I – Crepúsculo (dos vacilos)
Eu tinha acabado de me mudar. Estava longe da casa que morei durante toda a minha vida. Foi um período difícil de minha vida, onde tive que me adaptar a coisas que nunca havia pensado que iriam que ocorrer, como morar em uma casa diferente, mudar de escola, fazer amigos, coisas do gênero. "Será que iriam gostar de mim na classe?" Fora a frase que mais se passou por minha cabeça durante todos os dias das fériasde verão. Fiquei bolando vários planos para impressionar todos os outros alunos do colégio e parecer inteligente sem soar como uma pessoa chata. Vi vários guias de etiqueta na internet e treinei várias conversas na frente do espelho, tentando dominar qualquer assunto que soasse pelo menos minimamente relevante para uma conversar entre jovens normais.
Até que um dia, no meio do meu treino para combinar minha vestimenta com o meu ânimo diário e com os tópicos dos assuntos que eu estaria disposto a abordar com as pessoas no dia e de treinar minha escrita de cartas para famosos que nunca leriam elas, mas mesmo assim eu os trataria como velhos amigos meus, eu liguei meu computador e lá estava, olhando para mim, convidando-me para ouvir, chamando-me pelo meu nome fictício que até agora não foi dito nessa fanfic, era um podcast. Não, não era UM podcast, aquele era O podcast. Não sabia eu, mas tal podcast mudaria minha vida sumariamente pelas próximas semanas, aguardando em frenesi por cada terça-feira do restante de minha vida.
Vocês devem estar se perguntando coisas como "Que podcast é este?" neste exato momento, e alguns tentando adivinhar qual seria o nome do mesmo, alguns falam Jovem Nerd, outros podem falar 99 Vidas, ou até mesmo o SciCast. Não querendo desmerecer os mesmos, mas vocês erraram tão errado que alguém terá que reescrever o verbete "erro" naquele dicionário Aurélio velho que está empoeirado na prateleira mais velha da biblioteca da sua cidade, utilizando-se de giz de cera ciano nº63. Na verdade, o podcast que eu ouvi foi algo muito mais profundo, e de tenra e gloriosa forma de abordar os mais variados temas, sempre de uma forma muito edificante.
O podcast de que estou falando é aquele, que a cada episódio que é escutado, recebe-se uma nova benção do Babarphomet. Este podcast chama-se: Decrépitos. Ah Decrépitos... Vocês encheram minha vida de significado e amor em tão pouco tempo... Sem esse time de mestre para animar minhas semanas, eu não sei o que seria de minha vida. Provavelmente seria a mesma merda de antes, mas agora... Eu me apaixonei. Toda vez que eu ouvia a voz do menino Daniel Bayer soltar as breves palavras que indicavam o começo de mais um episódio, sentia Cristo me ungir das formas mais intensas que pudessem ser imaginadas pela mente humana, e até mesmo forma simples, como Cristo falar "tá ungido no meu nome". A cada risada da diva do pop de Brunei, Rafael Mordente, eu sentia um calor latente emergir de partes de meu corpo que até então eu não compreendia para que serviam, somente que elas estavam ali por que papai-do-céu gostava de brincar com massinha quando estava no jardim de infância. E somente então, com as palavras milimétricamente colocadas pelo tio João Carvalho com maior maestria do que os três tenores juntos, a ponto de dar um orgasmo cerebral, após tanta informação acrescentada sobre civilizações mesopotâmicas e como a escrita cuneiforme fora de grande importância para o desenvolvimento de escatológicos rituais dedicados à Pazuzu. (gostaria de aproveitar esta deixa para falar que o Dicró é lindo de morrer). Era como se eu tivesse morrido e reencarnado em forma de gato e estava me deleitando dos melhores humoristas que os egípcios dispunham somente para me satisfazer.
Eu ouvia o podcast todos os dias. Repetia os episódios em um looping infinito, onde minha mente se prenderia somente em recriar cada cena de cada um dos causos contados no programa. Eram as melhores férias de toda a minha breve vida, mas que estavam chegando ao fim, e com o podcast fazendo eu me sentir como alguém pela primeira vez na minha vida, eu havia deixado de lado a prática de exercícios para melhorar minhas interações sociais, afinal, eu não precisava de mais nada, somente do meu amado Decrépitos.
Cerca de duas semanas antes para o início das aulas, minha mãe me deu dinheiro para que eu pudesse comprar o que faltava de meu material escolar, logo então, eu tive uma maravilhosa ideia para provar meu incrível e grande amor ao podcast, eu fui à marcenaria e usei o dinheiro que minha mãe havia dado a mim para comprar um pequeno altar e comprei um fichário do mais barato que encontrei numa papelaria qualquer do bairro, pra ela não desconfiar de nada.
