Essa história não me pertence. Estou somente postando-a no universo de CardCaptor Sakura.


Paixão Escandalosa,


Li Syaoran não era do tipo que se aproveita de virgens, mas estava começando a repensar suas convicções no que se referia a essa moça em particular. Passou um olhar rápido pelo terraço de pedras antes de retroceder para dentro das sombras. Ótimo, estavam sozinhos! Jogou ao chão a cigarrilha e pisou-a, soltando uma última baforada de fumaça no ar frio da noite. Se conseguisse seu intento, nada perturbaria o momento que tencionava viver. Apressar uma sedução tirava todo o encanto que a expectativa fornecia.

Sedução, na verdade, não era seu plano inicial ao chegar à propriedade da família. Viera diretamente ao terraço para evitar a comemoração que acontecia dentro da casa. E agora percebia que fizera a escolha correta. Podia ter uma festa particular muito melhor com aquela jovem. Ela se apoiava à parede do terraço, absolutamente alheia. Ele, no entanto, estava mais do que ciente de sua presença desde que a moça deixara o salão de baile e saíra para a noite gelada. E agora, Syaoran a via observando as estrelas, dando-lhe a impres são de que seu coração e mente estavam a quilômetros de distân cia.

Seus cabelos ruivos tão lindos que chegava a doer as vistas, alguns fios encaracolados tinham se soltado do elaborado penteado no alto de sua cabeça, formando uma es pécie de trilha sinuosa e tentadora por seus ombros e costas. Uma trilha que Syaoran desejava ardentemente seguir com beijos.

Prendeu a respiração, se ela era uma convidada da recepção do casamento de seu irmão, era também, com certeza, uma donzela que estaria apenas interessada em uma proposta de casamen to... Se aparecesse diante da jovem oferecendo uma noite de pra zeres, ela, provavelmente, ficaria horrorizada e fugiria. Mas sempre poderia alcançá-la... Sorriu, dando alguns passos felinos para fora das sombras que o haviam ocultado até então. Uma fina camada de gelo sobre as pedras do chão ajudava-o a camuflar sua aproximação silenciosa. E, mesmo quando já che gava ao lado da moça, ela não se voltou para olhá-lo. Tudo estava perfeito!

— Boa noite. — Syaoran sussurrou próximo demais do ouvido da jovem para ser considerado apenas educado.

Ela se voltou sobressaltada, corada, dando-lhe, finalmente, o prazer de poder ver-lhe a cor dos olhos. Um verde intenso, cintilante. Magnífico! Mesmo que a moça constituísse um dificílimo desafio, Syaoran tinha certeza de que escolhera muito bem.

— Boa noite. — ouviu-a responder, com alguma incerteza, en quanto se aprumava, passando as delicadas mãos pela frente do vestido, que combinava à perfeição com a cor de seus olhos. Puxou, então, o leve agasalho de um tom mais escuro sobre o colo, sorrindo. — Lamento senhor, eu não o tinha visto.

Syaoran brindou-a com seu sorriso mais encantador. Nada sin cero, mas sempre eficiente, ele sabia.

— Estava fazendo um pedido às estrelas? Imagino o que possa ter desejado. — Estava sendo indelicadamente direto, mas não se importava. E, pela surpresa nos olhos da jovem, percebia que ela assim pensava também.

No entanto, em vez de retirar-se em busca de companhia apro priada, a moça pareceu tranqüila ao responder:

— Não estava desejando nada. Tenho tudo que sempre quis.

Syaoran foi pego de surpresa. Vacilou, deixando de lado, por alguns segundos, os pensamentos lascivos. Como era possível? Ninguém tinha tudo o que queria. Sempre faltava alguma coisa. Pelo menos, sempre fora assim em sua vida.

— Ora, a senhorita tem sorte. — comentou. Mas cerrou os olhos por uma fração de segundo, exasperado consigo mesmo. Sua voz soara forçada, dura. Não era assim que devia falar a uma dama a quem pretendia seduzir! E suavizou o tom: — Talvez eu não seja romântico o suficiente para acreditar em desejos, afinal.

Ela riu, encantando-o. Sua pele cor de pêssego parecia mais delicada ainda, e seus olhos, mais cintilantes, como pedras preciosas à luz da lua. Syaoran não teria acreditado ser possível tamanha beleza se não a tivesse visto; e a jovem parecia ainda mais bonita quando se mostrava alegre.

— Bem, se não pode ser romântico numa festa de casamento, deve ser uma causa perdida, senhor. — ela brincou.

O próprio Syaoran já pensara assim e, com um leve erguer de ombros, disse:

— Bem, na verdade, o casamento só acontecerá de fato dentro de três dias. Talvez eu consiga encontrar um pouco de romance dentro do peito nesse meio-tempo. — E inclinou a cabeça para que seu olhar cruzasse com o dela. Agora que haviam se falado por alguns instantes, ele tinha certeza de que não era casada. Mes mo assim, sentia um calor intenso vindo de seu corpo. Era como se houvesse algo de selvagem oculto sob as belas roupas e as palavras gentis. Algo que devia valer a pena explorar...

Foi ela quem desviou o olhar primeiro, como se algo a fizesse lembrar-se de quem eram, onde se encontravam e, principalmente, que estavam a sós. Endireitou-se mais, para poder afastar-se.

— Acho que esta não é uma conversa muito apropriada para ter com um estranho num terraço, à noite.

Syaoran refreou uma risada. Recusas de donzelas... A moça voltava a se comportar como mandava a sociedade, contida, sob uma delicada camada de pudor. Mas sempre havia a possibilidade de instigá-la novamente.

— Então, está me dizendo que poderíamos continuar a con versar sobre coisas um tanto mais interessantes do que o clima se não fôssemos estranhos?

Ela tornou a encará-lo, mas, dessa vez, não respondeu. E isso o fez rir.

— Muito bem, senhorita. Por que, então, não me diz seu nome?

Os lindos olhos verdes da jovem brilharam.

— Não sabe? Achei que me conhecesse. Eu sou...

Antes que ela pudesse dizer, porém, as portas duplas do terraço se abriram atrás deles, fazendo-a voltar-se para ver quem ali apa recia. Syaoran, instintivamente, voltou para as sombras. De nada lhe serviria causar uma cena com alguma mãe afrontada. Embora a mulher que aparecera fosse bem diferente da donzela com quem estivera conversando. Era bastante redonda, e seus cabelos, de um castanho bem claro.

— Ah, aqui está você! — exclamou a intrusa, colocando as mãos fechadas na cintura grossa. — Faz mais de dez minutos que a estou procurando!

Syaoran notou que a moça parecia sentir-se culpada.

— Sinto muito, Kaho, mas eu precisava respirar um pouco de ar fresco. Estava tão abafado lá dentro!

A senhora, agora já identificada como Kaho, meneou a cabeça.

— Pois aqui fora está gelado! Vai ficar doente! Eriol está à sua espera. Entre para que ele possa fazer o brinde, Sakura.

O estômago de Syaoran contraiu-se de tal forma que quase o fez passar mal. Encostou-se à parede, a respiração presa, o peito inflado. Sua irmã lhe escrevera sobre uma garota de nome Sakura. Não... Não podia ser... Mas era! A mulher que ele estivera pensando em levar para a cama era Kinomoto Sakura, noiva de seu irmão mais velho!

Ela se voltou, parecendo surpresa por não mais vê-lo. Sua voz soou insegura ao murmurar:

— Havia um homem aqui.

Kaho revirou os olhos e segurou a porta aberta. Seus pés grandes e escorregadios por causa do gelo batiam ameaçadoramente sob o pesado vestido vermelho.

— Bobagem. Não devia ser ninguém. Agora, vamos entrar!

Sakura respirou fundo, assentiu e seguiu para dentro. À porta, porém, parou para lançar um último olhar por sobre o ombro, depois se foi, e as portas se fecharam após sua passagem.

Syaoran soltou uma série de impropérios em voz baixa. Mais uma vez, sentia-se em segundo lugar em relação à Eriol. Era um tipo de competição que ele detestava, mesmo tendo se acostumado a suportá-lo. Embora não tivesse o menor interesse em casamento, irritava-se por saber que seu irmão era noivo da primeira mulher que lhe chamara a atenção de fato em meses!

— Não deveria ter vindo. — disse para si mesmo, tornando a sair da proteção das sombras.

Agora que Kinomoto Sakura se fora, a propriedade da sua família perdera boa parte de seu interesse. Na verdade, não passava de um amontoado de recordações de sua infância, a maior parte das quais, desagradáveis. Apesar disso, não tivera alternativa senão voltar. Eriol tinha algo que ele queria. E não se tratava de Kinomoto Sakura. Ela fora apenas uma distração momentânea. Uma que seria melhor esquecer.

(...)

Sakura forçou um sorriso ao passar pelo salão lotado, para posicionar-se ao lado de seu noivo. Eriol estava conversando com a mãe, Yelan Li, e com o tutor de Sakura, Clow Leed.

Quando ela se aproximou, a conversa morreu e Eriol deu-lhe um belo sorriso.

— Ah, aqui está minha adorável futura esposa! — E ofereceu-lhe seu braço, que Sakura aceitou sem vacilar. Como sempre, sentia um profundo sentimento de amizade pelo homem que iria desposar. Nada mais do que isso.

