França – 1911
Furioso. Era a palavra que definia o rapazote francês naquela manhã.
Estava no carro de sua família, guiado pelo mordomo Edmond, um homem de meia idade com um nariz grande e pelos na orelha. Ele gostava de Edmond. O mordomo sempre lhe contava histórias sobre a Europa e trazia biscoitos na hora de dormir.
Mesmo assim, naquele dia estava bravo. Edmond guiava a ele e seu pai para a mansão que tinham numa fazenda. Camus odiava fazendas, tinha nojo de bichos e não gostava de natureza. Também não gostava das pessoas do campo. Sua ignorância o incomodava. Toda aquela simplicidade irritava sua mente de parisiense da cidade grande. Odiava bucolismo. Estava indo a contragosto, obrigado pelo pai. Como se fosse novidade. Já fazia tudo obrigado pelos pais. Tinha várias aulas e obrigações, apesar de já estudar num colégio para rapazes.
Fora de suas aulas Camus aprendia, além do francês, o italiano, alemão e grego. Estudava a história da França, fazia aula de etiqueta, caligrafia e cálculos, tocava piano e fazia pintura. Uma rotina estressante imposta pelos pais, burgueses da alta sociedade francesa, para impressionar o maior número de pessoas de sua classe social e torná-lo um bom partido. Já o era, por ter nascido em berço rico, mas um rapaz culto e rico era melhor do que um apenas rico. Fazia tudo. E em tudo o que fazia era esplêndido. Mas claro, não restava tempo para quase nada mais em sua vida. Agora, que ele finalmente tinha tido um tempo pra descansar daquela rotina corrida, seu pai o obrigara a ir para aquela estúpida casa de campo.
O genitor de Camus tinha cabelos castanho claros, de forma que o filho herdara da mãe os fios ruivos. Mas os olhos âmbar eram dele, do pai. Um amarelo intenso, com um brilho que passava a ambição dos vencedores, a sensatez do justo, a astúcia de um chefe nato, a força da tradição de uma família inteira. Era um fardo que o pai passava a Camus. O ruivinho sabia que um dia teria que administrar todas as posses e os negócios da família e não estava nem um pouco ansioso para esse dia. Via o pai sempre como um homem estressado, que chegava em casa exausto, nunca tinha tempo para ele e às vezes destratava sua mãe.
Faziam essa viagem agora para que seu pai pudesse conferir como andavam suas posses no campo. Camus nem ao menos sabia direito porque estava indo. O pai tinha dito algo sobre fazê-lo relaxar com os ares do campo, refazer suas energias para que voltasse renovado para suas obrigações. Que ele conhecia seu filho e vira que seu ruivo precisava de descanso.
Hah! Grande coisa. Qualquer um veria que ele estava um morto-vivo. Afinal, estava magro, branco como nunca, vivia indisposto e agora começara a ter olheiras. Não seria difícil descobrir que o francesinho, apesar de só ter dezessete anos, estava estressado. E também... Se o pai o conhecesse tão bem quanto dizia, saberia que Camus detesta fazenda.
O ruivo deixou a cabeça cair pesadamente no vidro do carro, fazendo barulho. Uma, duas, três vezes.
- Camus, pare com isso. – O ruivo ouviu a voz grave do pai.
O rapaz suspirou e passou a olhar, imóvel, a paisagem da janela. Verde, verde, verde. Era tudo verde. Os pinheiros todos tão iguais, quilômetros de pinheiros. Quilômetros de grama verde e estrada de terra. Tudo igual, tudo um tédio.
- Filho, quero apenas que descanse. Está rendendo muito pouco nas aulas e você sabe que precisa aprender tudo muito bem.
- Preciso mesmo? – O olhar do mais novo era irônico e provocativo.
O pai fechou a expressão imediatamente.
- Não vou tolerar rebeliões dentro de minha casa. Você vai estudar o que eu e sua mãe te mandamos e está acabado. Não vamos abrir mão disso ouviu, Camus? – O homem estava começando a ficar vermelho e Camus sabia que quando o pai estava assim é porque estava nervoso e era melhor não provocar mais.
O filho passou a mirar os próprios pés, irritado. Apenas bufou.
Estava há horas naquele carro, estava cansado. Via os garotos de sua idade se divertindo, mas ele estava sempre em casa estudando. Ele não sentia falta de estar com garotos, mas sentia falta do tempo livre.
Sabia que o pai nunca concordaria em aliviar seus estudos. Ele tolerava muitas coisas, mas com os estudos de Camus não tinha conversa. Era aquilo e pronto.
O resto da viagem se passou em silêncio absoluto, mas Camus não ligava. Sabia que tinha passado dos limites. Só queria esquecer um pouco que teria que voltar a Paris e recomeçar toda aquela rotina.
Quando o carro parou, o ruivinho estava quase deitado no banco de trás.
- Levante. Já chegamos. – O mais velho olhou para o filho inerte no banco. As pernas separadas, a coluna torta, a cabeça quase apoiada no assento, os olhos estáticos visando o teto. Quanto drama. Quem visse pensaria que estava sendo torturado há meses. O colocaria numa aula de teatro se não fosse tão inútil.
Camus não reagiu.
- Vamos... Sei que não está morto, embora queira me convencer disso. Levante-se ou eu te enterro. – O pai esboçou um meio sorriso por debaixo dos fartos bigodes.
O jovem piscou, mexeu os braços e usou o banco como apoio pra se levantar. Arrastava-se quase. A vontade dele de sair daquele carro só se equiparava à vontade de uma mulher querer morrer solteira.
Finalmente saltou do carro, apertou os olhos até se acostumar com aquele sol. Ajeitou as roupas, que amassaram um pouco na viagem, pegou seu fraque e o vestiu.
Viu Edmond passando com suas malas e as de seu pai. Logo outros criados chegaram para ajudar o mordomo. É, não tinha jeito. Gastaria ali seus amados dias de descanso. Suspirou e preparou-se para entrar na mansão de campo de sua família.
- Camus. – Sentiu a mão do pai em sua cabeça. – Eu sei que está cansado e que não quer fazer a maioria das coisas que faz. Mas é o seu futuro, filho. Entenda, eu só quero seu bem. – O homem tinha um olhar quase suplicante e Camus se assustara com isso. Seu pai não era disso. Mas também não queria magoar seu pequeno ruivo, odiava vê-lo triste. Morreria por Camus. Um dia o filho entenderia suas razões.
- Eu entendo, pai. – Camus deu um sorriso fraco. Não entendia nada, mas tinha idade suficiente pra saber que não deveria mais incomodar o genitor. O rapaz amava o pai, admirava-o acima de qualquer outra pessoa.
- Esplêndido. – O homem sorriu. - Use o tempo que estiver aqui pra descansar. Não quero vê-lo com livros aqui, entendeu?
- Sim, senhor. – O ruivo sorriu, sincero dessa vez. E recebeu um sorriso do pai em resposta.
