Primeiras Impressões
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O Gato de Schrödinger
O refeitório era, de um modo geral, o local mais animado da Wammy's House.
Naquela manhã, Roger Chase atravessou o refeitório em direção à mesa dos professores com um ar de aprovação, tanto pela animação do lugar quanto pelo delicioso cheiro de café fresco que vinha da mesa. Misturado a ele, havia chá.
Earl Grey, sem dúvida. Crianças superdotadas não se contentam com qualquer coisa.
Sentou-se no lugar do vice-diretor, como era de praxe, e correu os olhos pela mesa dos professores. De repente, suas sobrancelhas fizeram um movimento arqueado não planejado. Havia uma cadeira vazia.
"Onde está Morgue?"
"Wolpher Morgue?" A professora mais próxima levantou os olhos de seu prato de mingau. "Não apareceu ainda. Você sabe que ele detesta manhãs."
Roger riu. "Difícil não saber. Às vezes eu tenho pena das crianças que tem a primeira aula com ele. Hey—Mello, não pense que eu não estou vendo isso."
O garoto louro, numa mesa próxima, baixou a mão cheia de cereais que estava pronto para jogar no amigo, do outro lado da mesa. Resmungou alguma coisa baixinho, mas de audível disse apenas "Desculpe."
Roger suspirou e fez um gesto qualquer com a mão, descartando-o. Estava ficando velho para aquilo, e garotos problemáticos como Mello sempre o faziam lembrar disso. Detestava crianças. E eles, mesmo com um QI de mais de 150, ainda eram crianças.
"É melhor ir pegar seu chá antes que esfrie," Falou a mesma professora de antes, sorrindo. "Ah, o mingau também está muito bom. Se bem que acho que você é do time dos cereais."
"Com certeza, muito obri—Mello, o que eu disse sobre a guerra de comida?"
Mello se virou lentamente, a colher cheia de manteiga que ele planejava jogar parada em sua mão. "Bom, na verdade, você não disse nenhuma palavra sobre isso especificamente."
"Muito engraçado. Estou morrendo de rir." Roger apoiou o rosto nas mãos. "Já que está tão animado essa manhã, por que não vai acordar Morgue?"
"Morgue? Wolpher Morgue, de matemática aplicada?"
"Professor Morgue." Roger corrigiu. "É. Você sabe onde fica o quarto dele?" Mello ficou quieto e amarrou a cara, o que, obviamente, significava não. Mello nunca admitia que não sabia coisas. "Fica no terceiro andar, junto com o quarto dos outros professores. O nome está na porta."
Mello deu de ombros. "Ok. A comida está horrível hoje, mesmo." E saiu do refeitório, deixando estas últimas palavras de desafiador desdém para trás.
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"Morgue!" Mello bateu na porta, bem forte. Não houve resposta. "Professor Morgue!" Ele chamou de novo, acrescentando o título a contragosto.
Ainda estava tudo silencioso. Mortalmente silencioso. Mesmo encostando o ouvido na porta, Mello não conseguia ouvir som algum, nem mesmo um respirar. "Já são quase oito da manhã!" Por fim, se afastou e bagunçou a franja com as mãos. "Será que ele saiu?"
O que era aquilo embaixo da porta?
Mello se abaixou, intrigado. Era um minúsculo ponto vermelho. Quase completamente embaixo da porta, quase impossível de perceber, quase invisível. Mas estava lá. E era sangue.
"Mas que infernos é—Professor Morgue! Abre isso! O senhor está bem?" Ele praticamente surrou a porta, gritando. Mas, de novo, não houve resposta. Os olhos de Mello vasculharam o corredor rapidamente. Precisava de algo pra arrombar a porta.
Nada. O lugar era completamente liso, a não ser pelos tapetes no chão e os quadros na parede.
Os quadros na parede! Mello virou rapidamente e arrancou a pintura mais próxima, uma frondosa macieira, sem dúvida pintada por um dos alunos. Virou-a. Ali estava, o pedaço de arame que a mantinha presa ao prego na parede. Arrancou-o sem pensar duas vezes.
Sempre dava certo nos filmes.
Dobrando-o ao meio, Mello enfiou o fino pedaço de ferro na fechadura e girou. Nada. Retirou-o, fez pequenas dobras e tentou de novo. Ainda nada. Dobrou a gazua improvisada ao meio de novo, para deixá-la mais rígida, e enfiou com rispidez no buraco da fechadura. Antes que percebesse, sua mente repetia Pai Nossos's repetidamente.
Girou-a. E ouviu um click.
O olhar dele, quando abriu tropegamente a porta, começou pelo pequeno rastro de sangue que vira sob a porta e seguiu-o. Seguiu-o até a sua fonte. Até a cabeça do homem de onde pingava.
