xXx

Eu estava leve. Imaginei se dessa vez eu estaria realmente morto. Só isso poderia explicar a sensação de segurança e conforto. O ar cheirava a chá de limão. Nunca foi o meu preferido, mas era reconfortante.

Aos poucos minha consciência foi voltando, com ela a lembrança da minha alucinação. Só poderia ser alucinação, certo?

Junto a tudo isso, veio a dor. Meu corpo, eu podia sentir cada parte dele gritando e agonizando. Ainda assim algo estava diferente, não era a mesma consciência de dor de antes. Havia alívio ali. Ouvi minha voz gemendo em protesto quando tentei sentar. Levei um susto. Havia esquecido que ainda era capaz de falar, parecia que eu não me ouvia há séculos inteiros. E agora, eu falava. Ou melhor, gemia.

Ouvi um barulho à direita e de repente, abrindo os olhos, rápido como um flash, percebi onde estava. Deitado em uma cama, embaixo de cobertores, um quarto pequeno, uma figura vindo na minha direção. Eu só distinguia contornos e sombras. Ainda assim eu enxergava! Olhei na direção das minhas mãos e vi duas sombras aparecerem à minha frente. Gritei de surpresa, dor e alegria. De alguma forma, eu estava sendo curado.

- Fique quieto ou suas feridas vão abrir – disse a figura negra de voz rascante. Eu pisquei algumas vezes, como se isso fosse de alguma forma me ajudar a enxergar melhor. Não estar completamente cego já era um prêmio. Mas ainda assim, não reconheci quem era aquela pessoa, mesmo que o som de sua voz tenha causado uma pontada de reconhecimento em alguma parte do meu cérebro.

- Q-quem é você? – perguntei esticando a mão para frente, minha noção de profundidade era nula, queria testar o quão longe a pessoa estava de mim. Capturei apenas o vento.

- Seu anjo – respondeu ele com um sarcasmo cruel.

Demorei a entender aquela resposta. Até perceber que eu deveria ter chamado-o de anjo enquanto estive inconsciente. As imagens do que eu achava ter realmente acontecido se misturando com o que eu lembrava de ter delirado: muitos anjos, demônios, seres assustadores e um calor reconfortante, acompanhado de uma voz macia e baixa que me pedia para ficar. E eu fiquei.

Pelo menos agora eu sabia que, tirando os anjos e a parte mais fabulosa, eu estava mesmo vivo, era real. Nenhum delírio poderia incluir aquele tamanho de dor e um salvador tão maldoso. Mesmo assim, aquela pessoa podia não ser um anjo, mas havia me salvo e cuidado de mim, já era o suficiente para eu ser-lhe grato.

Ignorando o comentário, e ainda chocado com a realidade de tudo aquilo, comecei a apalpar meu próprio corpo, sentindo ataduras por todo ele, algumas molhadas de algo pastoso, seria sangue? Eu estava vivo, mas isso não significava que eu estava bem.

- Fique quieto. Está desfazendo todo o meu trabalho de curá-lo – disse o sujeito com no mesmo tom que alguém usaria antes de azarar outra pessoa. Ele largou algo que soou como talheres ao lado da cama, eu levei um susto com o barulho.

- O que é isso? – Perguntei com esforço, a voz seca e fora de uso saindo a contra gosto. Eu tentava focalizar o que quer que ele tivesse jogado a meu lado, porém só via sombras.

Meu salvador não respondeu, continuou fazendo o que quer que fosse ao meu lado, mexendo em algo. De alguma forma eu sentia uma certa familiaridade, ao mesmo tempo que alguma coisa me incomodava.

- Eu te conheç...

- Tome isso – disse ele, ao mesmo tempo que eu, sua voz firme me interrompendo.

Vi uma forma indistinta que lembrava um copo ser posta na frente do meu rosto. Estiquei a mão, apalpando o vento. O homem pegou a minha mão e a pôs diretamente sobre o copo, sem paciência. Eu sorri. Não sei como, não sei por que, mas eu consegui um fraco sorriso. Aquele estranho fazia com que me sentisse novamente criança. Uma sensação reconfortante após tudo o que eu passara.

- Obrigado – respondi novamente tentando ver o rosto do sujeito, apertei os olhos até eles ficarem quase fechados, mas tudo o que continuei vendo foi uma silhueta borrada.

- Você não vai conseguir enxergar por um bom tempo. Estou fazendo o que posso para curar o que... os seus ferimentos – disse ele e mesmo sem enxergar pude mentalmente visualizar seus lábios se crispando.

- Achei que nunca mais fosse enxergar quando... quando eles... – suspirei, as lembranças me invadindo antes que pudesse retê-las. A dor, a repulsa, o desespero, o prazer deles com meus gritos. Não consegui falar, a voz, fraca, voltando a fugir.

O homem enfiou mais algum objeto na minha frente com um gesto impulsivo. Era algo disforme que eu não conseguia identificar. Com um murmúrio contrariado ele enfiou o objeto no meu rosto. Levei um susto até perceber que nada mais era do que um lenço. Percebi então que eu havia começado a chorar, e ele, se prontificou a enxugar minhas lágrimas.

