Autora: Dana Norram
Beta-Reader: Calíope Amphora
E-mail: Vide Profile
Capa da Fic: Idem
Sinopse: 'E eu sorri ao perceber que finalmente tínhamos algo em comum, mesmo que fosse uma idéia tão pueril. Abstrata. Aquela de dois pássaros negros, sozinhos, presos nas sombras da parede.' Aviso: Conteúdo Slash.
Casal: Severus Snape / Regulus Black
Classificação: Slash
Gênero: Drama / Romance
Spoilers: Half-Blood Prince (a.k.a. Sexto Livro)
Parte: 1/4


Disclaimer e Alerta: Harry Potter não me pertence, isso é óbvio. Eu não ganho nada para escrever fanfic. Isso também é óbvio. Só não é óbvio a razão de você, que não gosta de Slash, ter clicado neste link MESMO sabendo que a história se trata disso, ou será que você é incapaz de ler uma simples sinopse? Tem coisas que não entram na minha cabeça, essa é uma delas.

Nota: POV, sigla para Point of View (do inglês, "Ponto de vista"). Esta fanfic é uma Regulus's POV, ou seja, narrada do ponto de vista do personagem Regulus, irmão de Sirius Black, mencionado pela primeira vez nos capítulos inicias do livro "Harry Potter e a Ordem da Fênix".


A Fábula do Corvo e do Pequeno Rei
Por Dana Norram

"I've been looking in the mirror for so long,
that I've come to believe that my soul is on the other side.
And all the little pieces falling, shattered.
Shards of me too Sharp to put back together, too small to matter.
But big enough to cut me in so many little pieces."
(Eu estive olhando para o espelho por tanto tempo
que comecei a acreditar que a minha alma estava do outro lado.
E todos aqueles pedacinhos caindo, estilhaçados.
Cacos de mim. Afiados demais para serem juntados, pequenos demais para terem importância.
Mas grandes o suficiente para me partirem em tantos outros pedaços)
Breathe no more (Evanescence)


Parte Um
"De repente, não mais que de repente." ¹


—X—

I. 'Diante da ave feia e escura/ Naquela rígida postura,' ²

—X—

"Nunca mais".

Foi o que você disse quando acabou de vestir sua capa e dar as costas para a cama. E eu concordei com a cabeça, o rosto escondido, apertado contra o travesseiro.

Naquela madrugada, já no meu dormitório, eu pensei que o seu 'nunca mais' significava apenas que nós dois não faríamos nada daquilo outra vez. Que você daria um jeito para que tudo fosse esquecido. Deixado de lado. Eu sabia que você podia me fazer esquecer de qualquer coisa, se quisesse.

Bastava um aceno. Uma palavra. Bastava querer.

Mas eu nunca soube bem o que você queria. Eu só me lembro de olhar nos seus olhos, negros, frios, insensíveis e ver neles um túnel sem fim onde qualquer um poderia se perder para sempre. E eu me lembro do dia em que compreendi o que aquelas palavras significavam. Elas faziam parte de algo maior. Mais forte e mais profundo.

Significava que a vida nunca mais seria a mesma. E isso me assustava.

Me assustava. Porque me dava esperança.

—X—

II. 'Ah! bem me lembro! bem me lembro/ Era no glacial dezembro;'

—X—

Foi numa noite de natal há vários anos que eu ouvi o seu nome pela primeira vez. Sirius estava passando o feriado em casa, depois de seus primeiros meses em Hogwarts. Ninguém precisou me dizer uma só palavra para que eu percebesse o quanto ele estava infeliz por estar conosco. Com sua família.

Até aquele inverno eu achava que éramos amigos. Eu e ele. Mas Sirius, quase dois anos mais velho e trajando aquele uniforme, não se parecia mais com o irmão que costumava me erguer nas costas para que pudéssemos pegar doces na cozinha, quando Kreacher tinha ordens de deixá-los longe do nosso alcance. Agora Sirius tinha uma varinha e ameaçava usá-la caso eu continuasse a segui-lo pelos corredores da mansão.

"Ah, é só você." Ele pareceu entediado quando me descobriu, seus olhos tão cinzas quanto os meus, semi-cerrados. "Diga de uma vez o que você quer. Eu estou ocupado."

"Ocupado com o quê?" Eu quis saber, curioso.

"Não é da sua conta." Respondeu ele, sem paciência. "Por que não desce e vai terminar de abrir todos os seus presentes? Aposto que tem o bastante para se divertir um ano inteiro."

