O Bardo e o Pardal
Disclaimer: Saint Seiya não me pertence e essa fanfic não tem fins lucrativos.
Capítulo 1
Era uma manhã de festa. No distante reino de Onel, criados corriam apressadamente de um lado para o outro no majestoso palácio real. Havia muito que se preparar para os festejos que comemorariam a chegada do tão esperado herdeiro, que tinha finalmente nascido.
O rei Markash não cabia em si de tanta felicidade. Seu filho, um varão, um garoto forte e saudável, era o príncipe de Onel e o futuro rei. O soberano de Onel já fazia milhares de planos para seu filho. Observava orgulhoso para a criança que dormia no colo da mãe, a rainha Licahla que, por sua vez, dirigia um olhar carregado de ternura para o seu rebento.
O momento familiar fora interrompido quando um dos criados adentrou o quarto real e dirigiu-se ao rei para avisar-lhe que seu cavalo já estava pronto.
- Ótimo. Vou partir agora mesmo. – disse o rei Markash como resposta.
- Querido... – falou a rainha, com a voz doce e baixa – Eu não queria que você fosse...
- Licahla, não vamos discutir esse assunto mais uma vez. – interrompeu-a o rei, enquanto os criados o colocavam em suas vestes de combate – Sabe que é uma tradição. Meu pai, meu avô...
- Sim, eu sei. – respondeu a jovem rainha, baixando os belos olhos cor de esmeralda – Mesmo assim... eu não vejo necessidade para tanto. Seu lugar é aqui, comigo... e com seu filho.
- Não devo demorar mais que um par de dias. E quanto antes partir; antes eu devo voltar. – disse o rei, jovialmente – Não há com que se preocupar, minha querida.
- Não? – perguntou a rainha, voltando a fitar o rei com seus intensos olhos tão verdes – E por que precisa dessa armadura, da sua espada, de seu escudo...? Se não houvesse qualquer perigo, não precisaria se armar como se estivesse indo a uma batalha.
- É só precaução, Licahla. Como não posso ir acompanhado, devo estar preparado para enfrentar eventuais perigos...
- E por que tem de ir sozinho? Querido, por favor, eu respeito as tradições de nossos antepassados, mas quando algo se torna desnecessário e perigoso, não seria melhor que...
- Licahla, agora já basta. – a voz do rei era séria – Eu já disse; esse assunto não será discutido. Partirei agora e devo voltar logo. É para o bem do nosso filho, não vê? Faço isso pela criança.
- Nosso filho está bem assim. Não é preciso desse tipo de sortilégio para que ele cresça feliz e saudável. Ele só precisa de um pai vivo ao seu lado.
- E quem disse que não estarei ao lado dele? Ora, Licahla... deixe de bobagens. Devo partir agora. Descanse, você precisa estar bem na festa de comemoração do nascimento de nosso filho. – e ia deixando o quarto quando sentiu a delicada mão da rainha segurar-lhe o braço.
- Licahla, o que está fazendo? Volte para a cama; você precisa repousar! – esbravejou o rei, percebendo que a rainha levantara-se do leito e correra até ele para impedir sua partida.
- Meu querido, por favor! Como sua rainha, eu lhe imploro, não vá!
O rei olhou para sua esposa, cujos cabelos esverdeados caíam em ondas pelas suas costas. Normalmente sempre com o cabelo preso em um elegante coque, a rainha parecia mais austera. Entretanto, com as madeixas soltas pelos ombros, ela parecia tão mais jovem. Lembrava-lhe com facilidade o dia em que a vira pela primeira vez na aldeia e se apaixonara perdidamente por essa moça. Fitou, então, os olhos igualmente verdes e bastante chorosos, demonstrando que havia uma grande angústia em seu coração. Observou também que a criança em seu colo despertara, provavelmente por toda essa comoção. E esse quadro de sua jovem e bela esposa com seu primogênito no colo suplicando para que ficasse o enterneceu. Olhou para os criados que estavam parados, ao seu redor, sem saber o que fazer, e ordenou-lhes:
- Deixem-nos. – e todos os criados atenderam ao seu pedido no mesmo instante, deixando a família real a sós em seu quarto.
- O que houve, minha querida? – disse o rei, com a voz terna, enquanto secava-lhe as lágrimas que escorriam por sua face de carmim.
- Eu... – começou a dizer, desviando o olhar – Eu não sei bem como explicar, mas estou com um mau pressentimento. Creio que... algo muito ruim está para acontecer.
