Galerinha, eu peço paciência com este primeiro capítulo porque ele é muito necessário para o entendimento da história. É só uma introdução e pode parecer um pouco corrida, mas é que o centro da fic é o Milo e não o personagem que vamos ver agora. Quase não tem Milo pra vocês agora... mas no próximo eu já prometo grande aparição do loirinho!

Nossa história começa muito antes de Milo e seres bestiais à solta e sem controle. Nossa história começa... Em Londres, com o homem que será chamado por Milo de... Avô.

Londres-1857

Londres era fria, mas, especialmente aquela noite, estava congelante. O Reino Unido passava por bons momentos. A burguesia crescia como nunca com o desenvolvimento de todas aquelas fábricas. Um pouco de ferro, vapor e carvão e pronto. Surgiam novos burgueses, ricos e sorridentes sob as saias da Rainha Vitória. Estava tudo ótimo, menos pra ele. Já chegava aos trinta e ficara de cama pela terceira vez no semestre. Mas claro, trabalhando nas fábricas, revezando entre o calor infernal da queima de carvão para as fábricas de tecido e o frio demente de sua pátria, não poderia haver outro resultado. Droga, daquele jeito seria demitido. Já deveria ter sido, mas parecia que tinha um pouco de sorte a seu lado. Mas não era o suficiente. Ouvia rumores de que em breve o petróleo e o aço substituiriam o carvão e o ferro, mas do que isso adiantaria para ele? Nada.

Não que ele fosse reclamar do reinado de sua rainha, que havia trazido tanto crescimento para seu povo. Ela subira ao trono em 1837, com 18 anos, e seus pais tiveram muito medo de tanto poder nas mãos de uma criança, já que na época, ele só contava dez anos. Mas naquele ano, faziam 20 anos de seu reinado e as coisas pareciam muito bem. Inflava de orgulho de seu berço britânico. Mas para ele, as coisas não estavam tão boas assim. Ser peão de fábrica não era bem o que ele planejara para sua vida. Tinha de admitir, sempre sonhara um pouco alto, mas quem é que não queria melhorar de vida?

A casa em que morava era pequena, tinha um quarto e a cozinha mesclava-se com a sala, o teto gotejava quando chovia. A cama, na qual estava deitado naquele instante, tinha o colchão recheado com feno. Sentou-se, desconfortável em sua cama, em sua vida. Olhou para o canto do quarto, a caixa de metal que seu pai lhe dera. Era escura e toda detalhada com fincos e desenhos de cavalos. Ela tinha pertencido ao seu bisavô. Pegou o pequeno objeto, apertando os dedos ao sentir o frio do metal em sua pele. Voltou correndo para a cama, não tinha luxo, mas era quente. Depois de aninhar-se aos seus cobertores, retirou de dentro da caixa um colar.

Era ele o verdadeiro astro da pouca herança de sua família. Parecia bem simples. Tinha cordão de couro negro curtido e um pingente de madeira, de aparência muito antiga. Era redondo, achatado e cheio de letras gregas em baixo relevo. Bom, pelo menos seu avô dissera que eram letras gregas. Aquele colar, apesar de estar há muito em sua família, nunca fora usado. Ao que parecia, realizava desejos, mas também era um sinal de mau agouro. O principal motivo pelo qual ninguém nunca usou, na verdade, era que não sabiam como. Ele mesmo já havia tentado de tudo, esfregar, molhar, rezar para o colar, dar pulinhos. Tudo que sua mente desesperada pudesse ter imaginado. Colocou-o no pescoço, pela centésima vez, esperando algum resultado. Nada. Passou as mãos pelos curtos cabelos lisos e loiros, nervoso.

Aquela merda só podia ser falsa. Socou a tampa da caixa, cortando o dedo, e em seguida xingou alto, chupando o sangue num gesto automático. Chega! Livrar-se-ia daquele embuste pela manhã. Retirou o colar do pescoço, e apertou o pingente entre os dedos, intentando quebrá-lo. Por mais que tivesse pressionado, não quebrou. Amanhã resolveria. Olhou uma última vez para o objeto, agora manchado com seu sangue, mas não fez questão de limpá-lo. Não funcionava mesmo. Que respeito devia ter por aquilo? Que se danasse.

