O demônio, dono longos cabelos cacheados e loiros estava se distraindo, corrompendo mais algumas almas no coração romântico do mundo: Paris. Uma bela francesa de seus quatorze anos era o alvo atual, ela se derretia por ele.

"Fácil demais..." pensou.

De repente, veio com o vento um perfume diferente de todos os outros, especial...Milo virou a cabeça bruscamente interrompendo o número de mágica que fazia para entreter a menina. Seus olhos azul-celestes percorreram a multidão e encontraram, quase roçando em seu rosto, uma cascata de longos e lisos cabelos ruivos. Seu interesse foi despertado quase que imediatamente, afastou bruscamente a menina que o havia agarrado e implorava para ir para o inferno com ele, deixou de ser sólido novamente e saiu correndo, seguindo os cabelos e o cheiro. Ele era rápido, para um humano.

O jovem economista Kamus Baudelaire entrou no prédio de sua cliente mais assídua: uma velha gorda que ficava dando em cima dele.

"Devia ter pedido para o Shura vir no meu lugar..." lamentou-se o rapaz enquanto tocava a campainha e ouvia a voz estridente dizendo que estava indo.

Mademoiselle Chandon atendeu a porta, eufórica, com as faces entupidas de pó de arroz e rouge.

-Oh, Kamus, querido, você veio!

Kamus rolou os olhos e deu um sorriso artificial. Depois de algum tempo conversando e expondo papéis à velha senhora, Kamus começava a sentir as costumeiras pontadas na cabeça por conta do perfume excessivo da demoiselle (dama)Sorrindo, pediu:

-Mademoiselle (Senhorita), poderia me trazer um copo de água? Sinto sede...

Tão logo a velha se encaminhou à distante cozinha, Kamus se precipitou à janela e começou a sorver o ar em grandes tragadas.

Milo, sentado na marquise do prédio, ouviu e assistiu a situação, se contendo para não gargalhar. Quando Kamus apareceu na janela, Milo se pôs a observá-lo.

"Parece feito de gelo..."

Deu um sorriso ferino e constatou que era assim que tinha de ser aquele que um dia seria seu.

Kamus sentiu os pêlos de sua nuca se eriçarem e teve a sensação de que era observado. Virou o rosto para a esquerda e seus olhos castanhos se arregalaram ao dar de cara com um rapaz que parecia mais novo do que ele sentado na marquise do prédio. Estendeu a mão para este, sem olhar para baixo, para não ativar suas vertigens.

-Venha, eu vou ajudá-lo, entre aqui.-sua voz estava esganiçada pelo pavor, desde pequeno tinha horror de altura.

O rapaz sorriu e segurou sua mão com delicadeza, porém com força.

-Venha você para cá para fora.

Kamus ficou pálido e tentou soltar a mão. O rapaz deu um sorriso sarcástico e ergueu uma das sobrancelhas.

-Tem medo de altura?

Kamus ficou mais pálido e se inclinou para dentro do aposento.

-Não faça nenhum movimento brusco, eu...eu vou chamar os bombeiros, eles vão tirar você daí, não se preocupe.-ele tinha noção do quanto sua voz estava estranha, porém o medo era incontrolavelmente superior a ele. O rapaz louro puxou o outro com força enquanto se aproximava e dava um de seus sorrisos perigosos.

-Você vai lembrar desse momento para o resto da eternidade, mortal.-disse, com charme, para beijar Kamus de leve após a frase. Kamus enrubesceu e Milo deu um impulso se atirando no ar.

-NÃO!-gritou Kamus, com pavor, tentando agarrá-lo para impedir-lhe a queda. Milo apareceu, voando, com as lindas asas negras tremulando ao vento.

-Voltaremos a nos ver, francês. Oui?(Sim?)

Kamus não respondeu, olhava embevecido e rubro para o outro. Milo riu e foi embora. Kamus fechou a janela com violência e se colou a parede, trêmulo e ainda vermelho. Fechou os olhos e tocou, de leve, com a ponta dos dedos, os próprios lábios, ainda em fogo, marcado pelo demônio. Kamus ouviu os passos da Mademoiselle Chandon no corredor e se aprumou, porém, não conseguiu perder a vermelhidão.