- Hum... pois muito bem. – disse o rei, muito sério – É por isso mesmo que devo partir. Acredito em seu pressentimento e por isso mesmo preciso visitar o oráculo. Ele me dirá se há algo com que me preocupar.
- Markash, não compreende? Meu pressentimento me diz que... Eu tenho a sensação de que essa viagem não nos trará boas novas.
- Como eu disse, Licahla... é por isso que tenho de ir. Sempre que o primogênito da família real vem ao mundo, é de nossa tradição visitar o oráculo. Ele nos diz o que esperar da criança que acaba de chegar ao mundo, que males podem vir a assombrá-la... e assim podemos tentar nos prevenir.
A rainha soluçou. As lágrimas não deixavam de rolar por seu rosto.
- Sei que você ama nosso filho tanto quanto eu. Portanto, deseja o melhor para ele. E para que isso seja possível, preciso visitar o oráculo. – segurou com delicadeza o queixo da rainha, para que esta olhasse para ele – Por favor, você precisa me deixar partir agora. Está bem?
A rainha suspirou resignada. Entendia o que seu marido lhe dizia, mas ainda assim, em seu coração... aquilo não estava bem. Porém, compreendeu que não poderia fazer mais nada. Sem dizer uma palavra, deu meia-volta e retornou a sua cama.
- Eu volto a tempo para a festa de nosso filho. – e, tendo dito isso, o rei deixou o quarto.
- Vamos rezar para que seu pai retorne são e salvo, meu bebê... – falou a rainha melancolicamente – E que traga boas notícias sobre você. – disse, voltando seu doce olhar para o filho aninhado em seu colo.
E a criança, cujos olhos eram de um azul tão denso quanto o do rei, parecia entender o que sua mãe lhe falava, tamanha a atenção com que aqueles olhinhos carinhosos a observavam de volta.
- Quem vem lá? – a voz gutural perguntou, antes que o visitante adentrasse a caverna.
- O soberano de Onel, rei Markash, pede permissão para entrar em seus domínios.
- Prossiga. – respondeu a voz.
O rei Markash havia seguido exatamente o mapa que seu pai lhe deixara antes de morrer. Infelizmente, o antigo rei falecera sem ter a chance de ver seu primeiro neto. Mesmo assim, fizera todas as recomendações. Assim que o primogênito nascesse, Markash deveria visitar o oráculo. A cada rei, o oráculo reservava o direito de lhe pedir a leitura do futuro uma única vez. E a dinastia Amamiya havia decidido que o melhor momento para se procurar o oráculo seria a cada vez que um primogênito nascesse. Assim, seria possível saber se a dinastia permaneceria no poder e se o príncipe seria um bom rei.
Assim, esta seria a primeira e única vez que o rei Markash visitaria o oráculo. Por tudo o que isso representava, o soberano de Onel estava bastante ansioso. Seu pai lhe contara, por mais de uma vez, como fora quando ele perguntara a seu respeito para o oráculo. E relembrar as palavras de seu velho pai o enchiam de alegria... "Você, meu filho, tornou-se tudo quanto o oráculo previu... um homem bom, honesto, forte, justo... meu sucessor, meu filho, meu legado, meu orgulho."
- Então... é o filho de Kirkin?
A voz acordou Markash de seus pensamentos. Nesse momento, apesar da pouca claridade dentro da caverna, pôde ver a figura de um homem velho, magro, alto e de barba espessa e branca, apesar do cabelo ralo.
- Sim. – respondeu com firmeza.
- Vejo que minha previsão se confirmou.
- Como pode saber? Conhece-me há poucos segundos e já é capaz de saber tudo sobre minha existência?
- Sim, meu caro. Olho para você e vejo tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será.
O rei sentiu-se algo incomodado. Era estranho pensar que aquele homem a sua frente poderia saber tanto de sua pessoa. Mas então lembrou-se de que esse era o motivo pelo qual viajara tantas léguas até chegar ali:
- Bem... creio que já conheça o motivo da minha visita. Meu filho nasceu ontem e eu vim, assim como meu pai, saber o que o futuro reserva à nossa família.
- Deseja mesmo saber? – respondeu o homem, sentando-se a uma pedra e acendendo uma espécie de cachimbo.
- É claro que sim! Por que mais viria até aqui? – respondeu o rei, que se via esgotado pela dura jornada e, por isso mesmo, irritadiço.
