01

Escócia, 1880

Era Primavera, Lydia nunca tinha visto seu jardim tão florido. Claro que também fazia pouco tempo que morava naquela encantadora casa. Havia se mudado para a Escócia fazia exatamente um ano, viajara até lá com intuito de estudar. Entretanto, sua área de pesquisa era uma muito incomum e as pessoas não entendiam Lydia.

Ela sempre fora diferente dos demais. Tinha olhos verdes e cabelos cor de ferrugem, além de poder ver fadas.

Na frente do portãozinho de sua casa estava pregado um anúncio dizendo que ela prestava serviços como uma Fairy Doctor, especialista em fadas, afinal, as pessoas podiam não ver as fadas, mas ainda assim, muitos problemas que tinham eram causados por elas. Não que todas as fadas fossem malvadas, a maioria era só um pouco travessa, como os brownies, pequenas criaturas de cor de chocolate e aparência meiga e levada, que brincavam de se equilibrar pelo portãozinho bem naquele instante.

Contudo, poucas pessoas davam crédito e vinham consultar Lydia, porque não acreditavam na fadas. Já se tinha ido esse tempo, e sempre que Lydia encontrava crianças e conseguia conversar com elas, buscava convencê-las da existência das fadas, porque as crianças eram as únicas que ainda podiam aceitar a idéia, a mente ainda espaçosa, e eram assim a única esperança das criaturas encantadas.

_Ah, Nico… como as fadas aceitam se passar despercebidas assim? –Lydia agachou diante de seu canteiro de camomilas, colhendo flores. Os brownies soltavam gritinhos empolgados do portão, divertindo-se bastante, os olhos brilhando. Lydia os observou de longe e sorriu. –Ninguém mais acredita nas fadas… –e lamentou para seu fiel companheiro, um gato de pêlo cinza claro e felpudo e olhos expressivos.

_Oras, Lydia, os tempos são outros. E como sabe, às vezes pode ser oportuno para uma fada poder passar despercebida.

_Sim… –Nico era mesmo muito sensato.

_E também, sempre terão você.

Diante do último comentário, Lydia abriu um lindo sorriso.

_Você tem razão, Nico. Embora ainda não ache isso justo.

Não se surpreenda por ter notado o gato falar. Nico também não era um gato comum, mas uma fada disfarçada de felino.

Ele meneou a cabeça.

_Mesmo assim, o dia está tão lindo, me deu vontade de dar um passeio. Que tal, Nico?

_Acho que vou recusar. Divirta-se, Lydia. –e já foi dando as costas, andando sobre duas patinhas.

_Nico! Eu sou uma moça do campo de fato, entretanto não deveria deixar uma dama sair sem um acompanhante! –ela reclamou, lembrando-o num tom um pouco repreensivo.

Nico parou e pensou sobre o assunto.

_Está bem… –o ponto fraco de Nico era ser considerado um cavalheiro. Qualquer coisa que o fizesse sentir-se como um lorde o atraía. O conhecimento estava certamente do lado de Lydia.

_Obrigada! Vou apanhar minha sombrinha.

_E as luvas!

_Luvas?

_Claro! Não vou andar com uma dama sem luvas. –mas Nico podia ser bem exigente nos seus gostos. Lydia riu a bom rir, mas concordou.

Usava um vestido azul-marinho naquela manhãzinha. Por morar numa área rural, não era necessário roupas muito chique, embora aparecesse linda com o vestido. A fita no pescoço de Nico combinava, o deixando ainda mais pimpão.

A menina ajeitou de leve os longos cabelos e calçou as luvas enquanto Nico a esperava na porta da frente, já com a sombrinha rendada.

_Como estão meus bigodes, Lydia?

_Simplesmente perfeitos!

Saíram assim, tranquilamente, em uma mão de Lydia, a sombrinha, e na outra, Nico. Caminharam muito tempo fronte aos pitorescos jardins e bosques verdejantes. Vários passarinhos e pequenos animais os assistiam discretamente. E já era próximo das nove horas quando alcançaram a estalagem no que seria o centro da vila. Foram tomar o desjejum lá.

Ao entrar, Lydia foi prontamente recebida pela estalajadeira, que a conduziu até uma mesa e anotou o pedido.