Revoltado, virou para o canto e tentou dormir. Apertou-se contra o próprio corpo e adormeceu algum tempo depois.

Estava um pouco grogue de sono, mas o frio o estava acordando lentamente. Parecia que seu quarto estava do lado de fora da casa. Puxa, que frio.

- Tsc Tsc... Que feio, Benson.

Ouviu, de trás de si, a voz grave de um homem e arregalou os olhos, vidrando-os na parede à sua frente. Não ousou mover-se. Sentia um medo descomunal, tinha vontade de chorar. O certo seria que se levantasse e expulsasse o intruso, afinal também era homem. Mas não conseguia. Apesar de não ver o dono da voz, o pavor lhe paralisava. Apertou forte os olhos.

- Me chama, mas ignora-me? Sei que está acordado, Benson. Não pode fingir pra mim. – A voz continuou, mas Benson não teve coragem de obedecer.

Ouviu um bufar irritado.

- Vire-se!

Finalmente, o trabalhador esboçou alguma reação e sentou-se na cama. Sentia-se fraco, mas o frio diminuía agora. Acendeu o lampião para vê-lo ali... Parado e o encarando.

Aquele homem... Não, não podia ser simplesmente um homem. Alguma criatura da natureza... Ele não tinha sabia ao certo.
Era um macho, com certeza. Mas não sabia dizer se era humano. Parecia vindo do inferno.
Era mais do que branco, chegava quase à palidez de um morto. De aparência jovem e bem apessoada. Tinha longos cabelos lisos e ruivos, que brilhavam incendiantes à luz do lampião; as orelhas eram levemente pontudas e seus olhos eram rubros como sangue recém-derramado. Vestia-se como um nobre, mas totalmente de preto. A calça, o sobretudo aberto e a camisa, eram visivelmente de tecido caro e bem cortado.

- Pra que me chamaste? – O ruivo lhe olhou de cima, ameaçador.

- O... O chamei, senhor? – Tinha medo. E a cada olhar do ser à sua frente, mais percebia que tinha razão em temer. Estava confuso, mas de repente... Sua mente estalou e seus olhos arregalaram-se em surpresa. O colar! – O que é você?

- Vejo que se recorda da evocação. – Dando uns poucos passos, pegou o colar, ainda ensanguentado. – A última vez que vim a este mundo pelo chamado de um mortal... Faz bem mais de mil anos.

Ele falou mais para si próprio do que para o homem amedrontado. E continuou.

- Sou exatamente o que pensa de mim. – Ele sorriu, o que deixou a mostra seus caninos pontiagudos. Fora a primeira e última vez que Benson o tinha visto sorrir.

- Um... Demônio? – Sussurrou com a voz quase muda.

- O termo que achar conveniente. Chamo-me Camus. – Ele apertou o colar entre os dedos e o jogou para o homem a sua frente. – Com seu sangue, evocou-me. Geralmente me chamam para pedir favores, mas saiba desde já que meu preço pode ser caro para almas puras.

Pouco mudavam as feições de Camus, para palavras tão sombrias. Mas seus olhos eram sempre intensos, como se espiassem sua alma nua.

Benson estreitou os olhos e puxou toda a coragem que lhe sobrava no âmago.

- Quero que me faça muito rico como um burguês novo. O que quer em troca?

- Almas. – O demônio encostou-se a parede, como um entediado de repetir sempre o mesmo.

O inglês arrepiou-se ao perceber que escapava sob o sobretudo uma cauda, de um tom de marrom escuro ou negro e em ponta de flecha, a mover-se serpenteando levemente. O ruivo continuou.

- Quero cinquenta. Obviamente que não falo de inocentes... Ou não me serviriam de nada, já que não iriam para o inferno. Mande cinquenta almas para mim e pagará sua dívida.

O estômago de Benson gelava. Sabia que como demônio, a criatura estava acostumada. Mas ele não tratara de vidas como moeda de troca... Até hoje.

- O que quer com essas almas? – Tinha medo da resposta.

- Não lhe é óbvio? O inferno sempre precisa de servos novos. E eu pretendo aumentar minha coleção.

O loiro tremeu.

- Minha alma não está no contrato, certo? – Mostrava altivez por fora, mas por dentro ruía.