- Monsieur (senhor) Baudelaire, está tudo bem com o sieur (senhor)?

Kamus assentiu com a cabeça.

-Oui.(Sim)

-O seigneur (senhor) está vermelho, parece com febre...

-Talvez...Talvez eu esteja...-respondeu Kamus, tentando arranjar uma forma de sair dali.

Decidiu descer pelas escadas para ver se o seu estado melhorava. Qual nada, a cada eco ele lembrava daquela risada tão cristalina...

-Mon Dieu... pourquoi?(Meu Deus... por quê?)

pourquoi?

pourquoi?

(por quê?)

(por quê?)

Milo estava curvado perante o trono do seu Lord. Lúcifer sorriu e fez sinal para que o loiro se aproximasse. O general do inferno foi andando a passos largos até poder sentir a respiração leve do moreno murmurando em seu rosto.

-Por que demorou tanto no mundo humano?-Disse Lúcifer apoiando o próprio rosto com uma das mãos, descontraído, enquanto puxava o loiro para o seu colo com a outra.

-Encontrei um ser diferente dos outros...Eu quero corrompê-lo...Eu quero que ele seja meu.

O Grande Lord, que brincava com uma mecha do cabelo cor de ouro do outro, deu um sorriso.

-Sim, boa idéia... É bom variar de prato, não é mesmo?

Milo se aconchegou melhor no colo do outro e este alargou seu sorriso.

-Só tome cuidado, meu soldadinho de chumbo, para não se encantar pela bailarina ou o palhaço mau vai quebrá-la...Não se esqueça Milo, você é meu.

Milo passou os braços pelo pescoço do Lord e sorriu.

-Não se preocupe, Milord, é só um humano.

O beijo foi longo e profundo.

Kamus percorria as ruas sentindo o coração a mil e percebendo que todos os seus pensamentos eram voltados para o loiro...

Mèrde!(Merda!)

Parou em frente à bancada de uma sorveteria e pediu uma casquinha de baunilha. Saboreava-a com calma, tentando não pensar nele. Sentiu uma mão forte e quente fazendo pressão em seu ombro e se virou, sentindo todos os músculos do corpo se retesarem com o susto. Será que era aquele doido novamente? Deu de cara um homem bronzeado, de cabelos negros e curtos e olhos escuros.

É só o Shura...

Ouviu a risada do outro ao perceber o seu suspiro de alívio.

-'Tava esperando alguém Kamus?

Ele fez que não com a cabeça. Shura pediu um sorvete de morango e se virou para ele, sorrindo. Kamus sabia que na terra natal do outro era comum amigos terem contato físico e o espaço pessoal não era lá muito respeitado, mas ali era a França e ele não se sentia nada, nada a vontade com aquela proximidade que predominava quando estavam juntos. Afastou-se discretamente.

Milo que estava de perfil, apoiado no braço esquerdo e com as pernas cruzadas, assistia a cena e não tinha a menor idéia da nacionalidade do moreno, fumegava de ciúmes por dentro.

Ele é MEU.

Milo via o homem tocando em seu francês e via Kamus se afastando. Ele sentiu as compridas unhas enterrando-se nas palmas das mãos e o sorriso assassino em seu rosto se transformando numa cara irada e sem controle. De repente, tudo começou a tremer e a fachada da sorveteria despencou, em cima do francês e seu "colega". Milo não teve tempo de pensar e se fez a única coisa que considerava sensata no momento: agarrou o francês e conjurou uma esfera de proteção ao redor dos dois.

Kamus olhava surpreso para o loiro, fora abraçado com a mesma intensidade do terremoto. Então as peças se juntaram em sua cabeça: o demônio (cujo nome ele desconhecia e supunha que fosse um anjo caído) era o responsável pelo terremoto...Droga! Shura estava embaixo dos escombros!

