DISCLAIMER: Monster e seus personagens pertencem a Naoki Urasawa.

A letra da música "Walk Away" utilizada como base para a songfic pertence à Christina Aguilera.


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Goodbye, Herbst...

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"What do you do, when you know something's bad for you

but you still can't let go?"

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Um minuto atrás ainda era outono em Düsseldorf.

Eram 03h30min da manhã quando abriu os olhos e deparou-se com os flocos de neve salpicando a vidraça do quarto de hotel. Além da janela, a paisagem urbana se dissolvia nos fantasmas brancos que a ventania carregava de um lado para o outro. Dentro do quarto, o silêncio se arrastava, como se marcasse uma lacuna suspensa na mobilidade do tempo real. Nas paredes, a nevasca brincava lançando sombras disformes do mundo exterior.

Não fossem as rajadas de vento frio que rasgavam por entre as frestas das persianas, o Dr. Tenma poderia facilmente se deixar embalar pelo torpor daquela atmosfera. Para ele, o cômodo parecia-se com os confins de um sonho obscuro. O ponto final de um labirinto. O Horizonte de Eventos entre a fronteira de uma existência letárgica e sua antítese inescrutável. Estava em lugar nenhum, fixo como um corpo sideral a flutuar na escuridão do espaço, e prestes a ser sugado por uma insaciável e maciça força gravitacional.

Perdido no limiar entre o que conseguia distinguir como realidade e imaginação, Tenma tinha a cabeça latejante. Efeito esse conseguido graças às bebidas fortes que fora seduzido a tomar durante a noite. Isso e alguma lembrança vaga de pancadas cuja origem não sabia ao certo a quê atribuir. Lentamente, embalado pela corrente fria, sua mente fora aos poucos sendo despertada. Seus circuitos nervosos foram refazendo e criando novas conexões, assimilando e assentando toda a informação que não havia sido completamente processada desde que chegara àquele hotel.

Veio-lhe a tona a claridade mortiça de um céu nublado que perfurava as vidraças da cafeteria na tarde do dia anterior. Não havia sol, mas foi necessário puxar as cortinas, de modo que, assim, pudesse enxergar o rosto do homem que lhe trouxera o envelope. Um desconhecido, um velho qualquer. Despediu-se acenando com a aba do chapéu e nunca mais foi visto outra vez. Ao abrir a misteriosa correspondência, a caligrafia elegante e indefectível saltou fora do papel diretamente para abocanhar-lhe as cordas mais sensíveis do coração. A nota, que lera com a voz da criança do Kinderheim 511, lhe dizia: "Ich habe ein Geschenk für Sie."

Sentou-se na cama. Estava nu. As articulações repuxavam, e, bastava se mover para que uma pontada de dor cristalina o atingisse certeiramente nas costas ou abdômen. Era possível que uma costela ou músculo estivesse seriamente danificado. Com um pouco de sorte, um emplastro, anti-inflamatórios e repouso prolongado, seriam o suficiente para dar conta do recado, sem a necessidade de uma intervenção mais agressiva.

Envergou os ombros para trás, o vento frio lambendo-lhe a pele, mas não tentou evitá-lo. Aproveitou-se do efeito da friagem para manter-se sóbrio. Ao seu lado, repousava o corpo do homem que passara anos à procura. A criatura que rondava e o perscrutava. Sempre à sua frente, sempre com uma expressão serena, impenetrável, aguardando que Tenma percorresse seu caminho, que traçasse suas metas, mas certo de que o desfecho a que todo aquele esforço convergiria não poderia deixar de ser o mesmo que idealizara décadas atrás. Johan o condenara àquela vida de justiceiro das sombras. Sentenciou-o a atuar uma peça cujo final há muito já havia sido escrito. Johan era seu mestre, seu inimigo, seu guia, seu alvo e sua ruína. Era, por fim, a razão em si que tornava sua jornada num calvário sem redenção final.

Não sabia mais dizer, portanto, quem era a caça e quem era o caçador. A caçada tornou-se o propósito de si própria. E a evidência cabal era o fato de que, naquela noite, correra de encontro ao ardil como uma raposa faminta e desamparada se lança para dentro da emboscada. A besta o abraçou com as estranhas asas protetoras de um predador. Passara aquela noite sob o comando de Johan Liebert. Seu corpo, alma e consciência coagidas a participarem de uma ópera de obscenidades, onde sangue, ódio, selvageria e terror compunham as árias executadas pela orquestra.

Tenma girou o pescoço para o lado, pondo-se a observar, em silêncio, o rapaz que ao seu lado adormecia. Parcialmente coberto pelos lençóis, a penumbra revelava a silhueta de seu corpo muito alvo e delgado. De certa forma, as sombras congregavam-se para atenuar a ambiguidade da sua forma, que não era de todo humana, mas sim desenhada entre os limites que separam o homem de uma criatura sobre-humana. A respiração era suave e inaudível. Os cabelos louros cobriam-lhe a face, velando e protegendo seu sempre inalterável semblante. E os olhos, adormecidos, mergulhados num mundo de sonhos. Com o que os monstros sonham, afinal? A pergunta fazia Tenma estremecer diante da hipótese de poder desvendá-los se observasse por tempo demais.