Na mesa vizinha, haviam três cavalheiros conversando em tons graves, bebericando chá com leite.

_Não posso acreditar! Em que mundo vivemos? –disse um, de farto bigode ruivo.

_Os pais hoje em dia não se preocupam mais com seus filhos! –completou o segundo, o mais velho de todos, usando um pince-nez.

_Sem dúvida, um escândalo. Uma moça tão jovem levada por uma morte tão tola! Puro descuido! –e o mais jovem de todos, usando um laçarote no pescoço, arrematou.

Lydia e Nico entreolharam-se diante do assunto intrigante.

_Também, a juventude não é fácil! Na minha época, nenhuma moça saía desacompanhada para nadar! –o Senhor Pince-nez lembrou, ultrajado.

_Sim, esse não é o primeiro caso! Não faz nem dois meses que morreu a outra jovem, ainda mais nova que essa! –o Senhor Bigode estimou. –Ainda bem que essas coisas não acontecem em nossa cidade.

_É preciso proibir essas crianças de saírem à noite. –e o Senhor Gravata anunciou orgulhoso, tal tivesse encontrado a solução perfeita.

_Desejam mais alguma coisa, senhores? –a estalajadeira veio trazer o pedido de Lydia e aproveitou para perguntar.

_Mais um pedaço de bolo. –Senhor Gravata foi pronto em dizer.

_Estão comentando o caso do afogamento da moça da cidade vizinha? –a senhora indagou, levando uma mão ao peito.

_A senhora é muito bisbilhoteira, mas sim, de fato estamos. Cuide de manter suas crianças em casa durante a noite! –e duramente, Senhor Pince-nez foi recomendando.

_Claro!

_Que estranho, Nico… –Lydia sussurrou para o gato na cadeira ao lado. –Tenho certeza que há alguma fada envolvida nisso.

_Sim… um kelpie provavelmente.

_Kelpie? Precisamente! Temos de investigar isso… –foi dizendo determinadamente, enquanto um brownie perto do prato de bolo a assistia e furava a massa com seu pequenino indicador.

Nico espantou a fadinha apressadamente, e concluiu:

_Porém, será perigoso, principalmente para você.

_Não, iremos pesquisar uma forma de deter esse kelpie cruel. Tenha certeza. –e cortou um pedaço do bolo de limão com chocolate para Nico, enquanto os três cavalheiros na mesa vizinha assistiam a cena, horrorizados.

Quando Lydia notou, sorriu sem graça, e brincou:

_Meu gato é dado à luxos. –e riu com modo inocente.

Os homens cochicharam qualquer coisa, mas Lydia não conseguiu escutá-los. Talvez preferisse assim.

Depois de tomada a refeição e de desembolsados os xelins para estalajadeira, Lydia apressou-se para casa, completamente concentrada no trabalho. Nico ia andando junto dela, então no chão, atento ao caminho.

_Veja só, Lydia! Uma visita! –e foi o primeiro a perceber uma mulher parada em frente ao portãozinho da casa em que viviam. Ele arrumou os bigodes e pôs as patinhas dianteiras no chão.

_Bom dia. –cumprimentou Lydia amigavelmente, interessada em ajudar.

_'Dia. A senhorita é a Fairy Doctor?

_Pois não, Lydia Carlton, ao dispor. –e mesurou meigamente. E não pôde deixar de notar que a mulher tinha alguma coisa peculiar no olhar. –Vamos, entre para conversarmos.

A senhora a seguiu. Não era uma mulher velha, sua idade devia não passar dos quarenta anos. Tinha uma aparência séria e um pouco refinada, porém obviamente era uma mulher do campo, usando um vestido similar ao da menina, porém marrom. Seus olhos castanhos mostravam-se um pouco parados e com uma luzinha solitária em cada um.

Lydia a sentou em sua sala de estar, ofereceu chá, e ao ouvir a recusa, sentou-se também, e Nico pulou para deitar ao lado dela.

_Muito bem, qual o nome da senhora?

_Miss Cathy Huey. Miss Carlton, preciso da sua ajuda. –Cathy não queria perder tempo. Lydia, notando isso, assentiu, encorajando-a a falar. Via algo de triste na mulher e sentia pena. –Sou da cidade vizinha, a senhorita conhece?