Deitado na cama, a cabeça e o braço pendendo displicentemente para fora desta, estava Wolpher Morgue, com um tiro na têmpora.
A cabeça de Mello pensou a mil. Não havia nenhum revólver à vista. A porta estava trancada quando ele chegara, trancada por dentro. Seus olhos correram para a janela: ela estava escancarada. Mas é impossível gritou o lado racional este é o terceiro andar.
Ele deu um pulo para trás, na defensiva. O assassino ainda deve estar aí dentro! lhe ocorreu, de repente, e ele se amaldiçoou por ter deixado o revólver na mesa de cabeceira.
Se a pessoa estava lá dentro, estava com um revólver, sem dúvida. Carregado, provavelmente. Entretanto, se Mello fosse embora, daria a ele a chance perfeita de escapar pela porta aberta.
Embaixo da cama, dentro no armário, no banheiro. Eram os únicos esconderijos possíveis. Aguçou os ouvidos, tentando captar algum som. Um respirar, um tremor, qualquer coisa. Mas só conseguia ouvir o ruído distante que vinha do refeitório.
Estava num impasse. E tomou uma decisão. Talvez ele fosse morrer por isso, talvez não.
Primeiro, jogou-se no chão e viu embaixo da cama, quase esperando ver o cano de uma arma apontado direto na sua cara, mas não havia ninguém. Em seguida, abriu o armário. Vazio, assim como o banheiro.
Não havia mais ninguém vivo naquele quarto além dele.
Tomado, ao mesmo tempo, de medo e alívio, Mello finalmente foi capaz de pensar com calma. Já tinha visto gente morta antes. Sua própria mãe, só pra começar. Mas tinha acontecido um assassinato dentro do orfanato. Pior que isso—havia um assassino dentro do Wammy's House.
Ele estava nessa linha de pensamento quando aconteceu o que poderia acontecer de pior.
Veio aquela voz transparente que ele conhecia tão bem: "O que aconteceu?"
E quando Mello se virou, Near estava parado na porta. Near, parecendo que ia despencar no chão a qualquer momento, como sempre. Near, a expressão em seu rosto neutra, como sempre. Enrolando uma mecha de cabelo, como sempre. Estupidamente irritante, como sempre.
"O que parece que aconteceu?" Mello rosnou, entredentes. "Vá chamar Roger!"
"Você matou o professor Morgue, Mello?"
"Ah, claro que matei, Near. E fiquei aqui parado, esperando você chegar, porque eu acho o máximo ir pra cadeia." Mello deu dois passos até a porta e segurou Near pela gola da camisa branca, mas o outro não teve reação alguma. "Faça mais uma pergunta imbecil dessas e você vai encontrar o Morgue rapidinho. Agora vá chamar o Roger!"
Near mal o ouvia. Encarou fixamente Wolpher Morgue com seus olhos glaciais. Ele gostava de Morgue. Morgue era gentil, jamais gritava. Havia sempre um quê de tristeza, uma coisa qualquer de melancolia por trás de seus olhos. E vinha fazendo uma pesquisa sobre números primos, nos últimos anos, que era bastante promissora.
"Quem arrombou a porta?" Near perguntou quando afinal houve silêncio.
"Eu arrombei." Rosnou Mello. Não era conhecido por sua amabilidade, mas era inegável que estava anormalmente irritado, até mesmo para os padrões Mello. Empurrou Near de lado. "Eu mesmo chamo Roger, então, já que você nem consegue andar direito. Não mexe em nada. E não deixa ninguém entrar."
Quando os passos altos de Mello desapareceram nas escadas, Near notou, pela primeira vez, que seus pézinhos estavam ensopados de sangue.
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"Me deixa cuidar desse caso."
"Não, Mello."
"Por favor!"
A cabeça de Roger rodava. Wolpher Morgue estirado na cama, o sangue, a polícia. Não gostava de Morgue, nunca gostara. E não era agora, pelo simples fato de que ele estava morto, que ia gostar. Mas sabia no que isso implicava. Se havia um assassinato, havia um assassino.
"Ninguém que aqueles idiotas da polícia podem mandar vai ser mais inteligente que eu!" Mello bateu as mãos na mesa de Roger.
"Não vai ser um detetive da polícia." Roger massageou as têmporas. Detestava, odiava crianças. "Você mal fez quinze anos."
"Nenhum detetive vai ser mais inteligente que eu!" Continuou Mello, irritado "A menos que seja ex-aluno do orfa—ah." Seus olhos se arregalaram em entendimento. "Ah."