Desviou então o olhar, afundando a cabeça entre os joelhos. Pôs-se a chorar, desgraçadamente, contemplando intimamente os destroços do que lhe restara de si mesmo. Aos poucos, as cenas daquela noite foram remontadas como peças de um quebra cabeças na memória recente e embriagada do doutor. Lembranças que de início eram vagas, mas, reascendiam-se em fragmentos sólidos ante a visão dos frios olhos azuis impregnados em sua mente. Era necessário reavivar tudo o que vivera, pois somente assim seria capaz de se despedir.

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"I was naive, your love was like candy, artificially sweet

I was deceived by the wrapping

Got caught in your web and I learned how to bleed

I was prey in your bed and devoured completely"

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Seus passos o acuaram, as palavras dominaram e debruçaram-se sobre seus sentidos. A voz branda e terrível sussurrava, persuasiva, como veludo se resvalando pelos esconderijos pulsantes de uma virgem. As mãos frias, pálidas e frias, abraçaram-no como garras, desarmando-o, subjugando-o.

A taça de vinho despedaçou-se contra o carpete. Sentiu o corpo violado. O vidro espatifado, sua carne se abrindo. O gosto metálico em seus lábios denunciava o sangue.

As garras o perscrutavam com a força de mil bestas. A repugnância e a cólera o atingiram como flechas envenenadas. Mas não lutava. Não se opunha. Cedeu à perversidade e à violação, enquanto os vermes da virtude lhe roíam o estômago.

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"And it hurts my soul cause I can't let go

All these walls are caving in, I can't stop my suffering

I hate to show that I lost control"

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Os dentes e a boca do Monstro trilhavam ávidos sobre sua pele. Abocanhou-o, sugava-o, a língua e saliva o devoravam ferozes. Face, pescoço, mamilos, tórax. E depois descia, engolindo seu falo entre obscenidades que grunhia entre uma pausa e outra para recobrar o fôlego.

Ao arrancar do homem o gozo quente, envolvia-o em seus braços. O escárnio corroía sua expressão num sorriso, que, de tão belo em sua monstruosidade, Tenma buscou nele amparo e consolação.

A cabeça de cabelos dourados escondeu-se em seu peito, soluçando, sorrindo. Johan, então, tornava a erguer o pescoço, e com seus terríveis olhos azuis, algemava a consciência de Temna no limite da insanidade e da lucidez. Tragavam-no para uma realidade de pesadelos, demência e extravagância.

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"I should have known that I was used for amusement...

Couldn't see through the smoke, it was all an illusion"

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O Monstro sacou um objeto. A arma apontava para as têmporas do doutor. Os braços, atados com a gravata manchada de sangue e vinho. As peles nuas, de novo, se encontraram, se abraçaram.

O sangue pulsava em correntezas. Os músculos adormeciam. As mãos livres se enlaçaram às atadas. As bocas, em desarmonia se uniram. Os corpos se uniram e dançaram. Tenma, mais uma vez, sucumbia.

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"But the venom seeps deeper...Deeper.

We both can seduce, but, darling, you hold me prisoner"

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Johan investia impiedoso contra sua presa. A rigidez de seu membro masculino atravessando o doutor, reclamando-o, extraindo a luxúria da caça que durante todo esse tempo lhe fora negada. Tenma rasgava o silêncio do hotel com dizeres ininteligíveis, reduzidos a não mais que gritos de uma fúria que não mais cumpria qualquer dever. O ódio transformava-se em emblema, e o ato era seu ritual.

Os olhos azuis inebriavam-se. Golpeava-o. Gargalhava. Golpeava.

A lágrima verteu como uma súplica silenciosa. As mãos do Monstro, formidáveis e delicadas, agarram-no pelo pescoço, tomando-lhe o ar, estrangulando-lhe o prazer. A dor preencheu-o. Mais lágrimas verteram, rogando à Besta por piedade e compaixão. E sua prece foi atendida. O corpo arqueou inflando-se de ar, expandindo seus sentidos, como uma sinfonia prestes a atingir seu ápice.

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"I'm about to break, I can't stop this ache

I'm addicted to your allure, and I'm fiending for a cure"

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Ele morreria por ele. Sim, o doutor daria a vida pelo monstro que o violava. A nobre alma se perdia. Os vermes em seu estômago se aquietavam. No entanto seguia, sendo brutalmente castigado. Trespassado. Dilacerado. Rompido. O cano frio do revólver ainda pressionando-lhe a testa.

Submetido àquilo estava o pobre homem, o digno e respeitável doutor, o herói de Düsseldorf; ele gemia, sofria, ofegava, deleitava.