- Acalme-se, meu jovem. – falou calmamente o homem, soltando uma baforada de fumaça – A paciência é uma virtude que precisa aprender a trabalhar...
O rei ficou sem saber como reagir. Calou-se e permaneceu parado, apenas observando o homem que fumava o cachimbo sem se incomodar com sua presença ali. Ao término de alguns longos minutos, o homem finalmente se pronunciou:
- Se deseja mesmo saber, eu lhe contarei. Mas a informação que lhe darei passará então a ser apenas de sua responsabilidade. O que quer que venha a acontecer depois disso não me dirá respeito.
O rei estranhou tantas recomendações antes de o homem fazer a previsão. Pelo que sabia, seu pai obtivera a previsão sem maiores contratempos...
- Está certo. – disse, por fim – Tem a minha palavra de que culpa alguma pelo que quer que venha a ocorrer cairá sobre a sua pessoa.
- Muito bem... então... acho que podemos começar. – e, dizendo isso, o homem soltou uma longa baforada de fumaça e ficou a observá-la com atenção. O rei prestava atenção a tudo aquilo, tentando compreender alguma coisa.
- Tempos sombrios se aproximam... vejo muita tristeza e lágrimas, dor e sofrimento...
O rei engoliu em seco. Ia perguntar algo, mas o homem continuou sem dar a ele chance de pronunciar uma palavra:
- ... e tudo isso será por causa de seu filho que acaba de nascer.
- Como? – o rei estava estupefato – Por causa do meu filho? Não; não pode ser!
- Entretanto, assim é. – falou o homem.
- Como pode ser possível? Como pode essa criança trazer mal ao nosso reino? Não; deve estar enganado... Por favor, faça a previsão novamente! Por favor! – implorava o rei.
- Não estou enganado. Seu filho trará muita desgraça ao seu reino.
- Mas... mas é só uma criança! Que mal uma criança pode fazer e...
- Esquece-se de que vejo o futuro? Essa criança irá crescer... e irá se tornar um homem muito poderoso. E esse homem será o seu algoz... e fará seu reino passar por um período de trevas profundas.
O rei não sabia o que dizer. Sentia-se incapaz de processar aquelas informações.
- Nada mais tenho a lhe dizer. – e, com essa frase, retirou-se para uma parte mais escura e interna da caverna, dando a entender que o assunto que os dois tinham a tratar terminava naquele ponto.
- Faz 3 dias que meu rei partiu... E ainda sem notícias dele. Terá ocorrido algo, minha boa Jenna?
- Minha rainha, não ocupe sua cabeça com pensamentos negativos. Não tiremos conclusões precipitadas; o rei disse que estaria aqui para a festa de seu filho, e a festa será essa noite. Há tempo ainda para que seu marido regresse em segurança.
- Minha boa dama de companhia... – sorriu a rainha – É bom poder contar com sua amizade.
A conversa das duas senhoras foi interrompida pelo soar de trombetas que anunciavam que o rei havia retornado. Licahla abriu um amplo sorriso e correu para encontrar seu marido o quanto antes.
- Fez boa viagem, meu senhor?
- Sim... não... eu... – o rei soltou um suspiro dolorido – Ah, Muldovar... Não sei ao certo.
Muldovar, cujo cabelo negro era tão fino que parecia afilar ainda mais o rosto magro e pálido daquele homem, percebeu que algo não ia bem para o rei Markash. Internamente, sorriu de contentamento, mas buscou esconder o que sentia do soberano de Onel:
- Meu senhor, o que houve nessa viagem que foi capaz de trazer inquietude à sua pessoa?
- O oráculo, Muldovar... O oráculo não me deu boas novas.
- Não? Mas...como isso pode ser possível?
- Ora, Muldovar! – respondeu o rei, um pouco irritado – O oráculo prevê o futuro! Ele sabe o que irá acontecer! Assim lhe é possível dar-nos boas novas ou não!
- Sim, meu senhor, eu compreendo, mas... desde sempre as profecias feitas por ele nos foram boas. Todos os seus antepassados trouxeram boas novas, todos os novos herdeiros eram sempre promessas de alegrias e a certeza de um futuro próspero...
- Fala como se eu não soubesse de nada disso, Muldovar! Pois por que acha que me vejo tão angustiado? Não sei como proceder, pois não há precedentes...
- Por isso demorou a regressar?
