Como prometido, eis aquela fic com capítulos e minha primeira tentativa de fazer uma história séria, eu, que sou a rainha da comédia idiota, mas patética pra levar qualquer coisa realmente a sério. Now, eu sinceramente espero que a história lhes soe interessante, porque a ideia me surgiu em um raro flash criativo que geralmente ocorre durante as férias – ou seja, duas vezes por ano e olhe lá.

Aliás, verdade seja dita, demorei porque estou escrevendo outra fic com capítulos trololo. Mas aí as aulas começaram e sintam a drástica redução da produção.

Avisos: pseudo-incesto, cenas um pouco fortes e possíveis nonsenses que lhes causarão uma sensação de What the fuck.

Hetalia não me pertence.


Havia raios, uma tempestade sem precedentes se formava nos céus, e gritos desesperados rasgavam o ar, como se a angústia de todos os que ele controlava fosse a sua própria. Um deles se desculpou, com a voz sofrida e lágrimas escorrendo de seus olhos e o outro assistiu a preparação muito passivamente, assentindo e aceitando o seu destino. Se era o necessário para que voltassem a estar juntos, que assim fosse. Ele recebeu o golpe em seu peito com um sorriso e uma frase de amor e depois fechou os olhos, ponderando quando voltariam a se encontrar.


Os céticos refutam, mas verdade é que os mortos andam entre nós. Invisíveis aos olhos leigos, caminham ao seu lado pelas calçadas, quando você está ocupado demais com o seu atrado para percebê-los, ou cego demais pelos seus próprios problemas para saber que estão lá. A sua impercitibilidade influencia nas suas ações, para bem ou para o mal. Intocáveis enquanto invisíveis, podem fazer-se materiais para alguns poucos sortudos demais... Ou azarados demais. Veja bem, fantasmas quase sempre são criaturas carentes, constantemente magoadas, jamais satisfeitas e altamente vingativas. Jamais queira poder sentir ou tocar em um, para sua própria integridade física e mental.

De um modo geral, verdade é que os mortos são criaturas complicadas de lidar, superando inclusive os próprios vivos. Ora arrependidos do que fizeram em vida, ora sedentos por vingança, ora nem sabiam que estavam mortos, era uma tarefa hercúlea e fatigante convencê- los a seguir a luz ou a pelo menos viver a morte tranquilamente. E não muito raramente, as almas partiam para a violência contra os humanos, não física obviamente, mas algumas vezes chegavam a matá-los 'indiretamente', embora sua técnica favorita fosse mesmo a tortura psicológica. De qualquer outro caçador de fantasmas, exorcista ou pessoa do ramo, a tarefa decerto exigiria um grande poder de persuasão. Mas para Arthur o processo todo era simples demais.

Aliás, você alguma vez já ouviu falar de caça-fantasmas?

Em primeiro lugar, esqueça a ideia de aprisionar um fantasma. Fantasmas são unicamente encarcerados por seus próprios sentimentos e não podem ser contidos pelos humanos, por mais materiais que queiram ser. O máximo que um caça-fantasmas pode fazer é conversar e persuadir, quando não espantar a criatura por algum tempo. Assim como sua presa, essa categoria vive entre nós, assim como fantasmas e também passam despercebidos. Estão quase sempre na trilha de sua presa, coletando provas e dados a seu respeito, esforçando-se para satisfazer os vivos que lhes apontam o caminho. Em outras palavras, são mais uma categoria de mercenários.

Dizem que o dinheiro traz a felicidade. Mas com ela, também traz o tédio. Veja bem, o ser humano é uma criatura muito difícil de agradar, com todos os seus caprichos e vontades. Criam e desafiam jamais satisfeitos com o que têm, por muito suficiente que as coisas pareçam ser, elas nunca o são por completo. Às vezes, alguns desses humanos recebem dons que a maioria de seus semelhantes não possui, na vã esperança de Deus de fazer com que esses escolhidos possam abrir os olhos dos demais à sua volta. Pobre e tolo iludido. Como não prever que suas queridas e paparicadas criações, munidas de sua ambição e prepotência, jamais poderão compreender a dinâmica do altruísmo? Para Arthur, decerto, o seu trabalho estava indiscutivelmente viculado à possível lucratividade obtida.

