Etimologicamente, a palavra anatomia relaciona-se com a dissecção. Significa seccionar em pedaços. Há sempre muito mais ao fundo do que a superfície permite expor: camadas e complexidades em um sistema intrincado. Mais ainda: cada tipo de corte permite um novo ângulo, um novo olhar, sobre algo já conhecido.
Não seria incorreto, então, dizer que conheciam-se anatomicamente — nas várias implicações do significado disto. Pareciam conhecer mente, corpo, emoções; tudo o que havia para conhecer sobre o companheiro. Ainda assim, descobriam um novo detalhe, uma nova surpresa, a cada dia.
O íntimo de um mesclava-se ao íntimo do outro, um mosaico formado por suas essências e, embora o conhecimento mútuo fornecesse alegrias, nem sempre era acompanhado de paz. Eram certeiros ao cutucar as feridas.
Por vezes, viam-se repetindo as ações que tomariam dez anos antes. Não por falta de maturidade, diriam, mas por não haver tanta necessidade de mudança, ou assim julgavam.
Despiam-se um ao outro até tornarem o âmago desnudo, transparente: cada uma de suas qualidades, cada um de seus defeitos. Cada falha ampliava-se, quando refletida pelo outro, tornando-se ainda mais desconfortável do que a mera ciência de sua existência.
A arrogância de Shaka parecia ainda mais pesada, mais vergonhosa, nos outrora doces lábios de Mu, capazes de desferir verdades sem rodeios. Enquanto a passividade de Mu, e sua perene melancolia, pareciam mais graves quando era Shaka quem o acusava. Apenas isto, e eventuais complicações inerentes à profissão, perturbavam o equilíbrio.
Não saberiam, ainda, dizer se eram bem-sucedidos. E no que implicaria o sucesso, de qualquer forma? Fortuna? Reconhecimento? Era certo que levavam uma vida confortável, na medida do possível, e se preparavam para dar mais um passo na carreira. E ainda eram relativamente jovens, se ignorassem um ou outro fio de cabelo branco em suas cabeças. Mu ria-se, ao dar-se conta de que pequenas rugas começavam a se formar ao redor dos olhos de Shaka.
Mu estaria satisfeito se apenas pudesse cumprir seu dever, fama e dinheiro não lhe importavam tanto quanto a satisfação de fazer a diferença. Os anos passados em missões de ajuda humanitária cobravam o seu preço — todas as noites — mas ensinaram-lhe lições. Uma delas, talvez a mais importante, era que seu dever não era curar; seu dever era confortar.
Não tinha culpa pela vontade de curar. Foram anos dedicados a isso, ou assim acreditava. Recordava-se bem de seus anos de formação, de como nem seus professores, nem seus colegas, nem ele mesmo, conseguiam lidar com o "não há mais nada que possamos fazer". Tardou a descobrir que sempre há algo a fazer, que sempre haveria algum aspecto a ser cuidado mesmo quando todos os outros recursos falhavam.
Ainda que doesse, deveria acostumar-se com o fato de que, com frequência, apenas o ato de aliviar estaria em suas mãos. Apesar de suas crenças na continuidade da vida, Mu não lidava bem com a finitude dela. A sua rotina, portanto, às vezes tornava-se avassaladora.
"Medicus quandoque sanat, saepe lenit et semper solatium est", repetiu para si. Não que precisasse se lembrar da frase naquele momento, e sim porque ela se instalara entre suas memórias.
A quem tentava enganar? A verdade era que Shaka perturbara-lhe profundamente durante toda a semana, e a insônia instalara-se novamente. Como se Mu pudesse se dar ao luxo de mais noites mal-dormidas em seus escassos dias de folga...
Revirou-se na cama, abraçando-se a um de seus travesseiros, tentando não pensar no quanto se sentia vulnerável... Tentando não se sentir egoísta dentro de sua vulnerabilidade; afinal, era claro que quem tinha problemas era Shaka. Na realidade, se tentasse descrever seu sentimento naquele momento, o resultado seria desastroso. Nunca fora uma das melhores pessoas para lidar com as próprias emoções; esta definitivamente foi uma lição que Shion não lhe deixou.