O mais velho passou o braço pelos ombros do filho e foi andando para a entrada da própria mansão. Era uma casa imensa, de madeira pintada em branco. Havia janelas por todos os lados e tinha dois andares.
Por dentro parecia ainda maior do que por fora e Camus pensou que se perderia por ali. Era muito bem mobiliada com móveis de madeira de lei. Caríssimos. Muitos quadros, mas não tinha tantos enfeites de metal nobre quanto sua casa em Paris. Afinal, não moravam ali e alguém poderia roubá-los sem que ao menos ficassem sabendo.
Edmond logo apareceu e o guiou até o cômodo que seria seu quarto e Camus agradeceu por isso. Seu pai fora para o escritório, resolver negócios. Mas tudo o que Camus queria agora era dormir.
Assim que adentrou no quarto Edmond se retirou, sabia que o patrãozinho queria sossego. O ruivo tratou de despir-se para dormir. Era por volta de cinco da tarde, mas ele acordara de madrugada para a viagem estava exausto de tanto ficar no carro. Com certeza dormiria até a manhã seguinte.
X.X.X.X
Era manhã e o sol já brilhava do lado de fora da mansão. Camus ainda não saíra do quarto, mas seu pai já estava de pé.
- Edmond. – Chamou o homem.
- Sim, senhor?
- Chame aqui o caseiro, sim? – Ele pediu, ainda assinando papéis.
- Agora mesmo, senhor Fontaine.
Edmond saiu e poucos minutos depois, outro homem batia na porta de seu escritório.
- Entre. - O Fontaine mais velho respondeu.
O homem que entrou tinha a pele curtida do sol, olhos azuis e cabelos aloirados, era imigrante grego. Deveria estar na casa dos 30. A barba era rente, bem feita. Vestia-se de maneira simples, mas primava pela higiene e boa aparência.
- Bom dia senhor Fontaine. No que posso ser útil?
- Sente-se – Fontaine indicou uma cadeira e o homem o fez. - Edmond disse-me que tem um filho.
- Sim, senhor. Milo, meu garoto de dezoito anos. – O loiro abriu um sorriso largo ao mencionar o filho.
- Muito bom. Quase a mesma idade do meu Camus. Aliás, é por ele mesmo que lhe chamei aqui. Camus anda muito estressado e eu o trouxe para descansar. Mas ele não conhece nada daqui, então pensei que talvez... Seu filho pudesse ser uma companhia para ele.
- Oh, sim. Tenho certeza que Milo vai gostar de ter companhia, senhor. Ele é um garoto muito enérgico. – O loiro juntou as mãos com força.
- Esplêndido. Avise-o, sim?
Conversados então, o loiro saiu e o dono da casa prosseguiu com seus serviços.
Camus desceu as escadarias, deslizando as mãos pela madeira envernizada dos corrimãos e alcançando o primeiro andar. Estava descansado, pelo menos do sono. A ideia de que ficaria ali por algum tempo sem nada o que fazer o deixava um tanto entediado. Estava sim precisando de descanso, mas não de ócio absoluto. E o que teria pra ele fazer no meio de uma fazenda?
Tomou um café reforçado na sala de jantar, aproveitando o gosto de não estar correndo pra estudar piano de manhã. Era o melhor gosto do mundo.
- Camus! - O pai gritou, mas ele não foi. Estava terminando a torrada e queria paz. Olhou o sol entrando pela janela semiaberta da sala, parecia fazer um dia agradável. Mordeu mais um pedaço do lanche tentando reter a sensação de, pelo menos por aqueles dias, "ser um desocupado". – Camus, venha já aqui.
Derrotado, o rapaz enfiou a torrada na boca de qualquer jeito e foi ver o pai.
Entrou no escritório do genitor, vendo-o sentado à mesa, na frente daquela estante recheada de livros.
- Bom dia, pai. – O menino disse, entrando contido no escritório.
- Bom dia, filho. O que pretende fazer hoje?
Camus ficou em silêncio. Não fazia ideia do que iria fazer ali. A vontade dele era dizer "Sei lá. Nem sei por que cargas d'água você teve essa ideia estúpida de me trazer", mas limitou-se a responder:
- Ainda não tenho planos. – A língua ainda coçando de vontade da má resposta, mas quem seria louco o suficiente para afrontar seu pai tão descaradamente? Com certeza não seria ele.
- Esplêndido. Arrumei alguém pra te ajudar a se divertir por aqui. – O homem sorria por trás do bigode.
O ruivo arqueou uma das sobrancelhas, sem entender. A expressão passiva e imóvel não dava ao pai qualquer dica sobre os pensamentos do filho, mas ele já estava mais do que acostumado com a apatia de Camus sobre suas ideias.
- Nosso caseiro tem um filho! E ele tem a mesma idade que você. Veja que boa notícia.
Aí era demais. O que o pai esperava que ele, Camus, pudesse achar de interessante no filho do caseiro? Um garoto do campo que provavelmente não saberia falar de nada com ele? Isso é... Se é que o tal garoto sabia falar.
- Acho essa ideia totalmente descabida. – Camus estava sério e o pai continuou olhando-o. - Pai, o senhor mesmo fez com que eu me instruísse das mais variadas formas. Nada posso ter em comum com um garoto criado no campo, longe da tecnologia, da civilização e das grandes ideias. Morrerei de enfado. É isso que deseja? Ver-me definhar em meio à barbárie desse garoto?
O Fontaine mais velho fixou os olhos em Camus por algum tempo sem esboçar expressão alguma.
- Acabei de lembrar-me a razão pela qual nunca o coloquei numa aula de teatro. – O pai coçou a cabeça irritado. – Você já é perito Camus. Vamos, deixe de ser dramático.
O ruivo fez um bico emburrado e o pai continuou a falar.
- Por mais instruído que você seja, e eu sei que você o é, eu nunca lhe ensinei a menosprezar as pessoas, Camus Andre Fontaine! Por tanto contenha suas palavras.
Camus sentou-se no sofá do escritório do pai entre envergonhado e indignado. Sabia que o pai estava decepcionado com o que dissera. Era sempre assim quando o genitor o chamava pelo nome todo. Ficou em silêncio esperando que o mais velho continuasse.
- Bom, fico feliz que esteja pensando no que disse. – acendeu um charuto e voltou-se para o filho. – Não acho que você vai se entediar. Não importa o quanto seja estudado, é um garoto! É isso que vocês têm em comum até agora. São dois garotos da mesma faixa de idade. E garotos se dão bem juntos. Eu tenho certeza que vão arrumar algo interessante para fazerem. Dê uma chance a ele. – O mais velho coçou os bigodes, vendo seu ruivo manter o olhar fixo no chão. – Vamos, Camus! Vá encontrar o menino e saia logo daqui. Sabe que eu não gosto que você fique perto do charuto.