_Não, mas apreciaria fazer uma visita.

Cathy sorriu, mas tristemente.

_E lá existe… certo rapaz, um forasteiro. Não sei seu nome. Toda noite tenho observado-o. Ele aparece na taverna da minha família, pouco depois do anoitecer. Muitas vezes conversou comigo, contudo, sempre que deixa a taverna, leva uma moça. Inclusive, essa moça que se afogou, Helen… a última vez que a viram, foi com ele.

_Entendo… Você já seguiu esse rapaz depois que ele sai da taverna, Miss Huey?

_Não tenho essa coragem. Ainda mais depois do que houve com a Helen.

_E o que acontecia com as outras moças que o acompanharam?

_Foram encontradas próximas do grande lago sem qualquer lembrança clara do que foi feito do rapaz.

Lydia assentiu. Miss Huey parecia perturbada depois de dar o relato.

_Miss Huey, gostaria de ver isso de perto. Pode me levar até a sua casa?

Nico se ergueu ao lado de Lydia, assustado. Não concordava.

_Com certeza, Fairy Doctor. Espero que possa fazer alguma coisa por mim.

_Darei meu melhor. Espere um pouco, vou fazer uma mala para te acompanhar. Nico, faça companhia para Miss Huey.

O gato encarou Lydia e assentiu relutantemente. Mas a mulher apenas olhava baixo, torcendo as mãos, muito melancólica.

A influência de um kelpie certamente é muito forte! –Lydia ia pensando enquanto ajeitava as coisas. –E nem tive tempo de pesquisar uma defesa contra seu feitiço… Porém, não posso deixar de resolver essa questão! Não posso permitir que um kelpie fique partindo corações e roubando vidas assim.

Lydia apanhou um livro antigo e pesado que praticamente ocupou toda sua mala. Depois, completou o espaço com um vestido, uma muda de roupas interiores e de meias. Fez um coque no cabelo, apanhou o chapéu e apareceu na sala, pronta para a pequena viagem.

Miss Huey se pôs de pé com a entrada da Fairy Doctor. Nico ficou invisível e foi seguindo as moças até o ponto de coches. Dali meia-hora haveria um para a cidade vizinha.

_Miss Huey, quando esse rapaz conversou com você, como se comportou?

_Como um verdadeiro cavalheiro, Miss Carlton. Meu coração acelera só de pensar. Um rapaz tão gentil e educado… não posso acreditar que seja um criminoso. Mas a família de Helen só fala em matá-lo, temo que ele não sobreviva essa noite…

Lydia arregalou os olhos. Nenhum humano poderia lutar contra um kelpie.

_Não se preocupe. Vou resolver essa questão. Você verá! Eis: nosso coche! Vamos subir.

_Claro. Fairy Doctor, não te perguntei: quanto vai custar os seus serviços?

_Veremos isso depois.

Miss Huey assentiu. Fizeram a viagem em silêncio. Mais quatro pessoas e um terrier estavam com elas. O cachorrinho encarava Lydia suspeitosamente, porém ela não entedia por que. Não havia nenhum brownie por ali. Deu de ombros.

_Ah! Nico! –e exclamou, no meio do silêncio.

_Perdão, Miss Carlton? –Cathy indagou.

_Meu gato… esqueci dele.

_Ssh… Lydia. Estou aqui. –e um sussurro muito discreto alcançou o ouvido de Lydia, que suspirou aliviada.

A viagem levou quarenta minutos. Com olhos presos na janelinha do grande coche, Lydia apreciava a vista por cima de uma cabecinha ruiva – uma criança que sentava ao seu lado. A paisagem bucólica ia passando, os campos amplos pintados de ovelhas, o céu azul pintado de nuvens. O ritmo da carruagem era constante, Nico estava ficando cansado.

Do lado de fora, um homem anunciou o nome do ponto de parada. As duas senhoritas desceram da carruagem e Nico ousou ficar visível. Tinham chegado.

_Veja, Miss Carlton, seu gato. –Cathy apontou o animal no chão. Lydia fitou Nico, espantada, e depois sorriu.

Seguiram sua viagem, a pé então. Mais dez minutos e chegaram à casa de Miss Huey. Sua propriedade era grande, e nos fundos, por onde entraram, havia uma lagoinha com sapos, libélulas e peixinhos.