Com certeza, nada como a estranha sensação que experimentara lá fora, no terraço, com o estranho que aparecera e desaparecera tão rápido. Quem seria o homem de cabelos castanhos rebeldes e selvagens olhos chocolates que fizera seu coração bater de forma tão estranha? E o que, em nome de Deus, estava ela fazendo, lembrando-se de tais detalhes da aparência dele?! Iria se casar dentro de três dias com um homem tão diferente... De cabelos escuros, de olhos azuis escuros.

Lançou um olhar furtivo a Eriol para garantir-se de que não estava enganada. Sim, os olhos dele eram azuis escuros. Respirou aliviada. Não que isso fosse fazer alguma diferença, era apenas a cor dos olhos dele.

Não. Não devia ficar pensando num estranho que nem tivera a educação de se apresentar de forma apropriada. Eriol era exatamente do que ela precisava. Era tudo que queria. Um homem bom e, melhor ainda, seu amigo. Sabia que jamais sentiria por ele uma paixão devastadora, mas fora exatamente por isso que aceitara seu pedido de casamento depois de ter recusado tantos outros pretendentes.

— Você está bem, minha querida? — Eriol lhe perguntou, so lícito.

As palavras foram ditas quase num sussurro, mas, mesmo assim, a sobressaltaram. Ela afastou os pensamentos, e tentou sorrir-lhe.

— Claro que sim. Por que pergunta?

— Porque me parece um tanto distante. — Eriol apertou-lhe de leve a mão.

O sorriso de Sakura abriu-se mais, e ela relaxou de volta à realidade, esquecendo-se de suas divagações. Eriol sempre reconhecia seu estado de espírito; era tão compreensivo e atento... Nenhum outro homem poderia ser tão atencioso. E, definitiva mente, não aquele outro homem do terraço. Mas por que estava pensando nele outra vez? Olhou de novo para Eriol e sorriu.

— Estou ótima. Mas é que há tantas pessoas aqui esta noite! E os planos de casamento... Fico um tanto confusa. Mas logo vai passar.

— Claro que sim, meu amor.

Ele voltou a passar os olhos pelas pessoas mais importantes do condado. Tinham sido todos convidados a partilhar da alegria do casamento que em breve se realizaria. Era, na verdade, uma movimentação política, bem como um evento social. E uma comemoração, claro. Se as pessoas estivessem felizes, a vida de Eriol seria bem mais fácil.

Sakura compreendia perfeitamente que tornar a vida de seu futuro marido mais fácil seria grande parte de seu dever como esposa.

— Em alguns dias, tudo isso vai acabar. — Yelan disse, com voz fria, para a sua futura nora. E, para o filho, acrescentou: — Não está na hora do seu brinde, Eriol?

— Sim, mamãe, acredito que tenha razão. — Eriol fez um sinal à orquestra, e a música que tocavam foi diminuindo até cessar por completo. Todos os olhares se voltaram para ele enquanto pegava uma taça para si e outra para Sakura, ergueu a sua acima dos ombros, anunciando: — Eu gostaria de agradecer a todos por terem vindo.

As pessoas murmuraram sua apreciação. Nesse instante, Sakura notou um certo movimento nos fundos do salão, como se alguém estivesse forçando a passagem até a parte da frente. Mas ela voltou sua atenção para o noivo, deixando de olhar.

— Como todos sabem. — Eriol prosseguiu — Os últimos anos não têm sido fáceis para mim. — Ele franziu a testa, o que fez o coração de Sakura apertar-se. Sua primeira esposa morrera ha via dois anos. — Mas estou feliz por declarar que Sakura me ajudou muito nesses tempos de dor.

Eriol ia dizer mais e chegou a entreabrir os lábios, mas a pessoa que vinha forçando a passagem entre os convidados por fim apre sentou-se diante deles. Era um homenzinho de aparência nervosa, que mal ultrapassava a altura de Sakura, tão miúdo que era. Ela esperava que seu noivo o afastasse, mas Eriol inclinou-se para falar ao recém-chegado por um momento.

Sakura logo soube que algo terrível tinha acontecido, ao ver a expressão sempre calma do rosto de Eriol transformar-se numa máscara de contrariedade enquanto empalidecia considera velmente.

— Tem certeza? — ouviu-o perguntar com certo desespero.

O homenzinho assentiu pelo menos umas dez vezes, dizendo:

— Eu mesmo falei com ela, senhor.

— Obrigado. — Eriol voltou-se para seus convidados, extre mamente abatido. — Obrigado mais uma vez a todos por terem vindo e... Bem, é isso!

As pessoas pareceram tão confusas quanto Sakura estava devido à mudança na expressão do anfitrião e à súbita interrupção do brinde, mas todos voltaram a servir-se de bebidas e a apreciar a melodia que a orquestra começou a tocar.

A família, porém, não aceitou a mudança com tanta passividade.

— O que houve? — Yelan apressou-se em perguntar, adiantando-se. A irmã de Eriol, Fuutie, mostrava-se visivelmente preocupada, como Sakura.

Tenso, Eriol voltou-se para a noiva e disse:

— Venha comigo até o meu escritório. — E, sem olhá-la, saiu do salão em direção à área principal da casa.

As Lis seguiram-no de perto e, apesar de não terem sido chamados, os Leed pareciam determinados a também parti cipar da reunião íntima. Sakura seguia o grupo com uma es tranha sensação de pesadelo a envolvê-la. Jamais vira Eriol tão aborrecido, nem mesmo quando falava de sua falecida esposa durante a corte que lhe fizera no último ano. Agora, porém, parecia estar além de suas forças. Rezava para que nada de mal tivesse acontecido. Seu prometido já sofrerá uma perda irreparável.

Estavam entrando no escritório e ela colocava os pés dentro do cômodo quando Eriol voltou-se e disse grave:

— Sinto ter sido tão rude, mas se trata de uma emergência.

— O que aconteceu? — Fuutie precipitou-se.

Sua expressão era suficiente para deixar Sakura alarmada. Desde que a conhecera, um ano antes, sempre se impressionara com a austeridade e sensatez de sua futura cunhada. Mesmo sendo considerada velha para se casar, com a idade de trinta e quatro anos, Fuutie jamais se dei xara aborrecer por isso. Na verdade, essa era a primeira vez que Sakura via Fuutie preocupada.

Eriol olhou para a futura esposa com consternação e explicou:

— O homem que interrompeu o brinde é um renomado dete tive particular que eu contratei há algum tempo. E o que me disse foi, no mínimo, chocante. Nem chego a acreditar que possa ser verdade!

Yelan mordia o lábio, tensa.

— Não nos mantenha nesta agonia! O que houve, afinal? Algo referente a seu irmão? Conte-nos!

Ele meneou a cabeça como se não conseguisse acreditar-nos próprios pensamentos. E revelou:

— Minha falecida esposa está... Está viva.

Sakura entreabriu os lábios, incrédula, mas estava chocada demais até mesmo para conseguir prender a respiração, como fa ziam os demais. Não podia ser verdade! Li Tomoyo desapa recera num trágico acidente no mar! O pobre Eriol nem mesmo pudera ter a paz de espírito que sobrevém depois que alguém enterra seus mortos! O corpo jamais fora encontrado! Agora se sabia por quê.

Sakura sentia o coração bater forte enquanto os pensamentos a traíam. Sem um cadáver descansando em seu repouso eterno, o que ele acabava de dizer podia, sim, ser verdade. Tomoyo podia, sim, ser a mulher que o detetive vira. Com certeza. Houvera relatos a respeito de marinheiros que foram considerados mortos e que haviam reaparecido muito tempo depois de sumirem no oceano.

Sakura sentia o chão fugir-lhe de debaixo dos pés. Como podia ter acontecido algo assim? Escolhera com tanto cuidado, fizera planos... E agora, com uma só frase, seu mundo vinha abaixo.

Respirou fundo e recriminou-se interiormente; estava sendo egoísta. Eriol acabava de anunciar que sua esposa estava viva, e tudo que ela conseguia pensar era em como tal revelação poderia destruir sua vida. Precisava concentrar seus pensamentos no pre sente; mais tarde, pensaria nas conseqüências.

Fuutie, que levara as mãos aos lábios, quebrou o silêncio que pesava sobre a sala:

— Tomoyo está viva?

Yelan negou com a cabeça, deixando-se cair sobre uma pol trona próxima.

— É mentira. Fomos informados, por fontes seguras, que o navio em que ela viajava afundou e todos a bordo se perderam no mar. A mulher que o impostor viu, seja quem for não pode ser Tomoyo.

O tom de Yelan, mesmo baixo, era firme e deu, por segundos, um toque de esperança a Sakura. Sim, talvez tudo não passasse de um engano. Um mal-entendido. Olhou para Eriol, mas, ao ver-lhe o rosto, suas esperanças se foram. Ele negava com a cabeça com a mesma determinação que havia nas palavras da mãe.

— Eu confio no meu informante.

— E quem poderia querer que você acreditasse que sua esposa esteja viva sem vê-la? — Fuutie argumentou. — Aliás, por que contratou um detetive depois de tanto tempo e já estando comprometido com outra?

Eriol empalideceu, e isso fez com que Sakura se compade cesse ainda mais dele. No entanto, as perguntas de Fuutie tinham razão de ser e mereciam respostas. Era óbvio que Eriol não estava em condições de dar explicações agora.