Chegando em casa, eu pus meu fichário em cima da cama e imprimi fotos do Decrépitos para decorá-lo. De tons de fúcsia que serviriam somente para me fazer encontrar o fichário no escuro, meu fichário se tornou o fichário do Decrépitos (e Hello Kitty, pois não tive coragem de tirá-la de lá), o fichário que mais iria surpreender no colégio. Quem sabe eu não virasse a pessoa mais popular de toda a escola e passasse a ir a todas as festas que dessem, só por quererem a presença de alguém tão legal assim em suas festas. Após colar o logo e os rostos, fui decorar meu altar. Botei-o bem no centro de meu quarto, de frente à minha cama, mas encostado na parede. Decorei-o com um pano vermelho para poder agradar as tendências políticas do tio e coloquei três quadros de trinta centímetros de altura por vinte e cinco de comprimento em cima do altar, e separei minha cimitarra, da época que eu havia feito rituais dedicados à Belial, para que eu conseguisse habilidades sociais e de quando eu tentei incorporar o espírito de Imhotep depois de ver o primeiro filme da série A Múmia (até por que, depois que vi os outros filmes eu me arrependi profundamente de tê-lo feito), mas no final, só acabei fazendo uma redação muito boa na prova final do colégio no ano passado.
Pelo menos, agora eu estava finalmente a posto para começar as aulas de forma digna. E as duas semanas que faltavam se passaram como um breve sonho angelical, como o beijo de uma ninfa, graças à felicidade que o Decrépitos me trazia.
Finalmente então, começaram minhas aulas, e meu estado era dos mais puros nervos. Não sabia o que fazer, dizer, agir ou qualquer outra simples ação humana. Logo então, olhei o fichário em meus braços e pensei comigo mesmo "Não posso desapontá-los". Entrei então no colégio e fui ver em qual sala eu estaria. Eu estava no terceiro ano do ensino médio, e por isso, estava no ultimo andar, na sala 3008. Entrei na sala, ainda não havia muitos alunos e ninguém reparou que eu havia entrado. Fui em direção a ultima fileira de cadeiras, que ficava próxima da janela e me sentei na quarta cadeira. Botei meu fichário sobre a mesa e fiquei admirando as fotos de Daniel, Rafael e João enquanto escutava o podcast em meu celular. Até que então, ouço um som familiar vindo da porta da sala, uma risada alegre e calorosa, que soava como um canto angelical para meu espiritualmente virginal sistema auditivo. Levanto a cabeça e vejo entrar em minha sala o trio com quem tive tantos sonhos eróticos durante todo o veraneio. Eu não sabia como agir, eu queria esconder meu rosto, queria sair dali, de qualquer forma queria não estar presente, nem que eles vissem meu fichário, então o coloquei em baixo de minha carteira. Fiquei a primeira aula inteira olhando pela janela enquanto ouvia o podcast em meus fones de ouvido. Durante o intervalo entre aulas, tirei cerca de meia dúzia de folhas do fichário e botei-as em minha mesa, junto de um lápis e uma borracha, caso quisesse fazer quaisquer anotações sobre a aula.
Então o professor entrou em sala e todos os alunos se sentaram em seus lugares, e foi aí que eu percebi que os Decrépitos estavam sentados ao meu redor! Não sabia o que fazia, então tentei agir com naturalidade. Reparei que João estava do meu lado esquerdo e que o Mordente estava à sua frente. Na minha frente estava o Daniel, uma pena, pois assim eu não via seu belo sorriso Colgate.
Fiquei então em silêncio, tentando esconder a empolgação de estar compartilhando o mesmo ar que o deles e posso confirmar que minhas partes íntimas se esquentarem no pensamento que o gás carbônico que eles expeliam iria logo estar em meus pulmões. A aula era história e João obviamente já estava deveras empolgado, proferindo as mais poéticas palavras do aramaico. Eu então tentei escrever cada uma delas, mas não sabia escrever em cuneiforme, então ficara somente uma notação fonética muito deficiente e pobre restandonas linhas tortuosas de minhas folhas, para quem sabe um dia eu poder surpreender meu muso. Então, no ápice de minha excitação com tal pensamento, acabo deixando minha borracha cair. Quando me viro para a esquerda, João estica a mão e diz: - Você deixou cair sua borracha, toma. – enquanto estica o braço para me entregar a borracha.
- Não precisava disso. – eu disse, com a voz mais silenciosa do que a noite.
- Me chamo João, e você?
- E-eu? – Comecei então a gaguejar, sem nem conseguir proferir uma palavra corretamente. Estava completamente sem reação, não imaginava que João-senpai iria me reparar tão facilmente assim, parecia um sonho que se tornava realidade!
- Ei, vocês dois, parem de conversar e prestem atenção! – Disse o professor, fazendo os olhares de João e o meu deixarem de se cruzar.
Prestei atenção no resto da aula até o fim. O resto do dia do colégio eu passei no banheiro tentando me recompor. Como assim o João havia falado comigo? Não é só um João qualquer, é O João, o papa da deep web brasileira! O ultimo sinal soou e então eu saí do banheiro como se nada tivesse acontecido e fui para casa o mais rápido possível, não tinha coragem de falar com ninguém, muito menos com os Decrépitos! Após uma caminhada de cerca de meia hora, eu chego a casa e me tranco em meu quarto. Jogo o fichário no chão e me jogo na cama. Como poderia isso ter acontecido comigo? Qual era a probabilidade disso? Será que foi real, não fora um sonho? Pego então meu fichário para poder ver se havia algo realmente relevante nas anotações de hoje e quando pego minha borracha, reparo que em um dos lados dela está escrito "me chama no zapzap" e um número de telefone. Será que é do João?! Não pode ser! Isso não está acontecendo comigo!