O inglês suspirou enfadado enquanto ouvia o casal à sua frente choramingar sobre como a família estava atormentada com todos aqueles fenômenos que desafiavam a razão, que amedrontavam por sua natureza sobrenatural. Seria sempre a mesma coisa, a mesma chatice. Alguém viria aos prantos suplicar por sua ajuda, falando de algum fantasma cruel que perturbava a paz da família ou algo do gênero. E com sorte Arthur se depararia com um espírito violento que talvez lhe trouxesse um pouco mais de desafio que não só a parte mais diplomática da história para que se solucionasse o problema. O grande problema em ser rico e ter um dom é o quão desinteressante a vida se torna depois disso. E sempre havia o risco de os clientes em questão estarem ali mais por causa de uma paranóia causada pela influência de outras pessoas do que por um fantasma de fato. O cenário era bastante trivial.

"Então... Esse fantasma de que vocês me falam tem algum comportamento específico? Como gemidos, correntes, ataques físicos? Existe alguma hora específica na qual ele apareça? Alguma vez vocês já o viram, de fato?" Arthur traçava uma série de riscos sem sentido no papel à sua frente, as íris esmeralda opacas refletiam seu tédio. O casal se entreolhou, a mulher parecendo relutante, como se o que fosse dizer pudesse despertar o seu maior pesadelo.

"B-bom... Ele tem uma peculiaridade... Não tem hora para aparecer, m-mas..."

"Você ao menos chegou a vê-lo?" Arqueou a sobrancelha.

A mulher negou com a cabeça. "Mas eu sei que está lá, Sr. Kirkland! E ele quer que saibamos, ele faz questão que saibamos!"

"Mais alguma coisa?"

Desapontado com a falta de objetividade da esposa, o marido pigarreou, ajeitando a gravata.

"Uma vez a tia de Mary saiu um tanto perturbada do quarto de visitas, alegando ter presenciado uma cena apavorante. Pedimos mais detalhes, mas a coitada estava em choque. Até hoje não fala a respeito e o máximo que conseguimos descobrir foi que envolvia alguma morte. Presumimos que seja obra do fantasma"

"De fato." Respondeu apoiando o queixo nas mãos. "Alguns fantasmas têm o poder de manipular ou projetar algumas cenas para os vivos, especialmente com respeito à própria morte ou à sua vida antes de morrer. Também podem ser bizarros e deformados, conforme a maneira como morreram." Seu tom era neutro e indiferente. O casal engoliu seco em um movimento esquisitamente sincronizado. Arthur suspirou. "Ouçam, Sr. e Sra. Cameron, eu prometo que vou resolver o seu problema hoje mesmo. Mas, mudando um pouco de assunto, presumo que sua fonte já lhes haja informado que exijo o pagamento adiantado."

O homem se ajeitou na cadeira, parecendo um pouco mais seguro.

"Sim, claro. Trouxemos a quantia que ele nos disse que o senhor geralmente cobra e um pouco mais, em caso de necessidade."

Arthur sorriu com falsa graça. "Que clientes adoráveis os senhores são."


Consultou o relógio impacientemente, batendo o pé contra o assoalho e apertou a campainha pela segunda vez. O homem ao seu lado suspirou.

"Arthur, acho que eles já ouviram. Não precisa insistir tanto."

"Se eles tivessem ouvido, com certeza já estaríamos lá dentro, e não plantados feito dois idiotas na porta." Grunhiu o caça-fantasmas sem olhar para o seu colega, que soltou outro suspiro. O inglês apertou na campainha pela terceira vez. "Oh, pelo amor de Deus. Mais um minuto aqui fora e eu vou embora."

"Você sabe, acho que você precisa relaxar. Apaixonar-se e aproveitar as maravilhas que o amor tem a lhe oferecer."

"Sem essa de maravilhas do amor, Francis." Grunhiu o menor. "Tudo o que eu quero é me livrar de vez dessa missão, voltar pra casa e ler alguma coisa. De fato, eu já deveria ter ido embora."

"Engraçado. Você reclama do tédio, mas quando tem serviço reclama também. Quanto mais convivo com você, mais me asseguro de que nosso célebre milionário, mercenário e pseudo-altruísta Arthur Kirkland não passa de um eterno insatisfeito. Em todo o caso, você ainda teria de ressarci-los. Por isso eu não sou favorável a essa de pagamento antecipado."