Camus deixou a sala do pai e seguiu para fora da casa em marcha lenta. Quase como se estivesse arrastando cem quilos em cada uma das pernas. Não tinha a mínima vontade de conhecer quem quer que fosse. Não gostava nem dos colegas das aulas de pintura! Que chances tinha um moleque do campo de agradá-lo? O mesmo sol que lhe agradara durante o café parecia forte demais agora que saíra de casa. Tinha olhos sensíveis e toda aquela luminosidade estava incomodando-o.
Como seria o tal garoto? Tentava imaginar, mas tudo o que vinha em sua mente eram moleques magricelas e sujos com o nariz escorrendo. Arrepiou-se. Céus! Estava perdido. Como iria sobreviver a algo assim? Bufou nervoso pisando duro e sentando na escadaria ao pé de casa.
Mas onde será que ele estava? Não via ninguém. Era só o que faltava, um moleque remelento deixá-lo esperando. Que absurdo.
Andou um pouco e virou-se assustado quando sentiu uma mão firme em seu ombro.
- Olá. – Um loiro de cabelos longos e cacheados sorria para ele. Um sorriso contagiante que fez, por um instante, o francês se esquecer de que não gostava de fazendas. Camus viu o loiro estender a mão. – Meu nome é Milo.
Assim que Camus parou de olhar o sorriso aberto do outro, estendeu a própria mão e apertou a do garoto.
- Camus. – Respondeu simples.
Ao contrário do que pensou, Milo não era sujo, magricela ou remelento. Era mais alto e mais forte do que ele próprio. Os cabelos bem cuidados e uma aparência... Muito... Agradável de manter no campo de visão.
O loiro o olhava com interesse. Aquele era, com certeza, o garoto mais bonito que ele já vira. Então eram assim os garotos da cidade? Parecidos com bonecas de tão bem desenhados que eram? Sentia a mão macia dele na sua. Era incrível, nunca tinha visto mãos macias assim. Com certeza não conhecia trabalho pesado. Aqueles cabelos ruivos eram tão destoantes, bonitos e... Ardentes. A pele dele era tão clara, que Milo quis protegê-lo do sol. Devia ser porque o garoto era francês. Ele tinha lábios rosados e bem desenhados. O grego podia ver as ondinhas no lábio superior daquele ruivo. Aqueles olhos... Milo não sabia se eram amarelos ou laranjas, mas com certeza eram lindos.
Nunca passara tanto tempo reparando outro garoto, ainda mais daquele jeito. De repente vira o francês ficar rubro ao se sentir sob a mira de seus olhos azuis. O grego sorriu achando-o engraçadinho.
Diante do sorriso do loiro, Camus recolheu a mão um tanto assustado com a vontade que ele tinha de sorrir sempre que Milo sorria. Não gostava de sentir isso. Ele nem ao menos sabia o motivo.
Milo vestia uma camisa branca de manga e um macacão marrom, bem surrado. Calçava botas marrons de cano curto, amarradas por cadarços. Tudo bem simples. O burguês vestia-se bem diferente. Tinha calças pretas de um tecido importado. A camisa era branca de manga comprida e tinha botões. O corte era fino, as costuras acompanhavam a moda atual e o deixavam muito bonito. Por cima da blusa vinha um colete cinza, par da calça. Era pra ser usado com o fraque, mas, devido ao calor, o ruivo optara por deixá-lo em casa.
- Bem... O que quer fazer? – Milo perguntou, um tanto animado.
- Quero voltar pra Paris. – O francês fechou a expressão. Sabia ser desagradável quando queria. Milo não pareceu se importar.
- Aqui pode ser divertido se você deixar. – O jovem olhou, sorridente, o burguês emburrado. – Posso te ensinar a se divertir aqui.
- Você? Ensinar-me alguma coisa? – O Fontaine mais moço olhou-o, irônico. – Ponha-se no seu lugar. É apenas o filho do caseiro.
Milo permaneceu quieto. Já imaginava que o tal filho do patrão poderia ser desagradável, mas tinha de admitir... Não sabia como reagir a aquilo.
O pai já havia o precavido antes que saísse de casa. Dissera a ele pra não ser insolente, pra respeitar os limites e ser muito agradável com o menino Fontaine. Mas naquela hora, Milo só queria dar uma má resposta e ir embora.
Camus fitou o loiro, que estava de cabeça baixa e sem aquele sorriso rasgado no rosto. Sentiu uma pontinha de remorso por fazer os dentes brancos do menino sumirem, mas não admitiria tão fácil. Sem falar que a voz do pai ecoava em sua cabeça, repreendendo-o pelo comportamento inadequado. Faria mais mil horas de aula de etiqueta se descobrissem que se comportara assim.
- Não importa. O que você propõe que façamos? - O francesinho virou o rosto para o lado, evitando encará-lo.
Milo podia não ser tão culto quanto o francês de nariz arrebitado, mas sabia reconhecer bem sinais de acanhamento e arrependimento. Não tocaria mais no assunto, mas agradou-o saber que o menino tinha um pouco de consciência.
- Se quiser... Posso te levar pra dar uma volta por aqui. É seu mesmo. Acho que deveria ver, é muito bonito. – Milo voltou a sorrir.
- Claro, vamos. – Respondeu frio, fingindo-se desinteressado, mas contente de ver de novo o sorriso fácil do outro.
Mal entardecera e Sr. Fontaine ouviu a porta se abrindo. Era Camus. O garoto estava emburrado, molhado do joelho pra baixo, os sapatos encharcados deixando rastro pelo chão e o olhar do demôniono rosto. Bateu a porta num estrondo e correu escadaria acima.
- Camus? – O pai chamou. A voz grave e séria fez com que o garoto parasse de correr. – O que aconteceu? Onde se molhou?
O ruivo aprumou o corpo e voltou para o pai um olhar forçadamente altivo, controlava-se para não explodir em gritos com o mais velho dizendo que a culpa de tudo era do pai e que ele errou ao trazê-lo para aquele lugar estúpido. Mas não o fez. Nunca diria tais coisas ao genitor, não era louco. Ao invés dos gritos, respirou fundo e buscou um jeito muito polido de explicar o acontecido.
- Aparentemente seu garoto do campo acha engraçado mergulhar no lago e molhar os outros. – O ar saía ruidosamente das suas narinas, as maçãs do rosto estavam afogueadas com a agitação. Estava enfurecido. - Preciso de um banho.
O pai permitiu que ele subisse. Não demorou mais do que vinte minutos até o filho do caseiro entrasse, acompanhado de Edmond. O loiro dava passos curtos, visivelmente temerosos, a cabeça vinha baixa e os braços apertavam o próprio corpo numa notável tentativa de sentir-se mais seguro diante da presença do chefe do pai.
- Sr. Fontaine, peço que me desculpe. – Milo tinha trocado as roupas, mas podia ver que os cabelos loiros do garoto ainda estavam úmidos. Olhava os próprios pés, constrangido. – Não foi minha intenção molhar Camus. Queria convencê-lo de que o lago era divertido e pulei dentro... Eu...
