GOTAS DE CARINHO QUE TOCAM AS CHAMAS

I - Descoberta e Despedida

- Roy... - a voz macabra ecoou pelo cenário destruído, como se fizesse parte da névoa que o envolvia. Ele não acreditava que novamente estava naquele lugar maldito.

O rapaz de cabelos negros corria sem rumo, pisando no chão coberto de sangue. As memórias trágicas daquela época passavam em sua frente, como um filme, lembrando-o daqueles que foram mortos sem piedade e de como seus lares foram reduzidos a ruínas. A deusa Ishbala nada pode fazer para atender as preces de seus filhos, que até o ultimo momento tinham a esperança de que ela os salvaria.

O caminho percorrido parecia sem fim, até que uma grande muralha de cadáveres se ergueu na frente do jovem oficial, deixando-o ainda mais aterrorizado.

As vozes que chamavam seu nome iam se tornando mais próximas, fazendo com que o mesmo desespero que tomou conta de seu corpo na época do massacre voltasse à tona.

O nevoeiro ia se tornando menos denso a medida em que as figuras retorcidas se aproximavam. O medo o enlaçou com suas garras frias, ao ver aqueles rostos deformados à sua frente. A carne em decomposição de seus corpos era enfeitada com ferimentos terríveis, lembranças de seu encontro com o Alquimista das Chamas.

- Olhe o que fez conosco...

- Maldito...

- Cão dos militares...

- Não! Isso é impossível, vocês estão mortos, não podem falar, não podem estar aqui, vocês não existem! - ele colocou as mãos na cabeça, tentando não ouvir suas vozes moribundas, mas as palavras pareciam perfurar sua mente e enchiam seu coração de desespero.

- O poderoso Coronel está com medo? - a voz familiar o fez abrir os olhos. Instantaneamente, Roy tentou encontrar o amigo no meio do nevoeiro, mas a visão que captou foi a mais terrível de todas. Hughes estava em pé, a sua frente, com o ferimento de bala, que tirou sua vida, sangrando e vermes devoravam seu corpo, sob a farda azul dos militares.

- Ma... Maes... - o choque do que via o deixou completamente sem palavras.

- Roy... eu era seu melhor amigo... como você deixou isso... acontecer comigo?

- Não... Maes... eu tentei... eu não queria...eu não queria... - ele caiu de joelhos, com as mãos apoiadas no sangue que jorrava do solo, sem cessar.

- Ninguém será responsabilizado... minha morte foi em vão... e você permitiu, Roy... e tudo o que eu queria era ajudar você... como pôde?

- Eu vou ajudá-lo, Maes, sua morte não será em vão, eu vou.. eu vou... desculpe, Maes, me desculpe...

- Culpado... você é culpado... - todos os cadáveres começaram um coro fúnebre, enquanto se aproximavam do Coronel.

- Eu não quis que isso acontecesse, eu não quis! Por favor, me desculpem, me desculpem!

- Culpado... você é culpado... - o coro continuava, enquanto o circulo se fechava ao redor dele.

- Por favor, me perdoem, por favor, me perdoem, me perdoem, me perdoem, me perdoem, ME PERDOEM!

Mustang acordou completamente envolvido em suor. Seus batimentos cardíacos e sua respiração alterados, bem como as pupilas dilatadas eram o modo de seu organismo refletir o terror que acabara de vivenciar em sua mente.

- Roy... - a voz familiar alcançou seus ouvidos, ao mesmo tempo em que os braços femininos envolviam seu peito, fazendo-o sair do transe que ainda se mantinha. - Teve outro pesadelo? - perguntou, gentilmente, apoiando o rosto em seu ombro.

Um breve e quase inaudível sim foi sua resposta. Era a segunda vez naquela semana que acordava daquela maneira e ela compreendia a vergonha e receio que ele tinha de expor o que sentia e o quanto ainda sofria com tudo o que tivera que enfrentar naqueles últimos dias.

Colocando-se à frente dele, o abraçou carinhosamente:

- Está tudo bem, agora. Foi só um sonho ruim. Por mais horrível que tenha sido, não poderá machucá-lo.

- Você não sabe... o que eu vi.

- Então, me conte. - disse, retirando as mechas ensopadas de suor da frente do rosto masculino.

O coronel tentou manter a voz impassível enquanto tentava colocar em palavras todo o horror que acabara de vivenciar, mas o frágil autocontrole ruiu por completo ao relembrar o rosto do amigo morto e a dor que ainda sentia pela impotência diante da sua morte.