"É verdade." Ergui uma sobrancelha, pensativo, então dei de ombros. "Eu ganhei mais presentes do que você."

Sirius torceu o nariz, desdenhoso, e voltou a caminhar.

"Isso tudo é por que você não foi para a Sonserina?" Perguntei alto, enquanto o seguia de perto. Ele parou de repente, voltando o corpo na minha direção. Engoli em seco, mas não me calei. Sirius estava surpreso. Eu não costumava ser tão atrevido. Não com ele. "Todos os Black foram para a Sonserina." Baixei a voz, à guisa de desculpas. "Mamãe diz que você é um... um..."

Sirius sorriu diante das minhas palavras. Era a primeira vez que eu o via sorrir daquela forma. Um sorriso largo e despreocupado. Talvez já houvesse algo de diferente nele, mas, naquela época, eu não percebi. Sirius abaixou o corpo, colocando uma mão em forma de concha perto da minha orelha, falando baixo.

"Aquela bruxa velha disse que eu sou um heregezinho traidor do próprio sangue, não é?" Sirius se afastou e balançou a cabeça, torcendo os lábios de um jeito que quase me fez rir. Naquele instante pensei que talvez o meu irmão não tivesse mudado tanto. Talvez ainda soubesse fazer caretas. Talvez ele ainda quisesse me fazer sorrir. "É." Ele continuou. "Fico imaginando o quanto que ela não saiu gritando por aí quando soube. Me pergunto como não me mandou um berrador na mesma hora."

"Papai achou que era uma má idéia", Dei de ombros novamente, voltando a encará-lo com a cabeça erguida. Sirius sempre foi o mais alto, o mais bonito. Ele teria sido o filho favorito. Mas ele estragou tudo. "Disse que não seria bom se as outras famílias soubessem que tínhamos um problema."

Sirius soltou uma risadinha baixa e passou um dos braços por cima dos meus ombros, num gesto tipicamente protetor. Foi a última vez que ele fez isso. "Hipócritas." Resmungou com acidez me puxando na direção da sala de visitas. Logo percebi que estávamos diante da velha tapeçaria. E eu olhei para nossos nomes ao pé da árvore, tão próximos, mas, ao mesmo tempo, separados. Naquela época eu não compreendi que isso significava algo mais.

"Seria legal se você também fosse para a Grifinória, Regulus. Isso sim daria uma lição neles."

"Não vou para a Grifinória", A minha voz saiu baixa, mas alta o bastante para que ele escutasse. Sirius voltou o rosto, me analisando como se estivesse me vendo direito pela primeira vez em sua vida. Era, de fato, a primeira vez que eu percebia estar tomando uma decisão somente minha. Desvencilhei-me dele e cruzei os braços sobre o peito. Era um desafio. Eu era menor, mais fraco e não tinha uma varinha. Mas ele era meu irmão. Eu podia enfrentá-lo de igual para igual. "Eu vou para Sonserina. Só porque você fez tudo errado não significa que eu preciso fazer igual."

"Quem te disse que eu fiz tudo errado?" Perguntou ele sorrindo, a voz subitamente mais baixa, ameaçadora. "Quem te disse que era errado?"

"Ninguém." Respondi, desviando os olhos. "Foi só uma coisa que eu descobri sozinho."

Sirius também cruzou os braços e me encarou. Eu podia ver seu sorriso oscilando.

"Pois bem, Regulus. Vá para Sonserina. Honre o nome dos Black. Deixe a nossa querida mãe contente e orgulhosa, essa coisa toda. Mas fique de olhos abertos. Veja bem onde você pisa. Com quem você anda." Então ele reprimiu um sorriso, como se lembrasse de algo que o divertia e me lançou um segundo olhar, mais frio, mais calculista. "E tome cuidado para não ficar amigo de gente como o seboso do Snape. Não quero ser obrigado a azarar meu próprio irmão caso você acabe ficando no caminho".

Eu não sabia se Sirius estava realmente chateado com o que eu dissera ou se era apenas uma desavença entre irmãos que logo passaria. Sempre passava. Eu não tinha como saber que aquela era uma discussão derradeira. Definitiva. Nós talvez parecêssemos apenas duas crianças medindo forças, mas não. Éramos dois Blacks definindo algo que perduraria pelo resto de nossas vidas. Sirius escolhera o caminho dele. Eu escolhera o meu. Era para sempre, era até o fim. Mas o fim ainda parecia longe demais para que eu percebesse que ele não tardaria chegar. Eu só me lembro de ver Sirius soltar um grunhido de escárnio quando perguntei, sem ter mais o que dizer: "Quem é Snape?"

