Fantasmas são os espíritos que não conseguem descansar em paz, mesmo depois de mortos. Amarras invisíveis os prendem a esse mundo e os fazem sofrer. São almas que sofrem. Almas penadas.
A guerra já havia acabado. Quase tudo já estava voltando ao normal, quase tudo reconstruído, feridas cicatrizadas, traições esquecidas... Fantasmas enterrados.
Mas não para ele. Afinal, seus fantasmas vinham de antes da guerra.
Todo ano, religiosamente na mesma data, quaisquer que fossem os compromissos urgentes e deveres de capitão shinigami, ele visitava o túmulo. A esmagadora maioria das pessoas sabia disso e evitava até mesmo lhe dirigir a palavra, fosse qual fosse à necessidade no dia.
O único que talvez pudesse fazer alguma coisa contra aquele ritual fosse o general Yamamoto, que poderia organizar uma reunião de capitães, mas nem mesmo ele se sentia disposto a provocar a ira de Byakuya Kuchiki.
Ele tinha respeito solene e perfeito às regras. Colocar esse respeito contra sua honra não era algo recomendável de se fazer.
A visita sempre era breve; não mais do que uma hora. Ele caminharia ao redor da lápide, colocaria a mão no túmulo, e olharia as duas cerejeiras que havia ordenado que fossem plantadas ao lado da tumba.
Ele tocaria em ambas as árvores, olharia para cima por um ou dois instantes, para depois fixar seu olhar no mármore frio. E ficaria lá com a expressão estática, uma ou duas pétalas de cerejeira caindo a seu redor, o vento tentando desalinhar seu cabelo.
Até que uma hora se passasse.
E então ele daria as costas para o túmulo, nenhuma mudança em sua expressão. Mas ele não jogaria o cachecol como quando queria expressar seu desprezo, jamais. Apenas... deixaria seus fantasmas para trás, por um tempo, por mais um ano.
Era até estranho pensar que ele dedicava essa hora religiosa todo ano para honrar a memória da esposa. Se por um lado era algo extremamente... doce, por outro era... Metódico demais. Como se fosse uma obrigação social e não algo que devia ser motivado pela saudade e pelo amor.
Todos os movimentos calculados. Todas as expressões obliteradas, exceto por aquela de distância e quase desinteresse. Cada passo metodicamente repetitivo. Era... enervante. Se ele ao menos derramasse algumas lágrimas, se ao menos os olhos mudassem da aquele brilho gelado, se ao menos ele pressionasse a mão contra o mármore frio até que os nós dos dedos ficassem brancos... Mas não.
Nada. Nem mesmo um fio de cabelo fora do lugar. Nem mesmo uma mísera mudança na sua expressão costumeira.
Matsumoto tinha vontade de gritar. Gritar bem alto só para ver os olhos levemente arregalados.
Mas... Havia alguma coisa de estranhamente sagrada naquela hora em que ele permanecia ao lado da tumba da esposa. Alguma coisa que comunicava ao sexto sentidos de Matsumoto que qualquer um que interferisse sofreria uma morte rápida e relativamente indolor.
Por isso que ela permanecia silenciosa ao lado do túmulo de Gin. Ao menos durante àquela hora, embora ela soubesse que o velho amigo preferiria vê-la feliz, bebendo a sua saúde e falando alto.
Então ela simplesmente ficou olhando através dos ramos das folhagens que separavam o túmulo de seu amigo da esposa do capitão.
- Matsumoto-fukutaichou?
E isso deu um susto tão grande em Matsumoto que a fez derramar algum sakê no chão, o mesmo tempo que lutava para segurar um grito de susto e para que seu decote não a traísse. Logicamente ela tentou se levantar, sem muito sucesso já que estava com a cara enfiada por entre galhos e folhas.
- Sim, Kuchiki-taichou? – disse, após o que pareceu meia hora de vergonha para ela.
- Importa-se de me deixar sozinho com minha esposa?
- Bom, eu... Na verdade, Kuchiki-taichou, eu também estou fazendo uma visita à alguém.
Ele limitou-se a continuar com o perfurante contato visual.
- Gin Ichimaru, se bem estou lembrado. Não é?
- Sim, Kuchiki-tai...
- Nesse caso, importa-se de guardar algum silêncio? - e voltou o olhar para o túmulo de Hisana sem mais palavra.
E isso enfureceu a tenente do décimo esquadrão.
- Me desculpe, taichou, mas eu acredito que estava sendo bastante silenciosa. Acredito que o senhor não teria problema em prestar homenagens a sua esposa já que eu estava apenas... Ehm... observando.
Ela não esperou a resposta do capitão da sexta divisão. Ou mesmo o golpe de espada. Apenas deu as costas e voltou para perto do túmulo do amigo. Sentou-se sobre a pequena pilha de folhas caídas que havia feito para que pudesse se sentar e serviu-se de um gole particularmente demorado de sakê.
- À sua saúde, Gin.
