Observação: Esta fic é a continuação de uma outra, Contradições (premiada com o 2º lugar no II Challenge de Slytherin do 3V).


Incoerências

por Ireth Hollow


1. Meditação

Não me lembro de alguma vez ter tido o mesmo sonho mais do que uma vez. Verdade seja dita, nunca prestei muita atenção aos meus sonhos, talvez devido à pouca clareza que demonstravam. No entanto, tenho sido visitada por uma visão invulgarmente nítida, noite após noite, deixando-me extremamente confusa e cansada, assim que acordo.

O mais estranho é que não se trata de uma qualquer fantasia inconsciente; pelo contrário, consiste num acontecimento real, que eu lamento profundamente: o momento em que Scorpius me virou costas, incapaz de declarar o seu amor e, simultaneamente, de negar a inveja que eu lhe despertava. Havia um único pormenor que poderia parecer insignificante para outra pessoa qualquer, mas não para mim. Porque eu sabia que o facto de o meu sonho ser exclusivamente em tons de azul simbolizava algo, ainda que eu não soubesse exactamente o quê.

Claro que eu tinha algumas teorias. A que se afigurava como sendo a mais correcta era aquela em que eu menos acreditava: cansaço. Eu não me sentia fatigada, pelo menos, não mais do que noutras alturas de igual pressão. É certo que adormecia mal caía na cama, contudo, isso não demonstrava nada.

Outra das hipóteses parecia mais credível para mim, ainda que eu não gostasse dela. Afinal, eu era orgulhosa demais para admitir que o comportamento dele me magoara tanto assim. E, embora eu insistisse que aquela rejeição não me causava dor, no fundo, eu sabia que tal não correspondia à verdade.

A minha última ideia era um tanto inconsistente: eu poderia estar a atravessar uma espécie de depressão, simbolizada pelo azul que pintava e distorcia as minhas lembranças. Tal explicaria o porquê da minha testa estar permanentemente vincada, o que, aliado à relutância dos meus lábios em se curvarem num sorriso, por mais pequeno que fosse, contribuía para me dar um ar demasiado sério, quase doente.

Albus reparara na minha tristeza e, como não podia deixar de ser, associou-a ao fim da minha amizade com Scorpius. Admirei-me por não ter visto nenhum brilho de triunfo ou alegria nos seus olhos, nas poucas vezes em que os nossos olhares se encontravam.

Eu não o procurara, no entanto, ele veio até mim, silencioso como um predador a rondar a sua presa. E era precisamente assim que eu me sentia: observada, até mesmo escrutinada, como se alguém estivesse à procura das minhas fraquezas, quais brechas na armadura que eu construíra em meu redor. Será que ele não percebia que não podia haver quaisquer falhas?

Continuei a ignorá-lo, certa de que, com o tempo, ele acabaria por desistir. Não acabamos por desistir todos, no fim? Scorpius desistiu de lutar contra a inveja, eu desisti de lutar pelo nosso amor. Porque é que Albus não podia desistir da nossa já morta amizade?

Dou por mim a abanar a cabeça, face às contradições com que me vou deparando. O que eu penso não é o que sinto; eu não acredito verdadeiramente no que digo. Afinal, eu queria que nenhum de nós tivesse desistido. Ao mesmo tempo, censuro-me por ter ousado desejar o impossível, aquilo que já os meus pais e outros antes deles tentaram, sem sucesso: o entendimento entre as famílias Weasley e Malfoy.

Contudo, eu não sou só uma Weasley e ele não é só um Malfoy. Acima de tudo, nós somos Rose e Scorpius, duas pessoas completamente diferentes dos seus antepassados e com o direito de viver a sua própria vida, sem estarem presas à vontade alheia.

Sei que tudo isto não passa de uma filosofia utópica e, mesmo assim, desejo ardentemente embarcar nesta fantasia, mais não seja para fugir à dor. Mas não haverá mais dor quando eu chegar ao fim deste trilho impossível e me deparar com a realidade? Não será melhor encarar já a terrível verdade, enquanto ainda posso recompor-me? Porque hei-de me condenar a um sofrimento ainda maior?

Instantaneamente, dou-me conta de que sei a resposta: porque eu ainda o amo. E continuarei a amá-lo, mesmo que encontre outra pessoa de quem goste e decida passar o resto da minha vida com ela. Porque o simples gostar não consegue apagar o amor. É tal e qual à relação entre não gostar e odiar. O primeiro nunca consegue superar o outro.

É nestes momentos de profunda incoerência que o azul se atenua, permitindo-me ver rastos de vermelho e até um pouco de verde. O verde, que antes eu tomara como eterno, desaparecera assim que eu me desligara de Albus. A partir daí, só havia cores quentes na minha vida, desde o amarelo da amizade ao vermelho da paixão, passando pelo laranja que temperava o resto das minhas relações. Agora, contudo, vejo-me rodeada de azul, salvo os instantes em que me torno irracional. E eu não gosto de azul: é uma cor gelada, sem vida nem esperança. Sem amor.

Através dos meus rasgos de irracionalidade, vejo algo mais. Sei que não passam de meras possibilidades ou de memórias daquilo que poderia ter sido. Mesmo assim, dou por mim inclinada a seguir os caminhos ténues do vermelho, arriscando-me a apenas conseguir ainda mais sofrimento. Seria tão fácil deixar que o meu coração se aquecesse naquelas brasas escarlates, afastando toda aquela névoa azul!

Desta vez, é o caminho verde que pulsa, exigindo a minha atenção. Sim, também poderia baixar as minhas defesas e permitir a reentrada de Albus no meu coração. Ele está mais do que disposto a reconquistar o meu afecto… seria capaz de fazer tudo para que eu voltasse a ser feliz. No entanto, mesmo estando imersa neste azul sufocante, sei que o verde não é uma opção. Para quê substituir uma cor fria por outra equivalente? Não, para mim, só havia verdadeiramente um caminho: o vermelho.


N.A.: Primeiro capítulo postado, esperando review's.