Mesmo assim, Fuutie insistiu com o irmão:

— Você não me parece tão chocado assim com esta... Reviravolta dos fatos.

— Fuutie! — Yelan repreendeu-a, mas o filho a interrompeu:

— Eu... Eu... Por Deus, Fuutie, você parece afirmar que eu sabia que minha esposa estava viva! O detetive é um velho conhecido de papai, de Londres. Não estava investigando Tomoyo de forma alguma, mas, pelo que parece, ouviu rumores... — Os olhos dele se voltaram para Sakura ao prosseguir: — Eu juro minha querida, que nada sabia até esta noite. Claro que jamais teria continuado com o nosso noivado se achasse que havia alguma chance de...

— Já chega! — Yelan levantou-se. — Isso tudo é ridículo! Eriol, você não tem de se explicar mais! — E, encarando a filha, completou: — Como podemos estar absolutamente certos de que isso é verdade, mesmo que Eriol confie nesse homem tanto quanto seu pai confiava?

Eriol respirou fundo.

— Vamos saber em breve se ele é tão confiável quanto sempre foi. A mulher que mencionou... Tomoyo... Vai chegar depois de amanhã. Se for verdade, ela terá muito a nos contar.

Agora que o choque se suavizara um pouco, Sakura soltou um suave gemido. Sua impressão era a de que estava num sonho e que, a qualquer momento, iria acordar. Sim. Devia ser um sonho terrível. Chegou até mesmo a beliscar-se de leve, mas nada mudou. Estava vivendo a mais pura realidade. Uma bem amarga, na verdade.

Em poucos dias, a mulher apareceria e, se fosse, de fato, Li Tomoyo, acabaria com os planos de Sakura. A idéia ainda a fazia sentir um aperto no estômago. O que fazer agora?

— Veja, lorde Li... — disse Clow, que mantinha as mãos fechadas em punhos ao longo do corpo. Mesmo não sendo um homem explosivo, mostrava-se furioso: — Tínhamos um acordo! Se essa mulher misteriosa for realmente sua es posa, o que pretende fazer a respeito de Sakura?

De imediato, todos os olhos voltaram-se para ela, fazendo-a corar. Notava a compaixão dos que a observavam, e isso era ainda pior do que a verdade recém-descoberta. Sentia-se sufocar.

— De fato! — exclamou Kaho, erguendo o rosto arredon dado. — Temos responsabilidade por Sakura. E o senhor tam bém tem milorde!

Sakura abriu a boca para protestar, mas Yelan foi mais rápida:

— Por favor, sabemos muito bem que são os res ponsáveis legais por Sakura, mas não podem acreditar que esta situação tenha sido criada por meu filho! Ele não sabia que a esposa estava viva quando fez a proposta de casamento à sua protegida.

Eriol estava ficando mais e mais pálido.

— Se sabia ou não, não fará a menor diferença para as línguas ferinas de Londres! — Kaho rebateu. — Sakura ficará mal falada depois de um escândalo assim! Vamos, Clow, diga a eles!

O homem assentiu com gravidade.

— Exatamente. — concordou. — Não será fácil arranjar-lhe outro bom partido!

Sakura seguia os movimentos e as palavras de seus tutores e uma espécie de estupor. Por que Kaho e Clow a faziam parecer uma senhora de idade avançada, sem dentes, sem atrati vos? Não ficara noiva antes porque nunca encontrou um homem com quem quisesse se casar.

Diferentemente de muitas garotas da sua idade, não tinha o menor interesse em tentar mudar as atitudes de um cafajeste ou em procurar o grande amor de sua vida. E também não possuía o tipo de ligações familiares que a levassem a uma união por motivos políticos. Definitivamente, seus motivos para se casar eram muito diferentes. E tanto Clow quanto Kaho sempre tinham combatido sua posição.

— Essa situação vai destruir qualquer chance que ela ainda tenha de se casar! — prosseguiu Kaho, com uma expressão terrível, como se a vida de Sakura estivesse acabada.

— Olhem... — começou ela, já aborrecida com tudo aquilo.

Mas Eriol a interrompeu mais lívido do que nunca:

— Não há necessidade de erguer a voz contra mim, senhora. — Seu rosto, normalmente tranqüilo e bonito, estava re torcido pela emoção e pela força de suas palavras. — A situação é insustentável para todos nós. E, certamente, não era minha in tenção que isso acontecesse.

— Mas aconteceu! — Clow insistiu. — Sakura está ar ruinada! Arruinada, ouviu bem?

— Não, eu não... — Sakura recomeçou para ser interrom pida mais uma vez.

— Não acha que isso atingirá nossa família também? — Yelan disse em tom gélido, colocando todos ali em seus devidos lugares. — Meu Deus, uma esposa que retorna dos mortos, uma noiva sem futuro... O nome dos Li será motivo de risos durante anos!

— Tínhamos um acordo. — Clow declarou, cruzando os bra ços sobre o peito rotundo. — Demo-nos as mãos como cavalheiros que somos. E agora este estrago deve ser reparado de alguma forma. Quero saber como podemos fazê-lo.

Houve alguns segundos de silêncio, mas logo Yelan voltou a falar:

— E se ela se casasse com outro? Tenho certeza de que, com os conhecimentos da nossa família, poderíamos encontrar alguém que ficará feliz em receber a fortuna que acompanha o dote de Sakura. — E lançou um olhar que parecia de desculpa à sua ex-futura nora. — Claro que ela tem seus encantos. E isso redu ziria os danos a nós todos.

— Já chega! — Sakura, agora, encontrou espaço para co locar-se. Todos a encararam, abismados com a força de sua voz. — Não vou aceitar um casamento qualquer apenas para que se sintam bem em relação a mim! Permaneci solteira por três tem poradas para poder escolher o homem que queria como marido. E vocês não vão me empurrar para qualquer um!

Para sua surpresa, alguém riu atrás dela. Não tinha percebido que havia outra pessoa na sala. Voltou-se de pronto, assustando-se ao perceber que o homem que ria era o mesmo que a havia abor dado no terraço.

— Ora, ora, ora. — disse ele, naquele tom de voz que a deixava completamente ciente da sua presença. — A moça acaba de mostrar as garras.

Sakura enrubesceu, mas não por embaraço dessa vez; outra emoção a preenchia, uma que ela não reconhecia, mas que a fazia tremer. O homem estava zombando de suas palavras, e tudo que Sakura podia fazer era encará-lo e sentir-se atraída por sua figura alta e elegante.

A sala ficou de novo em total silêncio. Por que seria?, ela in dagou-se. Aquele estranho estava se intrometendo num assunto de família e todos deveriam estar chocados por isso. Pior ainda; ele parecia se divertir! Havia um quê de mau, de cínico naqueles olhos, e isso encheu Sakura de raiva.

— Quem é você? — exigiu saber, com um desprezo feroz.

Ainda sorrindo, ele respondeu:

— Então, não sabe... Imaginei que soubesse.

A situação que acontecera no terraço agora parecia inverter-se e ele se aproveitava disso, fazendo-a enfurecer ainda mais.

Eriol adiantou-se e colocou as mãos sobre os ombros de Sakura, num gesto ao mesmo tempo protetor e possessivo.

— Sakura, este é Syaoran. — apresentou-o, enquanto os olhares de ambos se encontravam, hostis. — Meu querido irmão.

Então, aquele era o irmão de Eriol?!

No decorrer do último ano, ela ouvira muitas referências a ele, mas nunca o encontrara. Eriol a levara a acreditar que Li Syaoran fosse à ovelha negra da família, deixado de lado por todos sem o menor constrangimento. Yelan sempre saía da sala quando seu nome era mencionado. Somente Fuutie falava do irmão mais novo com certa afeição.

Agora, o homem que não tinha lugar em sua própria família encontrava-se ali, encarando a todos, Sakura em especial, prendendo toda sua atenção. E ela não conseguia deixar de olhá-lo. Ele não correspondia a nada daquilo que seu noivo descrevera; era, de fato, completamente diferente dos outros Lis. Não tinha cabelos escuros como eles, mas sim castanhos, e tinha uma expressão um tanto dura. Mas sua característica mais marcante era a beleza dos traços.

E agora respondia ao espanto de Sakura com um sorriso meio de lado, que era ao mesmo tempo, debochado e encantador.

Endireitando-se o mais possível, ela deu-lhe as costas. O es tranho era que, apesar de não mais vê-lo, ainda o sentia com intensidade. Como se sua presença irradiasse um calor capaz de consumi-la. Ignorando os olhares chocados dos Lis, que agora a dei xavam para fixar-se em Syaoran, Sakura tentou retornar ao loco do problema que discutiam, mas Kaho o fez antes dela:

— Sakura, cuidado com o que disser. Lady Li es tava apenas tentando considerar seu futuro, e você deveria fazer o mesmo.

— Lamento se minhas palavras foram mal interpretadas. — Sakura dirigiu-se a Yelan, porém ela não a ouvia, já que sua atenção toda estava no filho mais jovem. — Mas ainda devo in sistir que não preciso de...

Eriol tocou-lhe o braço para que se calasse.

— Esta é uma situação bastante desagradável para todos nós — disse-lhe, suave. — Nada está decidido. Vamos deixar as discussões para depois, está bem?