- Filho, filho... – O francês interrompeu o mais novo. – Não se preocupe com isso. Não foi culpa sua. Não há razão pra ficar assim. Camus às vezes... – O homem coçou a testa, parecendo medir as palavras seguintes. - Camus às vezes pode ser realmente difícil de lidar. Ele não sai muito, e confesso que a culpa é minha. Eu é que te peço um pouco de paciência com ele.
Milo acenou a cabeça em concordância e despediu-se. Não esperava ouvir tanto, mas de alguma forma se sentiu bem. Pelo menos seu pai não brigaria com ele por ter irritado o filho do patrão agora que Sr. Fontaine tinha dito aquelas coisas. Vendo daquela maneira até que se sentiu mais disposto a tentar de novo.
Camus banhava-se sob a água quente da banheira. Imerso até o pescoço, olhos fechados e uma expressão ranzinza no rosto. Ficava com raiva só de lembrar que aquele grego tinha o molhado. As imagens se passavam pela sua mente como se estivesse acontecendo tudo agora...
" - Olha Camus. Esse é o maior lago da região. Bonito não é? – Milo sorria de braços abertos, como se quisesse se expor mais ao sol.
O ruivo olhou e concordou fingindo um pouco de desinteresse. O loiro puxou-o pela mão, trazendo-o mais pra perto da beirada, mas tudo o que Camus sentia agora era a mão quente do mais alto sobre a sua. Milo mostrava alguns peixes, apontado pra tudo. Apesar do grego estar bastante falante, Camus pouco ouvia. Estava mais atento aos sorrisos travessos e olhar límpido que o outro tinha. Não via garotos como Milo na cidade. Tão... Cheios de vida.
Precisava manter o foco. Tinha que se lembrar que estava ali contra a sua vontade e tudo o que acontecesse seria desagradável. Inclusive Milo. O loiro também era desagradável. Ele e aquele jeito caloroso de grego dele, sua vontade incansável de lhe agradar e sua mania de tocá-lo. É, estava irritado.
- Nessa época do ano eu gosto de nadar aqui. Vem comigo. – O sorriso do loiro iluminou-se, enquanto ele tirava a camisa.
- Não, de jeito nenhum. – O francês escapou da mão do outro.
Numa tentativa de lhe incentivar, o loiro pulou com tudo no lago. Como pra mostrar que era divertido e Camus ferveu de ódio ao sentir os sapatos e as calças molharem.
Era o cúmulo!
- Olha o que fez! – Camus afastou-se do lago. – Molhou-me todo, imbecil.
O ruivo viu Milo fazer uma careta de arrependimento e tirar a franja molhada do rosto.
- Perdão, Camus! Não foi minha intenção. – O loiro saiu da água, mas o francês já havia rumado de volta pra casa."
Camus agora secava-se em seu quarto. Não sabia bem o que pensar sobre aquilo tudo. Irritava-o estar com Milo, mas também era agradável. Ouviu batidas na porta. Três seguidas e uma depois de uma pausa. Edmond.
- Entre, Edmond. – O patrãozinho disse, após enrolar a tolha na cintura, enquanto usava outra para secar os cabelos.
O mordomo entrou e fechou a porta atrás de si.
- Trouxe suas roupas de dormir, pequeno Camus. Imaginei que quisesse ficar de pijama agora. – O mais velho sorriu bondoso. Sabia das manias do jovem. O ruivo gostava de andar de pijama pela casa, ainda mais quando estava nervoso. Irritava-se mais com coisas agarradas a ele, e o pijama era bastante confortável.
- Ah, obrigado Edmond. Você está sempre me salvando. – O mais novo pegou as roupas das mãos do mordomo e começou a vestir as calças. – Estou tão irritado! Acredita que ele teve a audácia de me molhar?
- Acredito que ele não teve a intenção de chateá-lo, pequeno. Milo parece um bom garoto e estava bastante arrependido quando chegou aqui.
- Ele esteve aqui? – Camus parou de esfregar a toalha nos cabelos e olhou o mordomo.
- Sim, senhor. Veio conversar com seu pai. Pedir desculpas pelo incômodo.
- Hmm, entendo. É bom mesmo que se desculpe. – O ruivo sentou na cama e bufou. – E não me chame de "senhor". Você não precisa disso, Edmond. É meu amigo.
O mordomo sentiu-se um tanto emocionado pelo apreço que o ruivinho tinha por si. Ele mesmo gostava muito do filho do patrão. O vira nascer e ajudara na sua criação. Mas também se sentiu triste por ele. Pelo que sabia, era o único a quem o patrãozinho chamava de amigo.
- Pequeno? – O mais velho chamou e Camus olhou-o. – Eu sei que está nervoso por estar na fazenda de seu pai, mas isso não vai mudar que é aqui que está.
Camus remexeu-se e deitou, fazendo sinal para o mais velho sentar-se na cama. Edmond se sentou e seguiu com a fala, olhando o garoto que parecia muito atento ao que ele dizia.
- Seu pai o ama. Você bem sabe. – Fez uma pausa. – Ele acredita que aqui é bom pra você no momento. E você sabe que seu pai não é homem de mudar de ideia. – Viu o menino torcer o nariz, sabendo que era verdade. - Já que vai ficar por aqui, procure se divertir. Tens uma vida muito corrida em Paris para desperdiçar seu tempo estando infeliz. Você pode se divertir aqui, Camus. Ficar infeliz para provar a seu pai que ele estava errado não vai deixar nenhum dos dois mais feliz no fim das contas. Procure se divertir aqui, seja feliz por você mesmo, pequeno. Não custa tentar, não é?
O menino assentiu, olhando fundo o mais velho. Sentiu-se pequeno quando o amigo lhe disse aquelas coisas. Estava sendo mimado, sabia disso. Edmond sempre tinha uns jeitos carinhosos de fazê-lo enxergar a realidade. Não tinha filhos, mas amava Camus como um. O mais moço abraçou o mordomo, que lhe acarinhou os úmidos fios ruivos. Era o jeito acanhado que seu pequeno tinha de lhe agradecer os conselhos.
O garoto ajoelhou-se na cama, enquanto Edmond o ajudava a secar os fios compridos.
- Até que o Milo não é ruim. – O francesinho soltou a frase no ar.
- Não, não é. – Edmond sorriu. Seria bom para Camus um amiguinho de sua idade. Ele era muito só em Paris.
X.X.X.X.X
Outro dia raiou e , depois do café, Camus saiu de casa a procura do grego. Surpreendeu-se ao vê-lo ali, já esperando por ele. Como é que Milo poderia ter certeza de que ele gostaria de voltar a vê-lo? Empertigou-se com isso, mas resolveu ignorar e deixar-se guiar pelo maior para algum lugar nas terras de seu pai.
