I

O já idoso Padre Martin folheava seu breviário, na tentativa de espairecer. Era seu dia no confessionário, e pelo aumento do pecado no mundo, poucos vinham se confessar... portanto, tinha de passar o tempo de alguma forma.

"Este mundo está deveras perdido", pensava, mergulhado em idéias, mal prestando atenção ao livrinho religioso. "Essas beatas a cada dia arrumam um amante novo... é certo que são feias desde moças, é certo que não arrumaram marido e depois dessa idade toda não arrumam mais... mas de qualquer modo, a castidade deveria ser mantida a todo custo... essas descrentes, acham que depois da morte Deus não irá puni-las..."

E ao pensar assim o Padre também lembrava das freiras: algumas novas e lindas, apesar de tudo fazerem para esconter as belezas (muitas das freiras jovens eram ou forçadas a tal destino pela família, ou haviam perdido as "virtudes" ainda sendo solteiras e, portanto, não lhes restava outro destino a não ser aquele ou a prostituição...), ou velhas e já não apetecíveis aos prazeres da carne. A verdade é que todas elas, velhas ou moças, arrumavam algum amante dentre os frades ou padres também. Padre Martin era um dos poucos que, a muito custo, mantinha estritamente o celibato... pois mesmo sendo velho, havia muitos e muitos outros velhos que mantinham amantes por anos a fio, até que a morte os viesse buscar...

- Mas que mundo esse, meu Deus! - pensava, e se persignava só de pensar, para evitar sentir algum desejo tardio, fosse pelas mulheres religiosas, fosse pelas mulheres "do mundo".

E eis que, em meio a suas reflexões, atraiu justamente o que repelia. Uma jovem, uma donzela provavelmente, vinha se confessar a ele, o vestido de missa negro como convém às mulheres "direitas", o véu cobrindo-lhe diafanamente a face. Apesar de tudo, no entanto, podia vislumbrar os contornos juvenis do rosto dela. Era ainda uma criança, os seios mal começavam a despontar embaixo do vestido... e repelindo mais uma vez a inclinação de olhar para os seios da donzela, perguntou-lhe:

- O que a traz aqui, filhinha?

- Perdoa-me padre, porque pequei...

- Pecaste? O que fizeste, pequena criança?

A menina hesitou. Depois em voz triste e suplicante, disse ao sacerdote:

- Eu desobedeci a um dos mandamentos do Senhor, padre. "Honrar pai e mãe"... eu desonrei a meus pais.

- Ora, filhinha... sempre há pecados que cometemos. Mas esse foi deveras desrespeitoso em demasia?

- Eles querem me casar, padre. E eu não quero. Eu disse que não a eles. Não gosto de meu noivo!

- Quantas primaveras contas?

- Catorze.

O padre se riu, por dentro e por fora.

- Há meninas mais jovens que tu que já são casadas! Entenda, minha doce criança, que o lugar de uma mulher é ao lado de um marido. Deverias agradecer a teus pais por te casarem. Ou queres ficar como estas beatas, como a esta Bess, solteira sem filhos, eternamente virgem, cuja única distração na vida é vir à igreja papar as hóstias?

A moça olhou para trás e viu, perto do altar-mor, a tal Bess (apelido de Elizabeth no século XV e XVI), mulher de seus 50 anos, feia como uma bruxa, amarga por dentro e por fora, fazendo apenas rezar para aplacar sua dor.

- Viste, filhinha? Queres ficar como ela?

- Não. Mas também não quero aquele marido.

- Não? Pois se teus pais o escolheram para ti, é porque querem o teu melhor! Eles sabem o que é bom. Portanto vai, reza por eles e pelo perdão de teus pecadilhos e fique com Deus, sim?

A menina ficou em silencio. Realmente, não havia quem ou o que lhe consolasse. Persignou-se e foi embora, seguindo aos pais, os quais a haviam acompanhado à igreja.

Sua mãe contava com apenas trinta anos. Para a época, no entanto, esta já era a idade de uma jovem senhora respeitável. Endurecida pela vida e pelas mortes de outrem, era ríspida e seu semblante já era rígido e digno de uma matrona. Como havia sido intensamente vigiada na primeira juventude, transferia esse mesmo comportamento para com a filha.

- Que pecados foi a minha filhinha confessar ao padre hoje? Por acaso não penteou os cabelos como deveria?