"Snape?" Os ombros balançaram quando ele soltou uma risada alta. Sirius de repente parecia mais velho. Bem mais velho. "Um sonserino nojentinho que adora meter o nariz anormalmente grande no que não é da conta dele. Tem inveja do James. De mim. Mas no fim... é até provável que vocês se dêem bem, sabe? Aposto que ele também escolheu ir para aquele buraco."

"Que há de tão errado com a Sonserina, afinal?"

Uma expressão de bem ensaiada incredulidade tomou conta da face do meu irmão e ele tentou soar verdadeiramente sério quando perguntou: "Ah, você não sabe?"

E eu, na minha infantil inocência, dei um passo para trás e balancei a cabeça, negando. Com medo.

"Ah, você vai descobrir. Vai descobrir no dia em que acordar e estiver cercado de estranhos."

—X—

III. 'Não despendeu em cortesias / Um minuto, um instante.'

—X—

"Um Black. Outro Black."

Foram essas as primeiras palavras que ouvi de você. Eu ficara sozinho no salão comunal naquele 1º de setembro, terminando uma longa carta para minha mãe. Nela eu contava que fora selecionado para a Sonserina, que honraria o nome da família e que ela não deveria se preocupar com nada. Enquanto escrevia não percebi o tempo passar, mas ao escutar sua voz eu ergui os olhos do pergaminho imediatamente.

Me lembro de ver um menino, mais baixo que Sirius, mais pálido e com cabelos tão escuros quando a tinta que borrava meus dedos sobre o pergaminho.

"Não sou só outro Black." Respondi mais alto do que pretendia. "Eu sou Regulus."

E em seu rosto sério surgiu um sorrisinho de escárnio que me fez encolher na cadeira, apertando a pena nas mãos. Mas você apenas balançou a cabeça de um lado para o outro, pensativo. Um gesto que deixou seus cabelos parecendo ainda mais escuros do que antes.

"Pequeno Rei." Aquela sua voz, ainda que infantil, já tinha algo de perigosa. Com treze anos você já parecia um adulto.

"Que foi que você disse?" Eu perguntei confuso. E curioso.

"Nunca se interessou em saber o significado do seu nome? Pequeno Rei."

"Eu não sou pequeno". Torci o nariz. Eu não era pequeno. Ao menos, não seria para sempre.

"Nem é um Rei." Você disse, dando outro sorriu torto. Naquela época eu ainda não sabia que seus sorrisos eram raros e que se tornariam mais raros com o passar dos anos.

"Aposto que posso ser um Rei se eu quiser." Fechei o tinteiro com cuidado, enrolando o pergaminho, mas parei antes de guardá-lo dentro das vestes, pensativo, falando mais para mim do que para você: "Mas acho que antes de ser Rei, eu teria de ser um Príncipe."

E você parou de sorrir quando eu disse aquelas palavras. E eu nunca entendi bem o porquê. Talvez você duvidasse de mim. Duvidasse que eu pudesse ser um Rei. Ou um Príncipe.

—X—

IV. 'Em certo dia, à hora, à hora / Da meia-noite que apavora,'

—X—

Eu não tinha a menor intenção de seguir qualquer conselho de Sirius, mas é fato que nós nunca fomos amigos. Você e eu. Éramos diferentes. Tínhamos outros planos. Eu queria provar à minha família que era melhor do que meu irmão e que não precisávamos dele para nada. Com o tempo, eu descobri que o irmão que pensava gostar lá no fundo nunca fora o que eu pensava ser. Sirius nunca me dera a oportunidade de provar que eu estava certo e ele errado.

Mas e você? Você nunca dizia nada. Para ninguém. Passava o tempo todo estudando. Quieto e isolado dentro do seu próprio mundo forrado com paredes de livros. Às vezes eu o via quando passava pela biblioteca durante o intervalo das aulas. Mas eu evitava o lugar, porque sempre acabava topando com Sirius, escoltando um de seus amigos mestiços. Você não parecia reparar ou ao menos fingia não perceber as provocações. Sempre esperando por uma oportunidade melhor. Eu invejava a sua calma, a sua determinação. E às vezes, só às vezes, poderia jurar ter visto você virar o pescoço na minha direção quando eu estava passando. Astuto como um pássaro negro que olha sorrateiro por cima do ombro, à espreita de um ataque fatal. Talvez você achasse que eu tentaria algo. Algo contra você. Eu só era, afinal, um outro Black.