Seu toque era o mesmo de sempre, mas, estranhamente, agora Sakura sentia que lhe faltava alguma coisa. Em especial quando comparado ao calor que vinha de seu irmão, cuja presença ainda sentia mesmo estando de costas. E ele nem sequer a tocava.

— Eriol... — começou, mas ele não a deixou terminar:

— Por que não volta a seu quarto e descansa, minha querida? A notícia que lhe dei deve estar sendo difícil de assimilar, eu sei.

Sakura encarou-o.

— Difícil? — repetiu, admirada.

Quem era ela, afinal? Uma criança que precisava ser consolada quando lhe tiravam um brinquedo? A palavra difícil era quase um insulto às suas emoções.

Eriol assentiu, forçando um sorriso.

— Em breve irei vê-la e tentaremos encontrar uma solução aceitável para esta confusão.

Ele se voltou antes de dar-lhe chance de responder e encarou o irmão. A gentileza sempre pre sente em seus olhos desapareceu de imediato, substituída por uma rudeza que Sakura jamais vira antes. Mesmo sem perceber, ela deu alguns passos para trás, como para afastar-se dessa nova visão que tinha do noivo, mas ele pareceu nem notar seu movimento.

— Preciso conversar em particular com meu irmão. — Eriol anunciou. — Imagino que ele tenha algum motivo para estar aqui.

Sakura estava muito contrariada. Não queria ser colocada de lado enquanto Eriol resolvia alguma rivalidade antiga com o irmão. Queria sentar-se com ele e discutir o problema que tinham em mãos. Queria ser tratada como uma igual, nessa mudança brus ca de acontecimentos, e não como uma criança inconseqüente.

— Mas Eriol... — começou.

— Depois. — disse ele, definitivo.

Por fim, Sakura ousou fazer o que vinha evitando desde que Syaoran aparecera; olhou-o por sobre o ombro. Como Eriol, ele também mantinha uma expressão dura e fria no rosto de traços perfeitos. No entanto, parecia conseguir usar essa ex pressão melhor que o irmão. Num estremecimento, Sakura afastou-se de ambos. Havia mais entre eles do que poderia supor. E no momento, não queria saber do que se tratava; não quando seu mundo e seu futuro es tavam em perigo.

— Eriol tem razão. — Yelan comentou, com um olhar preo cupado para os dois filhos. Não cumprimentara Syaoran.

O que ele fizera para ser recebido assim?, Sakura analisava.

— Venha, Sakura. Vou acompanhá-la e aos Leed até os quartos. — Yelan convidou, tocando de leve nos tutores de Sakura, para que saíssem dali.

Da porta, chamou a filha:

— Fuutie!

— Vou acompanhar os convidados às devidas carruagens. — disse a moça. — Imagino não haver motivo para que esta festa continue.

Sakura ainda tentou encontrar o olhar de Eriol, em busca de algum sinal de que a situação poderia ser bem resolvida. Mas ele continuava fixando o irmão e apenas tocou-a nas costas, empurrando-a muito de leve em direção à mãe dele.

Surpresa e contrariada com tal atitude, Sakura aquiesceu. Voltou-se ainda uma vez, porém Syaoran já estava fechando a porta. Foi um erro encará-lo. Os olhos que pareciam de aço, a atra vessaram e sacudiram de uma forma que ela jamais havia experimentado antes. E, para sua mais absoluta surpresa, ele lhe sorriu e chegou a piscar, maroto. E então desapareceu atrás da sólida porta de carvalho. Sakura permaneceu ali por mais alguns segundos, tentando controlar o tremor que ameaçava fazer suas pernas desabarem.

(...)

— Bebe algo? — Eriol perguntou, com um fraco sorriso para o irmão.

Mesmo estando desesperado por disfarçar suas emoções com um pouco de álcool, Syaoran preferiu negar com um aceno de cabeça. Aprendera, em anos de amarga experiência, que não podia ceder nem o mínimo em relação a seu irmão mais velho. Uma mente absolutamente clara era a única forma de enfrentar Eriol, de exigir o que viera buscar. Mais tarde poderia ceder a seus desejos. Em especial se a conversa não tivesse um bom resultado. Permaneceu em pé junto à porta, vendo o irmão preparar uma bebida para si mesmo e depois seguir até a escrivaninha, à qual se sentou.

Eriol ergueu os olhos, dando a Syaoran a impressão de estar revendo seu pai. Shang chamara-o muitas vezes àquela mesma sala para passar-lhe sermões; tantas vezes que até perdera a conta. Também o chamara para castigá-lo. Seu olhar foi auto maticamente até a lareira, mas a grossa chibata de couro que Shang mantinha lá agora desaparecera.

Eriol sorriu com malícia.

— Eu a guardei. — disse. — De nada adiantaria mantê-la ali enquanto não tiver meus próprios filhos.

— Como se você tivesse recebido um único golpe dele em toda a sua vida. — Syaoran rebateu com mais revolta do que pretendia. Imediatamente repreendeu-se por demonstrar suas emoções, mesmo que fosse apenas raiva, e logo a afastou.

Via certo prazer no olhar de Eriol por haver conseguido insuflá-lo, mas, para sua surpresa, não houve comentários; afinal, Eriol raramente deixava passar a oportunidade de replicar. Com um breve gesto, ele apenas convidou, apontando a cadeira diante da escrivaninha:

— Sente-se.

A primeira reação de Syaoran foi uma recusa, mas dominou sua revolta mais uma vez. Deixaria Eriol embebedar-se de poder por enquanto. Afinal, era uma situação apenas temporária.

— Muito bem, o que você quer? — ouviu-o indagar depois de um pequeno gole de uísque. — Ou será que consigo adivinhar sem que me diga?

— Talvez eu tenha vindo para comemorar suas bodas. — Syaoran ergueu as sobrancelhas, à espera de qualquer resposta.

Como se Eriol tivesse esquecido de que Tomoyo estava viva e que teria de encontrar um meio de compensar Kinomoto Sakura pela humilhação pública que a aguardava.

— Você? Teria vindo para dar-me os parabéns? Que bela piada! — o rosto de Eriol crispou-se, tornando seus bonitos traços mais duros, quase feios. Pouco depois, porém, seus músculos relaxaram e seu semblante voltou a ser normal. — Não. Acho que veio para me falar de Lansing Square. Para, na verdade, me implorar a respeito de Lansing Square.

Syaoran cerrou os dentes, sem desviar os olhos dos do irmão.

— A julgar pela confusão que acabei de testemunhar, você tem problemas maiores do que esse. Estou aqui, sim, para falar de Lansing Square, mas acho que isso pode esperar.

Era mentira, e sua mente se revolvia numa vontade imensa de sair gritando. Não, não podia esperar. Afinal, já esperara por três anos. Longos três anos, durante os quais a propriedade tinha invadido seus pensamentos e sonhos e sido sua única obsessão. A idéia de adiar sua exigência final realmente o irritava. Mas, racionalmente, tinha consciência de que sua única real esperança era manter-se firme até Eriol estar mais aberto a seus desejos. A única chance que Syaoran tinha de ganhar o prêmio era jogar com esperteza.

Ajeitou-se na cadeira, como se os anos e o ódio não o separassem do irmão.

— Não posso acreditar que Tomoyo esteja viva. — comentou, no tom mais informal que conseguiu produzir.

Eriol desviou o olhar para o nada enquanto girava o copo num círculo imaginário. O líquido âmbar, dentro dele, formou um pe queno redemoinho.

— É. O reaparecimento de minha esposa foi inesperado. Mas agora que voltou dos mortos, estou numa situação difícil, não acha?

Chocado e confuso, Syaoran tentava pensar rápido. Como Eriol podia estar tão calmo? O casamento de anos antes não fora realizado com base em amor, mas houvera sempre muita emoção. Não fazia sentido ver Eriol ali, sentado, tranqüilo, sabendo que a esposa não morrera.

Tentando parecer tão calmo quanto ele, Syaoran recostou-se no alto espaldar da cadeira.

— Uma situação difícil, de fato. — observou. — Tem no momento uma esposa e uma noiva. Isso, claro, se a tal mulher for Tomoyo.

— Não tenho dúvidas de que seja. Confio no meu informante. Logo a veremos chegar aqui.

— E como consegue ficar tão tranqüilo? — Syaoran sabia que não se comportaria assim se o caso fosse com ele.

Voltou a pensar nas afirmações de Fuutie; que o irmão não lhe parecia chocado com a novidade. Talvez Eriol tivesse tão chocado que mal conseguia raciocinar direito. Mas talvez soubesse da existência de Tomoyo antes dos acontecimentos desta noite, mesmo tendo dito o contrário. A crueldade de tal idéia era difícil de acreditar, mesmo para Syaoran. De repente, porém, Eriol riu.

— Diferente de você, meu querido irmão, consigo controlar minhas emoções. De que adiantaria entrar em pânico agora? Não... Tudo de que preciso, no momento, é um bom plano.

— Um plano... De que tipo?

Essa era a primeira vez em que conseguiam ter uma sombra de conversa decente em oito anos. Em circunstâncias normais, Eriol já teria iniciado uma briga. Syaoran começava a desconfiar de que o irmão queria algo.

— Preciso de um plano por causa de Sakura, claro. Ela ficará mal falada devido a este escândalo.