Quando teve certeza de que ele finalmente colocado tudo o que havia trancafiado em seu peito para fora, colocou as mãos sobre seu rosto e olhou em seus olhos com doçura:

- Gostaria de poder dividir esse fardo com você. Infelizmente, não é possível e sei que nada que eu fale irá diminuí-lo.

- Nem eu mesmo posso, nem com minha vida...

- Você não teve poder de evitar as coisas que aconteceram, mas agora você pode usá-las para aprender, fazer o melhor possível e tentar consertar os erros do seu passado e evitar futuros. Do contrario, tudo o que aconteceu terá sido em vão. E aí sim, você será culpado, por permitir isso.

- Riza... - ele olhou para sua Tenente, com um olhar cansado. Os últimos dias haviam sido terrivelmente difíceis. Sentindo-se perdido e frustado, somente ela conseguia faze-lo manter sua racionalidade e lembrá-lo que não estava sozinho.

Ela encostou-se na cama e o colocou em seu colo, abraçando-o, como a uma criança. Esses eram os raros momentos em que a Primeira Tenente tinha oportunidade de tratar os ferimentos da alma de seu companheiro. Sentindo o calor do seu abraço e aninhando-se, o Coronel encontrou o conforto tão precioso que ela sempre lhe oferecia, desde que haviam iniciado seu romance.

O silêncio entre os dois era apenas uma prova de sua profunda compreensão e sem perceber, as lembranças de tudo o que haviam passado para chegar até ali, inundaram os pensamentos de Hawkeye.

A vida militar é dura para todos aqueles que escolhem esse caminho, mas para os dois jovens, assumir o sentimento que nascera entre eles foi mais penoso do que o mais árduo treinamento. Primeiro, havia a vergonha das trocas de olhares que aconteciam, mesmo sem intenção. A amizade que aproximou os dois, agora parecia estar contra eles, pois um sentimento inquietante se desenrolava, até durante simples conversas sobre treinos ou armas.

Aquela situação era insuportável para ambos, mas Mustang se adiantou, o que não era nenhuma surpresa para aqueles que conheciam seu temperamento e mesmo depois de anos de amizade, as primeiras palavras da carinho ditas por ele pareciam surreais para Riza e a ela nem foi dado tempo para absorver a idéia de estar sendo correspondida, uma vez que o primeiro toque e o primeiro beijo que seguiram a declaração, fizeram sua racionalidade esconder-se em algum lugar distante.

Por um mês, eles pareciam adolescentes com medo de serem pegos pelos pais, pois todos os encontros eram furtivos e planejados com antecedência e sempre se desenrolavam em meio às madrugadas, fora da vista e do conhecimento de todos os outros militares. Roy sempre havia deixado claro que suas ambições eram as maiores possíveis e ambos sabiam que seu romance não seria bem visto aos olhos dos superiores. E nenhum dos dois gostaria de colocar a própria carreira e a do outro em risco, uma vez que conheciam a importância da vida militar para ambos.

No entanto, mesmo conhecedores da situação, esta se tornou sufocante, fazendo-a decidir alugar um apartamento e mudar-se para longe dos alojamentos. Não era muito, mas naquele momento era o que podia fazer por eles. Pelo menos, não precisavam mais se preocupar se alguém os veria trocando beijos ou outros gestos e palavras afetivas.

A primeira noite de amor aconteceu naturalmente, para consumar a sintonia de seus sentimentos e teria sido perfeita se Roy não tivesse que sair apressadamente logo de manhã cedo para retornar aos alojamentos. Mas mesmo com todos os contratempos, a paixão entre eles se fortalecia, diariamente.

E assim, alguns meses se passaram.

Todos os militares estavam presentes na reunião de emergência. Haviam sido informados que o que começara como uma rebelião na região Leste havia transformado-se em uma terrível guerra e era hora dos alquimistas governamentais entrarem em ação.

O nome de cada um deles foi chamado e uma ordem de convocação foi entregue.

Nessa hora, mesmo sem poder demonstrar, obrigada a ficar na posição respeitosa, diante de seus superiores, o coração de Riza estava apertado, como se a estivesse alertando sobre o que aconteceria. Seus temores foram confirmados, quando o Alquimista das Chamas foi chamado a se juntar ao grupo que iria partir na manhã seguinte.

Naquelamadrugada, como de costume, Roy foi até o seu apartamento e ao chegar ao seu quarto, a encontrou em frente à janela, fitando a chuva que caia, silenciosamente. Os cabelos loiros estavam presos em um rabo de cavalo, por uma fina fita azul, deixando à mostra suas belas costas pelo decote da camisola de seda branca que usava. Por mais que ele odiasse vê-la com aquele semblante tão triste, não pôde deixar de admirá-la por alguns segundos, antes de se aproximar.