Arthur sorriu maliciosamente. "Oh, por isso que faço questão de deixar bem claro que não aceito ressarcir ninguém."

"Você não deveria ser tão mesquinho."

"Eu só lamento. Deus vai me castigar por isso?"

"Você só se dá à liberdade porque ele é um pouco permissivo demais com você." Suspirou pela terceira vez. "Mas sabe, realmente eu acho que não tem ninguém em casa. Deveríamos voltar outra hor..."

"Espera."

"... O que foi?"

As mãos de Arthur rumaram de maneira cautelosa na direção da maçaneta, abrindo-a sem esforços. Francis arqueou a sobrancelha, tirando uma mão do bolso e a levando em direção à arma que portava, em sinal alerta. Arthur fez o mesmo e sinalizou com a cabeça para o companheiro, fazendo menção de que pretendia invadir a casa. Francis consentiu com um assentir leve.

O ar no recinto estava pesado, quase como se houvesse alguma gravidade multiplicada por cinco atuando sobre as cabeças loiras dos caçadores. Também estava gelado, enviando calafrios pelos corpos intrusos. O cenário era de puro caos: os sofás estavam em cantos diferentes, revirados. A TV descansava partida em duas em um chão coberto por marcas de sangue fresco. Resquicios também eram vistos nas janelas, teto e escada. O cheiro era fétido, como se alguém estivesse morto ali há bastante tempo.

Francis levou a mão ao nariz e boca. "Definitivamente temos um fantasma por aqui."

"E do tipo bem problemático, por sinal." Arthur repetiu o gesto. Seus olhos percorreram o ambiente à procura de qualquer ameaça inicial. "Em todo o caso, ele estava nos esperando. E que bela recepção nos preparou."

"Acha que é manipulação?"

Arthur fechou os olhos e franziu o cenho, respirando fundo mesmo sabendo da podridão do ar local. Em seguida, ajoelhou-se ao lado do sangue, tirando de um dos bolsos uma luva e colocando-a em suas mãos. Tomou em mãos uma amostra do sangue no chão e depois esfregou-o cuidadosamente entre o polegar e o indicador. "Receio que não. O sangue é real."

Francis permaneceu impassível "Então o negócio é sério. Pode parecer imprudente, mas aconselho de nos separarmos."

Arthur o encarou como se o comentário fosse a coisa mais idiota que ouvira em toda a sua vida. E de fato, era.

"Eu sabia que você era denso, mas não pensei que fosse tão estúpido a esse ponto. Quer dizer que quando finalmente temos uma missão perigosa, você resolve jogar todo o seu conhecimento sobre fantasmas na lixeira? Eu não esperava isso de você."

Francis suspirou, dando um pequeno sorriso. "Eu sabia que você reagiria dessa forma. Eu só pensei que seria mais..."

"Mais o quê? Inteligente? O que você pretendia, enganar o fantasma? Ora, não seja tão estúpido! Ele te mataria em um piscar de olhos e você sabe disso. E depois, ah, depois ele viria atrás de mim e missão COMPLETA. Ele teria as nossas cabeças."

Francis tornou a suspirar e sorriu.

"É, você tem razão. Que estupidez a minha. Então, onde o procuraremos primeiro?"

Arthur bufou e tentou se concentrar. Sua habilidade que poderia ser chamada de paranormal lhe permitia sentir a presença de um morto de longe e, com um pouco de concentração, saber o seu exato local. Era como um radar de fantasmas, sempre pronto para alertar a presença do mais inofensivo deles. Não era um dom dos mais promissores, de fato. Nenhuma pessoa comum se sentiria à vontade com tamanha conexão com o outro mundo. As pessoas tem um pavor tamanho daquilo que desconhecem, que a ideia de sentir um morto em si parece saída de filme de terror.