Syaoran assentiu. Pela primeira vez, desde que ela saíra da sala, ousava pensar na bela noiva de seu irmão. Sakura não reagira à notícia como a maioria de suas contemporâneas teria feito. Não desmaiara, não chorara, não ficara histérica. Tivera até coragem para rebater as palavras da mãe dele. E agora estaria livre. Não que Syaoran se importasse. A sedução que planejara para ela quando a vira pela primeira vez no terraço não incluía um coração partido.

— Por que está me dizendo isso? — perguntou com certo cuidado. Não queria revelar muito. — Nunca me confiou seus esquemas e planos. Por que agora?

Eriol preferiu ignorar a pergunta.

— Sim, o futuro de Sakura está em risco, mas o meu também está. O dinheiro que a herança dela me traria viria em muito boa hora. Bem como uma certa propriedade...

Agora, toda a atenção de Syaoran dirigia-se para o rosto e as palavras do irmão. Não percebera que sua família estava em dificuldades financeiras. Ele, com certeza, não estava. E tal idéia o fez sorrir de leve.

— Não consegue administrar sua propriedade, é? — indagou, com um erguer malicioso das sobrancelhas.

Um lampejo de raiva brilhou nos olhos de Eriol, fazendo-o preparar-se para o temperamento intempestivo que já conhecia tão bem. O temperamento que Eriol herdara do pai. Mas ele limitou-se a cerrar o punho sobre a escrivaninha e dizer:

— Admito ter feito alguns maus investimentos. Mas nosso pai... — O brilho cruel voltou-lhe aos olhos. — Ou deveria dizer meu pai fez o pior estrago sozinho.

Syaoran vacilou. Eriol sempre sentira um prazer especial em lembrá-lo de sua situação de bastardia. Era Li apenas no nome. Depois de quinze anos, Syaoran imaginava que já devia ter se acostumado a isso, mas ainda não conseguira.

Levantou-se. A conversa não o levaria a lugar algum.

— Bem, pior para você. — observou. — Espero que encontre uma forma de reparar o estrago feito aos seus cofres e à sua vida. Mas acho que cometi um erro ter vindo aqui hoje. Adeus.

Já se voltava para sair quando a voz do irmão o deteve:

— Syaoran, quero que se case com ela.

Seus passos em direção à porta pararam de pronto. Voltou-se, chocado. Eriol não saíra de trás da escrivaninha e seu rosto não demonstrava emoção alguma, mas a tensão aumentava entre ambos.

— Quem? Sakura? — Syaoran ainda não acreditava no que ouvira.

Soltou uma risada diante de um pedido tão tresloucado, embora, bem no fundo, a idéia o fizesse parar para pensar. Afinal, um casamento garantiria a presença da bonita garota em sua cama, pelo menos até que se cansasse dela. Mas não, avaliou. Não valia o sacrifício. Todos os casamentos que conhecia eram totais fracassos que só levavam à infelicidade de ambas as partes envolvidas. Casar-se com uma mulher que se julgava apaixonada por seu irmão era certeza de um desastre futuro.

— E o que, em nome de Deus, o leva a pensar que eu faria algo assim justamente por você? — Syaoran perguntou.

Eriol tornou a sorrir muito de leve.

— Eu seria um grande idiota se não percebesse o jeito como olhou para ela. — Levantou-se, agora rindo mais abertamente. — Mas como sempre gostou das minhas mulheres...

A vontade de dar uns bons murros no irmão sempre assombrara Syaoran. Chegara a dar-se essa satisfação algumas vezes, mas agora tinha idade suficiente para saber que violência física não levaria a lugar nenhum. Nem valeria a pena pelo prazer passageiro. Preferiu negar com um gesto de cabeça e explicar:

— Meu caro irmão, não preciso ouvir esse tipo de coisa. Aproveite bem a sua falência.

Mais uma vez deu as costas a Eriol, na intenção de sair, e mais uma vez a voz do irmão o deteve:

— Poderá ficar com Lansing Square.

Por alguns segundos, ele nem respirou. Sentia o coração batendo na garganta. Segurou a maçaneta com mão firme e escolheu a expressão que usava ao jogar cartas, dura, inescrutável. Devagar, controlando a respiração, voltou-se novamente.

— Como disse?

Eriol continuava impassível.

— Você ouviu bem. Estou lhe oferecendo um acordo. Quer negociar?

Syaoran considerou a idéia, ou fez que considerava, mas sua mente repetia as mesmas duas palavras sem parar: Lansing Square... Lansing Square... Seria sua! O passado revelado a ele sem ter mais de pedir permissão! O lugar responsável por sua existência seria seu! Somente seu! Mas valeria o sacrifício de um casamento? Mesmo que fosse com uma estranha tão bonita?

Voltou à cadeira que ocupara antes e tornou a sentar-se. Recostou-se, com uma expressão que fingia ser entediada.

— Essa mulher que viram pode nem ser Tomoyo. — analisou.

— O homem que a encontrou é o mesmo que descobriu a prova do desagradável caso de sua mãe. Você sabe... O caso que teve você como resultado. — Os olhos de Eriol brilharam. — Não tenho motivos para duvidar da informação.

Syaoran tombou um pouco a cabeça, como se pensasse. Dessa vez, a menção ao seu nascimento passou sem ser rechaçada com uma atitude de raiva, porque via, bem no fundo dos olhos de Eriol, que ele estava desesperado. E precisava da sua ajuda.

Era uma bela coisa de observar, avaliou. E comentou:

— Talvez acredite nesse homem porque já sabia a verdade. Talvez já soubesse que Tomoyo estava viva antes desta noite.

Uma leve palidez tomou o rosto de Eriol. Por um longo momento, pareceu lutar consigo mesmo para encontrar uma explicação ou uma negativa. Por fim, cruzou os braços e disse:

— Não lhe devo explicações. Quer negociar Lansing Square ou não? Saiba que não vou perguntar de novo.

Ele acabava de admitir que tinha, sim, certo conhecimento sobre a existência de Tomoyo antes do que acontecera nesta noite. Isso significava que vinha fazendo um papel sórdido contra Sakura e seus tutores. Uma raiva repentina e muito forte apareceu no peito de Syaoran e, pela primeira vez, sentia-se indignado não pelo mau tratamento que lhe era dispensado, mas porque se dirigia a outras pessoas. Vira a dor nos olhos de Sakura! Porém preferia deixar tais pensamentos de lado. As mentiras de Eriol não eram problema seu. Muito menos a mágoa de Sakura. Nem mesmo a conhecia.

— Quais são os termos?

Havia triunfo nos olhos de Eriol agora.

— Vai se casar com Sakura quanto antes. Ainda esta semana, se conseguirmos convencê-la. Isso ajudará a diminuir o escândalo sobre o nosso nome.

— E sobre ela. — Syaoran acrescentou, taciturno.

Não que acreditasse, por um só momento, que seu irmão, sempre tão egoísta, realmente se importasse com a moça, ainda mais se sabia que Tomoyo estava viva algum tempo. Sakura podia ter sido enganada por Eriol, mas os anos de dura experiência tinham ensinado Syaoran muito bem. Seu irmão pensava apenas em si mesmo. E, quando decidia uma coisa, quando queria algo, passava como um rolo compressor sobre quem quer que fosse sem sentir o menor remorso.

— Sim, sim. — ouviu-o murmurar, como a dispensar o pensamento sobre Sakura por completo.

— E os termos? Sim, porque eu sei que este... Acordo não deve ser assim tão simples quanto você quer fazer parecer. Se fosse apenas o caso de conseguir outro casamento, eu seria a última pessoa na face da Terra a quem você pediria ajuda.

Eriol ergueu as sobrancelhas, como se estivesse impressionado pela forma como seu irmão conseguia enxergar além de sua atitude.

— Há, claro, algumas estipulações. Quero que o dinheiro dela venha para a nossa família. Quero o dote e qualquer outra herança sobre a qual você, como marido, venha a ter controle. Mas, acima de tudo, quero a propriedade que já mencionei.

Syaoran encarou-o, pensativo. Estreitou os olhos ao indagar:

— Quer, então, que eu me case com Sakura e depois a roube?

Não que ele fosse uma figura heróica, analisou; mas havia entrelinhas que nem precisavam ser lidas. E roubar da própria esposa era um ato de tamanha canalhice que o repugnava.

— Porquê?

Eriol moveu-se desconfortavelmente na cadeira.

— O fato é que apostei a propriedade de Sakura num jogo de cartas há algumas semanas; como estava para me tornar seu marido, apalavrei a posse ao cavalheiro para quem perdi. Pode imaginar os problemas que eu teria se tal fato viesse a público.

Syaoran assentiu; sentia-se enojado. As mentiras de seu irmão estavam tão emaranhadas umas nas outras que seria impossível encontrar o fio da meada.

— Idiota. Como pôde usar o que era dela? E como pode esperar que eu venha a fazer o mesmo?

Aquele brilho terrível tornou a aparecer nos olhos de Eriol.

— Ela não iria precisar nem do dinheiro nem da propriedade. Sei muito bem como você construiu sua... Figura neste mundo. Talvez tenha negociado através do nome de meu pai porque ninguém conhecia a verdade, mas seja o que for que tenha feito, deve estar vivendo com bastante conforto.

Syaoran abriu as palmas sobre a mesa.

— Eu jamais negociei usando o nome Li. — disse pausadamente, para que cada palavra fosse muito bem entendida. — E nunca quis fazê-lo.