_Fique à vontade, Miss Carlton.

_Você mora sozinha aqui?

_Meus pais moram no centro, próximo à taverna.

Lydia assentiu e acompanhou Cathy pela pequena escadaria, chegando ao quarto de hóspedes. Lydia deixou a mala e pediu para Cathy acompanhá-la até a taverna e depois ao lago.

Notou pelo jardim, especialmente perto dos canteiros de flor, alguns brownies saltitando. A Primavera era a melhor época para ver fadas.

Fizeram todo o percurso, Lydia conheceu a família de Cathy e também a família de Miss Helen, que fazia dois dias que tinha sido enterrada, simbolicamente, já que ninguém encontrara o corpo. Prestou as condolências, ouviu a mãe reclamar, testemunhando quanto ao moço misterioso.

_Ele apareceu outra vez desde o acontecido? –Lydia interrogou.

_Só uma vez. Ontem. Foi falar comigo… –Cathy inexpressivamente respondeu.

_Ah! Miss Huey! Tome cuidado com esse homem! Nós só dormiremos tranqüilas depois que ele for enforcado! Ele levou minha Helen! –a mulher irrompeu, em pânico, agarrando as mãos de Cathy.

_Tudo bem, estou aqui para resolver isso. –Lydia consolou a senhora, que ainda trajava pesadas roupas pretas. Para Lydia, não era certo usar negro na Primavera.

As duas senhoritas deixaram a casa, pensativas e silenciosas. Poucos passos depois, Lydia exclamou:

_Nico! –e olhou em volta, mas nada do gato. Teria ficado invisível outra vez? Deu de ombros. Cathy não se importou muito.

_Está anoitecendo. –Cathy estreitou o xale junto ao corpo. –Vamos para a taverna.

_Ai, Lydia! Você está escarnecendo do perigo. –Nico sussurrou do chão.

_Não, precisamos acabar com esse sofrimento!

Lydia se sentou numa mesinha redonda, observando o redor. Nico apareceu em cima da mesa, sentado como gente. Por muito tempo os dois ficaram assistindo as pessoas entrar e sair, rir e beber, falar alto e tocar música. Cathy lhe serviu um ensopado como jantar, e conforme foi solicitado, trouxe um pratinho menor para que Nico comesse.

Então, alguma coisa aconteceu. A luz baixa, os vultos beirando o indefinido, o som alto – nada foi suficiente para ofuscar uma nova presença. Os olhos verdes de Lydia encontraram a face do estranho com a maior facilidade. Lá vinha um rapaz alto, pele dourada do Sol, cabelos intensamente pretos, cobrindo-lhe a nuca, sem corte, e olhos profundos, pretos também. Certeiramente se prenderam em Lydia, ela até sentiu um arrepio.

_Lydia… –Nico sussurrou, seguindo o olhar da menina.

A presença daquele rapaz perturbou os dois, os únicos capazes de detectarem o poder mágico que ele encerrava.

A impressão que teve é que o rapaz ia vir direto ao seu encontro, mas ele se distraiu no balcão, conversando com as pessoas por ali. De qualquer modo, foi óbvio que sorriu para Lydia, e desde o balcão ainda a olhava de vez em quando. O olhar dele a obrigava ficar parada no lugar. Não havia mais dúvidas para ela. Tratava-se de um kelpie.

_Tem alguma coisa errada acontecendo, não tem? –Nico murmurou.

As pessoas em redor não pareciam desagradadas da presença do rapaz. Se ele realmente fosse o kelpie que todos odiavam, não estaria ali tão tranquilamente, ludibriando todos, rindo junto.

_As fadas só podem assumir uma forma, não é? –a menina certificou-se.

_Sim, só uma forma.

Cathy veio servir uma rodada de cerveja para uns cavalheiros próximos de Lydia, que aproveitou e questionou:

_Veja lá, Miss Huey. É aquele o rapaz? –e indicou o moreno de camisa azul perto do balcão.

Miss Huey olhou longamente o homem, e depois negou com a cabeça.

_Nunca vi essa pessoa. –e a mulher adicionou.

