Lágrimas na escuridão
Olhei os enormes muros de pedras, enquanto era conduzido aos empurrões por entre uma porta de ferro. Minhas mãos permaneciam atadas, fora assim por todo o trajeto no ônibus. De início nos enfileiraram. Havia um homem, muito forte e extremamente branco, que gritava bem perto dos rostos de muitos de nós. Não que eu estivesse escutando. Não estava. Era um torpor que tomava conta do meu corpo e da minha alma. Via tudo como um filme em câmera lenta, as mãos daquele sujeito agarraram o rosto de um certo rapaz negro e muito franzino, para logo depois, lançá-lo ao chão.
Nos obrigaram a despirmos e depois a tomarmos banho coletivo, alguns soldados, incluindo aquele homem branco, seguravam um jato de água, tão forte, que machucava demasiadamente o corpo, era como apanhar a pauladas. Mas eu não sentia a carne sendo comprimida, estava miseravelmente anestesiado por um outro tipo de dor dilacerante.
Vestimo-nos, todos iguais, até então não havia percebido a quantidade de homens que estiveram comigo por todo aquele tempo. Agora os via muito bem, massificados, olhares humilhados, aflitos, amedontrados, ameaçadores, lunáticos, assassinos.
Acredito já ser noite, embora não se pudesse saber ao certo, tudo ali parecia noite. A iluminação era péssima, as paredes resistentes, porém mal cuidadas, a pintura descamando e em seu lugar enormes manchas de mofo. Não tinha ventilação e cheirava a coisa podre. Depois de um tempo considerável, em que vários homens uniformizados se revezavam a falar coisas das quais não lembro, nos levaram até as celas, novamente enfileirados. Lembrei dos matadouros, onde o animal caminha para a morte, era assim que a maioria estava, cabeça baixa e andar arrastado. Talvez, por que fosse assim que éramos tratados, talvez por que éramos realmente animas, no pior sentido da palavra.
Foi nesse instante que deixei um pouco o estado de sonolência, passando a ouvir. Era uma coisa indescritível, ao caminharmos no corredor, podíamos ver os presos, que já se encontravam em suas celas. Estes batiam nas grades, enquanto gritavam ameaças e por muitas vezes palavras obscenas. Era um só pavilhão com uma escada no meio dando para as celas que ficavam em cima. De modo que era possível, do chão, ver os dois andares de gaiolas. Alguns dos homens que vieram comigo foram postos nas celas do andar de baixo, enquanto eu e mais três fomos levados para as celas que ficavam em cima.
A cela foi aberta. Estava preste a entrar quando senti um forte empurrão, desequilibrei e só não caí porque me apoiei na parede que separa o sanitário da cama. Permaneci com a cabeça baixa, senti ímpetos de partir para cima daquele maldito policial, mas a minha atual condição não permitia atos como este. Fechei a mão vigorosamente, esperando que tão simples atitude me acalmasse. Não virei antes de ouvir aquela voz debochada e nauseante.
- Espero que goste do seu novo lar? Afinal, vai ficar nele por um longo tempo.
Mordi os lábios e virando o rosto, por cima do ombro o encarei. Por mais que eu tentasse, não podia negar minha natureza, o encarei desafiador. Mas sem dizer nada.
- Está me olhando assim por que, seu maldito? Quer um tempinho na solitária? Eu posso providenciar seu merda.
Virei o corpo, sentia o sangue ferver, dei um passo apenas, quando o outro policial que permanecia fora da cela se interpôs.
- Fique onde você está - Apontava um cassetete – E quanto a você Simon, não deveria fazer isso. Um dia você ainda morre por essas besteiras.
- Deixa disso, Frank. São apenas pardais, não tá vendo? Engaiolados – Disse enquanto fechava a cela.
Fiquei parado. E agradeci mentalmente por aquela intromissão, afinal, sei dos meus limites. Não suporto ordens, a não ser para depois quebrá-las. Odeio tirania, e sou estourado, perco a cabeça fácil com tipos como aquele. Isso não me ocasionou apenas coisas boas, admito. Foram vários os problemas desde a infância, o maior de todos me trouxe a esse lugar.
