PRÓLOGO


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Região de Chitwan.

Aldeia de Sharampur

Aconteceu há alguns anos, mas o calor das chamas que incendiaram os casebres da região ainda pareciam arder iluminando aquela noite fria. O grito de desespero e a dor ainda toma conta da região, hoje abandonada e esquecida por todos. Todo o local encontra-se em ruínas, marcadas pelo medo da mera menção daquela noite de terror. Não havia quem se aventurar por aquelas terras, e os poucos que tentaram sucumbiram. O portão de madeira e seu sino são sinais do limite para qualquer aquele que ali chega. Atravessar aquele vilarejo é estar preparado para a agonia que afligirá o mais profundo da alma. Todos os dias, flores são deixadas na entrada em memória dos mortos por aquela fatídica noite da qual todos se negam a lembrar ou mesmo comentar.

Por anos essa região viveu sob intensa guerra civil que levou a destruição de muitas famílias e uma terrível escassez, levando muitas pessoas ao desespero. Diversas cidades eram tomadas e devastadas, com noites tomadas pelas chamas e pelas lágrimas provocadas por perdas inestimáveis de seus entes queridos. O que era assistido nesse momento eram apenas o desespero e fuga da felicidade que antes ali havia. Porém, é preciso ressaltar os versos de Daisaku Ikeda acerca desta infelicidade que "são provocadas por erros de decisão ou escolha. Portanto é errado considerar que todos os acontecimentos são manifestações de carmas ou destinos pré-determinados". Hoje compreendo bem isso, ainda que eu tenha pago um valor bem alto por isso juntamente com todos neste lugar...

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Os gravetos estalavam com as chamas na lareira acesa, iluminando o ambiente um tanto precário com a parede de terra e teto de palha que havia sido reforçada há alguns dias com amarras suficientes para suportar a nevasca que estava anunciada para aqueles dias. O céu acinzentado e as nuvens carregadas já era um prenúncio. Antes do cair da noite alguns flocos de neve começaram a cair e intensificando-se conforme escurecia. Enquanto um manto negro cobria o céu, uma névoa branca se formava transformando todo o lugar num grande deserto coberto por um manto branco gelado. Não havia outras propriedades visíveis naquela região, exceto a cidade ao longe que se mostrava vazia e 'fria'.

- Tem certeza que é seguro para ele? – indagava Demitri olhando pela janela já marcada por finas camadas de gelo pelo frio do lado de fora. – Disse para pernoitarmos aqui por não ser seguro voltar, mas não hesitou em sair nessa nevasca que se intensifica cada vez mais.

Um velho homem buscava um bule que havia deixado na lareira, entornando a água quente em duas xícaras improvisadas e deixando o aroma do chá impregnando o ambiente. Harish era um homem em idade avançada com longos cabelos já esbranquiçados, corpo esguio, mas com presença e imponência diferente de homens comuns. –Não se preocupe com ele. Diferente de você ele conhece bem esta região e sabe de suas limitações. Certamente ele poderia seguir viagem, mas não o fez temendo que não suportasse o frio. Comentava o Ancião entregando a bebida ainda quente e para que se aproximasse mais. A noite havia esfriado consideravelmente, e manter-se próximo à lareira era a melhor idéia.

- Pergunto porque me preocupa ele seguir caminho por aquele vilarejo que me parece tão... abandonado. Quase assombrado. Comentou tomando a xícara em mãos, fumegante ainda e assoprando um pouco antes de beber. O ancião apenas o assistia com sua expressão serena e olhar vivo. Nada comentou, apenas ficou a ouvi-lo. – Cheguei aqui até aquele portão onde fui deixado sem entender a reação do homem que me pareceu muito assustado. Perguntei o que havia acontecido ali, mas ele nem mesmo me respondeu. Parecia com medo, sei lá... Senti o homem bastante hesitante.

Os gravetos continuavam a estalar na lareira, e o velho adicionava mais alguns em vista que o fogo parecia enfraquecer. O vento no lado de fora parecia aumentar, chamando a atenção de ambos. Porém, Harish parecia muito tranqüilo, olhando para sua xícara e esboçando um meio sorriso. De fato, desde a fatídica noite aquele lugar tem sido evitado e o portão se tornando um símbolo de limite. Não havia quem comentasse ou mesmo mencionasse aquele lugar e Demitri já percebera isso ao chegar à cidade. Dentre todos que procurara, aquele era o único local certo de encontrá-lo, mas essa 'certeza' deu lugar a incerteza enquanto atravessava aquele vilarejo que tinha um clima tão pesado e fatigante.

- As pessoas não comentam sobre este lugar, acabando-se por se tornar um tabu, um símbolo de um medo visível pelo que aconteceu aqui há alguns anos. Nós dois somos os únicos a ficarmos, mas ele tornou-se praticamente um 'fantasma' nesse lugar querendo redimir-se daquele dia...

Demitri piscou aturdido. De fato, ao chegar ali ouviu apenas do velho, do 'ancião da vila', nenhuma menção daquele homem a quem sentiu emanar um poderoso cosmo jamais sentido antes. Pensava se aquilo não fora apenas uma impressão já que, ao atravessar aquele vilarejo em ruínas pareceu sentir ter toda sua energia sugada. Fitou mais uma vez o velho, franzindo o cenho e mantendo seu olhar incisivo sobre ele repetindo sobre ele querer 'se redimir daquele dia'. – Redimir-se? Ao acaso ele tem alguma responsabilidade sobre o que aconteceu aqui?

- Não. Klahan não tem qualquer responsabilidade do que aconteceu aqui em Sharampur. Ele ainda não sabe disso ou simplesmente nega aceitar seu destino... Comentou o velho homem apenas assistindo a nevasca aumentar.