Quando finalmente conseguiu cair no sono, foi algo breve. Despertou com som de tiros. Demorou a situar-se e a acreditar que nada ocorrera; não passava de sua mente pregando-lhe peças. Diferentemente de outras vezes, entretanto, o que se seguiu foi um estranho vazio... Até lembrar-se das palavras de seu amigo, ecoando insistentemente em sua memória.
"Quando chegar a minha hora..."
O que Shaka buscava com aquele tipo de conversa? Mu notara algo errado, mesmo enquanto o virginiano ainda tentava disfarçar. Às vezes considerava uma maldição ser tão perceptivo. Porém, mais uma vez, fora educado e treinado para perceber nuances. E aprimorara-se nisto durante a residência em Pediatria. Sorriu com amargor, ao pensar que, em muitos sentidos, Shaka parecia-se mesmo com uma criança.
O mais preocupante, porém, é que ambos sabiam que aquilo ia além de mera estafa, como atestavam as febres frequentes e a expressão de dor constante. Como médicos, era pior e mais frustrante não encontrarem uma causa. Era uma questão de tempo, mas quanto tempo teriam à disposição? Não sabiam. Por tudo isso, consideravam melhor seguir com suas rotinas. Era raro que falassem sobre o problema como se, com isto, ele desaparecesse por completo. Pelo contrário: era um inimigo silencioso sempre à espreita.
Sentia vontade de desvelar cada peça fora do lugar, de mostrar a Shaka que ele não era tão perfeito assim, que era um humano com problemas. Não fora isso, afinal, o que indiano fizera a Mu quando estavam no internato? Mu quase sucumbira à pressão, naquela época.
Sentara-se afastado de seus colegas na cafeteria do hospital. Remexia a comida, tentando encontrar algum apetite que nunca aparecia. Se já não estava em paz, sua aflição piorou com o olhar altivo sobre si.
— Desperdiçar comida é algo muito feio...
O tibetano limitou-se a encarar Shaka, para logo depois baixar o olhar.
— Quer me dizer o que há de errado? — Aparentemente, não havia limites para Shaka.
— Não há nada de errado, Shaka. — Pretendia-se seco, porém sua resposta saiu em um fio de voz.
— Tente novamente, porque sua resposta não me convence.
Abotoava e desabotoava os punhos da camisa, sem muito propósito a não ser desviar a atenção. Não queria estar tão consciente da presença de Shaka ali, do quanto se deixava levar quando se tratava do indiano. Sequer conseguia manter a calma por muito tempo diante daquela presença.
— É? Por que exatamente minha resposta não te convence? Como se te importasse...
A verdade era que Shaka se importava, talvez até excessivamente. Demorou-se em uma análise de Mu, dos pés à cabeça. E, se era possível, com um ar ainda mais altivo do que o habitual.
— Para começar, os seus cabelos. Seus preciosos cabelos, ralos e sem brilho. — Sabia que não precisava dramatizar, que isto pioraria a situação, mas era irresistível. Pensava que, assim, talvez retirasse Mu de sua inércia. — Posso apostar que estão caindo.
— Por acaso está insinuando que sou desleixado? — Mu tomou alguns fios de cabelo lilás nas mãos. Não pareciam estar tão calamitosos quanto Shaka fazia parecer, embora de fato estivessem caindo. — E por que essa fixação com o meu cabelo?
— Meu caro, se fosse apenas com o seu cabelo... Nós não teríamos tantas histórias para contar. — Shaka riu. Divertia-se ainda mais com a expressão contrariada de Mu. Em seguida, retomou a seriedade. — Não estou insinuando, estou constatando que está desleixado. Do contrário, você teria tentado disfarçar melhor essas suas olheiras. Há quanto tempo não dorme?
— Quem tem tempo para dormir quando se aproximam os exames finais? — Redarguiu, em uma tentativa de defender-se.
Nem isto, nem cruzar os braços ante o frio repentino, que apenas ele sentia, nem fechar os olhos, foram impedimentos para que Shaka continuasse em seu ataque.