Ele a abraçou por trás com ternura e ela aconchegou-se no abraço, querendo senti-lo ainda mais perto de si.

- Como você está?

- Eu não sei direito...

- Não sabe?

- Acho que só irei saber amanhã, quando estiver olhando você embarcar no trem. E quando vê-lo retornar, à salvo. - após essa frase, ela se virou e olhou para ele, com um sorriso triste. - Mas posso garantir que já estou começando a sentir saudades.

Mustang a abraçou novamente, cheio de carinho e falou em seu ouvido:

- Me desculpe. Eu nunca pretendi fazê-la passar por isso.

- Eu sei. Mas também sei que você é um alquimista governamental. Não seria justo fazê-lo escolher entre suas obrigações e nós... - Riza abaixou a cabeça e apertou o tecido da farda dele entre suas mãos. - Me desculpe por não estar conseguindo ser forte como você. Tenho certeza de que não é disso que você está precisando em um momento como este.

Ele segurou seu rosto entre as mãos, acariciando-o e sorriu:

- Não fale bobagens. Você é uma das pessoas mais fortes que já conheci. Afinal, só alguém forte poderia me agüentar.

- Roy... - uma solitária lágrima desceu pelo seu rosto, molhando o circulo de transmutação, bordado na luva branca na mão direita dele.

- Eu vou voltar, Riza. Sem duvidas. Mas antes, preciso saber se você vai me querer de volta. Ninguém sabe quanto tempo essa missão pode durar e sei que o tempo pode mudar as coisas. Não quero obrigá-la a me esperar.

- Não será uma obrigação... - respondeu, beijando-o.

Eles fizeram amor vagarosamente, aproveitando cada beijo, toque, movimento, sussurro e gemido, como se quisessem memorizar aquele instante e usá-lo como lembrança para os dias em que estariam distantes um do outro. E dormiram abraçados, aquecidos pelos seus corpos nus entrelaçados, embalados pelo som da batida de seus corações e pelo suave barulho da chuva que continuava a cair na cidade, melancolicamente.

Na manhã seguinte, a chuva da noite anterior havia se tornado uma fina garoa, mas mesmo assim, persistia. O céu cinza, com nuvens carregadas, refletia o que havia no peito dos dois oficias naquele momento.

Todos os alquimistas governamentais estavam na estação, esperando o trem reservado para eles. Acompanhando-os, estavam outros oficiais que foram desejar boa sorte para os amigos.

- Não vá morrer, heim! Quero que você esteja no meu casamento! - o rapaz alto, de olhos verdes claros, emoldurados por um par de óculos de armação prateada, falou alegremente, ao apertar a mão de seu amigo.

- Primeiro arrume uma namorada. E segundo, eu sou bom demais para morrer assim. - Roy sorriu, mostrando que mesmo naquela situação, seu ego continuava maior que ele próprio, mas assim que viu Riza fitando-o afastada dos outros, assumiu um semblante sério. - Maes, tenho que deixar algumas instruções para Hawkeye.

- À vontade. Também tenho que conversar com os outros. Vejo você na volta.

- Certo.

Assim que o amigo se distanciou, foi em direção à ela. Ambos estavam com a típica postura militar. Ficaram se olhando por longos segundos, até que Mustang quebrou o silêncio:

- Espero que não se importe que eu tenha pego isso emprestado. - ele colocou a mão no bolso, mostrando a fita azul que ela usara na noite passada e pôs em seu casaco, em um movimento discreto. - Mas eu preciso de algo que me lembre você, para que eu não perca o juízo na guerra. - ele sorriu, tentando amenizar a situação, mas o olhar dela encheu-se de tristeza, apesar de manter tanto a postura quanto a feição sérias.

- Me desculpe. Prometi a mim mesma que não iria permitir isso.

- Está tudo bem. - ele sorriu, gentilmente. - Debaixo dessa farda ainda bate um coração, não é?

- Parece que sim...

Nesse instante, o apito da locomotiva ecoou pela estação. A hora da partida estava próxima. Sabendo que não teria condições de falar nada carinhoso sem esboçar emoção, Riza fez continência, surpreendendo-o:

- Eu espero que volte em segurança e que sua missão seja bem sucedida.

Ele a fitou seriamente, mas logo deu um sorriso e aproximou-se, falando baixo:

- Você não sabe o quanto eu queria abraçá-la, agora.

A surpresa por ouvir aquelas palavras só a fez perceber que o trem já havia chegado quando ele lhe disse adeus e distanciando-se, alcançou o grupo de alquimistas que embarcavam. Quietamente, ela assistiu o trem partir e diminuir de tamanho, até sumir no horizonte, levando consigo uma parte de seu coração.