"Que bom, você entendeu." Roger pegou o telefone e começou a discar. "Agora, saia."
E Mello não era uma pessoa obediente, mas saiu. Embora não sem bater a porta atrás de si.
"Ele não te deu o caso, deu?"
Mello não se virou para ver quem falara. Mesmo que não conhecesse de cor o timbre daquela voz, a musiquinha eletrônica irritante—Tetris, algum lugar no fundo da mente de Mello identificou vagamente—seria o bastante para denunciar o dono dela.
"Não, Matt, não deu. Vai chamar o L."
"Os outros alunos estão ficando meio alvoroçados, ninguém disse a eles o que aconteceu direito." Prosseguiu Matt. "Só viram o corpo sendo retirando. Já estão dizendo todo o tipo de coisas: overdose de pílulas pra dormir, drogas..."
"Ótimo. Se L tiver que interrogar alguém, quanto menos as pessoas sabem, melhor." Ele tamborilou os dedos na parede, impaciente. "Quanto tempo pode levar pra aqueles idiotas da polícia fazerem uma autópsia?"
"Algumas horas, se formos otimistas."
"Deviam ter levado um dos malucos por biologia daqui. Aposto que eles diriam em que minuto o Morgue morreu."
"Pra que todo esse mau humor?" Matt se levantou e deu um tapa amistoso no ombro do amigo. Não apenas sua boca, mas seus olhos sorriam por trás das lentes amareladas dos óculos. "Anime-se. L está vindo."
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Near acordou muito cedo naquele dia.
Tão cedo que mal amanhecia quando ele fechou a porta de seu quarto. Fechou-a atrás de si, muito suavemente, como de costume, e andou até os portões da Wammy's House. Roger estava lá, e franziu o celho quando o viu chegar.
"Near? O que faz aqui, à essa hora?"
"L está chegando, não está?"
O vice-diretor arregalou os olhos. "Diabos, quem te contou isso?"
Ele deu de ombros. "Ninguém. Mas era meio óbvio. É claro que o caso tem de ser resolvido o mais depressa possível, e L precisava chegar em um horário que não causasse alvoroço entre os alunos, mas que tivesse luz o bastante para analisar a cena do crime."
Roger ficou quieto. Esperava, do fundo do coração, que Near fosse o único a ter deduzido isso, ou em breve todas as crianças da Wammy's House estariam de pé, atropelando-se pelos corredores, na esperança de ver o detetive que pretendiam de suceder.
"Ele deve chegar em breve."
Mal Roger o disse, viu-se, através das barras de ferro, uma limusine preta estacionar do lado de fora da Wammy's House. Uma limusine perfeita, brilhante, de longe grande demais para um único passageiro. É claro que pertencia a L.
A primeira coisa que Roger fez foi desativar o alarme, digitando a seqüência de seis números. Em seguida, puxou as chaves do bolso e abriu os portões, ao mesmo tempo em que L saía do carro com seus movimentos vagarosos.
Near prendeu a respiração, mas ele respirava tão baixo normalmente que não foi possível perceber. Vira L muito poucas vezes na vida. Todas tinham sido inesquecíveis.
L entrou e mexeu os dedos dos pés descalços, sentindo o chão. Tirou uma das mãos dos bolsos para cumprimentar Roger, que lhe estendeu a própria mão. "Olá, Roger." Ele disse, apenas.
"L—"
"Me chame de Ryuuzaki enquanto estivermos cara a cara, por favor."
"Ryuuzaki," Roger se corrigiu com um aceno. "estou muito feliz por você ter vindo. Não sei o que fazer, eu—"
L não fez nenhum sinal de ter ouvido uma palavra sequer. "Olá, Near." Ele disse, voltando os olhos para o garoto curvado e descalço, como ele. "Parece que você pegou todos os meus hábitos ruins."
Near o cumprimentou com um respeitoso aceno de cabeça, mas nada disse. Roger, irritado, acrescentou: "Eu não avisei ninguém da sua vinda, Ryuuzaki. Near deduziu que você estava chegando sozinho."
"E eu não esperava menos dele." L assentiu. "Agora, vamos. Quero ver Morgue o mais depressa possível."
E eles foram, no passo lento que era peculiar tanto a L quanto a Near. Roger achou que enlouqueceria. Mas, afinal, chegaram ao terceiro andar e viraram no corredor cercado de fitas amarelas que diziam cuidado e não entre.
"Acho que essa é a minha parte favorita desse trabalho." Comentou L, levantando uma das faixas com as pontas dos dedos e passando por baixo. "Cruzar todos os obstáculos em que está escrito não entre e somente pessoal autorizado."