— Que seja! Mas o fato é que Sakura jamais vai sentir falta do que perdeu, enquanto eu preciso muito desse valor.

De repente, tudo ficou muito claro para Syaoran. Claro e revoltante.

— Por isso ia se casar com ela, não? Apenas pela herança.

Houve um longo silêncio, durante o qual Eriol pensou bem no que responderia.

— Em parte. — disse, por fim. — E, claro, você deve ter notado quanto ela é bonita. Pena, de fato. Eu teria apreciado possuí-la.

Mesmo não tendo ainda aceitado tomar o lugar do irmão como marido de Sakura, a declaração vulgar causou uma onda de raiva protetora em Syaoran.

— E ela sabe sobre o verdadeiro motivo das suas intenções?

Eriol riu.

— Mas é claro que não! Acha que sou estúpido? Graças à colaboração dos tutores, acabei me tornando a imagem viva do que Sakura sempre procurou. E, veja bem, eles deveriam acrescentar um belo valor ao dote se conseguissem casá-la antes dos vinte e um anos. Depois de vê-la dispensar tantos pretendentes, o casal Leed acabou ficando um pouco desesperado para lhe encontrar um marido. E, quando me viu como o príncipe pelo qual estava esperando, Sakura aceitou o que eu ofereci. E, se souber o que lhe convém, meu caro, não vai abrir a boca sobre os meus motivos nesse casamento. Sakura confia em mim e, se quisermos que este plano dê certo, terá de continuar confiando cegamente.

Syaoran sentiu a boca repentinamente amarga. Sabia muito bem o que era ser o objeto das mentiras e do veneno de Eriol. E sentia compaixão por Sakura. Gostaria de dar um belo murro na cara do irmão e depois deixar o escritório, mas sabia que convinha fazer seu jogo.

— Muito bem, o que eu ganho nisso tudo? Porque, como sabe, não tenho o menor interesse em me casar. Jamais. Vou ter de desistir de muitas coisas boas se ficar com sua noiva.

Eriol revirou os olhos como se achasse o irmão um idiota.

— Eu já lhe disse que vai ficar com Lansing Square.

— Esse acordo me parece um tanto... Injusto. Não acha?

Na verdade, não era, pois Eriol não sabia o que Lansing Square escondia. Riu mais uma vez antes de regatear:

— Não seja imbecil, Syaoran. A propriedade não só vale muito, como também você anda atrás de mim para poder entrar nela há anos! Sei que possuir aquelas terras, ser o dono absoluto da casa, faria com que se sentisse... Legítimo. A sociedade pode não saber que é um bastardo, mas você sabe. E isso o consome.

— Graças a você.

— Graças à sua mãe! Mas, independente de quem se deva ou não culpar, não pense que a sua indiferença à minha oferta me atinge. Sei que quer Lansing Square. Resta saber quanto. Porque... Se não aceitar minha proposta, não vai sequer olhar para essa propriedade, muito menos colocar os pés nela.

Syaoran assentiu, vendo, mais uma vez, no rosto do irmão, a expressão de seu pai. Shang também gostava de usar de ameaças.

— Entendo.

— E mais do que isso, meu caro irmão: pretendo vender Lansing Square e tenho todo o direito de fazê-lo, como bem sabe. Já recebi ofertas por ela.

— Eu mesmo já lhe disse que a compraria de você. E pelo dobro do preço.

— Eu sei, mas não vou vender a você. Na verdade, vou vender ao cavalheiro que já me fez uma boa oferta e me disse que pretende pôr tudo abaixo. Vai destruir tudo, inclusive o que há lá dentro; que você tanto quer. — Com um sorriso irônico, Eriol cruzou os braços, recostando-se à cadeira. — Muito bem, o que vai ser, então? Aceita minha proposta e fica com Lansing Square ou perde tudo de vez?

Syaoran olhava para o irmão com ódio contido. Gostaria de poder rir e abandoná-lo ao escândalo e à falência. Mas duas coisas o impediam: a necessidade de aceitar o que lhe era oferecido e, admitindo ou não, o que vira no rosto de Sakura ao fechar a porta do escritório diante dela. Havia tanta dor em seus olhos! Uma dor que ele mesmo sentira muitas vezes. Dor... Da perda. as o grande problema era... Casar-se. Jamais pensara a respeito. Não com seu segredo de bastardia e com o conhecimento prévio de quanto uma união podia tornar-se maligna e distorcida. Sua mãe se envolvera numa união sem amor com um homem a quem desprezava. E, numa noite de bebedeira, acabara admitindo que desejava ver-se livre de tudo aquilo, que um dia sonhara em estar com o verdadeiro pai de Syaoran. Mas esses sonhos estavam aprisionados por uma aliança de casamento. Fora essa a única coisa que ela lhe dissera sobre seu verdadeiro pai; e bastara.

Syaoran jurara jamais cair era tal armadilha. Em Londres, gozava de toda liberdade que poderia sonhar. Suas amantes sabiam que de nada adiantaria tentar reclamar seu coração. E, se alguma tentava, ele acabava com o caso de imediato e nunca mais a procurava. Suas noites eram intensas e absolutamente sem rédea alguma. Não tinha responsabilidade por ninguém. Se seu coração mudasse de interesse, ninguém se feria. Nem ele próprio, nem a mulher que estava, no momento, ocupando sua cama. E a idéia de desistir de tal estilo de vida aborrecia-o. No entanto a idéia de descobrir a verdade que tanto procurava em seu passado era tentadora demais.

Afinal, o que era uma esposa? Sakura não o escolhera, não havia amor a ser perdido entre ambos. Desde que deixasse bem claro que pretendia continuar livre emocionalmente e permitir a ela igual liberdade, assim não se magoaria. Até que se cansasse de Sakura, poderia levá-la para a cama. Mas, tinha que admitir, sentia grande atração por ela. Na verdade, uma atração bem mais fonte do que sentira por outras mulheres. As vantagens em aceitar a proposta do irmão pareciam-lhe bem maiores do que as des vantagens.

Os seus termos de acordo são bastante razoáveis que acabou concordando.

— Sakura aceitará?

Eriol assentiu.

— Falarei com ela ainda esta noite. E, quando eu terminar, acreditará estar se casando para o bem de todos os envolvidos no caso. É fácil lidar com o que ela quer e precisa.

Mais uma vez, Syaoran sentiu nojo das atitudes do irmão. Eriol era um mestre da manipulação. Não duvidava de que ele convenceria Sakura. Mas não era assim que queria começar uma vida com ela. Se seu casamento tivesse de ser construído sobre uma fraude, pelo menos queria que as perdas fossem suas.

— Não. — rebateu. — Sakura, agora, é minha. Não quero que continue manipulando-a. Vou cuidar do caso a meu modo. E só falarei com ela amanhã. Afinal, já teve problemas demais por um só dia.

Eriol deu de ombros e levantou-se.

— Que seja, então. Mas devo avisá-lo de que Sakura pode parecer uma frágil criatura, mas, na realidade, é uma batalhadora. Terá de mantê-la em rédea curta.

— Na verdade, desde que a vi, percebi que não é frágil. — Syaoran chegou à porta e dirigiu um último olhar a Eriol. — E, se é uma batalhadora, deve ser mais do meu tipo e jamais seria do seu. Um par perfeito para mim, meu irmão, não para você.

Saiu, então, encaminhando-se pelo corredor largo. Porém quanto mais distante ficava de Eriol, mais as próprias palavras reverberavam em seus ouvidos. Podia entender uma batalhadora. Mas a idéia de encontrar o par perfeito ainda o assustava.

(...)

Sakura puxou o xale de lã sobre os ombros ao inclinar-se na amurada do terraço para apreciar melhor a paisagem de inverno. Havia neve nas colinas e nas árvores, deixando tudo com um ar tranqüilo e agradável. Teria gostado ainda mais do que via caso sua alma não estivesse tão inquieta. Não conseguia deixar de pensar na notícia trazida na noite anterior. Como a esposa de Eriol podia estar viva? E o que isso significaria em sua vida? Mesmo contrariada, era obrigada a admitir que havia um fundo de verdade no que seus tutores tinham dito. Quando o fato se tornasse público, ela estaria com sérios problemas na sociedade; talvez até malfalada para sempre.

— Está tão frio! — queixou-se Fuutie, fechando a porta do ter raço atrás de si. Abotoou o casaco pesado e se aproximou. — Mesmo com um frio assim, você está sempre aqui fora. Por quê?

Com os olhos ainda na vasta extensão coberta pela neve, Sakura respondeu:

— Ajuda-me a pensar. — E, com um sorriso suave, olhou para Fuutie, agora a seu lado, completando: — Clareia minhas idéias.

A irmã de Eriol tocou-lhe de leve o braço.

— Sei que tem muito em que pensar. E lamento tanto... Queria muito tê-la como cunhada.

— Eu também.

Havia lágrimas nos olhos de Fuutie. E Sakura percebeu que, nos seus, passava-se o mesmo. Era filha única e Fuutie poderia ter sido uma verdadeira irmã. Agora, perderia também isso. Não lhe parecia justo.

— A mulher que se acredita ser Tomoyo deve chagar amanhã. — observou Fuutie, olhando para longe.

— Eriol parece acreditar piamente tratar-se da sua esposa. E, se for de fato verdade, terei de me sentir feliz por ele, mesmo que esse retorno acabe por alterar meu futuro de maneira radical. Eriol a amava tanto!

