De volta ao Cabo Sounion

Capítulo I – A praia

Era um dos raríssimos dias de folga no Santuário de Atena. Como sempre ocorria nessas ocasiões, Kanon e Saga permaneciam juntos. Afinal, o tempo já era escasso nos dias ditos "normais"...

Ambos os gêmeos decidiram ir a uma das praias do local. Ela era, naturalmente, deserta; não havia quase frequentadores de praias naquele local, tão rígido e cheio de atividades, tão escondido do resto da Grécia...

Eles estavam em silêncio, contemplando o horizonte, sem saber muito bem do porquê de terem ido à praia. Os dois sentados sobre uma pedra, as mãos entrelaçadas, os olhos de Saga presos no horizonte e os de Kanon perdidos, sem foco definido.

- O que tem, Kanon? - indagou seu gêmeo, percebendo haver algo de estranho naqueles olhos garços, quase iguais aos seus.

- Não sei. Acho... que é porque não gosto do mar.

- Por que não?

- Ora! É claro que você sabe do porquê! Os treze anos que eu não deveria ter vivido foram passados lá embaixo. Não gosto nem de lembrar!

Saga continuou mirando o rosto do irmão, e lugubremente constatou que de certa forma era culpado por aquilo. Afinal, quem castigara Kanon e, indiretamente, o levara até ao reino submarino...? Ele mesmo, claro.

Foi por pensar nesta sua "culpabilidade" que Saga disse a Kanon, também quase melancólico:

- Eu também não gosto muito do mar.

- Então o que estamos fazendo aqui?

- Não sei...

- Quer ir embora?

- Não.

O olhar de Kanon cismava em ficar distante. Saga, que não gostava de segredos ou manipulações entre os dois, indagou de maneira direta:

- Tem certeza de que não há nada de errado além do fato de não gostar do mar, Kanon?

- Bem... Saga, eu não gosto de falar muito. Mas...

- Diga, Kanon. Não é bom que haja segredos entre nós.

- Não é segredo. É apenas... algo desagradável... do qual você já tem conhecimento.

O mais velho foi até as costas do gêmeo, o abraçando por trás.

- Fala daquela maldita ocasião no Cabo Sounion, não é?

- Também.

Saga estreitou o corpo de Kanon para mais perto do seu. Em seguida, disse:

- Foi horrível para mim também, por mais que não pareça.

- Eu sei, Saga. Na época eu não entendia, mas hoje eu entendo. Eu sei que tudo aquilo só aconteceu... porque você estava sem mim.

- Mas não consegue superar o que passou lá. Não é verdade?

Kanon tentava esquivar suas respostas, um pouco incomodado.

- Você fez o melhor que pôde. A pena para alta traição é a morte. Se me entregasse para Shion, seria minha condenação certa. Você me deixou nas mãos de Atena, Saga... nas melhores mãos que poderia deixar.

- Não falo de sua compreensão racional do fato. Falo do seu subconsciente... por um acaso conseguiria ir até lá sem ter más lembranças?

O coração de Kanon teve um sobressalto, e Saga, enlaçado a ele como estava, sentiu.

- Claro que não, Saga. Posso ter voltado para Atena por ela ter salvo minha vida de forma tão desinteressada, e também posso ter voltado com você... mas passar pelo que passei na Cela do Cabo Sounion... é algo impossível de esquecer.

E em seguida voltou os límpidos e tristes olhos novamente em direção perdida... e Saga soube! Ele não olhava o nada, mas sim... o Cabo Sounion, o local onde os dois gêmeos cruelmente se separaram.

- Eu o amo tanto, Kanon...

Saga dizia isso ao companheiro por uma espécie de compensação, por tê-lo sofrer daquela maneira. É certo que Kanon teria de ser mantido fora do alcance de Atena, e era certo que entre matá-lo e deixá-lo cometer o mal, Saga preferiu entregá-lo ao julgamento da deusa... mas...

Mas aquele ainda era um capítulo mal-resolvido na vida dos dois. Mal-resolvido até na vida "conjugal" deles. Pois Kanon nunca, nunca lhe dissera nada sobre o que havia passado na Cela, e muito menos no Reino de Poseidon. Sua parte maléfica sabia¹, mas ele, o Saga denominado "bom", nunca chegou a saber.

Portanto, Kanon simplesmente ignorava aquela parte funesta e desagradável de sua vida, calcando-a no fundo de sua alma e fingindo esquecê-la. Sorria para Saga, amava-se com ele, comia com ele, treinavam juntos os novos aprendizes, cuidavam da Casa de Gêmeos e de suas incumbências... enfim, aquela vida dura e regrada porém recompensadora e amorosa, ao lado de Saga, parecia ser perfeita para um combatente como ele. Vinha cansado das obrigações diárias, mas era compensado por ver seus aprendizes cada vez mais fortes, e por obter os lábios macios e quentes de Saga à noite...

Viviam, aliás, uma lua-de-mel contínua. Fazia pouco mais de um ano que haviam voltado à vida terrena e ao serviço de Atena, e a briga mais séria havia sido sobre dez minutos de atraso de Kanon para os treinos. Briga essa que logo se desfez em doces carícias atrás de alguns pliares, para que os aprendizes não vissem...

Eram belos, eram fortes, estavam em paz... Kanon finalmente tinha alguma "vida social" por treinar os rapazes e por não precisar se esconder dos outros. Porém, havia ainda "aquilo". E esse "aquilo" não era apenas o cárcere de dez dias no Cabo Sounion. Eram aqueles malditos treze anos no Reino de Poseidon, tramando contra a deusa que lhe salvara, por menos que ele merecesse. Era Saga ter sofrido tudo aquilo, sendo brutalmente arrastado àquela tremenda dupla personalidade – só por causa dele!

