Ilusões Partidas
por Ammodytus
Capítulo Um – A Ilusão de Segurança
"Cedo ou tarde,
o passado vêm à tona
e amordaça e crucifica."
Em quinze anos de docência, fora a primeira vez que Severo Snape liberara a turma antes do final da aula. Os estudantes saíram barulhentos da masmorra, sem encararem o professor que ficara para trás; nem os sonserinos se deram ao trabalho.
Ignorando esse fato, ele aguardou que a sala ficasse vazia e fria antes de retirar-se para seu gabinete. Serviu de um copo de uísque de fogo e esticou-se no sofá, quase deitando.
Qualquer regra de bom-senso indicava que agira precipitadamente. Não deveria ter dispensado a classe apenas por tal insinuação, pois uma detenção teria sido punição mais que satisfatória. As lembranças, todavia, fervilharam em sua mente e não permitiram que agisse com coerência, impedindo-o de resistir a seus impulsos idiotas.
Soltou um suspiro cansado e, sem mais o que fazer, bebeu mais um gole do precioso copo. A sala sempre se definia como escura; o sol mantinha-se afastado pelas grossas paredes sem janelas e poucos candelabros proviam a escassa luminosidade do ambiente. O ar era frio e pesado.
Severo habituara-se à escuridão, começara a considerar como seu refúgio, quando ainda era pequeno. Quando morava com os pais, buscava fugir e esconder-se em seu escuro quarto. Fugir e esconder-se... estava tão acostumado a fazê-lo, sabia que era a melhor atitude quando as coisas piorassem. Tentara, algumas vezes, fazer alguma coisa, coagir seu pai até que ele parasse, explicar que o que ele fazia não era certo, mas seu insucesso fora tamanho que se obrigara a passar várias semanas arrependendo-se por ter ousado demonstrar sua contrariedade.
Depois dos – como chamava – episódios, ele era sempre rigorosamente castigado. Trancavam-lhe no quarto por muito tempo, ele não se importava realmente em sair ou comer o mínimo da enojante comida que lhe serviam. Essas punições, de fato, serviram para que ele aprendesse alguma coisa. Aprendera a gostar do escuro e a temer a luz.
Desejava manter afastada a memória dos momentos em que seu pai abria a porta do quarto, mas sua mente teimava em ater-se a essa parte do passado. Lembrava da luz entrando e ofuscando seus olhos, já tão acostumados a sua ausência.
As súbitas batidas ouvidas à porta o tiraram de seus devaneios. Levantou-se e atravessou a sala. Largando o copo sobre a escrivaninha, destrancou a entrada para ver que Alvo Dumbledore o procurava.
– Boa noite, Severo.
– Diretor – sem opção, deixou-o entrar. – Posso saber a que devo a sua visita?
– Soube que seus alunos saíram mais cedo esta tarde.
Snape guardou o silêncio, pegou novamente o copo e tomou seu lugar no sofá.
– Aconteceu alguma coisa? – insistiu Dumbledore
Permaneceu quieto, sem coragem de levantar os olhos. Estava Dumbledore o pressionando? Ele não poderia... não queria falar. Guardara tudo aquilo por tanto tempo e não seria agora que cederia à necessidade de explicar a alguém o que acontecera.
– Foi por causa da discussão entre o Sr. Malfoy e o Sr. Weasley?
– Uma detenção será suficiente para reparar o mal feito, eu não dispensaria uma turma por tal futilidade – respondeu Snape friamente.
– Imaginei que assim fosse, Severo. Imaginei também que pudesse ter sido por causa do ataque ocorrido em Glastonbury.
– Eu não estava lá – Snape defendeu-se imediatamente.
Dumbledore acenou, indicando que entendera.
– A família de uma de suas alunas estava entre as vítimas – o diretor informou.
Snape o observou com atenção.
"Os Dawis foram mortos", declarou Dumbledore, sucintamente.
– Tracey já foi informada?
– Esperava que você o fizesse. Fale com ela. Talvez seja interessante que a acompanhe ao funeral. Se precisar de alguma coisa, Minerva se dispôs a ajudar, ela já fez isso dezenas de vezes... – Dumbledore falou com tristeza.
– Falarei com ela.
O diretor saiu logo depois e o deixou novamente sozinho. Dumbledore estava certo, Snape nunca precisara lidar com algo assim antes. Na verdade, ele já precisara, mas não exatamente com a morte de um aluno.
Quando a porta foi fechada, Severo ficou parado no chão, ainda tremendo. Definitivamente aquela não fora uma boa noite. Sabia que não estava trancado ali e que poderia sair quando quisesse, mas não estava certo se esta seria uma boa idéia. Era melhor ficar quieto, mesmo porque, se descesse e tentasse comer alguma coisa, seu estômago não aceitaria. Severo não queria que aceitasse, mesmo que não pudesse entender esse desejo. Talvez esperasse que, assim, alguém pudesse notar que tinha algo errado com a sua vida. Se fosse isso, ele esperaria em vão por muito tempo.