O francês seguiu o grego, afastando-se da casa. Sabia que poderiam andar por horas, afinal, o terreno de seu pai era consideravelmente grande. O burguês não era muito interessado em natureza, mas Milo descrevia tudo o que viam com um jeito apaixonado. Camus podia ver que o loiro amava o verde e a vida no campo. As coisas até pareciam mais bonitas e interessantes quando o grego as mostrava para ele.
O loiro corria entre as árvores, contava coisas que já havia visto e feito e Camus sentiu um tanto de inveja e admiração pelo grego. Milo pegava frutas no pé, subia em árvores, corria nos campos, dormia sob a sombra das florestas à tarde, nadava sempre que queria e montava a cavalo. A vida do rapaz parecia bem mais divertida do que a dele.
Estavam agora em meio ao vasto pomar de maçãs, que Milo tanto gostava. O sol estava quente e Milo achara melhor ficar um tempo ali. No pomar tinha sombra e a temperatura era mais amena do que a campo aberto. E ele tinha medo que o francês se queimasse demais ou sei lá... Derretesse.
O loiro notava como o burguês olhava atento a tudo o que ele contava. Milo se sentiu grande como nunca na vida. Camus era um ouvinte atento e curioso, apesar de no início ter fingido não se interessar, acabara cedendo ao seu inegável magnetismo pessoal.
Andaram por pouco mais de duas horas até aquele local e o francês estava cansado. Milo jogou-se na grama sob a sombra de uma macieira.
- Venha, Camus. Sente. – O loiro sorriu e bateu no chão a seu lado.
- Não posso, meu pai pode brigar comigo se eu sujar essas calças. – O ruivo disse, olhando desinteressado para uma nuvem no céu. Ela se juntava a outras e Camus torcia para que logo tapassem aquele sol.
Milo olhou para o rapaz de pé e pôs-se a tirar a própria camisa e a estendê-la no chão.
- Pronto. Agora você pode sentar.
Camus desviou o olhar das nuvens e fitou o grego sentado, chamando-o a juntar-se a ele. No dia anterior, estava tão raivoso que não notou bem o porte físico de Milo. Ruborizou ao ver o quão bem esculpido era o corpo do loiro e de repente o ruivo se sentiu um magrelo.
Os ombros do grego começavam a ficar largos, o tórax já era esculpido, os braços eram fortes e seu abdome tinha gomos musculares bem mais salientes do que os dele.
- Que está olhando? Sente-se. – Milo pegou-o pela mão e o fez sentar-se.
Camus desviou o olhar do corpo do outro, passando a fitar os próprios sapatos.
- Camus, está tudo bem? Você está todo vermelho. É o calor, não é?
- Eu estou bem. – O ruivo abraçou os próprios joelhos. – Não se preocupe.
Milo olhava o outro com grande encanto. Sentia que estava quase dobrando o jeito birrento do francês. O ruivo estava corando, tinha um jeitinho desajeitado, um tanto desacostumado com tudo, que o tornava meio dependente de Milo. E o loiro adorava se sentir protetor de alguém. Ainda mais alguém como Camus, que era tão diferente de tudo o que ele conhecia. O burguês, apesar de turrão, tinha um coração doce. Milo podia sentir.
E mais, se sentia detentor de um grande tesouro. Sabia que Camus era especial. Tinha algo nele que o chamava muita atenção. Talvez fosse tudo. Ele era muito bonito e inteligente.
- Já sei. – Milo escorregou-se para trás do francês, ficando de frente para a nuca dele.
- Mas que pensa que está fazendo? – Camus tentou virar-se para encarar o loiro, mas este o segurou. O burguês aquietou-se sentindo as mãos de Milo juntarem seu cabelo comprido e o afastarem do seu pescoço. – Mi-Milo?
- Relaxa. – O loiro aproximou-se da nuca do outro, sentindo o cheiro bom do perfume que ele usava. Começou a soprar de leve a pele do ruivo, que estremeceu um pouco, fazendo Milo sorrir. Não sabia por que, mas gostava de ver o francês ter reações dúbias por sua causa. – É pra refrescar.
Milo estava próximo, mas mantinha certa distância. Em parte alguma tocava o corpo do pequeno Fontaine. Apenas suas mãos seguram aquele cabelo ruivo, fora isso não havia contato. Olhava fixo a curva do pescoço de Camus enquanto soprava-lhe a pele. Os fios curtos junto da nuca eram mais finos e mais claros que os fios compridos da cabeça do francês. Milo os via arrepiando, apesar de estarem úmidos de suor, todas as vezes que chegava mais próximo ao corpo do outro
- Está melhor? – Milo soltou os fios compridos do rapaz, que virou o rosto para trás.
- Sim, obrigado. – O Fontaine mais moço, esboçou uma sombra de sorriso, que foi mais do que o suficiente para fazer Milo responder com um sorriso arregalado. – Talvez devêssemos voltar. – Camus começou a sentir-se incomodado com a proximidade do grego e por estar gostando tanto disso.
- É. Podemos voltar. – Milo olhou o céu e assustou-se. Estava escurecido de nuvens carregadas. Como ele não percebera antes?
- O que foi? – Camus ficou apreensivo e virou-se também. – Ah, não. Já já vai chover. Não vamos chegar a tempo em casa.
Dito e feito. Um relâmpago cortou o céu, iluminando tudo, e a chuva começ e assustadora.
- Que boca, hein francês? Agora temos que ficar aqui se quisermos nos proteger da chuva. Veja, o amontoado de árvores do pomar quase não deixa passar pingos. – Milo estendeu a palma para cima.
- Mas as árvores costumam ser alvo de relâmpagos. São altas, podem ser o melhor meio para a descarga elétrica.
- E você sugere que corramos por duas horas em campo aberto?
- Não, campo aberto também não é bom. – O francês olhava assustado outro relâmpago cortar o céu e tapou forte os ouvidos, se preparando para o som que viria.
- E o que a gente faz? Camus, é melhor a gente ficar aqui. – Milo estava assustado, nunca estivera tão longe de casa durante uma tempestade daquelas.
- Árvore... Não dá. Campo... Não dá. Não dá, não dá! – Olhava assustado quando de repente ouviu um estrondo forte atrás de si, pulou no mínimo uns 3m de altura e colocou-se de pé. – Que foi isso?
- Não foi um relâmpago. Foi só algum animal que esbarrou na gaiola atrás do pomar. – Milo disse alto, já que o urro do vento competia com a sua voz.
Camus parou e sentiu um alívio.
- Gaiola de que? Você já viu?- De repente o rosto do francês de iluminou.
- Já vi sim. Acho que é pra lobos, não sei. Está abandonada há algum tempo. – Milo via de longe a gaiola e vestia sua blusa, estava frio agora.
- Não. Do que é feita? – O ruivo apertou os olhos contra o vento para vê-la também, mas de longe não conseguia distinguir o material.
- É de metal. – O loiro não entendia o que ele queria com aquilo. Mas Camus parecia muito satisfeito.