As duas deixaram os olhos na figura dele, quando repentinamente, o próprio voltou-se e fez sinal para Cathy, querendo fazer um pedido.

_Cathy, não olhe nos olhos dele. –Lydia recomendou e deixou a senhorita partir. Assistiu os dois conversarem, e por algum motivo estranho, o rapaz não prestava muita atenção em Cathy, mas olhava diversas vezes em direção de Lydia.

_Vamos embora, Lydia! –Nico não gostava do que notava.

_Não podemos! Precisamos resolver isso.

_Ele é um kelpie! Você vai acabar como a tal de Helen!

_Nico! Isso não é comentário que se faça!

E de tão entretidos na discussão, nem notaram que o rapaz vinha até eles.

_Hey… –cumprimentou informalmente. Os cabelos dele ainda estavam pingando.

Imediatamente, Nico sumiu.

_Nico… –Lydia rosnou, um pouco assustada na verdade.

_Perdão?

_Não, não foi nada.

_Posso me sentar?

Lydia abriu um sorrisinho nervoso. Levou uma mão ao peito, assentiu, por fim. Precisava entrevistar aquele kelpie para conseguir tirar conclusões acertadas sobre o caso que resolvia. Não devia ter medo.

O rapaz olhava-a com uma expressão de diversão, um sorriso que era só uma linha entre seus lábios, e os olhinhos apertadinhos sempre presos no rosto um pouco pálido da moça.

_A senhorita é nova por aqui.

_Estou de passagem.

_Certo… –sorriu outra vez. Ela quase franziu a testa, sem entender porque o rapaz sorria tanto. Afinal, ele era um kelpie, e seduzir era uma das especialidades deles. –Estou aqui para conhecer uma garota.

_Verdade?

_Aquela ali, do cabelo louro… –e ele apontou Cathy. Foi muito gentil da parte dele chamá-la de garota. Lydia sorriu, achando-o engraçado, e assentiu depois.

_Miss Huey é uma boa moça.

_Parece. Meu irmão… não para de falar dela.

_Seu irmão?

_Sim, caçula ainda. Acho que o amor não se importa com idade. –e o kelpie olhou Lydia astutamente.

_Pois é… –ela desviou a vista. Mergulhou em pensamentos a respeito do caso. Quais seriam as intenções daquele kelpie? Será que ele iria levar Cathy para o irmão dele? Não fazia sentido.

O kelpie, riu um pouquinho. Tinha se interessado pela moça desde que entrou no lugar. Achou o gosto do irmão muito estranho. Porém percebeu mesmo que a tal Miss Huey já estava completamente tomada. Em sua opinião, a moça ruiva era muito mais interessante, bonita e apropriada. Imediatamente percebeu que não era uma humana comum e que dificilmente conseguiria ganhá-la do jeito clássico. Fairy Doctors merecem um tratamento diferenciado. Naquele tempo em que estiveram em silêncio, ficou analisando o rosto da moça. A pele era tão macia, rosada… poderia ser bem apetitosa, porém, não conseguiria comê-la. Era preciosa demais para virar refeição, além de que nem sentia fome. E os olhos verdes que ela usava para vê-lo eram raros demais para serem inutilizados.

Lydia sentia que ele a analisava, mesmo que não estivesse olhando para ele. E decidiu que era hora de pôr tudo às claras.

_Muito bem… vim aqui por causa do estranho caso de afogamento de Miss Helen. Você ouviu algo a respeito?

_A senhorita não é da polícia, certo? –foi um chiste muito bem executado, e Lydia sorriu para ele.

_Não. Sou uma Fairy Doctor. Tenho certeza de que esse afogamento foi causado por um kelpie. Conhece algum relato de kelpie nessa região?

_Conheço relatos sobre kelpies em toda a Escócia.

_Não serve. Preciso da história que aconteceu aqui, há aproximadamente uma semana atrás.

_A senhorita é bem mais esperta do que pensei.

Ela sorriu astuta e assentiu. O kelpie riu também, debruçando-se um pouco sobre ela, instigando-a.

_Se você me seguir, podemos resolver esse problema.

_Como? Vai querer fazer um negócio comigo?

_Jamais! Tenho certeza que não vai honrar seu trato.