— Suas roupas estão desalinhadas e isso não é do seu feitio. Você apertou seu cinto mais do que o habitual, o que se significa que perdeu peso em pouco tempo.
— Tudo isso é apenas cansaço, Shaka. — Tentava argumentar, embora soubesse que contestar apenas prolongaria a discussão. — Mostre-me alguém que esteja em melhores condições do que eu. Estamos todos no mesmo barco.
— Qualquer um pelo menos tem energia para falar sem precisar pausar para suspirar. Ou para falar mais alto, sua voz está baixa demais.
— Aonde você pretende chegar com isso tudo, Shaka?
— Esse nervosismo também não é natural para você. — Poderia simplesmente ser honesto e direto, dizer que estava genuinamente preocupado. Gostava de Mu, e pouquíssimas pessoas possuíam o mesmo privilégio. — Além do mais, você calçou meias de cores diferentes hoje. Alguma coisa está te perturbando profundamente.
Não possuía muito talento para escolher as palavras certas, porém. Jamais admitiria, mas temia as consequências de demonstrar afeto e preocupação abertamente diante de Mu. Havia muito se conheciam, eram amigos havia anos, e não era raro que agissem como um casal. Contudo, nunca conseguiam delinear bem o que era aquele relacionamento.
"Uma amizade colorida", Mu respondera a um amigo, certa vez, ao ser perguntado sobre o que ele tinha com Shaka.
Ainda assim, apesar dos longos anos de conhecimento mútuo, Shaka via-se sem saber como agir diante de Mu, que sempre lhe parecera sensível de uma maneira pouco saudável. Sabia que, se continuasse confrontando-o, inevitavelmente Mu se isolaria por dias, sem dar qualquer satisfação ou sinal de vida.
Pouco saudável também, aos olhos de Shaka, era a mania impossível de querer consertar tudo o que havia de errado no mundo. Irritava-se, considerava Mu genial, e por isto mesmo ele deveria saber que nutria ideais inalcançáveis. Não haveria mais nada além de frustração no caminho de Mu, se ele continuasse assim.
— Para mim, é evidente que você está doente. — Jamais fora afetuoso, e demonstrava ser ainda menos quando em público, mas abraçou Mu; como se, com isto, pudesse amenizar o peso das próprias palavras.
Mu encolheu-se ainda mais, antes de retribuir o abraço. Não poderia dizer que Shaka estava errado. Na verdade, sequer tinha energia para discutir — e era muito melhor permitir-se viver aquele momento.
Tais lembranças pareciam-lhe ainda mais dolorosas; as preocupações daquela época, banais demais. Olhar para o passado era imaginar que poderia resolver tudo muito mais facilmente, muito mais calmamente. Desejava que, no futuro, pensasse o mesmo quando confrontasse as memórias que construía ao lado de Shaka naquele momento.
Levantou-se, dando como perdida a luta para recuperar o sono. Tratou de preparar um chá: jasmim, reconfortante, um de seus preferidos, um dos preferidos de Shaka. Apenas mais uma das coincidências que os uniam.
Afastou as cortinas. Da janela de seu apartamento, podia ver ainda as luzes esparsas da cidade, com uma disposição tão diferente de sua terra natal. Não mais sentia saudades de casa — mas a comparação era inevitável: apresentava a mesma naturalidade de um estrangeiro mesclando a língua materna com a língua local, sem perceber, mesmo depois de anos residindo em outro país.
N.A.: Então, finalmente tomei coragem para reescrever. Não vou apagar a fic que deu origem a essa, mas estava sentindo que faltava — maturidade, direção, foco — e que precisava mesmo reescrever se quisesse levar para a frente.
Não é fácil dizer isso, porque quem mais me estimulou e me deu sugestões, desde o início, já não está entre nós há um ano. Mas eu preciso fazer o agradecimento — por tudo —, de qualquer forma, onde quer que você esteja, Arietide. Não há um dia em que eu não sinta sua falta... E sinto muito que você jamais tenha visto essa história terminada.
Antes que eu me prolongue demais... Sintam-se à vontade para trocar impressões.
