Capítulo I

Barton, 1817

- Usando minhas botas outra vez? - gritou o jovem lorde Malfoy.

Pansy Parkinson mal podia ver o rosto do sétimo conde Malfoy através das mechas rebeldes de seus cabelos negros. Montada no Velho Tobey, seu cavalo favorito, regressava de uma cavalgada nas Colinas.

Não podia imaginar por que Draco a esperava, a não ser, é claro, que quisesse atormentá-la, como sempre. Recostado na volumosa arcada de pedra que conduzia aos estábulos da mansão Malfoy de Barton, o nobre tinha os braços cruzados sobre o tórax e uma expressão nada simpática no rosto.

- E daí, o que tem isso demais? - gritou ela de volta, competindo com o súbito estrondo de um trovão não muito distante.

O rosto masculino adquiriu uma expressão mais carrancuda.

Pansy crescera em Barton, fora levada para a casa de Draco quando tinha apenas quatro anos de idade. Seus pais haviam mor­rido em conseqüência de um incêndio que destruíra a casa deles, deixando-a órfã e sem lar. O sexto conde Malfoy compadeceu-se da pobre criança e a adotou. Na qualidade de seu tutor, não só lhe dera um teto como também fora um verdadeiro pai, dedicado e carinhoso como nenhum outro homem poderia ter sido.

Porém, falecera uma semana atrás por causa de uma pneumonia. Na verdade, fazia tempo que sua saúde estava debilitada. Já fazia mais de vinte anos que passava a maior parte de seus dias em uma cadeira de rodas. Agora ela estava só... e Draco também, é claro, para viverem suas próprias vidas.

Havia passado a manhã inteira e boa parte da tarde cavalgando, subindo e descendo as colinas que atravessavam todo o município de Barton. Era um modo que encontrara de desanuviar a mente da enorme tristeza que a acometia. Como não achara as próprias botas, pegara as de Draco emprestadas.

À medida que se aproximou, reduziu a velocidade do cavalo.

- Por que pegou minhas botas, se sabe que não gosto? - perguntou ele.

Gostava de vê-lo irritado, teve que admitir para si mesma.

- Pensou que eu não lhe daria o troco por ter me forçado a dançar naquele baile?

Um brilho divertido surgiu nos olhos cinzentos.

- Devo lhe confessar que vê-la tropeçar, trocando as pernas no meio do salão, foi a minha maior diversão durante a noite.

- Então, pode compreender perfeitamente o motivo pelo qual não hesitei em pegar suas botas. Além do mais, o que importa? Você tem uma dúzia de pares em seu guarda-roupa.

- Tenho apenas três confeccionadas por Stultz e nenhuma delas lhe serve!

- Oh, Stultz! - exclamou, sarcástica, enquanto puxava o cavalo e parava em frente a ele.

- Um homem tem que optar por usar artigos de boa qualidade. Oh, mas que droga, Pansy, você sempre consegue me deixar furioso.

Um sorriso espontâneo surgiu na face máscula e Pansy pren­deu a respiração, por razões totalmente alheias à sua compreensão. Não sabia por quê, mas, nos últimos tempos, quando ele lhe sorria, sentia-se desconfortável. Chegara a se preocupar se havia contraí­do algum tipo de doença estranha. Contudo, os sintomas tendiam a desaparecer no momento em que Draco se afastava.

Embora passassem a maior parte do tempo brigando, não podia deixar de apreciar a perfeição de sua figura atlética. Os ombros largos, cintura e quadris estreitos, as pernas bem torneadas, o rosto harmonioso com os lábios finos e rosados, os olhos de um azul cinzento, como a predição de uma tempestade, a pele pálida, os cabelos loiros que lhe emolduravam o rosto... O jovem lorde tinha um porte altivo, que revelava a origem nobre da qual provinha...Parecia um Deus grego...Não que esses aspectos a atraíssem fisicamente, porque ela não tinha esse tipo de sentimento. Porém, era capaz de perceber que tudo que a natureza negara a Draco em tempera­mento, o recompensara em beleza. Era tão rústico e viril como muitos dos fazendeiros que viviam nas redondezas de Barton. Comandava sua matilha de caça como jamais vira nada igual. Era audaz e brilhante com uma espada na mão como nenhum outro. De fato, mais de uma vez pensara em convidá-lo para se unir a ela em suas futuras aventuras, as quais incluíam viagens aos portos mais famosos do mundo. Dentro de poucas semanas, completaria vinte e dois anos e receberia sua herança oficialmente. Pretendia deixar Barton e velejar pelos sete mares, sem saber se um dia voltaria. Tal empreendimento envolveria certo risco e, se tivesse necessidade de um homem que soubesse manejar uma espada ou uma pistola, o mais indicado, por certo, seria Draco.