- Você me ama, Saga, mas eu me odeio.

- Kanon...

- Não. Eu não mereço o seu abraço. Eu não mereço sequer o cargo e a vida que Ela me deu. A minha angústia é tanta, que eu nunca mais queria pensar.

- Kanon!

- É a mais pura verdade! A minha consciência dói e me atormenta. Caso eu já não soubesse que a consciência continua mesmo após a morte, eu gostaria de morrer. Mas eu sei que não vai adiantar nada. Então eu gostaria de nunca mais pensar, de nunca mais sentir o mundo à minha volta... nunca mais.

- Não diga isso!! Se Atena o perdoou, é porque ela soube o que fez! E além de tudo... preferiria mesmo não sentir mais nada? Nem mesmo... eu?

- Você é um dos únicos motivos que me fazem sorrir. Você, e é claro, ver aqueles meninos que treino logo se tornando homens e servindo à deusa da maneira que deve ser. Atena... Saga... vocês dois são a minha vida, e não é à toa que as últimas duas coisas nas quais consegui pensar antes de morrer foram vocês²...

Saga não conseguiu deixar de beijar a seu irmão na boca, segurando em sua nuca e também seus cabelos, fechando os olhos e unindo as duas almas que tanto se queriam bem.

- Hum... mas mesmo assim, Kanon... - disse Saga, logo que terminaram o beijo - Você precisa esquecer, não fazer mais com que o passado ruim lhe traga sofrimento; apenas experiência, para que possa não mais cometer os mesmos erros. Para tanto, é necessário examinar o passado, não vivê-lo. Pare de viver o passado, Kanon!

- É como eu lhe disse, Saga... certas coisas não são para se esquecer.

- Mas você vai esquecer! - e o primogênito bradou de tal forma, que o caçula até mesmo se sobressaltou - Vai ter que esquecer aquele período maldito para nós dois! Ou eu não me chamo Saga de Gêmeos!

-... e como quer que eu esqueça? Hein? Como planeja me fazer esquecer algo que está gravado em minha existência, por menos que eu queira...?

- Fui eu quem levou você até a Cela do Cabo Sounion, não foi? Fui eu, portanto, que iniciou tudo aquilo!

- Não!! Quem começou "tudo aquilo" fui eu, ao ter aquela idéia idiota de matar ao Mestre e a encarnação de Atena. Se eu tivesse ajudado você a se livrar da idéia em vez de endossá-la, que sabe tudo não pudesse ter sido diferente! Quem sabe nós dois juntos não pudéssemos derrotar o ser maligno que o possuiu...

- Você falou agora do plano de idéias. Não do plano de ações. A primeira ação, a de te trancafiar na prisão do Cabo Sounion, foi tomada por mim. Portanto, quem vai remediar esse negócio serei eu! Vamos!

- Va-vamos?! Aonde, Saga?!

- Aonde!! Ao Cabo Sounion, oras!

De repente, a hedionda idéia de que Saga queria levar os dois para morrer na Cela passou-lhe pela cabeça. E isso causou-lhe resistência.

- O que... o que vai fazer lá, Saga?

- O que acha que vou fazer?

Ao ver o olhar assustado e surpreso do gêmeo, Saga entendeu o que ele estava pensando. E riu.

- Não, Kanon, dessa vez não vou prender ninguém! Ande, vamos e verá.

Receoso porém com medo de que seu irmão pensasse que não confiava nele, Kanon aos poucos levantou da pedra, onde ainda estava sentado, e foi até o gêmeo.

- Saga... eu não sei... se consigo ir mais uma vez até lá.

- Você vai conseguir. E vai acabar de uma vez por todas com esta coisa. Venha, me dê a mão!

Naquele momento, o caçula pensou que havia voltado catorze anos no tempo. Que ainda era pária social, que ainda tinha de se ocultar de todos, que tinha ambições muito grandes para si mesmo. E que Saga o levaria a um castigo mortal novamente...

Tal impressão, todavia, durou apenas alguns instantes. Logo ele era novamente o Kanon fiel a Atena, combatente experimentado e treinador de aprendizes. Estava numa praia, diante não de seu algoz, mas de seu amado irmão.

Ainda que um pouco hesitante, Kanon sorriu e deu a mão para seu gêmeo.

- Vamos! Já que é pra resolver essa história, vamos logo.

O mais velho tomou a mão do parceiro e foram assim, juntos e de mãos dadas, até o Cabo Sounion. Após catorze anos.

O que Saga não sabia, porém, era que ele também não estava pronto para rever a terrível prisão...

To be continued

OoOoOoOoOoOoO

¹Na fic "Triângulo Dourado", a face má de Saga sabia como Kanon passara na prisão, mas Saga bom não.

²No anime, na Saga de Hades, quando Kanon se suicida levando Radamanthys à estratosfera e desferindo contra ele a Explosão Galáctica, as últimas coisas nas quais ele pensa são Atena e Saga. Aparece tanto na versão dublada quanto na original em japonês (mas em japonês ele diz "nii-san" - irmão mais velho, e na brasileira ele fala "Saga" mesmo). É canon, gente! Ai, que delícia! +morre e volta, rs+

Mais uma que era pra ser "oneshot" e ficou subdividida em vários capítulos...

É a campeã de lemon por centímetro quadrado. Tem nada menos do que quatro lemons, em cinco capítulos. O único que não tem "séquiço", evidentemente, é esse, o primeiro. Portanto... caprichem nas reviews se quiserem atualizações bem rápidas! xD

Fic dedicada a Pandora Lockhart, que adora esses gêmeos tanto quanto eu, e, é claro, é a leitora mais assídua das minhas fics. =)

Feliz 2010 a vocês!