Kelpies são mesmo arrogantes! –Lydia se impacientou. –Porém, muito espertos. Não posso subestimar esse…

_Se eu te seguir, para onde vai me levar?

_Para Helen.

_Helen? Está viva?

_Sim… meu irmãozinho, ele acabou cometendo um erro. Vim aqui para desfazê-lo. Sabia que ele estava correndo certo risco…

Lydia enfim franziu a sobrancelha. Debruçou-se na mesa, imitando o kelpie, instigando-o por sua vez.

_E como é que pretende fazer isso? O que foi que realmente aconteceu?

O kelpie jogou o corpo para trás, contando com o encosto da cadeira para ampará-lo. Passou a mão nos cabelos, sorrindo como um bom escocês, largo e vibrantemente, e depois fitou Lydia.

_Ele se enganou. Não era em Helen que estava interessado.

_Desde quando vocês realmente se interessam pelas pessoas?

_Oras, está insinuando que não temos coração?

_Vocês vêm causando problemas demais aqui para quem têm coração!

Ele estalou os lábios, olhando outra direção. Os olhos negros que possuíam eram tão misteriosos. Lydia ficou fitando o perfil perfeito dele, intrigada sobre a próxima reação.

_Seu irmão por acaso acha que Miss Huey é mais apetitosa que Helen?

_Até agora não entendia o que passava pela cabeça desse meu irmão. Olhando para você, consegui. –e voltando-se para ela, confessou. Lydia sentiu arrepios, que sensação terrível para se ter diante de um kelpie! Sua sorte era que ele não tinha intenções de enfeitiçá-la, caso contrário já estava pulando com ele dentro do lago para nunca mais voltar. O que seu pai pensaria disso?

_Eu acho melhor encerrar nossa conversa agora, senhor. –e observando o movimento na taverna, viu Cathy pegar o xale.

_Por quê? –manhoso, o kelpie replicou.

_Veja só, minha cara Cathy está pronta para voltar para casa.

_Sendo assim, vou acompanhá-las.

_Não tem por que. –Lydia ergueu-se.

_Eu insisto. –Kelpie levantou-se, em respeito e a seguiu, mesmo que Lydia o olhasse reprovando.

_Quem é esse, Miss Carlton?

_Ele é… –e Lydia olhou a face mística do kelpie. –Um velho conhecido, Senhor Kain…

Ele fez uma mesura elegantíssima e sorriu gentilmente, o que era muito inesperado para um kelpie, e Lydia achou tudo extremamente esquisito. Com pouca emoção, Cathy respondeu a mesura. O kelpie olhava-a, analista, o olhar da mulher estava completamente tomado pelo redemoinho, e o coração sofria, porque estava apaixonada por um rapaz misterioso e inexplicável.

_Senhor Kain vai nos acompanhar até sua casa, Miss Huey. –Lydia explicou a seguir, séria.

_Que bom.

E foram os três em total silêncio. Cathy encarava o kelpie, um pouco perturbada. Não entendia que roupas despojadas eram aquelas que ele usava – uma linda camisa bem cortada, azul, mas sem botões, fechada por cordões trançados folgadamente, mostrando parte de seu peito, e uma calça negra que o alongava, fazendo parecer muito mais alto ainda. Havia alguma coisa de similar com o rapaz forasteiro que a intrigava, que tantas noites viera vê-la, dizer-lhe coisas doces e olhar no fundo dos olhos.

Quando Cathy fechava as pálpebras, vinha-lhe logo a imagem do rapaz. Ele era dourado de pele e de cabelos negros, seu sorriso e sua voz eram deliciosos e aconchegantes. Por quanto tempo tinha esperado alguém como ele! E ele lhe dava tanta atenção, fazia tanta questão de estar com ela! Por que tinha sempre de deixá-la ao sair, quando na verdade ela queria ir com ele, não importando para onde… Suspirou, o coração apertado.

O kelpie ali ouvia os pensamentos de Cathy e perguntava-se como era possível que ela amasse tanto a um estranho. Não era apenas o encanto que seu irmão lançara que a motivava a agir daquela forma. Cathy estava encantada pelo rapaz antes mesmo de ele ter feito qualquer feitiço.

Sorriu, tocado, e olhou Lydia em seguida. Ela era uma garota tão linda! Nunca tinha visto uma como ela.