Fuutie encarou-a, parecendo chocada.

— Bem... Eles... Tinham um relacionamento... Interessante. Mas... Esqueça. Não é com meu irmão que estou preocupada, e sim com você.

Sakura olhou-a, surpreendia-a que, mesmo com a amizade que as unia, Fuutie se preocupasse tanto assim com ela, e não com Eriol. Afinal, era seu irmão...

— O que pretende fazer? — Fuutie indagou.

A pergunta não era fácil de responder. Pensara nisso boa parte da noite.

— Não sei ainda. Pelo visto, estou... Arruinada socialmente. Clow deixou isso muito claro.

— Sabe por que estão dizendo isso, não? Querem protegê-la. Vai ser um escândalo.

— Os Leed concordam com sua mãe. Querem que eu me case com outro quanto antes. Kaho já está preparando uma lista de possíveis pretendentes.

Pensar em se casar com outro era torturante para Sakura. Passara três anos procurando por alguém que se encaixasse no padrão masculino que ela criara. Queria um marido que não precisasse da sua fortuna. E queria também que ele fosse um amigo, não um homem por quem pudesse vir a se apaixonar. Não pretendia ficar cega de paixão e ter esperanças vãs no amor. Já vira o estrago que sentimentos assim fortes podiam causar.

Li Eriol encaixava-se no perfil com perfeição. Desde que o conhecera, ele fizera e dissera tudo que Sakura considerava certo. E ela não vacilou ao aceitar seu pedido de casamento. Mas o futuro agora se perdera. Havia apenas incertezas; exatamente o que mais desejara evitar.

— Casar-se depressa não é tão ruim assim. — Fuutie comentou, de repente, como se estivesse pensando a respeito.

— Oh, não diga isso!

— Sakura, não vai querer acabar como eu, vai? Sozinha! Se não fizer algo agora para diminuir o problema, é o que acontecerá.

— Sempre achei que ficar sem relacionamento algum não fosse tão ruim assim. Não ter que dar satisfações a ninguém, não desapontar outra pessoa...

— Ninguém para abraçar quando quiser ser tocada. — Fuutie completou com amargura. Havia dor em seus olhos.

— Oh, Fuutie...

Sakura ia abraçar a amiga quando as portas duplas do terraço se abriram e, de imediato, uma sensação de plenitude a tomou. Já não havia pensamentos nem emoções dentro de si. Apenas a consciência muito firme da presença de Li Syaoran. A sensação que ele tinha era de que interrompia algo importante, mas, mesmo assim, caminhou para o terraço, deixando o conforto quente da casa. O que estava prestes a fazer era importante talvez, na verdade, estivesse vivendo um dos momentos mais importantes de sua vida.

Sentiu o estômago apertar-se ao pensar nisso. Uma casa valeria tanto? Não. Mas o passado sim. A verdade, sim.

Com um sorriso falso, encaminhou-se para as duas mulheres. Sakura tinha se afastado dois passos ao vê-lo. Mas havia algo em seus olhos, uma espécie de calor na frieza verde de suas pupilas, que retirava todo e qualquer nervosismo de dentro de Syaoran e preenchia-o de desejo.

Com dificuldade, deixou de olhá-la e encarou a irmã. O rosto de Fuutie se iluminou ao abraçá-lo. Syaoran retribuiu o carinho com generosidade. Ao se separar de sua família, a falta da irmã foi o que mais o atormentara. As cartas que ela escrevia sempre tinham sido um grande conforto.

— Estou tão feliz por você estar aqui! — Fuutie murmurou. — Sei quanto é difícil para você.

Sim, ela sabia; vira tudo que se passara em casa. Chegara até mesmo a tentar protegê-lo, prejudicando-se por isso. Syaoran desejava que Fuutie tivesse encontrado a própria felicidade. Mas, por algum motivo, ela não se casara, permanecendo bonita como sempre fora, porém solitária. Voltou-se para Sakura surpreendeu-a olhando-o com admiração. Era como se ela não acreditasse no que via. De repente, corou e baixou o olhar.

— Preciso falar com Sakura a sós. — Syaoran disse à irmã.

Fuutie encontrou-lhe o olhar, sem entender. Mas uma espécie de comunicação muda passou entre ambos, e Syaoran teve a impressão de que ela já sabia do teor da conversa.

— Sim, claro... — Fuutie tentou sorrir, olhando para a amiga. — Venha falar comigo depois, se quiser.

— Claro. Olhe, se não puder ter você como cunhada e irmã, terei prazer em tê-la apenas como amiga.

Fuutie, então, ajeitou a saia e se retirou. Assim que sua irmã desapareceu dentro da casa, Syaoran voltou-se para Sakura, vendo que ela se afastara ainda mais pelo terraço. Ao que parecia, teria de persegui-la se quisesse torná-la sua. E tal idéia não lhe era completamente desagradável. Seguiu-a. Tratava-se de um negócio, nada mais, repetia para si mesmo. Precisaria apenas de tato.

— Sinto se as interrompi. — começou.

Mantinha certa distância, mas sentia o perfume que emanava de Sakura e que o seduzia. Era incrível como seu corpo reagia à presença dela. Estava tenso, quase como se fosse tocado por Sakura. Notou que ela arriscava um olhar para vê-lo.

— Fuutie apenas dizia o que os meus tutores ficaram repetindo sem parar.

Com um sorriso, Syaoran aproximou-se mais. Sakura se contraía, mas agora não se afastou. E chegou a erguer os olhos diretamente para o rosto dele.

— Deve ser difícil para você. — Syaoran murmurou.

Uma vontade imperiosa de tocá-la o perturbava, mas se conteve. Ainda não era o momento. Nada ganharia com isso, exceto o prazer de sentir-lhe a pele, que lhe parecia suave como seda.

— Eu... Gostaria que ontem à noite tivesse me dito quem era.

A voz macia, baixa, foi suficiente para fazer o sangue de Syaoran se aquecer.

— Eu também.

Um pesado silêncio os uniu. Havia emoções brincando no ver de dos olhos dela, embora Syaoran não conseguisse discerni-las. Talvez dor, uma pitada de raiva e algo mais... Calor, paixão, que o acendia, enchendo-o de um desejo absurdo, forte. Mas o vento frio do inverno obrigou-o a pensar na realidade e o fez dar um passo atrás. Pigarreou antes de dizer:

— Parece que está numa situação muito difícil. — Uma inesperada falta de controle o tomou. Tentou escondê-la. Ainda não estava pronto a partilhar tal fraqueza. — Mas acho que posso ajudá-la a resolver.

As emoções todas de Sakura concentraram-se numa só: raiva.

— Imagino por que todos, incluindo um completo estranho, sintam-se impelidos a me dizer quanto estou... Encrencada. — Séria, ela dissera a última palavra sem elegância alguma, de propósito. — Não é minha culpa que Li Tomoyo esteja viva! Não é culpa de ninguém, aliás. Estou até feliz por essa pobre mulher estar de volta. Sua morte foi muito difícil para Eriol.

Syaoran meneou a cabeça; se ao menos ela suspeitasse da verdade, de que seu adorado noivo mentira para ela... Podia imaginar sua reação, se descobrisse o que Eriol esperava desse casamento: engordar seus cofres, apesar de saber que a esposa ainda estava viva. Não haveria mais aquela compaixão pelos sentimentos de Eriol nos olhos de Sakura. Mesmo agora, Syaoran não tinha certeza se era compaixão a mais forte emoção dentro dela. Não podia estar feliz pelo retorno de Tomoyo, que estragaria todos os seus planos para o futuro, que afastaria o homem de quem gostava o suficiente para aceitar seu pedido de casamento. Esse último pensamento provocou um gosto amargo na boca de Syaoran. Mas preferiu deixá-lo de lado e continuar com o que devia fazer.

— Tem razão em dizer que nada disso é sua culpa. — concordou. — Mas aconteceu e há preocupações a considerar. Há outras pessoas envolvidas além de você. Haverá uma... Mancha sobre o nome da minha família se o caso não for resolvido de uma forma mais... Direta.

Sakura tombou um pouco a cabeça para observar:

— Eu tinha uma certa impressão de que você não se importasse tanto assim com a sua família.

Syaoran encarou-a, sério.

— Quem lhe disse isso? Eriol?

— Não. Mas não sou tola. Sei compreender o que vejo. Eu e Eriol namoramos há um ano e estamos noivos há três meses. Você quase não foi mencionado nesse tempo todo. Eu mal sabia da sua existência até nos encontrarmos aqui mesmo, neste terraço.

Ela era esperta, com certeza. Não seria facilmente manipulada como Eriol sugerira. Mas, como ele nunca reconhecia a força nas outras pessoas e via apenas as fraquezas que podia explorar... Syaoran percebia quanto começava a gostar de Sakura e de seu raciocínio, de sua coragem e honestidade. E o fato de ela ser uma das mais bonitas mulheres que já conhecera só vinha melhorar ainda mais a situação. Especialmente assim, com a neve como pano de fundo, com seus cabelos ruivos, os olhos verdes brilhantes, o rosado das faces... Era como uma rainha saída do frio, de seus domínios gelados para encontrar-se com ele ali, naquele terraço.