Mas o que Arthur viu e sentiu não era nada daquilo que o trabalho o habituara. De fato havia alguém ali, um morto. Mas algo bloqueava qualquer outra coisa que o loiro tentasse descobrir, como uma grande parede de concreto separando o detetive de sua preciosa informação. Quase como se aquele fantasma fosse imune à sua pequena invasão. Mas então ele viu algo. Um sorriso sádico, satisfeito e até arrogante. Ele sentiu mãos contra os seus ombros, mãos que pareciam quentes demais para aquele cenário atipicamente gelado. O cheiro de alfazema infestava suas narinas, inebriando-o como uma droga potente. E em seguida ouviu sussurros, sussurros que invocavam seu nome freneticamente, quase como em um tipo de ritual bizarro. "...thur...". Sentia o cenário à sua volta girar sem parar, o ar se tornando cada vez mais gelado, as mãos pressionando ainda mais forte o seu ombro, o cheiro de alfazema praticamente fundindo-se com suas narinas. "Não tão rápido." Alguém sibilou em tom autoritário. Mas ele ignorou a ordem, porque ele não obedecia ninguém, nem mesmo aquela pessoa. Ao contrário, ele sorriu ainda mais satisfeito. Seus lábios estavam tão próximos...

"Arthur!"

Ainda perturbado, o inglês conseguiu reconhecer o tão usual sotaque de seu colega.

"F-Francis..." Arthur escaneou o recinto, encontrando-o tão caótico e fedido quanto antes, sentindo inclusive o impacto da ausência daquele delicioso aroma que antes o inebriara. "Aack. Mas que infernos!" Sibilou, levando uma mão à testa quando sentiu a cabeça latejar. "O que aconteceu?"

Francis arqueou a sobrancelha. "Eu esperava que você me respondesse essa pergunta."

"Eu, é... Como?"

"Você fechou os olhos e logo depois surtou."

"Estava tentando encontrá-lo. No entanto, mesmo eu não consegui vê-lo". Atestou, pensativo. "Estamos lidando com algo muito sério aqui."

"O fantasma em questão é um problema, mas acho que primeiramente devemos encontrar... Você sabe, seus clientes..."

"Merda"

"Eles não podem estar mortos... Podem?"

"Eu sinceramente espero que não... Mas, no mínimo, estão gravemente feridos."

"Você quer dizer... Feridos, como se ele pudesse tocá-los?"

"Não, não da forma que você está pensando. Definitivamente não. Falo de feridas físicas, obviamente, por causa do sangue no chão, mas também de danos psicológicos... De fato, me ocorreu que o fantasma possa ter se apossado de algum deles, o que possibilitaria um ataque físico direto... Deus, isso é tão inesperado. Eu já li sobre esses casos, mas nunca havia me deparado de fato com um. Mas meus conhecimentos não explicam porque eu não posso vê-lo. Eu posso ver todos os fantasmas que eu quero desde que me entendo por gente." E controlá-los também, acrescentou mentalmente. Egoísta por natureza, Arthur guardava para si o pequeno e crucial detalhe, razão de seu sucesso inabalado e ininterrupto, sendo incapaz de compartilhá-lo inclusive com a única pessoa que provavelmente mantinha com ele uma relação que sincretizava amizade duradoura, rivalidade constante e companheirismo profissional durante boa parte de sua vida. Arthur tinha o poder de mandar e desmandar em qualquer que fosse o fantasma, com a capacidade de orderná-los a fazer o que bem lhe apetecesse, anulando a vontade própria da criatura paranormal como quando se esmaga uma miserável formiga contra a parede, anulando quaisquer chances de reação e fuga. Chegava a ser um controle ironicamente sádico a ideia de um vivo controlando os mortos a seu bel-prazer.

Alheio à verdadeira razão do dilema interno do colega, Francis alimentava a indiferença pela inquietação do loiro, mas buscou deixar transparecer uma falsa solidariedade pelo problema enquanto esfregava o cano da própria arma em seu queixo, fazendo de conta que pensava em qualquer coisa que pudesse lhe ajudar. Arthur sempre fora cheio de si demais com relação às suas habilidades e a admissão de uma possível falha era um processo no mínimo complicado, irritante e algo de entediante para quem o conhecia bem.

"Vamos procurá-los." Sinalizou o inglês. "Mas sem nos separarmos. Não sabemos com o que estamos lidando aqui."

Sem necessidade de discrição, mas com toda a cautela que o instinto de sobrevivência lhes provinha, a dupla subiu a escadaria que dava acesso ao piso superior, não deixando passar nenhum detalhe do cenário de caos que se estendia por todos os outros cômodos da casa. O mais curioso eram os porta-retratos que estavam intactos, preservando a qualidade que se presumia ser original antes do que quer que houvesse desolado aquele ambiente daquela forma. Mas notava-se a ausência das figuras do marido e da esposa neles, como se o casal tivesse sido varrido da face da Terra. Consciente de que estava sendo observado, Arthur manteve a compostura com uma frieza profissional. Temia, contudo, um ataque surpresa, no caso da teoria sobre a possessão estar correta e alertou Francis para o fato. Ele concordou com a cabeça, indicando que também já havia pensado na possibilidade.