- Vem comigo! – O burguês puxou-o pelo braço, passando por todas as árvores até o fundo do pomar. A gaiola estava a alguns metros depois do término das árvores.
- O que quer com a gaiola? Camus, nós temos que nos proteger. - O loiro corria junto do ruivo, mas no fundo não queria ter saído de onde estavam.
- É exatamente isso que eu quero. Proteger-nos. Vamos ficar dentro da gaiola! – Camus sorria. Aquela armadilha para lobos seria, para eles, uma gaiola de Faraday. 1
- O que?! Você é louco? Posso não ser tão estudado quanto você, mas sei que metal dá choque. – Milo olhava incrédulo para a gaiola. Era de barras grossas de metal e tinha o fundo numa "tábua" de metal. Tudo era metal.
- É, parece doideira. Mas um cientista ficou dentro de uma gaiola de metal eletrificada e saiu de lá ileso. – Camus abriu a armadilha para lobos e entrou, segurando a porta aberta para Milo.
- Como isso? – Estava chovendo muito, estavam encharcados já que não estavam mais cobertos pelas árvores. E Milo ainda tinha medo.
- Mesmo com o lado de fora eletrizado, o campo elétrico no interior é nulo. – O ruivo respondia feliz.
Milo o olhava como se o rapaz falasse japonês.
- Ah, Milo! Não dá choque! Só isso! Agora entra comigo. Anda, a gente ta perdido se ficar debaixo da árvore mesmo. – Camus estendeu a mão e o loiro a segurou forte e entrou na gaiola. O ruivo fechou a porta.
Pronto. Lá estavam eles. Estavam perto o suficiente do pomar para serem atingidos por uma árvore que caísse, se tivessem azar, e longe o suficiente para não terem a proteção da copa das árvores contra os pingos grossos de chuva. Logo, recebiam os golpes de vento e a cachoeira do céu direto nas cabeças. Mas o que poderiam fazer? A gaiola era pesada demais para arrastarem mais para longe das árvores. Se arrastassem para perto a chance de serem acertados só aumentaria.
- E agora, Camus? – Milo tremia de frio.
- Agora a gente espera passar. – O ruivo abraçava o próprio corpo.
- E se cair um raio direto na gente? – Era estranho estar dentro de uma gaiola feita de barras de metal para se protegerem.
- Teoricamente a gente não morre.
- Teoricamente, Camus!? – Milo gritara. Apavorado. Não sabia mais o que dizer.
- Sim. Na teoria é isso mesmo. O experimento já foi feito e o Faraday saiu sem um arranhão. – O francesinho também estava assustado, mas nos livros de física que pegara para ler, a teoria estava lá e o fato também. E Camus confiava na ciência. Confiaria mais se tivesse entendido tudo, é verdade. Mas não poderia se culpar, só estivera lendo aquelas coisas há uma semana, no meio dos intervalos de suas obrigações e sem nenhum professor de física para lhe ensinar. Seu pai disse que ele veria essas coisas no ano seguinte, mas Camus era curioso demais pra esperar. A única coisa que ele realmente queria saber, e o pai não deixava por achá-lo muito novo. Trocaria a pintura pela física a qualquer instante.
- Se um raio cair nessas árvores aqui perto a gente leva choque? – Milo olhava para os relâmpagos, caindo bem distante deles. No horizonte, mas tinha medo.
- Não sei. Eu li algo sobre rigidez dielétrica. Como se fosse a quantidade de carga que o isolante pode suportar antes de se tornar condutor. Pra cair um raio, a rigidez dielétrica do ar tem de ser vencida e ele se torna condutor, conduzindo o raio até a terra. Mas estamos numa gaiola de Faraday. Então a descarga não deve nos atingir. – O francês espirrou. – Ah, Milo. Eu não sei de tudo. Ainda não estudei isso direito. Nem estava chovendo na hora do experimento do Faraday. Mas pra qualquer lugar que a gente for... Estamos ferrados. – Camus se sentia mal por ter ido dormir na noite anterior à viagem em vez de continuar estudando física pela madrugada a fora.
- Pois pra mim você sabe muito. Você é muito inteligente, Camus. Essas coisas parecem complexas e você estuda sozinho, fora as coisas que você tem que ter aula. Parece muito pra cabeça suportar. Você deve ficar cansado, não é? – Milo tentava relaxar a si próprio e ao francês, que já estava começando a se desesperar.
- Canso mesmo. – Camus ficou em silêncio por um tempo. – Obrigado, Milo. – O ruivo disse e apertou a mão do loiro, enquanto ouviam mais um estrondo de trovão.
O burguês estava com os lábios roxos e o queixo batia. A água ainda caía pesada sobre suas cabeças. Milo aproximou-se do francês e passou um braço pelos ombros dele, fazendo-o apoiar-se em seu tórax. Estava receoso do que o outro pensaria, mas não aguentava vê-lo daquele jeito. Situações extremas uniam mesmo as pessoas. Qual não foi a surpresa de Milo ao ver Camus não só se deixar ser abraçado como também agarrar-se ao seu peito, devolvendo o abraço?
- Camus... E se a tal da rigidez for o suficiente pra gente levar choque por estar perto? – O loiro apertou os braços em volta da cintura do menor.
- Aí... o Faraday nos salva, porque o campo elétrico aqui dentro é nulo. – O ruivo responde num sussurro apático. Milo sabia que o outro também estava com medo, e Camus não estava fazendo questão de esconder.
Era um momento tenso, Milo tinha muita noção disso. Mas mesmo assim... A repentina mudança de Camus estava deixando-o muito feliz, Milo sorria e nem ao menos sabia o motivo real disso. Os olhos do parisiense estavam bem abertos, fitando o horizonte. O rosto no peito do grego, uma mão em volta da cintura do loiro e a outra agarrando sua camisa. Os corpos molhados agarrados, a chuva castigando suas peles e Milo abraçou forte o outro.
Camus fixava os olhos num coelho ali perto. O animal parecia estar com as patas quebradas e sangrava um pouco. Não conseguia se mover direito.
- Ele deve ter sido atacado. – Milo disse em tom natural. Como se visse essas coisas o tempo todo. – Não vai viver muito tempo. Logo algum animal vai pegá-lo.
O francesinho apertou os olhos e afundou o rosto um pouco mais no peito de Milo.
O grego não sabia bem quanto tempo passaram ali, abraçados, esperando em silêncio que o temporal passasse. Mesmo estando com medo, apreciava a companhia do burguês, mas o momento mágico de Milo foi quebrado bruscamente com um raio. Um raio na árvore mais próxima deles. A árvore em que se abrigavam antes de correr para a gaiola.