-Faça isso parar!-gritou o mais alto que conseguiu, pois o barulho dos prédios caindo era ensurdecedor. O outro sorriu.

-Isso seria um favor?-ele falava baixo, em seu ouvido, a sua voz ecoava dentro de sua mente, Kamus se sentia desconfortavelmente feliz com a situação.

-É o que você quiser, só faça tudo voltar ao normal...-disse o ruivo, entre dentes.

-Saiba que, quem pede um favor ao Grande General Milo, tem de dar algo em troca...À minha escolha.-disse Milo, charmoso. Kamus não entendeu onde ele queria chegar e não estava com disposição para entender no momento. Virou-se para ficar de frente para Milo.

-Certo, temos um trato...Milo.

O demônio sorriu e abriu a gola da camisa de Kamus, fazendo-o ruborizar, beijando a curva de seu pescoço logo em seguida. O humano suspirou involuntariamente ao contato, para, logo depois, corar ainda mais e fechar a cara.

-O-o que você está fazendo?-gaguejou Kamus.

-A marca de nosso contrato.-disse, ao se afastar. Kamus sentiu uma agulhada na pele, como se estivesse em brasa. Milo alargou o sorriso e tudo começou a se reconstruir, aos poucos, como em um sonho.

-Ninguém vai se lembrar do ocorrido. Apenas você.-e Kamus estava novamente tomando sorvete com Shura, o espanhol rindo como se nada houvesse ocorrido.

Mas não aconteceu mesmo...

Deu uma desculpa qualquer a Shura e se afastou, apressado, antes que Milo se invocasse de novo e decidisse matar Shura a queima roupa. Ao chegar em casa, Kamus correu para o banheiro. Tirou a camisa e viu a marca, o símbolo do demônio, o anticristo, marcado em sua pele, como uma tatuagem. Bufou, teria de usar camisas de gola alta para evitar perguntas indiscretas no trabalho e na família.

-Caraca! Você é ainda mais gato sem camisa!-Disse uma voz risonha, vinda do quarto da suíte. Kamus inspirou fundo e fechou a porta do banheiro. Milo riu, se levantou da cama e, deixando de ser sólido,(Essa habilidade pode ser muito útil, se soubermos usá-la...-Pensou) atravessou a porta e ficou encostado na parede, de frente para o espelho e atrás do francês.

-Você não tem nenhuma pretensão de respeitar a minha privacidade?-Kamus indagou (aparentemente) indiferente.

-Hmmm...Não.-Disse Milo, pensativo.

-É uma pena...-O francês suspirou ao terminar a frase.

-O que é uma pena?-Perguntou o loiro, instigado pela curiosidade.

-Se o sieur (senhor) insistir em agir como criança, serei forçado a ignorá-lo.-O ruivo retrucou, calmo, com um meio sorriso. Milo fez um bico meigo que Kamus admirou através do espelho.

-Isso não é justo.-Murmurou, manhoso e se retirou do banheiro. Tão logo Milo se afastou, Kamus explodiu em uma gargalhada atípica. Apesar da pose e do jeito sedutor, o outro era, no fundo, uma criança.

O general estava sentado na cama do economista, olhando o quarto. Organizado e sóbrio, como o francês...Kamus saiu do banheiro, pegou o pijama e foi em direção ao banheiro.

-São nove horas da noite. Você dorme agora, è?(é?)

Kamus respondeu que sim de dentro do banheiro. Milo bufou.

-Que vida monótona a sua, hein francês?

Kamus, incrédulo, balançou a cabeça enquanto terminava de pôr o pijama e começou a escovar os dentes. Saiu do banheiro, vestindo o pijama de seda azul celeste, e se sentou no toucador que havia no quarto. Tateou entre os perfumes e protetores solares e pegou uma escova de madeira escura e tradicional, combinando com a mesa e a moldura do grande espelho redondo em que se mirava. Milo sorriu enquanto observava a intimidade do francês, que escovava lenta e cuidadosamente os longos cabelos ruivos, deixando-os ainda mais lisos. Kamus sorriu, como quem acha graça.