Lembrei vagamente que deveria fica envergonhado por aquela atitude, a minha e a dele, mas eu não sentia mais nenhum rompante orgulhoso. Como poderia, após tudo o que me passara? Além do mais, estava ainda necessitado de algum contato humano, e preferia sentir a pele quente dele roçando na minha, algo que antes nunca havia me feito falta como agora.

Se fora ele mesmo que me salvara, teria me visto nu, em uma poça de sangue, vômito e dejetos, numa caverna escura e decrépita, torturado e subjugado. Não tinha como sentir pudor daquela pessoa. E a verdade era que a idéia de pudor me parecia uma idéia quase abstrata.

As lágrimas começaram a rarear e ao sentir que o ímpeto de ternura do meu samaritano estava se esgotando, segurei-lhe a mão. Não queria que o contato fosse quebrado. Eu precisava sentir um pouco mais de calor. Apertei sua mão contra meu rosto, e quando senti que ele reclamaria, soltei-lhe.

- Obrigado – disse com um fiapo de voz.

O corpo do homem pareceu relaxar um pouco e em um tom de voz menos frio do que o que usara anteriormente disse, se afastando um pouco:

- Tome sua poção.

Ele permaneceu a meu lado, como se quisesse ter certeza de que eu realmente tomaria tudo. Obediente, acabei com o líquido em grandes goles. Era amargo, mas eu não me importei, estava com muita sede.

- Agora deite. Você precisa descansar.

Não havia porquê desobedecê-lo, afinal, aquele líquido quente fora reconfortante, mesmo com seu terrível gosto em minha boca. O calor foi subindo pela minha espinha e de repente me senti muito reconfortado debaixo dos grossos lençóis. Lentamente fui sentindo as pálpebras pesadas e em segundos estava novamente no mundo dos sonhos.

xXx

Acordei sendo rodado, o mundo parecia ter acabado de girar. Abri os olhos e encontrei um ambiente escuro, consegui discernir ainda menos sombras.

Uma mão habilidosa passava algo gelado por minhas costas, virei a cabeça e encontrei aquele conhecido contorno negro. Meu salvador.

- Fique quieto – disse ele sem parar de trabalhar.

- O que... o que você está... – falar era difícil, eu estava tonto.

- Curando você – respondeu ele como se lesse a minha mente.

Percebendo que seria melhor permanecer em silêncio, deixei-o trabalhando, sentindo suas mãos passando com aquela poção gelada por todo o meu corpo dolorido. Era quase refrescante, a coceira diminuía. Quando o estranho pareceu satisfeito com o trabalho nas minhas costas, me virou e começou a trabalhar em meu tórax e braços. Comecei a sentir um pouco de frio, mas não reclamei.

Quando a mão cheia da pasta úmida chegou à altura do meu rosto, as pontas de seus dedos roçaram tão levemente e delicadamente minha pele que eu naturalmente me inclinei naquela direção. O homem pareceu hesitar, e eu me dei conta do que estivera fazendo: desejando que continuasse me acariciando, confortando. Fiquei envergonhado com minha atitude de carência, estava prestes a voltar meu rosto para o outro lado, fingindo que aquilo jamais acontecera, quando as mãos continuaram o carinho.

No começo eu tinha a impressão de que o homem estava apenas delineando meu rosto, analisando a forma do meu nariz, sobrancelhas... lábios. Parecia que me estudava, procurando alguma coisa, algum traço que deixara passar despercebido. Ousado, inclinei mais ainda a cabeça, sua mão chegou à altura da minha orelha, se enveredando por meus cabelos. Novamente ele hesitou.

Com um suspiro entre o resignado e o contrariado, ele passou a mão por meu cabelo bagunçando-o e ao mesmo tempo tocando minha cabeça de forma suave.

Depois de tanto tempo de sofrimento, dor e tortura, eu sentia como se estivesse no paraíso. Aquele homem não estava apenas curando meus hematomas, eu podia sentir minha alma curando junto. Como se um pai ou um mentor estivesse cuidando de mim, alguém que me quisesse bem ao mesmo tempo em que não sabia lidar com as facetas de uma relação paternal. Nem eu mesmo sabia como deveria ser.

Mas lá estava ele, as mãos habilidosas em passar remédio parecendo desajeitadas ao acariciar meus cabelos, e mesmo assim ele tentava. Parecia até que andara querendo fazer aquilo. Eu sorri e o sono começou a chegar. O mundo ainda girava um pouco e eu senti minha cabeça pendendo.

O estranho cessou o carinho, senti-o se retraindo.

- Garoto abusado.

Foi o último murmúrio que ouvi antes de apagar completamente, confiando naquela pessoa, ao mesmo tempo conhecida e irreconhecível, para continuar cuidando de mim.


N/A: Espero que tenham gostado, e ao final, por favor, deixe um review :) Está bom, devo continuar a postar?