- Sim... pensava que, quando chegasse, estaria com uma solução em mente. Mas não é o que aconteceu...
- Meu senhor, se quiser... posso ajudá-lo. Posso não ser tão poderoso ou sábio quanto o oráculo, mas desejo sempre servir à Vossa Majestade do melhor modo possível. – as mãos tão finas e magras quanto o resto do corpo daquele homem suavam, denotando sua ansiedade.
- Bem... – disse o rei, olhando para o homem esguio que estava à sua frente – De fato... você é meu conselheiro e um bom amigo, Muldovar. Talvez seja bom que compartilhe minhas inseguranças com a sua pessoa...
- Sou todo ouvidos, meu senhor. – e os olhos faiscavam um brilho pouco usual naqueles olhos costumeiramente sem vida.
- O oráculo me disse que tempos ruins estão por vir... haverá muita dor e sofrimento... E tudo isso será causado pelo... meu... filho.
- O jovem príncipe? – a surpresa se fez notar no homem que estava todo vestido de negro, como um corvo.
- Sim. Meu filho, tão jovem, tão indefeso ainda... será o causador de tanta miséria e lástima. Ainda não posso crer...
Muldovar ficou pensativo. Isso poderia ser tanto bom ou ruim para ele. Dependeria do modo como manipulasse essa situação.
- E o pior não é isso... – continuou o rei, os olhos azuis tão densos como nunca se vira antes.
- Sim, meu senhor? E o que mais...? – Muldovar prestava total atenção ao rei.
- O oráculo me disse que meu próprio filho será meu carrasco... que cairei pela sua mão... – e seu olhar carregou-se de uma dor imensurável.
Nesse instante, Muldovar teve a certeza de que toda essa situação poderia, realmente, trazer-lhe grandes benefícios.
- E... o que pensa de tudo isso, majestade? – perguntou, procurando medir cada palavra pronunciada.
- Não sei... não sei. Não consigo pensar no que fazer... não sei se há algo que possa fazer.
Nesse momento, os dois homens visualizaram a figura da jovem rainha que se aproximava de onde se encontravam. Muldovar apressou-se em dizer:
- Seja lá a decisão que venha a tomar, meu senhor... Eu o aconselho a não envolver a rainha. Sabe que ela ainda está se recuperando...
O rei Markash apenas olhou de soslaio para o outro. Não lhe respondeu nada, pois Licahla já estava bastante perto.
- Meu querido! Afinal, você voltou! Já começava a me preocupar! – disse a rainha, com um belo sorriso a enfeitar-lhe o rosto.
- Sim, estou de volta... são e salvo. – respondeu o rei, tão natural quanto lhe foi possível.
- E então? Trouxe boas notícias? – perguntou a rainha, cujos olhos buscavam o seu marido, que lhe fugia o olhar.
- Eu... bem... – começou a dizer o rei, sem saber aonde chegar. Não estava acostumado a fingir ou fugir da verdade. Por isso, foi interrompido por Muldovar:
- O rei traz boas novas do oráculo, minha rainha. Como, aliás, já se esperava. Entretanto, preciso roubar-lhe seu marido desde já. Há alguns problemas que ocorreram em sua ausência e preciso colocá-lo a par de tudo o quanto antes. Se não se importa, precisamos ir... – disse, enquanto ia afastando o rei Markash dali, que nada dizia ou fazia.
- Bem... – falou a rainha, desconfiada do que se passava ali – Se é assim tão importante... acredito que eu não possa atrapalhá-los. Até mais tarde, meu marido. – e deixou os dois homens, decidida a ter uma conversa séria com Markash mais tarde. Ela tinha certeza de que algo não estava certo, mas não queria discutir qualquer assunto na frente de Muldovar. A rainha Licahla, definitivamente, não gostava do homem escolhido para ser o conselheiro de seu marido. Mas tinha de aceitá-lo, apesar de sempre buscar o mínimo de convívio com aquele homem que sempre lhe parecia tão... falso, embora nunca tivesse uma prova que viesse a confirmar esse seu pensamento.
- Ela está desconfiada. – disse o rei, que conhecia bem sua esposa.
- Não importa. Agora, o mais importante é agirmos. – a cabeça de Muldovar pensava rapidamente – Hoje à noite será a festa que comemorará o nascimento do jovem príncipe. Se deixarmos para fazer algo após essa comemoração, tudo se tornará mais difícil, pois todos os membros da Corte já terão visto e se apegado em demasia à criança, e isso...