-O que é tão engraçado, francês?-Perguntou Milo, curioso.

-Você. É mesmo uma criança, sieur (senhor).-Milo ficou emburrado, não gostava que se rissem dele.-Oh, não emburre, sieur (senhor), não encare como uma coisa ruim, as crianças são as mais sinceras e puras de coração.-Disse Kamus, divertido. Milo sorriu, malandro.

-Me acha sincero, puro, divertido e meigo como uma criança?

-Foi o sieur (senhor) quem disse, sieur (senhor) general.-Disse o ruivo, sem emoção. Pôs a escova no lugar, se levantou, desligou a luz, ligou o abajur e se deitou. Milo começou a desabotoar a blusa e tirou os sapatos. Kamus olhou, pasmo, para ele.

-O que está fazendo?-perguntou.

-Me arrumando para dormir.-Disse Milo, sem se alterar.

-Se quer dormir em minha casa vá para o quarto de hóspedes.-O ruivo estava começando a ficar incomodado com a postura absurda do outro. Milo sorriu.

-Não. Sua cama me parece mais aconchegante.-Disse o loiro, marcando bem a última palavra com um ar de quem não quer nada. Kamus se levantou de forma brusca.

-Aonde você vai, Kamus?-cantarolou Milo.

-Qualquer lugar longe de você.-respondeu-lhe entre dentes.

Milo se levantou e rolou os olhos.

-Vocês humanos...

Foi se aproximando. Kamus não conseguia sair do lugar.

-O que é que temos?-foi única coisa que conseguiu perguntar, de forma incerta.

-São tão prepotentes. Acham que podem nos enganar, fugir, se libertar do destino que nós escrevemos para vocês.-Disse Milo, com o corpo tocando o do outro, como em desafio. Como uma batalha em que as armas eram as palavras.

-Nós somos prepotentes?-Kamus cuspiu as palavras com desprezo. Sua resposta foi um sorriso quase triste.

-Têm tanto medo do desconhecido...São como a luz de uma vela, com um sopro apagam... É quase triste...Vocês vêm...e vão. E eu, nós, os imortais, permanecemos, sozinhos com nossas dores...-Se afastou, indo para onde a luz do abajur não alcançava seu rosto. Kamus se sentiu tonto.

-Deve ser duro...

Tocou o rosto do outro. E foi beijado possessivamente, não resistia, sucumbiu ao turbilhão de emoções sentidas. No meio do beijo, sentiu em seu rosto uma lágrima.

Não é minha...

Pensou e constatou que o outro chorava. Limpou as lágrimas desajeitadamente, pois não estava acostumado com aquela situação.

-Mon Dieu... pourquoi? Pourquoi choras?(Meu Deus...por quê? Por que choras?)

O cenário mudou.

-É aqui. Aqui eu nasci. Aqui ela morreu.

A sala estava cheia de velas. Um aglomerado de mulheres ajudava uma outra a dar a luz. Um choro sonoro de criança se fez ouvir e Kamus ouviu o barulho leve de um sopro. Todas as velas se apagaram e todas as mulheres calaram. Só o choro sonoro da criança se fazia ouvir.

Novamente o cenário mudou. Uma linda mulher loura, envolta em mortalha, era enterrada acompanhados um cortejo estava a família. Kamus virou a cabeça e viu uma mulher justificar ao homem que parecia ser o esposo que a mulher havia morrido no parto e a criança nascera morta. Sem saber por que viu uma imagem se formar em sua mente. Uma ama colocava uma criança dentro de um cesto e o jogava no rio. Mais adiante, um homem sem rosto recolhia o cesto e sorria.

A cena acabou e estavam de volta no quarto de Kamus.

-O bebê era você?

-É...era. Meu nome era para ser Abel...Faz sentido não?

-...Não.

O loiro sorriu, amargo.

-Matei a todos. Meu pai, sua esposa, seu filho legítimo, as amas que tentaram me matar...

Kamus o abraçou.

-Por quê?
Os dedos de Milo se cravaram em suas costas, machucando-o.

-Vingança.