Era quatro anos mais velho que ela e poderia ter feito as vezes de um irmão, não fosse sua determinação de a irritar sempre que estavam juntos.

Em geral, ela apreciava a companhia de rapazes. Tinha mais afinidade de interesses com o sexo oposto do que com suas amigas. Porém, Draco jamais escondera a antipatia que sentia por ela desde que se conheceram, quase duas décadas antes. Mas agora, com a morte de lorde Malfoy, ambos vinham se esforçando para controlar seus temperamentos.

- Recuso-me a discutir com você - disse ele. - Pelo menos, não agora. Só vim para lhe dizer que o sr. Jennings chegou.

- Pensei que ele só viesse às quatro horas.

- Eu também. Mas já está aqui. Todos da família já estão.

Naquele instante, um pingo de chuva caiu no topo da cabeça dela e só então Pansy percebeu que havia perdido o chapéu. Não que se preocupasse muito com isso. Só o usava para evitar os sermões de lady Black, tia de Draco, sobre seu modo de se vestir.

Devido às recentes chuvas, a terra estava enlameada e, como passou horas cavalgando, estava suja de lama até as coxas. Ela retirou uma folha dos cabelos e soltou um gemido abafado. Mudar de roupa era uma tarefa simples, mas os cabelos requeriam trabalho de mais de uma hora em frente à penteadeira para escová-los e deixá-los apresentáveis.

- Não estou vestida adequadamente - reclamou.

- Você nunca está.

O tom depreciativo da observação irritou-a de imediato. Arma­da de determinação, ergueu o queixo e endireitou os ombros.

- Nesse caso, milorde, não vejo motivo para não assistir à leitura do testamento, devido à maneira como estou vestida.

- Você não ousaria.

Assim que acabou de proferir tais palavras, Draco percebeu que cometera um terrível erro. De todos os defeitos que via naquela jovem, a teimosia, sem dúvida, era o pior.

Nesse instante, um raio poderoso cortou o céu e um segundo depois outro estrondo alto estremeceu a terra. Antes que ele pudesse pensar, a chuva começou e depressa se transformou em um aguaceiro.

Correndo muito rápido, alcançou os estábulos, pretendendo tentar persuadi-la, pelo menos, a pentear os cabelos, mas, ao avistá-la, as palavras morreram-lhe na garganta. Ela estava apoiada no pescoço do cavalo e seus ombros e tórax estavam trêmulos.

- Pansy, sinto muito! - disse Draco, correndo a seu encontro. - Eu não deveria tê-la ofendido.

- Oh, não é isso - murmurou ela, agarrando-se à crina do Velho Tobey. - O que farei da minha vida sem seu pai? Sinto tanta falta dele.

As palavras o tocaram no fundo do coração, porque refletiram exatamente como ele se sentia. Era algo que ambos compartilhavam. Estavam órfãos, os dois. Sua mãe morrera vinte anos atrás, quando dera à luz gêmeos que também não sobreviveram. Em um momento de consciência, ele pôde avaliar o que Pansy sentira a maior parte da vida, uma sensação dolorosa que poderia descrever como um sentimento profundo de solidão.

Ver e compreender a profundidade da tristeza que a afligia fez seu coração amolecer. Então, segurou-a gentilmente pelos ombros, virou-a de frente para si e a abraçou.

- Não fique triste, Pansy... Vai ficar tudo bem.

Após alguns minutos, Draco se deu conta de como aquele corpo feminino se ajustava com perfeição ao seu. Tentou afastar tal pensamento, mas logo depois percebeu que sentia um inexplicável desejo de a manter ali em seus braços para sempre. Aquilo só podia ser o resultado da dor mútua que os afligia, pensou, rejeitando admitir tal sensação.

- Eu também o amava.

- Claro que sim - concordou Pansy, afastando-se devagar. - Nenhum filho poderia ter sido mais dedicado. Sempre admirei essa qualidade em você.

Draco fitou aqueles olhos castanhos brilhantes, ainda parcialmente escondidos atrás de um emaranhado de cabelos. Desejou saber como ela ficaria se fizesse um penteado no cabelo e passasse um pouco de batom nos lábios. Não que isso importasse. Pansy jamais ligara para tais coisas e sempre deixara clara sua intenção de partir para uma vida de aventuras assim que recebesse sua herança. E ele não se importava com a aparência dela, de forma alguma.

Quando a ouviu soluçar alto novamente, retirou um lenço do bolso do casaco e lhe ofereceu.

- Obrigada. Não pretendia me tornar uma manteiga derretida como lady Aimeé, que sempre arruma alguma desculpa para usar o seu lenço.