Chegaram então na cerca viva dos fundos da casa de Cathy.

_Bem, Senhor Kain, obrigada pela companhia. –Lydia mesurou, preocupando-se em olhá-lo nos olhos e ver que tipo de expressão ele tinha.

Os olhos de kelpie sorriram para ela, o brilho branco que iluminava debilmente o vórtice negro chispou como relâmpagos dividindo um céu de tempestade. Uma expressão tão linda, involuntariamente, Lydia sentiu-se hipnotizar.

_Poderei dormir tranqüilo agora. –ele murmurou, cavalheiro. Cathy prestou atenção em sua frase, assentiu, e abriu o portãozinho.

Lydia suspirou, esperou um pouco para segui-la, vigiando o kelpie. Mas ele não olhava nenhuma outra direção, só a de Lydia.

_Miss Huey está apaixonada por meu irmão. –ele segredou então, entrando com Lydia e fechando o portãozinho. A moça concordou. E sobre isso devia fazer alguma coisa.

_Irei resolver isso.

_Estou interessado em como o fará.

Lydia sorriu em desafio:

_Kelpie, não me provoque, certo?

Ele pareceu espantando em ouvi-la chamá-lo "Kelpie". Era difícil ver uma moça reconhecê-lo tão friamente, e era o mínimo a se esperar de uma especialista em fadas, porém, aquilo lhe foi chocante. Sorriu, largamente.

_Nos veremos em breve, Lydia. –e despediu-se.

Seu nome soava muito inquietante na boca dele. Lydia corou, contra vontade, e assistiu o kelpie mergulhar na lagoinha do jardim, num lampejo tornando-se um cavalo completamente negro.

Ao entrar e trancar a porta, subiu para encontrar Cathy, que colocava uma coberta na cama que Lydia usaria.

_Miss Huey, quero conversar com você.

_Claro.

_Descobri quem o rapaz é… porém, ele nunca mais virá à cidade.

_Nunca mais poderei vê-lo?

_Temo que não.

_O que será de mim sem ele? Miss Carlton! Não… eu… não te contei a verdade, mas… eu…

_Não, Cathy, eu sei. Não se preocupe com isso.

Cathy olhou desconsoladamente para Lydia, os olhos castanhos brilhando cheios de lágrimas. Quando Kelpie disse que ela amava seu irmão, tinha falado muito sério. Era fácil de detectar, o que Cathy sentia ia além do feitiço. O que restava era entender se o irmão de Kelpie correspondia e por que levara Helen por engano.

Nico surgiu então, sentado na janela, contornado pelo luar, e suspirou, triste pela delicadeza da situação.

_Sei como deve estar se sentindo, Cathy. Veja o que vamos fazer: preciso de dois conjuntos de rédea, assim que amanhecer o dia.

_Rédeas?

_Sim. Nós iremos buscar o rapaz que você ama.

_Mas não temos cavalos… não entendo, Miss Carlton.

_Não precisa. Confie em mim. Desse modo, vamos descansar… amanhã teremos um dia importante. –e pegando a lamparina que Cathy tinha trazido, Lydia acendeu a de seu quarto, e deu boa-noite. A mulher saiu, o olhar confuso e respiração irregular, para tentar descansar.

_Que complicação, Lydia! –Nico desceu da janela enquanto sua amiga começava a tirar o vestido.

_Nem me diga… e onde estava até agora?

_Com você, oras…

_Duvido. –Lydia o provocou, divertida. Vestiu a camisolona que trouxera e começou trançar os cabelos, olhando pela janela. Dali, via a lagoinha acertada pelo luar. A água ainda parecia mover-se com o mergulho de Kelpie.

_Aquele kelpie… vai dar muito trabalho para nós.

_Suponho… porém, preciso conversar com o irmão dele. Ele não tem agido justamente com Cathy.

_Lydia! Kelpies não são cavalheiros!

_Também achava isso, mas agora…

Nico definitivamente não gostou do que notou. Bufou.

Lydia sentou na cama e pegou o livro que havia trazido. À luz pequena da vela, foi lendo a parte sobre os cavalos d'água. Havia muitas histórias de kelpie registradas ali. Estudou-as por um longo tempo, até que chegou numa curiosa receita.