O clarão foi tão intenso que ele pensou que ficaria cego e várias coisas vieram a sua cabeça ao mesmo tempo. E a tal da rigidez dielétrica, será que seria suficiente pra atingi-los? Não, eles estavam na gaiola. Mas... Será que os livros de física poderiam ter mentido para o francês? E se tivessem? Estavam numa gaiola de metal, seriam fritos. Mas se estivessem debaixo daquela árvore, já estariam mortos. O estrondo foi ouvido quase no mesmo instante do clarão, a diferença era imperceptível a ouvidos humanos.
Apertou mais forte ainda o francês e se sentiu apertado na mesma intensidade por ele também.
Não se despedira de seu pai, não vira o bezerro da Truda – Sua vaca preferida – nascer, só tinha dezessete anos, nunca voltara pra ver o velho Martin das estórias da floresta, nem tinha feito sexo ainda! Sentiu ânsia de vômito e quis chorar por deixar a vida tão novo.
O clarão veio e se foi, assim como o estrondo, que deixara os meninos meio ensurdecidos. Segundos depois do primeiro estrondo, veio um segundo. De intensidade bem menor e que Camus reconheceu pelo som que era uma árvore tombando. Assim que sua cabeça parou de girar, o ruivo abriu os olhos sem descolar o rosto do corpo de Milo. Estavam vivos! O burguês não acreditava. Estavam vivos!
Sentia Milo tremendo sob si e chacoalhou-o.
- Milo! Milo! – O francês chamou e o grego abriu os olhos.
Fora ali... No meio daquele sufoco, que vira o primeiro sorriso aberto de Camus.
- Estamos vivos! – O ruivo continuou, contente, e apertou as bochechas do loiro.
Milo olhou a destruição ao redor. A árvore tinha tombado para o lado contrário ao deles, mas numa área em volta estava tudo queimado e destruído. E de repente sentiu-se novo. A vida lhe parecia mais bonita, mesmo sob a chuva forte. O ar era mais puro, seu cérebro funcionava melhor e nunca mais reclamaria de tédio. Deveria aproveitar a vida como nunca antes. A adrenalina parecia ter tomado o lugar do sangue em suas veias e num impulso, o grego beijou o rosto do burguês. Muito próximo àqueles lábios rosados, que não estavam tão corados assim devido ao susto do raio e o frio da chuva.
Ao ver a expressão de choque do outro, Milo se arrependeu. Tinha passado dos limites. Tentou pensar rápido e se livrar daquela situação constrangedora. Era bom nisso e não seria agora que sua habilidade falharia.
- Obrigado por salvar minha vida. – Foi o melhor que o loiro pensou. – Isso tudo foi o Faraday?
- Bom... Estamos vivos apesar de um raio ter caído próximo demais de nós. Mas, agradeça a Deus e ao Faraday e não a mim. – O ruivo o olhava tranquilo. E Milo convenceu-se de que o francês entendera que seu surto fora apenas uma coisa do momento traumático.
- Camus, olha! – Milo apontou e o ruivo virou-se.
O coelho, que estava na frente dos dois meninos antes de tudo aquilo acontecer, estava morto. E Milo convencia-se cada vez mais que a estória de Faraday e rigidez dielétrica, seja lá o que essas coisas significassem, tinha salvado suas vidas. O grego gostava de ver o lado bom das coisas. E já que era pra ele ter de ficar em meio a uma tempestade apavorante e perigosa... Agradeceu internamente de ter passado por isso com alguém que sabia o que fazer.
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Cerca de meia hora depois a tempestade passou e os dois meninos estavam a caminho de casa. Cansados, ensopados, tremendo até os ossos. O céu já vinha ficando escuro, mas Milo sabia bem para onde deviam seguir. Feitas as duas horas de caminhada eles avistaram a mansão dos Fontaine.
E nem bem se aproximaram, Sr. Fontaine veio correndo ao encontro dos garotos e agarrou Camus num abraço apertado.
- Graças a Deus! Por onde vocês andaram? Queriam matar-me do coração? – O homem largou Camus e começou a ficar vermelho de nervosismo e um vaso latejava insistente em sua têmpora. – Camus, está querendo ficar de castigo, é isso?!
- Sr. Fontaine, me desculpe a intromissão. Eu é que levei Camus para o pomar. Nos distraímos e não vimos a tempestade chegar. – Milo olhava o chão, constrangido.
O pai de Camus suspirou, recompondo-se.
- Não, filho. Não há o que desculpar. Brincadeiras de garotos são assim mesmo. Vocês assustaram esse velho homem, só isso. – Ele coçou os bigodes. – Mas não façam de novo.
Os dois meninos se entreolharam e sorriram cúmplices.
- Bem Senhor, vou encontrar meu pai. Já é noite e ele deve estar preocupado. – O grego virou começou a caminhar.
Camus sabia que a moradia do caseiro ficava um pouco distante dali. O vento estava forte e Milo tinha passado o dia todo na chuva com ele. O loiro não precisava se expor mais ainda ao frio.
- Pai, não deixa! – O ruivo chacoalhou o cotovelo do mais velho. - Está tarde, Milo precisa entrar e se aquecer. Mande alguém avisar ao pai dele e deixe que ele passe a noite aqui, sim? – O menor o encarou sério. O homem jamais negaria um pedido tão sincero de seu pequeno ruivo.
- Ele está certo, Milo. – Sr. Fontaine fez gestos para o loiro voltar os poucos passos que tinha dado. – Será muito bem vindo. Entrem os dois e tomem um bom banho. Pedirei à cozinheira para fazer uma boa sopa para se aquecerem. O pai do burguês distanciou-se procurando um mensageiro para avisar ao pai de Milo que o garoto estava bem.
Milo estava sem graça, mas o francês tinha uma sombra de sorriso passando no rosto. Assim que o pai saíra, Camus relaxou. Não mostraria ao pai que se afeiçoara a Milo assim de cara. Não queria dar esse gostinho de vitória ao Fontaine mais velho. Camus era orgulhoso e sabia disso.
Logo, o grego, estático de surpresa, sentiu a mão macia do ruivo fechar-se ao redor de seu pulso e puxá-lo gentil mas rapidamente. De modo que em poucos segundos os dois já corriam até a entrada.
- Vem! Eu te empresto um pijama.
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Milo estava em um dos banheiros da casa. A banheira era bastante grande, caberia dois dele ali dentro e ainda estariam confortáveis. O grego deixou o corpo afundar na água quente. Nunca vira um banheiro tão luxuoso em toda sua vida. Tudo ali era mais espaçoso do que o necessário, muito bem bordado, muito bem desenhado. A água estava bastante quente e relaxava seus músculos tensos pelo estresse do dia.
Do lado da banheira tinha uma porção de sais de banho, óleos, sabonetes, shampoos. Eram muitas formas de frascos, muitas cores e texturas de líquidos e muitos cheiros agradáveis. O loiro decidiu que gostaria de morar num banheiro daqueles. Não sabia nem que produto usar.
Qual daqueles faria mais bolhas?
Depois de se lavar bem e aproveitar a água quente, resolveu que era hora de sair. Como lhe tinha sido dito, deixou as roupas molhadas no canto da pia.