- Espere um pouco! Do que está falando, Muldovar? – perguntou o rei, temeroso do que poderia ouvir.
- Meu senhor, pensei que estivesse acompanhando meu raciocínio... eu... bem, eu penso que deveríamos agir pensando no bem maior.
- E isso significa...?
- Sim, meu rei. Se for preciso sacrificar apenas um para que centenas tenham a garantia de uma boa vida, é o que devemos fazer.
- Por todos os deuses, você não pode estar falando sério, Muldovar! – disse o rei, com uma expressão de assombro.
- Estou falando a sério, majestade. E, por acaso, essa possibilidade não lhe passou pela cabeça?
- Não. – respondeu o rei, com segurança - O que me angustiava era a incerteza que me rondaria pelo resto de minha vida, mas apenas isso. Pensava comigo se seria capaz de fazer com que meu filho jamais trilhasse o caminho da escuridão. Se conseguiria mudar o destino dele e...
- O destino dele já foi traçado, meu senhor. Não há nada que possa fazer.
- Talvez eu possa. Ou talvez eu deva tentar. É meu filho, Muldovar. Como espera que eu...
- Não pense nele como seu filho, majestade. Pense nessa criança como seu futuro carrasco. Como o homem que trará a destruição de Onel. É isso que deseja para seu povo?
- Claro que não. Mas... é meu filho... meu sangue... ainda não posso crer que isso vá ocorrer... Quero acreditar que o oráculo se enganou...
- Ele jamais se enganou.
- Ainda assim... Desejo acreditar que meu amor e o de Licahla sejam suficientes para evitar o pior. Se amarmos a essa criança o suficiente, eu penso que ela fará diferente do que o oráculo prevê... Quem sabe, isso pode ter sido apenas um aviso, um chamado de atenção, para que nunca descuidemos de nosso filho... E, talvez, se assim fizermos, nada dessa previsão irá se concretizar...
- Majestade, sinto que preciso apelar para seu lado mais racional. Sei que é doloroso pensar em seu filho como sendo seu pior inimigo, mas... assim é. E nada há que possa fazer para mudar o futuro. A única certeza que temos é a que o oráculo lhe deu. E assim apelo para a lógica que Vossa Majestade não pode abandonar agora: Valerá a pena sacrificar todo o reino de Onel em troca da vida dessa criança?
- Eu... eu... não sei... – o rei se via cada vez mais confuso.
- Por favor, meu senhor... essa criança já quase tirou de nós a nossa querida rainha. Vamos mesmo esperar para ver o que mais ela será capaz de fazer?
O rei olhou sério para seu conselheiro. Era verdade; as complicações durante o parto quase tiraram a vida de Licahla...
- ... mas deu tudo certo ao final.
- Sim. Que boa sorte. Mas vamos sempre contar com a sorte, majestade?
O rei permanecia em silêncio. Muldovar entendeu que era preciso forçar a situação um pouco mais:
- Majestade, está lembrado das últimas palavras de seu pai? Recorda-se de seu último pedido?
- Sim...
- Pois então... o bom rei Kirkin sempre colocou o povo de Onel à frente de tudo. E, em seu leito de morte, ele olhou firmemente em seus olhos e lhe disse que...
-... que eu deveria seguir com tudo o que ele fizera... que eu deveria zelar pelo reino... continuar seu bom trabalho...
- ... e que, se preciso fosse, vossa majestade matasse ou morresse pelo bem maior, que sempre foi Onel. Lembra-se?
- Lembro-me.
- Ele sempre disse que o rei tinha de fazer sacrifícios pelo seu reino.
- Sacrifícios... – falou o rei, em voz alta. Em pensamento, recordava-se do quanto ouviu isso de seu pai, quando este lhe explicava o porquê de ser um pai mais ausente que os outros.
- Matar ou morrer, meu senhor... pelo bem de Onel...
- Sacrifícios... – repetia o rei.
- A morte de vossa majestade não trará qualquer benefício a Onel. Pelo contrário; segundo o oráculo, sua morte representará a destruição desse reino... mas matar...essa pode ser a única solução... Pelo bem maior, meu senhor.
- Matar meu próprio filho? Não, Muldovar; não sou capaz. – falou o rei, por fim, como se despertasse de um transe – Além disso, o oráculo disse que meu filho só será uma ameaça depois de adulto. Talvez, seja melhor esperar que ele cresça... E se ele for realmente uma ameaça, então pensaremos no que fazer.