Estavam tão próximos agora... E havia um brilho novo nos olhos de Sakura, um brilho que parecia querer dizer muito. Syaoran não queria acreditar; não seria possível. Mas era desejo, sim, como o seu próprio, que reconhecia naqueles olhos. E a sensação dele era de que, se a tocasse, Sakura se derreteria. Mas não podia fazê-lo; pelo menos, não por enquanto. Quando a tocasse, seria por causa de um envolvimento maior entre ambos, e não porque simplesmente tivesse perdido o controle.

— Sabe o que vou lhe propor, não? — indagou, em voz bem baixa, fitando-a com seu olhar firme, intenso.

— Não.

— Sabe sim.

Agora, havia uma ponta de desespero surgindo em Sakura.

— Mas nem sabemos se essa mulher que está vindo para cá é quem diz ser!

Tal afirmação, dita quase como um apelo, atingiu o coração de Syaoran. Seu irmão tinha usado Sakura da forma mais vil possível. Usara a vontade dela de começar vida nova com o homem que escolhera; usara a ambição de seus tutores legais! Syaoran tinha de compensar tal comportamento; ainda não sabia como o faria de fato, mas estava decidido.

— Eriol acredita ter provas incontestáveis. — afirmou, sabendo que a feria ainda mais. — A vinda de Tomoyo é mais uma forma lidade do que um teste. Precisamos estar preparados para o fato de que ela está, sim, viva.

Por fim, sem conseguir se dominar por mais tempo, Syaoran ergueu a mão e acariciou de leve o rosto de Sakura. Por segundos, ela permitiu tal proximidade, mas depois se afastou.

— Não. Não deve fazer isso! Sou noiva de seu irmão.

As palavras podiam ser um protesto, mas o olhar, não. Gostava do toque de Syaoran, do calor que seu corpo irradiava. E queria-o, bem no fundo de seu coração, de uma forma que fora ensinada a ignorar, a controlar. E viu-o tornar a aproximar-se, sorrindo.

— Um homem casado não pode estar noivo, minha flor.

— Não me chame assim. — As mãos dela tremiam tanto quanto sua voz.

— Por que não? Eu gosto... E lhe cai bem. — Mais uma vez, ele tocou-lhe o rosto. E, agora, Sakura não se afastou. — Mas prometo que só vou chamá-la assim quando estivermos a sós, está bem? Quando estivermos na cama.

Ela entreabriu os lábios, surpresa.

— Jamais partilharemos uma cama! — rebateu, porém o protesto saiu fraco.

— Não?

Com um movimento suave e seguro, Syaoran inclinou a cabeça e tomou-lhe os lábios. Mesmo sem fugir, Sakura pareceu chocada e não correspondeu de imediato. Mas isso era parte do desafio, ele sabia. Insistiu no beijo, até sentir que ela entreabria os lábios, e passou a explorar-lhe a boca com cuidado, com suavidade. Haveria tempo, mais tarde, para voracidade. Por fim, com um gemido, Sakura segurou-lhe as mangas e tentou retribuir o beijo. E tal reação causou uma emoção tão forte em Syaoran que quase a fez fracassar. O controle que mantivera até então desapareceu. Teve de ser muito forte para afastar-se.

— Você vai ser minha esposa. — sussurrou, junto aos lábios dela.

Os olhos de Sakura, num misto de lágrimas e desejo, fixavam-no.

— Não...

— Vai, sim.

— Não posso.

— Por que não?

— Porque você não... Não é...

A compreensão antecipada do que ela ia dizer atingiu-o como um balde de água gelada.

— Quem? — Soltou-a e passou a mão pelos cabelos. — Eriol?

Sakura ia responder, apesar de confusa, mas as portas do terraço se abriram e o homem que acabara de ser mencionado apareceu, interrompendo-os. Sakura o olhou cheia de culpa. Acabara de beijar o irmão de seu noivo! Pior do que isso: gostara! Adorara! Havia em todo seu corpo uma vontade infernal de continuar o que haviam parado!

Uma sensação ruim tomou Sakura; Syaoran tinha razão: Eriol não era mais seu noivo. E tinha a terrível impressão de que ele sabia da oferta que Syaoran fizera para tomar seu lugar. Poderia até estar por trás desse arranjo, muito embora, com certeza, não estivesse por atrás da paixão daquele beijo... Olhou para os lábios de Syaoran. Como podiam tê-la deixado assim, sentindo-se tão... Má? E aqueles cabelos castanhos, mais compridos do que a decência mandava, aqueles olhos devastadores, e os traços sensuais de todo o rosto? Oh, Li Syaoran era a própria visão do pecado!

(...)

— Então, conversaram... — Eriol insinuou.

— Sim. — Syaoran olhou-a, como a mais pura das criaturas.

— Não podem estar falando a sério. — Sakura protestou, percebendo que, de fato, tudo havia sido arranjado pelos dois.

— Sakura, tenho certeza de que este acordo serviria muito bem a todas as pessoas envolvidas no caso. — Eriol explicou, com seu costumeiro tom complacente.

Decepcionada, ela o olhava. Ali estava seu amigo, o homem em quem aprendera a confiar e que parecia não compreender sua oposição a um novo casamento, apressado, arranjado. E ele devia ter falado com o irmão a respeito, sem consultá-la!

— Então, mandou Syaoran aqui. Quer que eu me case com ele!

— Não. — Eriol tomou-a pelas mãos, mas já não lhe transmitia a segurança de antes. — Eu não gostaria que isso estivesse acontecendo, mas, uma vez que está, quero que você esteja protegida. Quero também cumprir meu dever.

— E como esta... Armação poderia me proteger? — Sakura retirou as mãos, irritada. — Nosso noivado foi anunciado no The Times e já tivemos tantas festas em Londres e aqui que perdi a conta! Seja o que for que você faça, todos saberão que sua mulher voltou dos mortos! Saberão que fui colocada de lado e deixada para seu irmão!

Syaoran sorriu de leve.

— Ninguém está deixando ninguém de lado. E, acredite o fato de eu ser irmão de Eriol é apenas uma das inúmeras facetas da minha personalidade.

Mesmo zangada, Sakura sentiu vontade de rir da observação. Li Syaoran não era apenas absurdamente atraente, mas também um desafio. Não parecia ter decoro algum. Não era o momento de fazer uma brincadeira para aliviar-lhe a tensão, e, ainda assim...

Eriol encarou-o como se também achasse suas palavras impróprias.

— Vamos dar explicações. Podemos agir como se você fosse se casar com Syaoran o tempo todo; diremos que tudo não passou de um grande mal-entendido.

Sakura encarou Eriol, incrédula. Achava-a idiota, por acaso? Achava toda a sociedade londrina idiota também?

Respirando fundo diante da falta de tato do irmão, Syaoran empurrou-o de leve e tomou a palavra, segurando Sakura pelos ombros e lançando, com isso, uma onda de calor por todo seu corpo.

— Todos, obviamente, saberão da verdade. Mas, se você se casar comigo, manterá a proteção do nome Li. Minha proteção. Vamos enfrentar a maré com o apoio da minha família e de pessoas que... — Ele sorriu ao completar: — ... Me devem.

Syaoran a soltou, fazendo-a sentir um frio repentino. E, passando a mão pelos cabelos desalinhados, completou:

— Se tratarmos do caso da melhor maneira, haverá uma ferida, mas nenhuma cicatriz.

Sakura voltou-se para Eriol ainda uma vez, na esperança de que ele mudasse de idéia. Mas havia uma expressão de alívio no rosto dele, pois acreditava ser essa a melhor solução para si próprio. Tudo o que precisava fazer era passá-la ao irmão e safar-se da confusão, estando livre para lidar com o retorno da esposa. Muito conveniente.

Eriol olhou-a, tentou sorrir e disse apenas:

— Vai ser difícil vê-la com meu irmão.

Sakura negou de leve com um gesto de cabeça. Nunca haviam tido o tipo de relacionamento que tornasse difícil a ele vê-la com outro. Tinham trocado beijos suaves, rápidos, em nada parecidos com o beijo que Syaoran lhe dera havia pouco. E esse era, exatamente, o grande problema: uma paixão assim era o que ela menos queria na vida.

— Será o melhor a fazer. — Syaoran afirmou, fazendo-a encará-lo. Havia gentileza em seus olhos, e isso a tocou. — Para todos.

— Não... Não está realmente, me pedindo, está? — Sakura conseguiu murmurar. — Na verdade, nenhum de vocês está.

E, para seu desespero, ambos negaram.

— Muito bem, então por que fingir? Já decidiram por mim, não é? Pois bem! Cuidem de tudo! E eu farei o que acharem melhor.

Com essas palavras magoadas, ela se voltou e entrou na casa, deixando-os. Mas, ao cruzar o umbral da porta, cometeu o erro de virar o rosto para trás. Syaoran a estava olhando com tamanha intensidade que quase a fez colar-se ali mesmo, no chão. Mas Sakura forçou-se a fechar a porta; e depois, mais segura, encostou-se nela. Agora que a decisão estava tomada, uma coisa ficara-lhe bem clara: teria de se esforçar ao máximo para proteger o coração. Syaoran era exatamente o tipo de homem que poderia cegá-la para tudo o mais que não fosse ele próprio; poderia partir-lhe o coração, magoá-la para sempre. E estava disposta a não permitir que isso acontecesse.

...CONTINUA...


Note: Previsão do próximo capítulo: 16/12/14.

Até a próxima loves,