Em contrapartida, a mente lhe dizia:

"Ich muss weglaufen von Ihnen"

E ofegava ainda mais. As estocadas socavam seu corpo contra o chão duro. Uma pancada veio, seguida de outra e mais outro. O gosto do sangue diluiu-se na saliva. Tenma esmurrou o chão, debateu-se, mas incapaz de esforçar-se pra fugir.

A mente, no entanto, insistia:

"Ich muss weglaufen von Ihnen... Run... Run..."

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"I can't mend this torn state I'm in

Getting nothing in return, what did I do to deserve

The pain of this slow burn and everywhere I turn

I keep going right back to the one thing that I need

To walk away from..."

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Os dedos finos, compridos e sujos de sangue - o seu sangue - taparam-lhe a boca. A outra mão lançou para longe a arma carregada, tomando, no lugar, o membro do doutor.

A voz límpida do monstro proferiu sibilante:

"Mein lieber Dr. Tenma."

E investia contra o corpo do miserável.

Mais forte. Mais veloz. Buscando o ápice.

"Sehen sie mich!"

Mais rápido, mais, muito mais.

"Sehen sie mich!" – Gritou alucinado.

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"Every time I try to grasp for air, I am smothered in despair

It's never over, over… Seems I'll never wake from this nightmare

I let out a silent prayer, let it be over, over..."

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A gargalhada rasgou o começo de madrugada, assombrando o hotel. "Das Monstrum in meinem Selbst ist so groB geworden!"– Berrou, atravessando os olhos negros do doutor com a luz perigosa do azul do seu olhar. Um doce e curioso véu que escondia nada além de malícia e destruição. Dr. Tenma arqueou-se ao ser contaminado pela semente do monstro.

A besta forjou-lhe um sorriso em gratidão. Estava satisfeita. Virou-se ao lado da vítima, e, enfim, inofensivo, adormeceu. O doutor, reduzido ao ultraje, contemplou a visão de seu agressor. Belo, terrivelmente belo. Um anjo vertido na pele de um demônio.

Matar, matar. Precisava matá-lo.

O ar lhe faltava, respirava arfando em desatino.

Estava aflito. A sede de vingança o secava.

Matar. Assassinar. Silenciar. Vingar.

As mãos trêmulas não obedeceram.

A impotência aplanava todo e qualquer ímpeto de ação.

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"My heart has been bruised, so sad but it's true

Each beat reminds me of you..."

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Dr. Tenma fitou a janela mais uma vez. A neve agora invadia sem reservas o vão que fora acidentalmente deixado aberto. As persianas dançavam, embaraçadas contra a ventania úmida. Do lado de fora, a neve havia feito uma tênue cortina de gelo na vidraça. O homem enfrentava uma batalha mental entre a resignação e a luxúria. Não iria se conformar, era pouco, muito pouco para Kenzou Tenma.

As mãos, então, devagar, começaram a lhe obedecer. As pernas deixaram os lençóis e seus pés encontraram o chão gelado do quarto de hotel. Deu dois ou três passos, sentindo as pernas inseguras, carregando o corpo sujo de uma vergonha que jamais seria capaz de nomear. Apanhou o casaco caído e não a encontrou. Não estava lá. O desgraçado havia a lançado para longe. Mas onde?

Ao seu lado a mão sorrateira de Johan deslizou suave e felina por debaixo dos travesseiros. O homem, ciente do movimento, manteve-se ereto em sua imundície e vergonha. O medo o detinha. Aqueles olhos... sentia aqueles olhos o encarando a fundo, mesmo de costas. Então, sem aviso, a arma tocou-lhe a pele sensível da nuca, fazendo os fios se eriçarem com a sensação gélida do aço.

A voz que puxou o gatilho rogou-lhe com calma:

– Bleib bei mir, Dr. Tenma.

Tenma teve tempo apenas de girar o pescoço, instintivamente, para vislumbrar o brilho de uma lágrima cristalina que escorria pela face de mármore da besta.


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Notas finais:

Traduções dos termos em alemão usados ao longo da fic:

Título: Die erste Nacht des Winters / A primeira noite de inverno.

Sub Título: Goodbye, Herbst ... / Adeus Outono .

Nota de Johan: Ich habe ein Geschenk für Sie. / "Tenho um presente para você".

Pensamentos de Tenma: Ich muss weglaufen von Ihnen... Run... Run... / Preciso fugir de você...Correr...Correr.

Fala do Johan, retirada do mangá: "Mein lieber Dr. sie mich!Sehen sie mich!Das Monstrum in meinem Selbst ist so groB geworden!" / Meu querido Dr. -me! Veja-me !O monstro dentro de mim se tornou tão grande"

Fala final de Johan: "Bleib bei mir, Dr. Tenma." / Fique comigo, Dr. Tenma.

AVISO: Eu não sei alemão! Tudo que foi colocado aí, fora o que retirei do próprio mangá, foi feito com ajuda de um amigo que conhece um pouco da língua. Mas, se houver erros, gostaria de ser informada para corrigir.