Sentou-se recostado na cama, sentindo a raiva percorrer seu corpo. Sem mover-se, lutou contra a grande necessidade que sentia de chutar alguma coisa ou socar alguém. Era melhor que não fizesse barulho – aprendera isso há muito tempo – a mãe, cujo quarto ficava à duas portas de distância, se incomodaria se ouvisse.
Ele recebera a carta há menos de uma semana; faltava apenas dois dias para que estivesse em Hogwarts, longe de casa. Fechou os olhos e obrigou sua mente a se concentrar nesse pensamento. Não era como ele amasse a escola até porque, na verdade, ainda não a conhecia. Entretanto, mesmo sem saber o que esperar, acreditava piamente que não poderia ser pior daquilo que ele passava naquela mansão.
Se acalmara por alguns instantes, mas então sentiu novamente seu corpo ficar tenso ao ouvir os gritos vindos do andar de baixo. Pela segunda vez naquela noite, seus pais estavam brigando. Preferia nem tentar descobrir o porquê, mas ainda assim, podia prever o que aconteceria a seguir.
Não demorou muito para que ouvisse a porta do quarto da mãe bater, cessando os gritos. Então, sua previsão se confirmara. A porta do quarto fora, mais uma vez na mesma noite, aberta.
– Severo – uma voz o chamou, levando-o à beira de um ataque de pânico.
Viu o vulto se aproximando e recuou. Cada centímetro de sua pele parecia excepcionalmente sensível, como se estivesse prestes a ser tocado, e isso o assustava. Suas costas foram paradas por algo sólido e o vulto curvou-se sobre ele, tocou seu ombro. Em sua mente, milhares de frases se formavam, e ele era incapaz de pronunciar ao menos uma, ocupado que estava tentando respirar o ar cada vez se tornava mais rarefeito.
"Severo?" a voz repetira e a mão segurou seu ombro com um pouco mais de força.
Ele não podia suportar olhar nos olhos do agressor e – o mais importante – sabia que não deveria fazê-lo. Baixou o rosto, a única diferença que faria se encarasse aqueles olhos negros seria a fúria que neles incitaria. Em vez disso, cobriu a cabeça com os braços e em um murmúrio – em uma súplica – pediu que parasse.
"Olhe para mim, Severo".
Em sua confusão, conseguiu inspirar um pouco de oxigênio. O que ele queria? Nunca, nunca mesmo, ele ordenara tal coisa. Era sempre "vire-se de costas, não olhe para mim". Estaria buscando mais um motivo para castigá-lo? Já não os tinha em excesso? Sem ter mais tempo para pensar, sentiu que ele colocara a outra mão em seu queixo e o obrigara a encará-lo. Snape não teve tempo de respirar fundo, não teve tempo de imaginar o que dizer, como se desculpar para com ele. Quando viu, ele tornara-se Alvo Dumbledore.
"O que há de errado, meu garoto?"
Olhou uma vez nos olhos do Diretor e deixou a cabeça cair para trás, quase aliviado. Enganara-se, em parte. Ele não estivera ali, não àquela noite. Era apenas Dumbledore, que deveria ter entrado ao não ouvi-lo responder. E Dumbledore dava-lhe uma nova chance para explicar, para contar... mas lhe era impossível... era cedo e não queria reviver tudo...
'Não quer reviver tudo, Severo?' pensou para si mesmo. 'E o que tem feito essa semana toda?'
Respirou lentamente, permitindo que sua pulsação voltasse a um ritmo quase normal. Percebeu que Dumbledore ainda o observava, e que precisava justificar o que ele vira. Levantou-se, para descobrir que o que tinha atrás de si era a parede. Dumbledore imitou seu gesto e continuou observando-o, analisando-o enquanto ele caminhava até o bar com bancada de mármore negro e pegava mais uma dose dupla de uísque. Somente então, Snape virou-se e, em um tom quase acusatório, perguntou:
– O que você viu, Diretor?
– Não precisa fazer jogos semasiológicos se não quiser falar comigo – Dumbledore disse em um tom abatido. Depois de alguns segundos de silêncio, assentiu com a cabeça. – Se precisar de qualquer coisa, Severo...
Snape olhou para o chão, sem deixar de escutar as palavras dele, debatendo-se sobre o que deveria fazer.
"Eu estarei no meu escritório" acrescentou Dumbledore em despedida e saiu, fechando a porta e deixando Snape sozinho, dividido em si mesmo e preso em lembranças que, cedo ou tarde, voltariam à tona.