Lá estava, a cena do crime, quase intocada. O corpo não estava lá, mas o formato em que fora encontrado fora desenhado no colchão e no chão. L mordeu a ponta do polegar.
Foi aí que começaram a ouvir passos altos e apressados, ficando cada vez mais altos e cada vez mais apressados, e uma respiração ofegante. Quando se viraram, ainda houve tempo de ver Mello passando pelas faixas amarelas sem nem ao menos lê-las. Near não deixou de notar, quase com um sorriso, o quão simbólico aquele gesto era.
Quando ele afinal chegou perto o bastante, apoiou as mãos sobre os joelhos para recobrar o ar.
"Está atrasado, Mello."
É claro que Near disse isso com o único propósito de provocar. E é claro que não ficou decepcionado. O olhar de Mello seria capaz de assustar aos deuses e aos demônios. A mão dele tremia, como se fizesse enorme esforço para não sacar a arma e descarregá-la na cabeça de Near.
Near não apenas estava lá para recepcionar L, e ele não. Near estava jogando isso na cara dele.
"É—tive—problemas com o relógio." Justificou-se, enquanto tentava sugar ar. Depois, respirando fundo e se recompondo, acrescentou. "Olá, L."
"Ryuuzaki, por favor." Corrigiu o detetive, ainda mordiscando seu polegar. "Estava achando estranho que você não tivesse chegado."
Roger tossiu com desaprovação. Pretendia que as coisas funcionassem de um jeito muito simples: L chega; L resolve o caso; L vai embora. Sem Mello e Near atrasando tudo. "Podemos começar?" Perguntou.
"Ah, eu já comecei." Respondeu L, tranqüilamente. Ninguém soube de onde, porque obviamente não estava lá antes, mas um papel impecavelmente branco entitulado Autópsia apareceu nas mãos de L. "Podem me esperar no corredor? Tanta gente observando me deixa desconfortável."
E eles esperaram. Roger olhava de dez em dez segundos no relógio, enquanto Near brincava com os bonequinhos de lego que trouxera no bolso. De tempos em tempos, o impaciente Mello roubava um olhar para dentro do quarto, e eis o que ele viu a cada relance.
A) L sentado na cadeira da escrivaninha, olhando do papel em suas mãos para a cama. B) L pegando alguma coisa minúscula no chão com a ponta dos dedos. C) L agachado ao lado da cama. D) L remexendo os documentos em cima da mesa.
E no momento seguinte, ele estava saindo do quarto e dizendo "Terminei".
Roger arregalou um pouco os olhos e conferiu o relógio. Quanto tinha se passado? Vinte minutos, no máximo? "Mas já?"
"Sim," L admitiu sem modéstia. "Na verdade, chega a ser um pouco óbvio. E não se preocupe, o assassino não oferece perigo algum." Ele até mesmo sorriu nesse ponto, tranqüilizador.
"Oferecendo perigo ou não, Ryuuzaki, eu preciso saber quem é essa pessoa."
O que havia de mais encantador em L era como ele podia manter aquele revirar de olhos tipicamente infantil, aquele quase sorriso, aquela postura de causar exasperação nas mães, mesmo sendo tão brilhante. A expressão em seu rosto, se bem lida—e tanto Mello quanto Near sabiam lê-la o bastante—poderia dizer Mas isso não seria divertido.
Então, seus olhos duros como britas pousaram sobre a dupla improvável.
A mente de Near previu o que estava para acontecer.
"Dê o caso a eles, Roger."
A mente de Mello gritou o quê?
"E aquele que resolver primeiro..."
A mente de Near disse Eu e ele se assustou, pois não pensava coisas assim com freqüência.
"... Estará um passo mais próximo de seu me sucessor."
A mente de Mello riu. Não perde por esperar, moleque albino.
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A/N: Aaaand... we're off!
Esta nobre história começou a ser escrita já há... algum tempo. Este vitamina pessoa que sou eu estava esperando te-la escrita inteira antes de postar, mas ó vida! acalmai, meu castigado coração!, obviamente não foi possível. Ao menos--júbilo!--o segundo capítulo deste pedacinho de internet está completo.
Fãs do L, este pequeno e esquizofrênico ser, não sei como hão de receber a notícia, mas esta será a última aparição dele em carne e osso, se não me engano. E eu raramente me engano.
Tão doce e adovável narrativa contou com a betagem da não menos doce e adorável Chibi Anne. Palmas para ela, ó jovens mortais!
É sempre um prazer receber elogios--digo, saber o que os leitores pensam. (Como se pudessem pensar mais alguma coisa desta nobre pessoa que sou eu!)
Narcisismos à parte, espero que tenham gostado.
Kisskiss!
