Short-Fic que surgiu durante uma releitura do fim dO Silmarillion. Eu mais a considero como um devaneio advindo das minhas reflexões existenciais sobre a obra de Tolkien. Trata da tentativa de transcrição dos pensamentos de Maglor ao fim da longa jornada dos filhos de Fëanor. De qualquer forma, espero que você goste. E se gostar - ou não - deixe uma Review :D


O GRANDE CANTOR

A chuva caía. Os estrondos eram fortes, mais fortes que as batidas de seu coração, como se toda a ira dos Valar estivesse sendo depositada sobre a terra. As gotas eram pesadas, encharcavam seus cabelos e suas vestes, encharcavam todo o seu corpo. As gotas o encharcavam por completo, hröa e fëa, como lágrimas nervosas, como o pranto desesperado que se formava em seu peito e fazia doer sua garganta. Aquela não era, em absoluto, a imagem que se esperava de um príncipe.

Um grito forte, que ninguém ouviu, ecoou pela praia e foi abafado pelo barulho do mar e dos trovões. Thingol. Melian. Os sobreviventes de Gondolin, os remanescentes de Doriath! És cruel, tu e tua hoste. Chega, assassino de tua gente! Tantas vezes quis abandonar o juramento, mas seu coração pulsava apenas pela força do ódio, pela perseverança imunda de sua busca. Não havia a quem culpar, exceto a si mesmo.

-És um príncipe dos Noldor, homem! A fraqueza não faz parte de ti, e a covardia muito menos!

Era um príncipe dos Noldor, o segundo dos sete filhos do Rei Exilado. Acorrentado. Acorrentado em suas próprias correntes. A loucura, marcada a ferro em seu peito e em seu espírito, a morte, o sangue em sua espada, em suas mãos... Chega! Príncipe dos Noldor. Príncipe dos exilados, príncipe da morte e da dor, príncipe da destruição.

Suas mãos estavam pesadas, pendiam ao lado do corpo, não conseguia erguê-las. O arrependimento, ah, o arrependimento! E por quem poderia chamar? Por Elbereth? Elbereth não era a senhora dos assassinos. Pelo próprio Manwë? Chamaria por todos eles. Quem sabe conseguiria alguma piedade? Não. A piedade era incerta. Ora, não merecia piedade alguma! A permanência da dor era a única certeza. Uma de suas mãos queimava. Brilhava insuportavelmente, como fogo, era um fogo vivo que consumia seu espírito, sua carne. A dor era intensa. A mais intensa que já havia sentido. Joga ao mar a tua maldição! Joga ao mar a pedra maldita! Não. Maldito era ele.

Maldito és tu... Joga ao mar a tua desgraça, para que desapareça nas profundezas de Arda! E jogou. Finalmente, conseguiu erguer os braços e olhar para as mãos. Chorou um choro sincero, cobriu o rosto com a carne viva de sua mão e caiu de joelhos. Melhor faria em se lançar ao mar. Maedhros. Maedhros tinha sorte. Naqueles sem corpo, talvez, a dor fosse menos intensa. Mas quem disse que és digno de uma dor menor? Levanta e caminha, caminha com teus pés cansados até que eles estejam destruídos, mortos, como estão as tuas mãos! E se levantou.

A areia branca e molhada sob seus pés. Em Aman talvez pudesse sentir seu toque áspero e suave. Não se lembrava. Não conseguia buscar na memória sequer a imagem de sua mãe, de seu belo rosto, de sua decepção ao ver os filhos seguirem a insanidade do marido. Em sua memória, apenas sangue, dor, guerra, fogo, abismo, seus irmãos mortos, seu pai morto... Sua alma morta.

Maglor observou o Mar. Era a mais sublime personificação de Ulmo, em toda a sua força. E então olhou para si mesmo, espectro do que havia sido. A busca estava acabada. Seu alívio? Nenhum. Seu remorso? Infinito. O Humano. O desumano. O inumano. E cantou, pois era só o que sobrava de si: sua canção. E sua voz soou alta, o mar se acalmou e a chuva cessou, e o terrível barulho dos trovões desapareceu... Na terra, talvez. Dentro de si, jamais.