Mas, com o tempo, eu percebi que você agia assim com todos. E que tinha seus motivos. Lembro de ter ficado com raiva do meu irmão por cada brincadeira sem graça que assisti sem fazer nada para impedir. O que eu poderia fazer? Era seu problema, não meu. Nós éramos ensinados a nos virarmos sozinhos. E Sirius era tão mais forte, mais alto, mais velho. Ele era invencível. Mas e quanto a você? Por que você não era como ele? Você poderia vencê-lo. Eu sabia que podia. Você tinha lido mais livros do que todos da sua turma. Passava horas estudando. Era o melhor da Sonserina. Mas ninguém parecia perceber isso, além de mim. Nem você percebia. Eu acho.

"O que diabos você tanto olha?" A sua voz se tornara mais amarga e a sua face mais sombria. Os olhos, mais escuros e frios. Há anos que eu não via mais você sorrir de verdade. Talvez eu nunca tivesse visto. Uma risada sarcástica e sem calor era tudo que você permitia os outros presenciarem. E era isso que eu era para você. Só outro. O outro Black. Dei um passo na sua direção, hesitante. A luz do castiçal iluminou sua face e eu parei onde estava, reparando nos contornos escuros que havia debaixo dos seus olhos.

"Eu... já passa da meia-noite... Severus." Mordi o lábio inferior, estranhando o som do seu nome na minha voz. "Amanhã é a final de quadribol. Todos já estão na cama."

E você balançou a cabeça, indiferente às minhas palavras. Os cabelos maiores do que antes, caindo sobre o rosto cada vez mais pálido. O nariz crescera adunco, mas harmonioso com o restante da face que meu irmão e seus amigos já tinha azarado umas cem vezes. E eu ainda não entendia o porquê da minha raiva, do meu rancor. Você nem era meu amigo, afinal...

"Mas você ainda está aqui." Sua voz soava divertida e tranqüila quando se voltou para o velho livro que jazia sobre a mesa, fechando-o com um estalo. Suas mãos pálidas e grosseiras, eu percebera há meses, eram marcadas por pequenas cicatrizes, possivelmente de tanto cortar ingredientes para poções. O seu olhar acompanhou o meu e para minha surpresa, sua boca se torceu num minúsculo sorriso. "E é o nosso melhor artilheiro. Você é quem deveria estar descansado, Pequeno Rei."

O seu sorriso sumiu no instante seguinte. Talvez porque você tenha percebido que me deixara contente com suas palavras. Com a sua preocupação. Na época eu não entendi por que fiquei feliz... e por que aquilo te incomodou tanto.

Eu só me lembro de ter pensado que talvez você sorrisse novamente caso eu vencesse o jogo no dia seguinte. Mas quando o apanhador da Grifinória capturou o pomo-de-ouro, eu imediatamente procurei pelo seu rosto na multidão verde e prata e lembro de ter sentido alívio por não encontrá-lo em parte alguma.

—X—

V. 'Dentro em meu coração um rumor não sabido/ Nunca por ele padecido.'

—X—

Adiei ao máximo minha volta a Sonserina aquela noite, torcendo para não encontrar ninguém acordado. Entretanto, você ainda estava lá. Não terminando um dever de casa. Ou revisando suas anotações. Estava esperando por mim.

"O amargo sabor da derrota", você disse um pouco alto, sem erguer a cabeça do livro que fingia ler. Ao seu lado um único castiçal de prata iluminava o ambiente. Foi naquele instante que eu notei que o fogo da lareira tinha se apagado e que as masmorras pareciam mais escuras e frias do que o normal. "Já devia ter se acostumado."

Balancei a cabeça e fiz menção de passar direto, mas havia algo na maneira como você tinha os lábios esticados que me irritou. Aquilo não era um sorriso. Era alguma outra coisa. E eu era curioso. Curioso demais.

"Por quê?" Minha voz saiu entrecortada quando voltei a me mexer.

Você esperou por vários segundos. Esperou que eu dissesse mais alguma coisa. Mas eu não disse nada e o meu silêncio pareceu lhe atingir de tal forma que te fez erguer a cabeça, os cabelos escondendo os olhos, a pele pálida parecendo ainda mais doentia próxima da luz da vela.

"Por quê?" Você então repetiu a minha pergunta, cruzando os braços sobre a mesa, me encarando com tranqüilidade.

"Por que você não foi ao jogo?" Eu levei algum tempo para perceber o que deixei escapar. O que eu disse assim, de uma vez, bem na sua frente. Mas o que você fez? Nada. Não sorriu, não pareceu ofendido, nem satisfeito. Soltou um suspiro que eu não consegui identificar e depois de vários instantes ergueu os ombros, parecendo resoluto com alguma coisa que só você podia compreender.