Sentei na cama dura. Olhei as paredes carcomidas e fétidas como todo aquele lugar. Riscos, nomes, xingamentos, frases misteriosas e até de fé e esperança. Duas me chamaram a atenção. Uma ao lado da minha cama dizia: "Se em nossas vidas a morte fosse realmente exposta à escuridão não seria nada do que apenas uma parte da vida. Arrependa-se e seja salvo".E a outra bem em cima da porta, foi escrita em letras grandes, riscando-se a parede até que ficassem muito nítidas: Um homem só morre verdadeiramente quando também morrer o último coração que o amou"
A última frase me deixou meio desconsertado. Fora parar na cadeia a mais ou menos dois meses, passei pelo julgamento, e fui sumariamente condenado. Então, fui transferido ao Presídio de segurança máxima Haborym. O pior é que não me arrependia, talvez não seria salvo mesmo, talvez nem quisesse. Não me arrependia e pronto, pelo menos não por enquanto.
Mas sentia tanta falta dele, meu irmão, a única família que eu efetivamente conheci. E agora, a única pessoa que me amava e que eu amava. Ele foi à pessoa que mais sofreu nesse processo todo, quem não descansou nenhum minuto junto ao advogado, intercedendo a meu favor, mesmo depois de eu ter confessado. Mesmo depois de ter dito que não me arrependia nenhum pouco pelo que havia feito. Sabia da gravidade do meu ato. Sabia que pagaria por isso e estava disposto, fosse qual fosse a sentença. Fecho os olhos e vejo o dia do julgamento. O juiz leu o veredicto. Culpado pelo crime de Homicídio e sentenciado a quinze anos de prisão. Eu já esperava por isso, mas virei um pouco o rosto a procura do dele e me deparei com uma cena torturante. Vi a última gota de esperança esvaindo-se daquele semblante, a sua face vermelha, as lágrimas espessas percorrendo sem cessar o caminho que ia dos olhos ao queixo, e depois despencavam para serem aparadas no peito coberto por um terno preto. Você chamou meu nome. Primeiro de um jeito quase sussurrado, embargado pelo choro. Depois, um grito. Permitiram que você me abraçasse. Eu, já algemado senti seu corpo ser violentamente sacudido por soluços. Uma angustia cortante tomou conta de mim, mas não chorei. Talvez, nem possa mais chorar. Minhas lágrimas secaram a mais ou menos dois meses. Naquela noite que mudou minha vida.
Alguém bateu na parede do lado direito da cela, resgatando-me do passado recente. Bateram novamente e depois uma voz forte falou num tom não tão alto. Acredito que para não despertar a atenção dos funcionários de vigia.
- Ei, ei "Peixe Fresco", que achou do lar? Isso aqui é o inferno, você nem faz idéia. Mas eu posso protegê-lo, você quer?
Mantive o silêncio, aquilo me deu asco. Ainda sentado na cama me recostei na parede.
- Ei, se eu fosse você não negaria a proteção do Pablo aqui. Isso é um erro. Espere, amanhã mesmo você muda de idéia. A última parte foi seguida por uma risada estranha.
O resto da noite não diferente das últimas que tivera, quase não consegui dormir. Fechava os olhos e uma enxurrada de lembranças atormentava-me a mente. Certa hora da noite, em que finalmente eu havia pego no sono, fui acordado por gritos alucinantes. Alguém gritava que não era culpado, que não poderia estar ali. Pedia que lhe tirassem daquele lugar, que o deixassem ir para casa. Outros detentos acordaram e começaram a se pronunciar. Pediam que ele se calasse em meio a muitos xingamentos e promessas de mandar ele não para a casa, mas para o inferno. Percebi pelo que diziam que o homem, desesperado, era um dos que tinha chegado junto comigo aquela tarde.
A gritaria do homem ensandecido durou alguns minutos, levando os outros a fazerem uma monstruosa algazarra, policiais vieram e ordenaram ao homem que ficasse quieto, este não conseguia se acalmar. Então pude ouvir a cela sendo aberta. Levantei da cama e fui até a grade. Olhei para as celas em baixo, as luzes acesas, enquanto as do lugar em que eu estava permaneciam apagadas. Vi quando dois homens, responsáveis pela nossa carceragem, retiraram alguém do cubículo. No corredor, começaram a bater violentamente em um homem baixo e meio gordo. O detento, caído no chão, pedia socorro, frases que eram cortadas por gritos que pareciam mais urros. Estranhamente a algazarra dos outros presos deu lugar ao silêncio, o que tornava ainda mais claro o barulho do cassetete sobre o corpo daquele homem, enquanto os gritos de dor e pedidos de ajuda pareciam ecoar dentro das nossas cabeças.
Os policias não o puseram de volta em sua cela, depois que este perdeu os sentidos foi arrastado pelo corredor. Até onde? Não pude ver. Provavelmente até a enfermaria.
Depois desse ocorrido, voltei a deitar, mas não mais dormi. Pus as mãos embaixo da cabeça e assim permaneci o resto da noite.