A jovem permaneceu em silêncio, com medo de dizer o que ia em seu coração.

- Responda, menina! Não ignore sua mãe quando ela estiver falando!

- A senhora sabe, minha mãe... fui confessar-me para dizer que não... desejo meu casamento.

- Como?! Não deseja casar, e ainda diz isso abertamente na igreja?!

A moça calou novamente. Já não sabia o que dizer. Provavelmente, chegando em casa, apanharia... de novo.

E de fato, ao chegar lá, ela foi interrogada mais uma vez. Da maneira fria de sempre...

- Por acaso ainda se opõe a seu casamento, a ser realizado na semana que vem, Catherine?

Ela nada disse novamente, mantendo a cabeça baixa.

- Responda!

Num único ímpeto, como se mudasse de personalidade, a donzela reagiu:

- Eu não quero me casar com ele!! Não! É um rapaz bexiguento, feio, mal comportado! Não sabe como tratar uma dama!!

Foi o suficiente. A mãe, fria, impassível, foi buscar a terrível vara de marmelo no armário. A filha tentou fugir, mas o pai, que estava diante da porta, escutando tudo que o acontecia de maneira imperceptível para Catherine, apanhou-a e segurou para que a mãe batesse. E por mais que esperneasse, gritasse de dor, ninguém a deixou ir antes de ficar marcada. Nas pernas, nos braços, até mesmo no rosto. Tudo isto os pais fizeram sem dizer uma única palavra.

- É uma pena, terá de colocar pó branco no rosto para esconder esta marca, caso ela não suma em uma semana. - disse a Duquesa-mãe, sem mostra alguma de piedade ou sentimento que fosse. Em seguida, dirigiu-se ao marido - Vigie essa menina, e esta será a última vez que o faremos. Afinal... logo ela estará sob incumbência principal do marido.

Em silêncio, os membros ardendo das vergastadas, Catherine subiu ao quarto e foi trocar a roupa. Aquela seria uma semana terrível... obrigada a casar, e com aquele rapaz bexiguento. Não havia aspirações românticas em seu coração; e se houvessem, não seriam com aquele tipo de noivo.

OoOoOoOoOoOoO

De fato, a semana passou rápida. E terrivelmente monótona para Catherine, a qual foi proibida de sair, mesmo que a família o fizesse, em razão de seu mau comportamento. Ficou muitas horas na salmoura, pois tinha de tentar fazer secar aquelas feridas antes do fatídico dia. Muitas vezes rezou pedindo que Deus a livrasse daquele matrimônio, ou então a fizesse morrer. E nada aconteceu...

O dia chegou. Como se coisa alguma houvesse passado antes, nem briga, nem surra de vara de marmelo, a mãe de Catherine simplesmente, com a ajuda das aias, arrumou o vestido da filha e o seu próprio. Em símbolo da virgindade da noiva, deixou o cabelo da mesma solto. A marca em seu rosto era ainda visível, escura, e portanto teve de utilizar-se to tal pó branco para suavizá-la. Enquanto preparava tudo, mal falava.

A cerimônia seria feita no suntuoso salão da propriedade do Duque e da Duquesa Gray¹. O noivo, o já precoce Conde James Spence, apesar de contar com dezesseis anos de idade, já era soturno e desconfiado. Assim havia ficado por causa da varíola que o atacara dois anos antes: era esta a causa de suas bexigas, muitas e que mal deixavam ver pele em seu rosto.

Não queria, é óbvio, casar com a futura Condessa, aquela tal Catherine. Jamais a havia visto, e por ela não nutria nenhum amor. Ao vê-la, vendo que era ruiva, um pouco sardenta e com semblante de desagrado, odiou-a ainda mais. Talvez por causa do contato com a mãe, não desejava maior contato com mulheres. Por si, teria apenas amantes... como a maioria de seus amigos tinham. Constituir família... para quê?!

De qualquer maneira, como ainda estava sob a tutela dos pais, ainda tinha de acatá-los. E portanto casou com aquela criaturinha arredia de cabelos vermelhos. Ela aparentava ter medo, mas ele apenas desprezo, desdém no olhar.