Prendi a respiração quando você puxou a varinha e fez um movimento rápido com o pulso na direção do castiçal, transformando-o numa garrafa. Tudo isso sem dizer uma única palavra. O salão escureceu consideravelmente, mas eu ainda podia ver a sua silhueta desenhada junto à mesa. E podia jurar que seus olhos estavam brilhando no escuro.

Pisquei. Esfreguei meus olhos. Estava vendo demais. Coisas demais. Essa situação era irreal. Eu estava cansado. Precisa dormir. Devia. Esquecer o jogo. Esquecer que havia alguma coisa me perturbando há algum tempo e que eu não sabia o que era.

Eu não queria saber.

"Sente-se."

A sua voz era quase um sussurro. Puxei a varinha e conjurei algumas velas que imediatamente iluminaram o espaço entre nós. Sem parecer surpreso pela minha atitude, você continuou acenando para onde antes havia o castiçal, enchendo dois cálices com o líquido rubro da garrafa. O cheiro forte do whisky de fogo me alcançou as narinas e instantaneamente senti um arrepio involuntário.

"Você é monitor." Deixei escapar e fui tomado por um incômodo tremor quando vi que isso te fez sorrir. Sorrir de verdade.

"Em breve você também será." Seu braço se erguera, sustentando um dos cálices no alto. "Um brinde ao dia de amanhã, Pequeno Rei."

"Eu não sou pequeno." Retorqui pegando o outro cálice. Hesitei antes de levá-lo a boca. Eu não devia.

"Pequeno o bastante para se preocupar com coisas pequenas. Jogos de quadribol, eu lhe pergunto? Há mais do que isso lá fora."

Ignorei seu comentário e virei o conteúdo do cálice de uma única vez. A vertigem que me atacou só provou que talvez você estivesse certo. Talvez eu ainda fosse muito, muito pequeno.

"Você se preocupa demais tentando provar algo que já é certo. Você tem boas notas. É um bom jogador. Honra e respeita a sua família, a sua casa. Você é superior. Eu não consigo compreender o que mais você quer."

Apoiei o cálice na mesa e titubeei, tentando focar a vista. Mas cada vez que eu me forçava a encará-lo com mais atenção você se tornava mais e mais borrado. Talvez eu estivesse ficando bêbado. Ou louco.

"Eu quero saber por que você nunca sorri."

Definitivamente louco.

E minhas palavras fizeram com que você balançasse a cabeça e torcesse os lábios num sorriso. Um sorriso involuntário e sincero. Ou ao menos, naquela hora pareceu. Mas logo você já tinha se levantado e dado costas para mim. Era a primeira vez que você fazia isso. E não seria a última.

"Sorrir requer uma razão. Um motivo. Quem sorri sem razão é louco. Aqueles que têm um motivo para sorrir um dia também terão uma razão para chorar. O melhor é não sorrir. Quem não tem nada a perder... não pode ser derrotado."

—X—

VI. 'Ave ou demônio que negrejas/ Profeta, ou o que quer que sejas!'

—X—

A primeira coisa que me ocorreu quando abri os olhos na manhã seguinte foi que minha cabeça latejava como se tivesse sido atingida por um balaço particularmente violento. Levou algum tempo para que eu percebesse que estava deitado na minha cama, parcamente coberto por um lençol nas cores da Sonserina.

Não lembrava de como chegara ali. Na verdade, não lembrava de muita coisa. Apoiando os cotovelos no colchão, forcei a memória, repentinamente assaltada por flashs da partida do dia anterior e das consecutivas imagens da nossa derrota, acompanhadas pelas expressões desoladas dos meus colegas de casa. Senti um aperto na garganta ao lembrar da minha própria sensação de impotência, que se intensificou quando virei o corpo e encontrei minhas botas ao lado da cama, cujas amarras de couro estavam cuidadosamente bem arranjadas em seus devidos lugares.

Erguei as sobrancelhas, imediatamente voltando a atenção para minhas roupas. Ainda estava vestindo o mesmo suéter e calças de quadribol que usara na véspera, mas minha capa fora removida, dobrada e colocada sobre a mesinha de cabeceira. Franzi o cenho. Não lembrava de ter feito nada daquilo. Quando estava de mau humor — o que possivelmente fora o caso de ontem à noite — costumava evitar meus colegas de casa e só retornava para a Sonserina quando todos já tinham se recolhido. Em silêncio então eu me livrava das roupas e ferrava no sono. Nunca me dera ao trabalho de arrumar os fechos das botas ou de dobrar a capa. Se não me conhecesse bem o suficiente diria que outra pessoa tinha feito aquilo.