- Quero cinquenta almas no inferno. Não importa de quem seja. – Olhou o inglês com certo ódio. Esses mortais... Sempre covardes. Apostando sempre as vidas de outrem, nunca as próprias. – Mas... Com o sangue de tantos em suas mãos, terá que suar muito para não ir para o mesmo lugar das almas que aposta agora.

- Mas isto não é justo! – Exasperou-se, em seguida conteve-se. – Como vou matar e não pagar por isso?

- Minha obrigação é trocar servos por tua riqueza. Nunca me comprometi em salvar sua alma. Isso é com você, mas se não quiser... Não me incomodo em deixar-lhe nesta casa que não se equipara às suas ambições.

O Inglês resignou-se.

- Está certo. Farei o que quer, mas primeiro fico rico, certo?

- Claro. – O ruivo estava impaciente.

- Diga-me... O que acontece se eu não cumprir com minha parte do combinado? – Sustentou um forte olhar nos rubros orbes do demônio.

- Não sei. – Fechou os olhos, sabendo o que viria a seguir.

- Como pode não saber? O contrato é seu!

- É meu, pois você se comprometeu comigo. Mas toda alma levada ao inferno, indiretamente pertence ao... – Camus parou ao ver o outro fazer o sinal da cruz e rolou os olhos. Que patético, dadas as circunstâncias atuais. – Enfim, pode-se dizer que eu ganho... Comissão... nos contratos, mas o teu maior credor não sou eu. E é ele quem costuma aplicar as penas. Já vi muitas, não sei o que seria reservado a ti, mas não é boa coisa. Aconselho que cumpra sua parte.

Amedrontado, mas terrivelmente tentado, o britânico não encarava o ser maléfico em seu quarto. Apesar do demônio à sua frente ser apenas um subordinado do próprio Diabo, ainda assim metia-lhe medo o suficiente.

- Precisa de tempo para pensar? Não posso ficar aqui a noite toda.

- Está feito. – A voz tremia, mas... Precisava ser rico. – Onde assino?

Sem aviso prévio, o ruivo acertou-lhe dolorido golpe no nariz fazendo-o sangrar formando farta poça no chão. Benson estava irritado e inchando, mas antes que pudesse reclamar qualquer coisa ao demônio viu seu sangue ferver na poça e evaporar-se. Como se tivesse sido consumido, se transportado.

- Não há contrato em papéis no inferno, Benson. – Camus limpou o sangue que ficara em sua mão e deu as costas ao outro. – Seu trato agora está mais do que feito. Se precisar de mim, sabe como chamar.

E andando para o canto mais escuro do quarto, desapareceu. Sem deixar rastros de fogo, carvão ou enxofre, como ele imaginara que seria. Camus se foi, deixando Apenas uma névoa clara que poderia ser confundida com a neblina das manhãs de Londres.

...

Em poucos dias, Benson soube-se único herdeiro de um falecido parente tão distante quanto jamais pudera imaginar. E, como o homem já morrera há vinte anos, tendo suas posses ficado a cargo da Nação, a Inglaterra devolveu-lhe o dinheiro acrescido de quarenta por cento do valor pela demora. Como se metade do dinheiro do velho já não fosse o suficiente para nadar na riqueza para sempre. Um caso estranho, de um parente estranho e piedade estranha de um reino que buscava, como nunca, acumular riquezas. Estava mais rico do que jamais sonhara conseguir com aquele acordo.

A primeira coisa que fez, foi contratar um bom grupo de assassinos para invadir a prisão e assassinar os cinquenta presos com as fichas mais sujas. Na manhã seguinte começou a fazer caridade, construindo e ajudando orfanatos e escolas. Mesmo assim não dormiu por meses.

Mais tarde, Benson se casou e teve um filho, Christofer. Era esposo de uma linda inglesa, que dois anos mais tarde fugiu com outro, deixando Christofer e levando milhões em joias. Mais uma vez, e tomado de ódio, o novo burguês requisitou os serviços de Camus. Dessa vez em busca de vingança. Pelo preço de vinte almas, sua ex-esposa e o amante foram capas do jornal ao serem as únicas vítimas de um assalto num trem saindo do país.