A cerimônia foi muito rápida. Houve a tradição de unir as mãos, os ritos litúrgicos. A festa, um verdadeiro banquete, a despeito de ser vazia de sentimento e sinceridade (como aliás quase tudo naquela família), anunciava um momento que em breve teria de acontecer: no meio da celebração, quando os convidados ainda estavam presentes: os noivos deveriam subir ao quarto nupcial e consumar o matrimônio. Ninguém fazia idéia do que era isso para Catherine. Além de simplesmente ter detestado a primera impressão que o noivo lhe causara, tinha medo porque era virgem. E... com aquele homem²!!

Quando, no entanto, chegou a hora de cumprir com seu dever matrimonial, teve de ir, o coração na boca. Que faria mais? Não havia como reagir.

Sua mãe fez questão de guiá-la ao quarto, onde já lhe esperava seu marido. "Marido"... era uma palavra tão estranha aos ouvidos dela! Não se sentia casada, sequer com aquele sujeito. Mas era essa a realidade... que fazer, que fazer?

Foi deixada na porta do quarto e nele adentrou. Algumas criadas já tinham ordem de recolher o lençol manchado de sangue, após a consumação do ato. Ela, ainda, instou para que a criada cuidasse que a consumação ocorresse no mesmo dia, independentemente da vontade da noiva. Em seguida saiu e voltou para a festa, com a sensação de que havia cumprido seu dever.

Catherine Gray adentrou o recinto, que estava a meia-luz, e avançou lentamente, receosa. No fundo do quarto, o seu noivo, tenebroso, a esperava sentado numa cadeira. Ela foi até ele, não sabendo o que falar. O silêncio reinou pelo quarto por um bom tempo, até a hora em que ele se pronunciou:

- Pois bem, ó minha esposa... temos de cumprir com nossos ofícios, não é? Todos lá embaixo, no salão de festas, esperam pela confirmação de nosso... casamento.

A voz dele era terrível, fria. Ele se levantou e foi em direção a ela, que não conseguia levantar a cabeça e olhá-lo diretamente. Respirava com dificuldade, quase ofegando. Não acreditava ainda que aquele sujeito... a tocaria... não!

- E então, minha noiva? Não vamos começar?

E, sem mais cerimônia alguma, ele tentou tocar em seu braço, enrijecido pelo nervosismo, para quem sabe tocar em mais depois... mas ela, ainda não afeita àquilo tudo, se afastou instintivamente.

- Vamos, garota! Eu sou seu marido e portanto tenho direito sobre seu corpo!!

Subitamente, ele a agarrou pelo braço e a jogou na cama, sem que ela quisesse. Catherine gritou, esperneou, mas ninguém a ouviria ou acudiria... afinal, na noite de núpcias e com o marido, nada era considerado estupro...

Segurando-a pelos cabelos, fez com que olhasse diretamente em seu rosto bexiguento, o qual repudiava. A luz da vela, que se encontrava próxima deles, iluminou a visão nada agradável, e ela não gostou daquilo.

- Eu... não... quero! - sussurou com esforço, ainda tentando, num ultimo fio de esperança, impedir que o que temia acontecesse. Seu algoz, no entanto, apenas a interpelou com risos de ironia.

- Pobre menina! Acha que pode ter algum "querer" neste tipo de situação. Eu sempre soube!! Todas vocês são como demônios encarnados em belos corpos! Ainda mais você, ó Condessa, minha mulher... com esse cabelo ruivo, digno de uma verdadeira bruxa!!

Com ódio e desejo nas veias, o Conde James tomou de um pedaço de pano que havia ali perto e amarrou as mãos da noiva na cabeceira da cama, não sem lutar, pois ela não estava disposta a se entregar facilmente... e também não parava de tentar espernear e gritar.

- Shhhhhh, bela menina... não vai adiantar de nada... lá embaixo, eles sabem que sou seu noivo, e apenas eu devo determinar o que lhe acontece. Basta não lhe matar... ou não lhe machucar muito.

Sem se exaltar, levantou a saia dela, enquanto ainda lutava em vão, pois ele a amarrara com força. Em seguida, acarciando o interior das coxas dela, foi até sua intimidade para ver se ela era mesmo virgem. Afinal, já tinha ido a vários bordéis (o único lugar onde poderia arrumar alguma mulher... já que era moço deveras feio por ocasião da varíola anterior) e sabia a diferença entre uma donzela e uma que já não o fosse. Catherine tremeu de horror ante o toque intromissor e terrível dos dedos dele em sua intimidade.