Balancei a cabeça. Era ridículo. Só me faltava ficar imaginando coisas. Talvez nós não tivéssemos perdido o jogo, afinal das contas. Talvez a Sonserina vencera a partida e eu só acabei bebendo demais durante a comemoração e--

Senti um frio subir pela espinha e arregalei os olhos, assim, mais ou menos ao mesmo tempo. Uma sensação de pânico subindo pelos dedos do pé até alcançar o coração que começou a bater acelerado e sem controle.

"Você é monitor", Ouvi o som da minha própria voz repetindo aquelas palavras como se elas fizessem parte de um sonho distante e irreal.

Sentei de lado na cama, esticando o corpo, os pés balançando a míseros centímetros do chão. As imagens já saltavam, sem permissão, dentro da minha cabeça. A penumbra do salão comunal... você transformando o castiçal em garrafa... servindo dois cálices e me estendendo um deles...

"Pequeno Rei."

Virei o pescoço de um lado para o outro com força e dei repetidos tapas na minha testa, tentando me forçar a lembrar o que acontecera depois. Eu bebera o whisky de fogo, era óbvio. Só isso explicaria a dor de cabeça que sentia agora... eu nunca tinha bebido assim antes... nunca... e nem comera nada durante toda a tarde...

Fechei os olhos e me deixei cair de costas, sobre o colchão macio. Você provavelmente me trouxera para cama. Eu devia ter ficado bêbado demais para andar.

Arregalei os olhos de repente, fitando o teto da cama de dossel. Vi minha figura refletida na madeira escura e lustrosa e me senti pequeno e sozinho, ali, largado em meio ao verde e a prata. Por mais que me esforçasse eu não conseguia visualizar imagens do que se sucedera. Apenas me lembrava de algumas sensações. O aperto de um braço forte em torno da minha cintura, a voz ligeiramente rouca que me mandava continuar andando... "mais um degrau, só mais um..." e que resmungava baixo, "levante os braços, levante... como espera que eu tire isso se você não colabora?"

E eu sorri, silenciosamente agradecido que ninguém pudesse me ver naquele instante. Minhas bochechas estavam quentes, mas isso não me incomodou. Não incomodou porque lá no fundo eu sabia que, apesar da situação pouco confortável em que me encontrava, minha cabeça dolorida e a perspectiva de encontrar duzentos rostos irritados quando descesse para o café da manhã... eu ainda era capaz de sorrir.

Não havia somente estranhos ao meu redor, afinal.

—X—

VII. "Fico atônito, embora a resposta que dera / Dificilmente lha entendera."

—X—

Nós nunca tocamos no assunto. Dias passaram sem que você me lançasse um segundo olhar ou uma palavra, quando nos encontrávamos casualmente pela escola ou na própria Sonserina. Várias e várias vezes eu me demorei no salão comunal um pouco mais do que meus colegas de quarto, na esperança de ficar sozinho com você por alguns instantes, embora eu não soubesse bem por que estivesse fazendo aquilo. Nem o que eu faria caso conseguisse.

Então começaram os exames e ficar até tarde estudando deixou de ser uma desculpa para se tornar obrigação. Eu tinha tanto para fazer que por alguns instantes até conseguia fingir que não sentia um tremor estranho sempre que olhava na sua direção, esperando que você erguesse a cabeça da sua pilha de livros e me contasse o que acontecera naquela noite. Por que me oferecera whisky, por que me carregara para o quarto...

Ultimamente, não estava sendo fácil me concentrar em muitas coisas, mas o pior era não conseguir entender qual era a razão da sua mera presença me afetar daquela maneira. Havia algo de errado, eu sabia. Eu não era idiota. Era melhor do que Sirius. Meus pais diziam isso. Você disse.

E eu acreditei. Embora não soubesse o porquê.

'Nós nem somos amigos', eu ficava repetindo em silêncio até conseguir voltar para as anotações de Transfiguração e finalmente tirar você dos meus pensamentos. Nem que fosse por alguns instantes. E era com um certo alívio que eu escutava o som das páginas sendo viradas pararem subitamente, seguido pelo estalo dos livros fechados e empilhados um em cima do outro. De rabo de olho, eu o via tirar os cabelos da frente do rosto, antes que você levantasse na direção do seu dormitório e desaparecesse no fim do corredor. Intimamente, eu torcia para que você não pudesse escutar o meu suspiro de alívio.