E, como se a conversa com Byakuya não tivesse acontecido, passou a relatar como tudo seguia na Soul Society. Logo, qualquer lembrança sobre manter o tom de voz baixo, estava sendo solenemente ignorada.
- Matsumoto-fukutaichou?
- Sim? – perguntou, sabendo quem estava atrás dela sem precisar olhar.
- Acredito que eu havia solicitado que fizesse menos barulho.
- Desculpe, Kuchiki-taichou, mas é que... Gin não gostaria de me ver... Silenciosa, entende?
Byakuya continuou impassível.
- Desde que nos conhecemos, há anos atrás, nós dependemos muito um do outro. Não seria justo que, agora, eu começasse a tratá-lo diferente, não é? Acho que... Ele gostaria de ver que eu não mudei.
- Ichimaru talvez gostasse de vê-la mais madura e menos infantil, Matsumoto-fukutaichou.
E ele deu as costas e foi embora, deixando Matsumoto irritada como nunca. Além de ter sido chamada de infantil, havia perdido completamente a vontade de conversar com Gin. Sim, perdido a vontade, pois isso era mais do que uma simples necessidade em lembrança do amigo.
Era algo que fazia como se necessitasse de inspiração. Lembrar-se do amigo como ele era, de como haviam superado dificuldades juntos.
Ela estava certa, não Byakuya; os mortos deviam ser respeitados, é claro. Mas a lembrança deles não deveria ser um fardo para os que ainda viviam. Devia ser um alívio, um conforto, algo que fizéssemos pelo prazer de lembrar, não por mera formalidade, uma demonstração pública de pesar.
Pois ela não seria uma hipócrita na frente de Gin. Se ele a pudesse ver, triste, olhando o túmulo dele, ela sabia que isso não ajudaria o amigo em nada. Ela mostraria como realmente se sentia.
Como realmente se sentia.
Ela se levantou, espanou duas ou três folhas de sua roupa e começou a caminhada de volta ao quartel da décima divisão. Não pode deixar de olhar para o túmulo de Hisana e sentir algo estranho. Pena? Afinal, de uma maneira mórbida, ela parecia solitária ali, entre as cerejeiras...
Matsumoto sacudiu a cabeça. Não devia pensar assim.
Horas depois, a fukutaichou do décimo esquadrão cochilava em sua mesa quando foi acordada por um baque de uma pilha de papéis sendo "colocada" em sua mesa. Ergueu a cabeça vigorosamente, com a costumeira falta de ar ao acordar, dando um pequeno susto em seu capitão.
- Matsumoto, que bom que acordou. – disse o capitão emburrado – Se importa de me ajudar com isso?
- Ah, taichou... Sim, é claro que sim. Pode deixar essa pilha aqui que eu já vou começar.
Hitsugaya arqueou as sobrancelhas ao ouvir Rangiku falar algo do tipo. Não era comum, não era esperado, diabos, ele não acreditava que fosse possível que ela estivesse dizendo isso!
- Você está bem? – perguntou o capitão, sem pensar.
Matsumoto levou a mão ao queixo, num gesto teatral de quem está pensando.
- A bem da verdade, eu não tenho me sentido muito bem, taichou... Importa-se se eu tirar o resto do dia de folga?
- Mas é claro que nã... – e então as luzes da compreensão brilharam sobre o capitão da décima divisão – MATSUMOTO!!
E a fukutaichou se viu não com uma, mas três pilhas de formulários complexos para despachar até o fim do dia.
Renji preenchia formulários quando seu capitão simplesmente se levantou e saiu, sem dar a menor satisfação ou mesmo olhar para ele. Não ficou exatamente intrigado pelo comportamento de Byakuya, limitando-se a continuar seu trabalho. Afinal de contas, o homem nunca dava muitas satisfações para ninguém, não é?
O atual líder da família Kuchiki caminhou por alguns minutos, antes de se usar de sua extraordinária velocidade para literalmente sumir de vista. Estranhamente... Tinha que voltar para lá.
Não demorou muito pra chegar nas proximidades do local onde Hisana descansava. Reduziu a velocidade e aproximou-se do túmulo construído em mármore respeitosamente.
Por que estava fazendo isso?
Era errado pensar em permanecer ao lado de Hisana uma vez ao ano, por mais ou menos uma hora como uma obrigação. Entretanto... Ele fazia isso há cinqüenta anos. E, no entanto... não era de forma alguma errado demonstrar seu respeito da maneira respeitosa que Hisana merecia.
A conversa com a fukutaichou da décima divisão o teria abalado tanto assim? Não, é claro que não. Rangiku Matsumoto era uma mulher barulhenta, infantil e extremamente desrespeitosa. Não havia porque dar importância alguma a suas idéias sobre como agir ou não quando velava seus mortos.
E então olhou para a cova escavada diretamente na terra, para a grama que crescia preguiçosa, para os arbustos que serviam de proteção e que "decoravam" o túmulo de Gin Ichimaru. Tirou a mão do mármore frio e novamente sumiu em pleno ar, efeito de sua velocidade.
Não precisava de mais um fantasma o assombrando.