James explorou um pouco a cavidade úmida e constatou, enfim, que o hímen encontrava-se ali.

- Que bom. A Condessa é moça virtuosa. Caso não o fosse, a humilharia na frente de todos os convivas de hoje, inclusive dos de sua família.

E sem mais esperar, como se fosse apenas cumprir uma tarefa, James retirou parcialmente suas calças, começando a masturbar o próprio membro a fim de atingir uma ereção. Desesperada ao ver que não escaparia realmente, começou a chutá-lo e a gritar desesperadamente. Quando uma de suas pernas o atingiu, o Conde perdeu a paciência: ele também não gostava dela, mas não estava tão impaciente em relação àquilo tudo! Mulherzinha ousada!

- Ora, seu pequeno demônio de saias! Espere mais um pouco, e tudo se acaba!!

Tomou de mais alguns pedaços de pano, amarrou-a nas pernas e, ao ver que ela não cessava a gritaria, estapeou-lhe a face.

- Já chega, mulher!! É melhor calar, se não quiser apanhar mais! Mas que inferno, sempre há que se disciplinar às mulheres dessa maneira!!

E então ela só fez chorar, já não suportando mais lutar. Algo como que a amortecia por dentro, a fim de não fazê-la sofrer tanto, já que agora nada mais adiantaria. Assim que atingiu a ereção desejada, James se encaixou no meio das pernas da Condessa e tentou penetrá-la uma, duas, três vezes. Estava tão difícil, que mal conseguia colocar sequer a glande dentro dela. Catherine, desespeada, só chorava de dor.

- Vamos, mulher! Tem de me ajudar. Deixe isso passar, uhn?

Enfim, depois de muito insistir, o Conde conseguiu adentrá-la, rompendo a barreira teimosa. A Condessa sentiu como se lhe partissem ao meio. Sem esperar nem mais um pouco, ele se moveu uma vez. E mais uma. E outra, e outra, e tantas, que ela pensou que aquilo nunca mais fosse acabar. Sem mais forças para gritar ou chorar, ela simplesmente fechou os olhos e ali ficou pelo que pareceu uma eternindade.

Quando enfim James terminou, ejaculando dentro dela, enfim saiu e verificou o lençol. Estava tingido com gotas de sangue, realmente.

- Pronto, ó mulher. Acabou.

E sem dizer mais nada, desatou as amarras dela e entregou o lençol manchado à criada assim que saiu do quarto. Ele voltou para a festa, mas Catherine não teve coragem. Com o tempo, quando o amortecimento foi passando, a tristeza voltou, arrasadora. Todos estavam de acordo com aquela violência... e ela nada pôde fazer.

Desesperada, só soube rezar e pedir a Deus que lhe deixasse morrer naquela noite. Não teve, porém, coragem para o suicídio. Tampouco Deus lhe mandou alguma morte. E, sem dormir, em seu tormento solitário, Catherine matou uma de suas últimas esperanças de amor na vida. Portanto, quando acordou na manhã seguinte, já não era mais uma menina.

Era uma mulher.

OoOoOoOoOoOoO

¹Na Idade Média, a cerimônia de casamento poderia ser realizada em casa, contanto que houvesse um sacerdote para tal.

²Mesmo que para nós alguém de 16 anos ainda não seja homem, para eles já era considerado como tal. Até porque naquele tempo não havia adolescência: após a infância, a pessoa já era considerada adulta.

OK... fic que mostrará trajetória de Catherine Gray desde o casamento até a morte. Paralela à fic "Almas Gêmeas", claro... rs!

Não faço nenhuma apologia à violência mostrada nestas páginas! Apenas a retratarei porque Catherine será realmente... uma personalidade marcante, uma serial killer cruel e sem escrúpulos, e para isso terá de ter um passado pesado..

Beijos, espero que apreciem!

EDIT (20/02/10): resolvi revisar os capítulos porque faço uma confusão danada com os títulos de "conde", "duque", "condessa" e "duquesa". Na fic para a qual Catherine foi concebida, "Almas Gêmeas", Catherine é Duquesa; portanto, fiz com que ela seja Duquesa por parte dos pais e Condessa por parte do marido; vou arrumar tudo que houver de erros em relação a isso daqui em diante! Caso haja mais algum erro nesse aspecto, por favor me avisem!

Abraços!