Tanto foi o medo do inferno, que mais da metade do dinheiro de Benson foi para a caridade. Enquanto boa parte dele foi perdida por sua falta de jeito com negócios. Fruto de pouca instrução. Buscando reaver sua fortuna, reuniu trinta malfeitores com promessa de serviço sujo e dinheiro fácil. Mas todos tiveram uma triste morte por naufrágio premeditado, no navio que os levaria até o seu misterioso chefe. Mandados para o inferno e convertidos em dinheiro para ele. A polícia jamais descobriu como um rombo se instalara no casco do navio, se no oceano não havia vestígios de icebergs, e porque os botes foram retirados antes da viagem.

Instruiu-se então. Mas inteligência não era sabedoria... E sempre enrolado e inconsequente, o britânico usara do pacto que tinha com o ruivo por mais duas vezes. Era um vício pior que a bebida e o charuto que o consumiam aos poucos. Este era iminente. Ficava dividido entre o medo e suas vontades. Acabava por ceder e pensar que consertaria mais tarde. Porém, os rostos já não saíam mais de sua mente. Estava claramente arrependido e não conseguiu ter mais sangue em suas mãos. Temia por seu filho, que tinha pouco mais de seis anos. Talvez o tanto de vidas que já tirara fosse o suficiente. E nunca mais usaria pessoas como moeda de novo.

Numa noite comum, como outra qualquer... Acordou ouvindo vozes. Mas não era Camus... Não... Essa era ao mesmo tempo rouca, chiada e irritante. Como se arranhasse seus tímpanos, martelando-o o cérebro. Sabia de quem... ou melhor..do que se tratava e agarrou o filho nos braços. Temia mais pelo menino do que por si próprio. Christofer nada entendia, não ouvia o que Benson ouvia, mas estava assustado com o pai.

Apertando mais o menino nos braços, Benson não sabia como fugir daquela voz. Batia-lhe no fundo da alma, como se estivesse dentro de um sino ao ser badalado.

" Teu prazo se esgotou... Não há mais desculpas ou tempo. A partir deste dia, tu e todos os teus descentes serão feito ímãs para o olfato de toda besta existente. Serão perseguidos, caçados e devorados até que toda tua linhagem pereça. "

A voz cessou e Benson caiu desmaiado, ouvidos sangrando, o filho gritando por ajuda.

...

A partir daquele dia, o britânico passou a correr de todo tipo de criaturas sanguinárias, vindas do inferno, apostaria. Com o tempo, vontade de viver e muita leitura antiga e consulta a feiticeiros, aprendera muito com outros, desenvolveu também o seu estilo e passou a ser temido pelos demônios. Tornou-se tão bom, que jamais contara ao filho nada daquilo, já que era capaz de protegê-lo.

Christofer chegara aos vinte quando casou-se com uma bela grega, Acácia, que esperava um filho seu. Um casamento às pressas, para a barriga não aparecer no vestido de noiva. Benson prosperava por seus próprios esforços, tanto nas finanças quanto na sua formação de caçador de monstros. Temido pelos demônios, admirado por feiticeiros e outros caçadores como ele. Benson era o melhor Hunter jamais visto e sua fama chegou ao inferno. E incomodava.

Aos oito meses e meio de gestação, Acácia tornou-se viúva. Christofer fora achado morto de maneira brutal sem identificação de origem das marcas responsáveis por seu óbito ou um suspeito que se encaixasse. Escandalizada e apavorada, Acácia entrou em trabalho de parto, sendo socorrida às pressas. Mas vendo a grotesca morte do marido como sinal de mau agouro, abandonou o pequeno recém-nascido aos cuidados do avô. Benson sofria, mas a vida devia continuar... Pelo neto.

Lindo e roliço, um pequeno pedaço do céu na vida amarga do inglês. Rosadinho,tinha os grandes olhos azuis do filho, cabelos loiros e enroladinhos. Benson chorava por aquele anjinho ter sido fadado à sua maldição.

- Cuidarei de você para sempre, meu Milo...

Agradeço pela paciência. O próximo vai ter mais Milo, prometo.
Mais uma vez digo... Talvez esse capítulo tenha parecido corrido, mas é porque a fic não é centrada no Benson e sim no Milo.

Bjinhos

E Reviews, please. Elas realmente me fazem feliz.