A porta da suíte do casal estava entreaberta, convidando os intrusos a bisbilhotar a armadilha que se escondia por detrás dela. Era muito óbvio, mas inevitável.

Arthur empurrou a porta, mantendo distância do ambiente interno do recinto e apontando a arma para dentro. Seus olhos captaram o corpo desfalecido sobre a cama. A forma desfigurada da esposa deitava com o braço que lhe restava e as pernas estendidas, sua face ligeiramente inclinada para o lado e algo que Arthur imaginou serem os olhos da mulher, arregalados, expressando terror. Os lençóis estavam manchados de sangue, que ainda pingava das feridas expostas. Estranhamente, havia uma pistola meio velha na mão que lhe restava. Os dedos pareciam que haviam tentado alcançar o gatilho, sem sucesso.

"Acho que não tivemos muita sorte dessa vez... Nem a sua cliente."

"Que bagunça nós temos aqui." Disse Arthur calculando seus passos. Ele suspirou, claramente desapontado. "Sinto como se eu houvesse falhado. É a primeira vez que um cliente perde a vida por causa de um fantasma."

Francis apertou levemente o ombro do colega, em um gesto de consolo. "Talvez possamos salvar o marido dela."

O marido dela.

"O marido dela!" Atestou alarmado. Entendendo o recado, Francis imediatamente reassumiu a posição defensiva, pareando-se com as costas de Arthur. Havia um vulto em um dos cantos do quarto, uma sombra que ambos haviam falhado em notar quando entraram para verificar o corpo sem vida da esposa. O vulto se adiantou para frente, revelando-se. Tratava-se do marido, com ares quase de psicopata, muito transformado desde a vez em que Arthur acertara o serviço com ele, em seu escritório. O homem tinha algumas feridas como arranhões e pequenos hematomas, mas em detrimento da baixa gravidade das lesões corporais, portava em mãos um machado sujo de sangue e com algum resto de vísceras. Suas roupas estavam manchadas com o sangue da esposa, que também havia espirrado em algumas partes de seu rosto. O olhar era ausente, vazio, simplesmente apático, como se não houvesse uma alma ali dentro. A analogia poderia até causar calafrios Arthur, se ele não soubesse que, na verdade, mais de uma alma ocupava aquele corpo. Era tão óbvio. O homem sorriu de maneira quase maníaca, pendendo a cabeça para o lado.

"O que você quer?" Perguntou Arthur com uma autoridade tamanha na voz, mesmo que seu tom fosse neutro. Arthur buscou manter o contato visual com o sujeito, quase não piscando. Ele simplesmente não conseguia controlar a alma que se apossara daquele corpo e isso era extremamente frustrante.

A gargalhada do homem ecoou pela casa.

"Boa noite, senhores caçadores. Que prazer tê-los aqui, estou tão contente por vocês responderem ao meu chamado, mas eu tinha certeza que vocês viriam, de qualquer forma. Um trabalho é um trabalho, afinal."

Francis e Arthur mantiveram o silêncio e o sangue frio.

"Entendam, eu estava muito muito muito entediado. Ninguém aparecia, eles não queriam me obedecer e demoraram para chamar vocês. Eu fiquei muito irritado, mas eu sabia que precisava de paciência – paciência, a virtude divina, o dom dos deuses. Eles dizem que os deuses são criaturas impacientes, mas não é verdade. Eles são muito muito pacientes e aturam tanta blasfêmia. Mas onde é que estávamos? Ah, o que eu quero?" Ele riu como uma criança. "Eu esperava que você pudesse me responder isso, sr. Caçador." Acrescentou, dirigindo-se a Arthur. Seus passos eram cambaleantes – o homem andava como um zumbi, desajeitado, como se sua cabeça pesasse mais do que o que pescoço aguentava. "Controle-me, sr. Caçador, use o seu dom para me dizer o que fazer, para me mandar para longe daqui! Vamos, use o seu talento! Mas você não consegue, não é mesmo? Me pergunto o porquê... " O homem gargalhou novamente, parecendo ainda mais lunático.