_Dê uma olhada nisso, Nico…

_Uma poção?

_A maioria dos ingredientes encontraremos aqui mesmo no jardim. É nossa única vantagem!

Nico não estava muito certo sobre o plano de Lydia. Só que não tinha muita opinião para convencê-la do contrário.

Quando Kelpie chegou ao lago, viu seu irmãozinho afoito em seu aguardo.

_Então? Conseguiu? Achou a Cathy? Trouxe-a para mim?

_Relaxe, irmãozinho… uma pergunta de cada vez! Não posso dar todas as respostas ao mesmo tempo.

_Onde ela está? –mas o jovem kelpie nada pareceu ter ouvido. Olhou os lados, procurando a mulher.

_Não veio. Não pude trazê-la. Encontrei uma Fairy Doctor.

_O quê? Não, isso não é nada bom.

_Esqueça, Cathy já suspeita de você. Por que teve de ser tão tolo? Sempre lhe disse para nunca beber a cerveja dos homens.

O jovem kelpie olhou outra direção, emburrado, ignorando a expressão debochada de repreensão que seu irmão mais velho exibia. Fora a única vez que ousara beber, e justo naquela, raptou Helen, uma garota suscetível que conseguiu levar para o fundo do lago. Porque estava perturbado pela bebida, quase matou a moça, se não fosse por seu irmão mais velho, que a protegeu e proveu para que continuasse respirando debaixo d'água.

_Você realmente gosta dessa Cathy?

E o jovem kelpie sorriu sonhadoramente. Lembrava-se muito bem do momento que a vira a primeira vez. Ela lhe sorriu brilhantemente naquela manhazinha, ao flagrá-lo saindo de seu portãozinho dos fundos, o cabelo pingando muito. Não se irritou ou se assustou, mas olhou dentro dos olhos do jovem e ofereceu ajuda. Pegou uma toalha do varal ali perto e secou-lhe o cabelo e o rosto. O jovem kelpie nunca tinha sentido nada como aquele cuidado.

_Sim, irmão. Gosto muito de Cathy.

Kelpie meneou a cabeça diante da frase do irmãozinho. De repente, sentia-se feliz em vê-lo apaixonado. E afinal, como não sentir-se assim quando algo não muito diferente despertara-se em seu próprio peito?

_Como está Helen?

_Do jeito que a deixou.

_Perfeito. Tenho um plano para amanhã. Ouça-me atentamente. Acho que nós dois poderemos encontrar a felicidade se minha idéia funcionar…

O jovem kelpie pareceu interessado, e aproximou-se mais para assimilar o que seu irmão lhe confidenciaria. Era um grande plano, um pouco arriscado, mas nunca tinha se preocupado com o perigo. Era um kelpie afinal, estava acima até de criaturas da corte de Unseelie, não tinha muitas coisas a temer. O que não queria, entretanto, era perder Cathy.

Pois ela também não teve medo. Nem quando ele atrevidamente esticou o pescoço e roubo-lhe um beijo. Aquilo tinha sido a perdição de Cathy – estava longe de ser um feitiço de kelpie, e ainda assim, a fascinou. O jovem kelpie também não conhecia feitiço mais forte do que aquele que então estava nele.


Olá!

Assisti a série "Earl and Fairy" em um fim de semana, visto ser apenas doze episódios. O anime é lindo e muito romântico, a Lydia é um doce, mas com certeza os livros devem ser melhores.

Fiz algumas pesquisas e tomei a liberdade de escrever o encontro de Lydia e Kelpie nessa fic de dois capítulos.

Eu gosto muito do Edgar, mas sinceramente, pela primeira vez na vida, preferia que a Lydia ficasse com Kelpie. Ele é lindo, fiel a ela, um cavalheiro, além de ser uma criatura mística muito interessante! Todo episódio que ele aparece é demais! ^^

E por amar tanto o Kelpie, quis escrever sobre ele e ao mesmo tempo não ferir a linha de raciocínio da série. Por isso, quem quiser saber o que acontece depois de que a Lydia e o Kelpie se encontram, assista o anime.

Se lerem, por favor, me deixem uma review! A opinião de vocês é muito importante!

Beijos!

05.03.2009