Acabava indo dormir umas duas horas depois, meus olhos inchados de tanto ler e revisar, no fundo satisfeito de ter feito algum progresso com a sua presença longe da minha. Mas eu sabia que não poderia agüentar aquilo por muito mais tempo. E não agüentei. Na quarta noite fui cedo para cama e, depois de conjurar algumas velas, lancei um feitiço de silêncio ao meu redor. Deitado, consegui revisar meus apontamentos de astronomia tranqüilamente. Sempre fui bom em astronomia. Talvez estivesse no sangue. Em seguida passei para poções, mas precisei reler o primeiro parágrafo no mínimo dez vezes antes de absorvê-lo corretamente. O silêncio ao meu redor era tão latente que parecia um convite mudo para o reino do sonhar. Sentia meus olhos cada vez mais pesados e pensei que talvez fosse melhor se eu dormisse de uma vez...

Não.

Balancei a cabeça, irritado. Chutei os lençóis que me cobriam até os joelhos e, apanhando livros, penas e pergaminhos, ignorei os resmungos sonolentos de meus colegas de quarto enquanto caminhava em direção a porta. Caminhei devagar, tentando não fazer barulho e me perguntando que horas poderiam ser... o salão comunal parecia bem escuro... talvez... talvez estivesse vazio...

Mas havia um vulto próximo à lareira. Sentado numa poltrona de espaldar alto com uma longa capa preta cobrindo as pernas. A pele da mão refletida contra o fogo era branca. Se parecia com um fantasma, mas era bem sólido. O vulto então se mexeu e eu prendi a respiração.

"Ah, é só você." A sua voz saiu tranqüila, quase entediada.

Estanquei no lugar e abracei os livros que carregava, apertando-os contra meu peito. Dava para sentir o meu coração batendo forte e rápido. Muito rápido.

"Você me assustou." Retorqui com toda a dignidade que possuía, enquanto tentava recobrar a calma, rumando para uma mesa de estudos um pouco mais afastada da lareira. Puxei a varinha e acendi as velas de um castiçal, observando o mesmo com uma certa apreensão. Sentei e fechei os olhos, me sentindo o maior idiota do mundo. Não havia dúvidas de que aquela era a oportunidade perfeita. Tarde da noite, salão totalmente vazio... exceto por você e eu.

Sacudi a cabeça e comecei a separar as anotações das folhas limpas de pergaminho, tentando estabelecer uma ordem para voltar aos estudos. Mergulhei a pena no tinteiro e tinha copiado somente três palavras quando me enchi de repentina coragem, erguendo o rosto na sua direção.

"Severus?" Chamei, a voz morrendo no instante em que sua cabeça se voltou para mim.

"Sim?" Você respondeu, arqueando uma sobrancelha e me encarando com aparente calma. Imediatamente perdi a coragem de falar.

"Eu... er..." Desviei meus olhos dos seus, voltando a atenção para o pergaminho sobre a mesa. "É que... bem, eu sei que você é bom em poções e--" Você apenas me encarava em silêncio, o que me irritava profundamente, — "amanhã é meu exame final e ainda não entendi bem como faço para... ah..." Abaixei a cabeça, lendo em voz alta a primeira frase em que bati os olhos: "congelar a erva-do-campo e manter suas propriedades curativas..."

Ouvi quando você se levantou, mas não fui capaz de distinguir o som dos seus passos daquele ruído insistente do fogo consumindo a lenha na lareira e, quando percebi, você já estava ao meu lado, puxando sua varinha, cuja ponta se acendeu sem uma única palavra.

Como...? Perguntei intimamente, erguendo as sobrancelhas.

"Feitiços não-verbais." Você disse tranqüilamente, como se tivesse acabado de ler meus pensamentos. Eu já ouvira falar deles, é claro, mas nunca tentara fazer. "Normalmente são ensinados apenas no sexto ano."

"Mas você ainda está no quinto." Minha voz deve ter soado fraca e infantil, porque você balançou a cabeça como quem faz 'tsc' e deixa o assunto de lado.

"Melhor prevenir do que remediar." Entoou enquanto me devolvia o pergaminho que pegara num movimento ágil, apontando para onde eu parara de escrever. "A erva-do-campo tem de ser congelada imediatamente após a fervura. Isso só se consegue com ajuda de um feitiço de congelamento rápido, você sabe como se faz?"

Balancei a cabeça em negação com sinceridade. Eu não fazia a menor idéia.

"Pegue sua varinha."