De imediato, Draco sentiu-se ofendido.

- Lady Aimeé... - replicou ele, desviando o olhar, enquanto ela assoava o nariz -...é uma das damas mais finas que conheço. - Os olhos cinzentos se estreitaram. - Acho que tem ciúme dela.

- Ciúme? - replicou, surpresa. - E por que eu haveria de ter ciúme de lady Aimeé?

Draco não sabia por onde começar. A resposta era tão óbvia que desejou saber se ela estava em seu juízo perfeito para lhe fazer tal pergunta. Em primeiro lugar, Aimeé era uma dama em todo o sentido da palavra, muito diferente de Pansy. Aimeé era uma moça delicada, que usava os cabelos loiros presos no alto da cabeça, o que lhe enriquecia a aparência celestial. Era recatada e possuía a estranha habilidade de fazê-lo sentir-se o homem mais forte no mundo. Lady Aimeé Waldorf era a representação de tudo que era feminino e belo. Uma ótima opção para ocupar o cargo de próxima condessa Malfoy.

- Você nunca desejou ter um namorado? - perguntou ele.

Pansy riu cordialmente.

- Namorado? E o que eu faria com ele?

- Ora, vai chegar um dia em que desejará se casar, não importa o quanto proteste contra o casamento agora, formar uma família, ter filhos.

- Não preciso de um marido. Pretendo viver uma vida de aventuras, como você bem sabe.

- E quanto à vontade de meu pai? Sei que ele desejava vê-Ia casada mais do que qualquer outra coisa na vida.

- Sim, é verdade. Meu único pesar é que o futuro que escolhi para mim sempre foi um motivo de decepção para ele. - Ela riu de repente. - Sabia que ele desejava nos ver casados? Pode pensar em algo mais absurdo?

Draco curvou os lábios num largo sorriso, revirando os olhos.

- Completamente absurdo!

- Eu queria ter nascido homem. Sempre desejei isso durante toda a minha vida - declarou, desanimada.

Embora não tivesse a intenção, Draco olhou para os seios dela e rapidamente desviou o olhar. Ela poderia até desejar ser homem, mas a natureza fora bastante clara, não deixando margem para dúvidas acerca de sua feminilidade.

- Você podia se esforçar um pouco, pelo menos - disse ele, abordando o assunto outra vez. - Minhas tias estão em completo desespero. Se quer minha opinião, seria muito bom se imitasse lady Aimeé. Mesmo que seguisse o exemplo dela em apenas um ou dois princípios básicos, você melhoraria umas cem vezes.

- Ora! Eu preferia dar um tiro em uma das minhas pernas a seguir o exemplo dela.

Draco meneou a cabeça, incapaz de compreendê-la.

Ela revirou os olhos, irritada, e se afastou.

Ele a alcançou.

- Por que insiste nessa conduta, Pansy? Nunca desejou ser como as outras mulheres?

- Não - respondeu, sucinta. - Acho que você não faz a menor idéia do quanto a vida de uma mulher é vigiada e reprimida. Ou casa e constituiu uma família, ou é vista como uma perfeita raridade, algo abominável, um monstro. Além disso, se eu me casasse, não poderia mais dispor de minha fortuna, meu marido passaria a administrá-la legalmente.

Quando Draco alcançou a porta do estábulo, os grossos pingos de chuva no telhado o advertiram que alguns metros de caminhada deixariam ambos encharcados. Estava a ponto de sugerir que ela esperasse enquanto ia buscar um guarda-chuva, mas Pansy correu de repente em direção a casa, antes que pudesse chamá-la.

Protegendo a cabeça com o casaco, seguiu no encalço dela e a alcançou depressa.

- Há uma coisa que esqueci de lhe dizer. Riddle está aqui.

Ela estacou abruptamente a alguns passos da sala de visitas e se virou.

- Por quê? - O tom de voz era baixo. - Ele não tem nada a ver com o testamento.

O conde encolheu os ombros.

- Ainda assim, Jennings o chamou. Talvez meu pai tenha deixado algo importante para ele. Além disso, o homem é o seu pa­rente mais próximo.

- Não gosto dele. Ouvi dizer que se tornou um jogador e sempre que o vejo está rindo, mesmo sem ter motivo.

Draco sorriu.

- Bem, se ele estiver rindo hoje, não me causaria espanto. Com essa cabeleira negra despenteada, você está parecendo uma vassoura de bruxa velha.

- Ora, não me amole! - Ela tentou ajeitar os cabelos, mas foi inútil. - Venha, vamos ver o que Jennings tem a dizer, antes que eu deseje sua morte.

- Acho uma excelente idéia!