Saiu enrolado na toalha e se dirigiu ao quarto do ruivo. Bateu na porta e esperou um pouco.
- Pode entrar. – O loiro ouviu o garoto dizer, então girou a maçaneta de bronze e entrou no quarto.
Encontrou o burguês deitado de bruços na espaçosa cama de casal lendo um livro que trouxera escondido na mala.
- Você demorou, Milo. Achei que tivesse se afoga... – O francesinho disse e ergueu os olhos deparando-se com o grego enrolado na toalha branca, olhando pra ele da porta fechada.
As coxas... Ele não tinha reparado o quanto eram grossas. Podia ver os músculos delineados que o outro tinha. O abdome definido, já conhecido, parecia ter um atrativo a mais, molhado daquele jeito. Um peitoral estufado e um belo par de braços fortes. Bíceps, tríceps, qualquer outro "íceps" muito bem malhados. O ruivo sentiu o corpo tremer com a visão de Milo. Sim! Porque ele era uma visão! E que visão...
O grego arqueou a sobrancelha e seu ego inchou ao perceber que estava sendo devorado pelos olhos do rapaz a sua frente. E de repente o loiro se viu tentado a pegar o francês de jeito. Mas o faria pedir.
Sem chances dele se expor ao ruivo e dar a ele a chance de rejeitá-lo. Milo odiava ser rejeitado, ainda mais por alguém da estirpe de Camus que já tinham o rei na barriga.
A verdade é que estava se afeiçoando ao filho do patrão mais do que deveria e não aguentaria saber que não era correspondido. Ele tinha um instinto auto preservativo enorme e não seria agora que abriria mão. Até por que... O parisiense era tudo no que ele queria pensar, tudo o que seu corpo cheio de hormônios parecia implorar. Ah, tinha ficado tão pouco tempo com Camus e este já tinha ganhado toda a sua atençã mais querer escutar seus próprios pensamentos, Milo se dirigiu até a cama do outro onde se sentou, sorrindo ao notar-se ainda observado com atenção. Chegou o rosto próximo ao do francês de modo que podia contar cada um de seus cílios. E sussurrou...
- Pode me pegar um pijama? – Uma frase simples, mas que o loiro carregou de sensualidade pra dizer. Queria incitar o outro.
Camus mal conseguia se mexer e às vezes tinha de lembrar a seu próprio cérebro que ele precisava respirar.
Ora veja, até sua cabeça tinha o abandonado. Mas também... O que Milo tinha dito mesmo? Pode dizer que me ama? Oh céus. Não, não. Ele só queria um pijama.
-Estou falando com você. – O grego bateu sua testa na de Camus, para acordá-lo.
O ruivo piscou algumas vezes, saindo do transe, murmurou algo ininteligível e levantou-se, saindo a contragosto daquela posição, pra pegar roupas pro outro.
Abriu a gaveta da cômoda, remexeu as roupas em busca de um pijama. Detestava quando Edmond desfazia suas malas. Ele nunca encontrava nada do que queria. Jogou algumas peças de roupa pelo chão até achar o que buscava. Era um pijama azul marinho, que o pai comprara pra ele há dois meses. Era grande demais, nunca havia usado. Achou que ficaria melhor em Milo, que era ligeiramente mais alto e bem mais forte que ele.
- Tome. Acho que este vai servir. – O ruivo estendeu a roupa para o grego.
- Obrigado. – Milo pegou o pijama, resvalando os dedos nos de Camus e isso foi quase um choque. Uma corrente elétrica passando por todo seu corpo e arrepiando até seus cabelos da nuca. Sorriu sincero para o parisiense. Também, não havia outra coisa a se fazer. O loiro assumiu pra si mesmo, naquele instante, que o estudioso francês realmente mexia com algo dentro dele.
No campo não era como na cidade, você não via mil jovens. Mas ele conhecia muitos por ali mesmo. Já beijara algumas meninas e nunca tinha sentido coisa parecida com ficar abraçado ao ruivo na chuva, ou aquele toque tão singelo de agora. Camus tinha algo de especial, que o chamava e fazia-o sentir que deveria estar pra sempre ao lado dele.
Tocou de leve a pele alva do menor buscando sentir mais da sua textura gostosa. O burguês arregalou um tanto os olhos e sua pele ganhou um tom rubro com rapidez, mas ele não se mexeu. Sentia o coração na boca, descompassado e acelerando à medida que o rosto do loiro se aproximava do seu. Os olhos de Milo eram lagos azuis que o estavam prendendo e atiçando sem nenhum pudor. O polegar do grego brincava com a maçã de seu rosto. De repente notou que uma das mãos do loiro já estava na sua cintura, ameaçando entrar por debaixo de sua blusa. Camus também não se lembrava em qual hora ordenara que sua própria mão, traidora, fosse dedilhar os ombros de Milo. O dono daqueles orbes azuis roçava seu rosto com o dele próprio e o ruivo nada podia fazer além de se deleitar com o sorriso bonito do garoto campestre e da sua respiração misturando-se à dele.
- Pequeno Camus! - Era Edmond batendo na porta e fazendo o ruivo pular da cama num susto enorme.
- Si-sim, Edmond. Que há? – Estava nervoso e tremendo. Não sabia se pela proximidade com Milo ou pelo susto com Edmond. Apesar da porta fechada ele se sentira flagrado.
- Seu pai está chamando na sala de jantar. Milo ainda não saiu do quarto dele também. Será que já dormiu? Acho melhor chamá-lo.
- Não! – Exasperou-se por um instante, mas voltou a si logo. – Deixe Milo descansar que eu passo lá depois, Edmond. Desça que já estou indo, sim?
Ao lado de Camus, o loirinho ria baixo sendo repreendido pelo olhar do outro.
- Como quiser. – O mordomo respondeu e os garotos ouviram seus passos sumindo pelo corredor.
O parisiense largou-se na cama totalmente mole e doente de nervoso.
- Quase hein? – Milo riu e fez cócegas no pescoço do ruivo.
- Ora, vista logo essa roupa e desça. Vou te esperar lá em baixo.
Atordoado, o francesinho saiu do quarto e deixou Milo trocando a roupa.
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1. Gaiola de Faraday: Experimento realizado por Michael Faraday, que demonstrava que a superfície de um condutor eletrizado possui campo elétrico nulo em seu interior. Em seu experimento, Faraday ficou dentro da gaiola de barras metálicas e a eletrizou, mas ele saiu de lá ileso.
Perguntei pra uma pessoa que estuda física e a chuva não interfere ( respondendo aos possíveis paranoicos..Assim como eu. KKK )
De qualquer forma... DESCULPEM a viajada. Essa fic ta pra ser postada HÁ SÉCULOS, mas eu fiquei me torturando muito tempo com isso e agora cansei de pensar.
E... Espero que gostem.
Até o próximo.. E último capítulo!