E, se você percebeu que minhas mãos tremiam ao sustentá-la, não fez nenhum comentário.

"O professor Slughorn provavelmente esperava que vocês descobrissem sozinhos, do contrário, provavelmente teria feito algo a respeito..." Você então se aproximou mais e fez um gesto complicado com as mãos. Sobre a mesa surgiu um pequeno caldeirão, três vezes menor do que os costumávamos usar durante as aulas. Dentro dele havia um líquido de cheiro suave, sem cor.

"A erva-do-campo não exige muita habilidade para ser fervida." Outro aceno rápido e o líquido começou a borbulhar, uma fina fumaça subindo. "Mas é necessário redobrar a atenção para saber a hora correta de congelá-la. Está vendo as espirais subindo, como se formassem pequenos cachos? Está quase na hora. Vamos, repita comigo: congelasco."

"Congelasco." Repeti, sem prestar real atenção no que dizia.

"Bom." Você observou o conteúdo do caldeirão com uma sobrancelha erguida. "Pronto. Agora é para valer. No três, Regulus."

Estendi o braço acima do caldeirão borbulhante. Pisquei incrédulo.

Era a primeira vez que você dizia meu nome.

"Um..."

O cheiro adocicado da erva-do-campo me dava uma falsa sensação de calma que não se estendia a minhas mãos trêmulas.

"... dois..."

Eu podia sentir a sua respiração no meu pescoço, ou talvez fosse apenas meu nervosismo. Minhas mãos tremiam tanto que a qualquer minuto eu ia acabar derrubando a varinha dentro daquele caldeirão...

"Três!"

"Congelasco!"

Abri os olhos, que fechara antes do 'três', e imediatamente reparei em duas coisas: a primeira era que conseguira congelar a erva-do-campo bem a tempo. Um vapor esbranquiçado se desprendia do caldeirão, mas o líquido se tornara sólido. A segunda — e que me fez prender a respiração novamente — foi que você segurava o meu pulso com força, sustentando minha mão firme no lugar. E eu pensei, naquela hora, que deveria existir um feitiço para congelar o tempo.

Mas não existia. Ao menos nenhum que eu conhecesse. E eu tinha certeza de que você não me diria, mesmo se soubesse.

"Tente não balançar o braço quando for executar este feitiço. Você pode acabar explodindo alguma coisa."

E, sem um segundo olhar ou outra palavra, você se afastou, caminhando na direção do seu dormitório. Eu fiquei ali parado ao lado do caldeirão que você conjurara do nada, minha mão ainda firme, suspensa, no ar. E me perguntei como era possível que eu ainda pudesse sentir o calor dos seus dedos ao redor do meu pulso.

Continua...


¹ Verso do "Soneto da Separação" de Vinícius de Moraes.

² Todos os capítulos da história serão intercalados por trechos do poema "O Corvo" (The Raven, no original), de Edgar Allan Poe, traduzido por Machado de Assis. A escolha dos mesmos NÃO é aleatória. Repare.


NdA.: Severus e Regulus? Pois é. Culpa deste vídeo http // www . youtube . com / watch?vFZOG9YmNT68 (para assistir basta tirar os espaços e então colar o endereço numa janela do explorer. Quem não conseguir, dê uma olhadinha no meu profile, deixarei um link para o vídeo por lá também) e da Calíope-"Coisinha-Silvestre-Number-One"-Amphora que foi quem me contou o significado do nome do Regulus.

Well, a fanfic está completa e ficou IMENSA, tipo, ela tem umas cinqüenta páginas de Word em fonte verdana 10. E é lógico que eu não vou postar tudo de uma vez. Serão quatro partes no total e a última tem quase o dobro do tamanho dos capítulos anteriores. Minha idéia é postar um capítulo a cada quinze ou dez dias, mas dá para diminuir esse intervalo, é claro. Só depende da colaboração de vocês. Gostaram? Não gostaram? Comentários são sempre bem-vindos, vocês sabem disso.


Agradecimentos especiais: Calíope Amphora (que viu essa fanfic ser planejada do começo ao fim, deu dicas essenciais e mesmo não curtindo o Snape em slash leu, diz que gostou e fez um tremendo trabalho de betagem), Lily Carroll (que apesar de não gostar mais de Harry Potter como antes, ainda lê tudo que eu escrevo sobre o assunto, dá sua opinião sincera e ainda por cima desenhou a lindíssima capa da fanfic), Guta (que incentivou desde o começo e mestrou um dos challenges que me ajudaram a terminar a história) e Nati. M. Black (que esperou tanto, espero que tenha valido a pena!).