- Meu senhor! – Muldovar começava a perder a paciência – O que está dizendo? Esperar? Pois se agora encontra dificuldades para fazer o que é certo, acredita que isso será mais fácil de se realizar daqui a alguns anos, quando estiver deveras apegado a seu filho?
O rei Markash colocou a mão sobre o rosto, demonstrando sua confusão e angústia. Muldovar resolveu dar sua cartada final:
- Se, por causa de sua fraqueza, o reino de Onel cair... Tenha essa certeza, meu senhor... Seu pai irá se sentir imensamente frustrado com você. Vossa Majestade sabe bem como ele era... Mas não posso forçar-lhe a nada. A decisão é sua e devo me retirar agora. Com a sua licença majestade... – disse, curvando-se para em seguida começar a se retirar. O rei ia dizer algo quando uma voz atrás de si lhe chamou a atenção:
- Markash, o que está fazendo?
O rei virou-se bruscamente. Não podia crer no que ouvia; essa voz... era de seu pai?
- Markash, quantas vezes eu lhe disse que fosse forte? Que fosse sábio? Que pensasse no melhor para seu povo?
- Papai... – disse o rei, em voz baixa, incrédulo – É mesmo o senhor?
- E agora age assim? Não criei um covarde para tomar meu lugar no trono. Sempre lhe disse que cuidasse bem de tudo aquilo pelo qual tanto trabalhei, meu filho. E é assim que me retribui? Trabalhei arduamente para que recebesse um reino bom e próspero e agora pensa em pôr tudo a perder por conta dessa criança?
- Papai... essa criança é meu filho... seu neto! – e sentia um nó que lhe dava na garganta. As palavras ásperas do velho homem a sua frente o faziam recordar bem... era mesmo seu pai.
- Essa criança é o inimigo, Markash. E não devemos fraquejar diante do inimigo jamais. Muitas vezes, ele pode vir na forma de um anjo, mas não se deixe enganar. O mal pode se apresentar de diversas formas.
- Papai, eu não... eu não sei se posso...
- Markash, eu lhe direi uma única vez. Se não fizer o que estou lhe mandando, jamais o perdoarei. Não mais o considerarei meu filho. Porque filho meu deveria saber como agir diante de uma situação como essa.
Markash mantinha os olhos baixos. Como sempre, tinha dificuldades em encarar seu pai.
- Livre-se dessa criança, Markash. Livre-se dela o quanto antes. Livre-se dela antes que a previsão se concretize. Do contrário, você estará virando as costas a tudo o que eu, meu pai, meu avô e todos os homens de nossa família fizeram. Você estará destruindo o trabalho de todos os seus antepassados. Não seja egoísta, Markash. Pense no bem maior... Prove-me que não errei em confiar meu reino a você, meu filho...
Markash levantou os olhos para encarar seu pai. Mas já não havia mais ninguém a sua frente. Olhou para os lados. Nada. Olhou para trás e viu que Muldovar ainda estava se afastando. "Teria sido uma visão? Teria sido um... aviso?"
- Muldovar! – gritou o rei.
O homem de preto parou onde estava, a alguns metros do rei. Estando de costas para este, o rei Markash não pôde ver o sorriso triunfante que despontou no rosto do conselheiro.
- Sim? – falou, a voz buscando demonstrar naturalidade.
- Eu... – suspirou – Talvez você esteja certo.
- Sobre...?
- Sobre o que fazer com... a criança.
- Eu também creio estar certo, meu senhor.
- Está bem, não quero mais pensar nisso. Façamos logo o que deve ser feito.
- Sim, meu senhor. Vossa Majestade tem de agir logo. Antes da festa...
- Muldovar, eu... vou precisar que faça isso por mim. Porque eu... eu não conseguiria...
O homem sorriu, mas sem que o rei percebesse, pois estava cabisbaixo. Muldovar já esperava por esse pedido:
- Claro, majestade. Deixe tudo por minha conta.
- Obrigado, meu amigo.
- Precisarei apenas que me traga a criança, meu senhor. Trará muita desconfiança a todos se me virem saindo do quarto real com o príncipe. E, nessa situação em que nos encontramos, quanto menos pessoas souberem da verdade, melhor.
- E que versão iremos passar a todos, Muldovar? Como explicaremos isso? O que me aconselha?