Francis sentiu Arthur tensar-se e olhou-o de relance. O inglês sabia que o companheiro se perguntava sobre o que o fantasma se referia, exatamente, mas estava mais pasmo com o fato daquele ser saber sobre o seu precioso segredo. Mas ele não ousou perguntar como aquilo era possível, não, isso seria baixar a guarda. Arthur sabia que aquilo era tão perigoso, e o perigo torna as coisas tão excitantes.

"Olhem para a pobre moça na cama, tão tola, tão inocente, tão teimosa. Vejam que tolice: ela tentou me exorcizar!" Riu como se fosse a piada mais hilária que ouvira em toda a sua vida. À medida em que falava, o homem se aproximava de Arthur, até por fim parar na sua frente.

Arthur tentou recuar e Francis se preparou para atirar no sujeito, mas rapidamente ele interviu. "Na-a-ah. Você não vai querer que o pobre coitado morra por causa de suas mãos, vai, senhor caçador? Isso seria muito triste, muito triste." Francis abaixou a arma imediatamente, amaldiçoando baixinho.

Os olhos castanhos do homem brilharam com a mais pura diversão quando ele se viu cara a cara com Arthur. Ergueu com dificuldade a mão livre, suja de sangue, e a levou à bochecha alva do inglês, que tentou desviar, sem sucesso. O toque áspero daquelas mãos, a sensação do sangue manchando sua pele causou asco no inglês, sensação evidentemente traduzida com sua expressão.

"Não faça essa cara, não agora que eu te encontrei. Você não faz ideia do quanto esperei por esse momento. A espera é um processo tão doloroso, tão cruel. O tempo, meu inimigo, é tão cruel."

Arthur engoliu seco, sentindo um ar frio envolver-lhe, como se o abraçasse. Sentiu as pálpebras pesarem um pouco e o cenário ao seu redor ficar distorcido. O cheiro de alfazema tornou a inebriá-lo e ele viu azul, muito azul. Era como se ele sorrisse com os olhos, sorrisse de satisfação, muita satisfação, dando-lhe as boas vindas outra vez. Saber que era aceito, saber que era querido lhe deixava tão feliz. Era uma sensação que Arhur quase havia esquecido, embora ele sempre tivesse lutado por ela.

Olhe pra mim, disse a voz. A mesma voz de antes.

Não era a voz daquele pobre marido e de ninguém que Arthur conhecesse, mas ela era tão familiar, como uma memória quase perdida, esquecida pela falta de uso, de lembrança. Ele o conhecia, lá no fundo, o conhecia e sabia disso, mas... Quem era mesmo aquela pessoa?

Arthur, você precisa me ver, ela ordenava com candura.

"Não consigo." Respondeu o inglês. "Não consigo. Quem é você? Onde está você?"

Você precisa me ver, Arthur. Ele repetiu e Arthur conseguia sentir a tristeza nela.

"Se ao menos eu soubesse quem você é..."

O barulho de algo indo ao chão acordou violentamente o inglês de seu transe. Todo o cenário original reapareceu diante de seus olhos. O homem há pouco diante de seus olhos estava caído no chão, desacordado. Rapidamente, virou-se para Francis, que o encarava tão surpreso quanto ele próprio. Quase mecanicamente, os dois olharam na direção da cama do casal. A mulher que acreditavam estar morta jazia na mesma posição, mas seu único braço apontava na direção que antes estava o marido, com o dedo no gatilho. Arthur pode jurar que viu uma lágrima solitária descer por sua bochecha. Ela tornou a desabar na cama, dessa vez, inconsciente para a eternidade.

Uma brisa, incomum para o ambiente abafado, sacudiu os fios loiros de Arthur e ele viu a alma daquela mulher encarar-lhe de maneira apática. Ela nada disse. Ajoelhou-se ao lado do corpo do marido, encarando-o com ternura e desapareceu no ar. Claro, como Arthur pudera ser tão idiota? A mulher esteve viva o tempo todo, caso contrário, ele sentiria a falta de uma alma nela. Arthur encarou o corpo desfalecido do marido, o sangue escorrendo pelo buraco que a bala havia perfurado. Ouviu Francis falar com ele, mas não discerniu o que o companheiro disse. Sua cabeça doía e as cenas estranhas daquela tarde desordenavam seus pensamentos.

E aí ele desmaiou.


Reviews são bem vindas.