- Cuidarei de tudo, majestade. Mas agora, tratemos do mais urgente. Vá buscar a criança que a hora de festa se aproxima...
- O que está fazendo? – perguntou a rainha, assustando o rei, que achava estar sozinho nos aposentos reais.
- Vim ver a criança. – respondeu secamente.
- Ele está dormindo. Coloque-o de volta no berço. – disse a rainha, muito séria – Quero conversar com você agora.
- Não é um bom momento, Licahla.
- É um ótimo momento. Quero saber o que se passa, que segredos tem com Muldovar e que não me quer revelar.
- Por que pensa que tenho um segredo? – perguntou o rei, evitando o olhar de sua esposa, mas também sem voltar seus olhos para a criança em seus braços.
- Pelo modo como está agindo. Conheço-o bem, meu marido. Conte-me o que está se passando.
O rei Markash sabia que Licahla não o deixaria em paz sem uma resposta convincente. Então, resolveu dizer a ela:
- O oráculo me trouxe más notícias, Licahla...
- Céus! Não me diga que há algo de errado com nosso filho!
- Infelizmente, é exatamente isso... o oráculo me disse que...
-... o jovem príncipe está gravemente doente. – disse Muldovar, irrompendo no quarto.
- Muldovar! Quem lhe deu permissão para entrar aqui? – disse a rainha, visivelmente incomodada com a presença daquele homem ali.
- Estava esperando que seu marido me trouxesse seu filho, minha rainha.
- E por que ele faria isso?
- Porque, se desejamos que a criança volte a ser saudável, é preciso que eu parta o quanto antes com ela, em busca da cura. Assim disse o oráculo que deveríamos agir.
- Eu não acredito nessa história. Meu filho não está doente. Dê-me a criança, Markash. Agora. – disse Licahla, arrancando o bebê dos braços do marido, que permanecia estático.
Assim que segurou o bebê em seu colo, uma estranha sensação se apossou da jovem rainha. A criança parecia quente demais, parecia tremer, parecia sofrer... Licahla não sabia como nem por quê, mas todas essas sensações trouxeram desespero a ela.
- O que... o que está havendo?
- É a criança, minha senhora. Ela tem febre. A doença está se agravando. E o oráculo disse a seu marido que se não buscarmos a cura para ela o quanto antes, pode ser tarde demais para salvá-la...
- Não! Por favor, pegue meu bebê! Salve-o! – disse a rainha, entregando a criança, que começava a chorar, para Muldovar.
- Como não percebemos isso antes? – perguntou a rainha, angustiada, para Markash, que nada respondeu.
- É uma doença rara, minha rainha. Demora a se fazer notar. Mas tem cura. Era sobre isso que eu e seu esposo conversávamos. Perdão por ter-lhe escondido a verdade, mas não queríamos que se desgastasse.
- Está bem, está bem! Isso já não importa agora! Vá e salve meu bebê! – dizia a rainha, aflita.
- Muito bem. Com sua licença. – fez uma reverência e deixou o quarto com o bebê em seus braços, que ainda chorava. Muldovar, quando se viu a uma distância segura dos soberanos de Onel, olhou para a criança e disse:
- É bom que tenha valido a pena todo esse sacrifício. Por sua causa, tive de criar duas ilusões em um mesmo dia. Sabe o quanto isso é desgastante?
A criança continuava a chorar. Muldovar já perdia a paciência:
- Já estou muito fraco e ainda me obriga a usar mais de minha magia... pois bem... – e, passando a mão por sobre o rosto da criança, fez com que ela adormecesse – Espero que você realmente valha a pena. Já estou cansado de tentar manipular seu pai. Ele é muito imprevisível. Quando penso que o tenho em minhas mãos, ele quase coloca tudo a perder, contando a verdade a sua mãe. Ainda bem que sou precavido e o segui para ter a certeza de que ele faria tudo conforme o combinado. – sorriu vitorioso para a criança adormecida em seus braços – Ah, meu jovenzinho... você será a chave que abrirá todas as portas para mim... – e gargalhou, satisfeito com suas próprias palavras.
Assim, naquela noite, muitas lágrimas foram derramadas. A festa que comemoraria o nascimento do herdeiro cobriu-se de luto. As senhoras choravam, os homens davam suas condolências. A rainha não aguentou tamanha comoção e se retirou rápido para seu quarto, de modo que logo todos retornaram a seus lares e devidos aposentos. Naquela noite, o reino ficaria em vigília. Aguardavam o retorno de Muldovar e rezavam para que este trouxesse boas notícias.
Entretanto, na manhã seguinte, quando ouviu-se o soar das cornetas que avisavam o retorno do conselheiro do rei, o palácio foi envolvido por uma onda de tristeza. Segundo Muldovar, não fora possível salvar a criança. A doença tomara conta do bebê muito rápido e ela não conseguira combatê-la. Era tão frágil, pobrezinha... que acabou falecendo muito rápido. O homem de preto chegara a encontrar as ervas necessárias para preparar-lhe um remédio, mas era tarde. Assim, agora, a criança jazia em um simplório túmulo, enterrada debaixo de um grande cipreste.
- Por que não trouxe meu bebê de volta para mim? Por que deixou meu bebê morrer, maldito? – gritava a rainha, desesperadamente, sendo segurada pelo rei e por alguns criados, para evitar que ela atacasse o conselheiro.
- Eu não pude fazer nada. Sinto imensamente. – falou, com a cabeça baixa.
- E por que não o trouxe para mim? Para que ele fosse enterrado entre seus familiares? Para que eu pudesse me despedir dele! – gritava a rainha, em meio a lágrimas.
- Sinto muito, minha rainha; mas essa doença, depois de contaminar por inteiro o corpo da pessoa infectada, passa a ser perigosa para aqueles que a rodeiam. O bebê tinha de ser enterrado o quanto antes, pelo bem dos que permanecem vivos.
- Meu bebê... meu bebê... Tiraram meu bebê de mim... Não... Não! – disse a rainha, que sem mais aguentar, desmaiou nos braços do marido.
- Levem-na para o quarto! Agora! – bradou o rei, que foi obedecido pelos criados no mesmo instante.
Assim que se viram a sós, o rei Markash virou-se para o conselheiro, que ali permanecia impassível:
- Por que não trouxe o corpo do bebê? Por que não nos deixou enterrá-lo?
- Meu senhor, se assim fizesse, certamente haveria quem desejasse examiná-lo para melhor compreender essa doença. Aliás, acabariam descobrindo que a criança não estava doente.
- Cheguei a pensar que realmente estivesse. Ontem, Licahla teve a impressão de que...
- Foi apenas uma impressão, meu senhor. E é melhor que tudo permaneça como está. Até o momento, todos acreditam nessa doença que inventei por me respeitarem como um sábio que, se não sabe de tudo, ao menos sabe de algo. E também acreditam nessa história por você afirmar que tudo o que eu digo foi previsto pelo oráculo...
O rei permanecia calado. Seu semblante transmitia muita tristeza.
- E é essa a versão que devemos defender. Apesar de triste, é melhor do que a verdade. Todos conseguirão viver melhor acreditando nisso. Incluindo a sua esposa, a rainha.
- Mas e eu, Muldovar? Como posso viver sabendo da verdade...?
- A única verdade da qual deve sempre se recordar é de que fez o que era certo, majestade. Fez o que era melhor para todos. Fez o que devia pelo bem maior... E seu pai certamente ficaria orgulhoso.
Markash olhou para Muldovar e suspirou. Aquilo não trouxe conforto algum a seu ser. Sem dizer palavra, deu meia-volta e começou a se afastar dali.
- Não quer saber como foi que...
- Não. Ou melhor... quero apenas que me diga que ele não sofreu. – disse o rei, parado e de costas para o conselheiro.
- Ele não sofreu.
Sem dizer mais nada, o rei voltou a caminhar, deixando Muldovar a sós.
- Mais fácil do que pensei. – falou para si mesmo. Havia pensado em dizer que a criança falecera em um rio, afogada. E já tinha pensado em toda uma forma de contar como realizara a tarefa para a qual fora designado, de modo a não parecer desumano. Mas nem foi necessário que inventasse histórias, pois Markash, pelo visto, não estava interessado em saber desse ocorrido em detalhes.
O que Markash não sabia, contudo, é que ele não tomaria conhecimento da verdade de qualquer forma. Muldovar mentiu a ele e a todos ao dizer que a criança havia falecido. Não; o príncipe estava vivo e muito bem. E assim permaneceria até o dia em que lhe fosse útil. Até o dia em que a profecia se cumprisse... até o dia em que Muldovar poderia finalmenter ter tudo aquilo com que sempre sonhou.
Continua...
