Capítulo Um – Como as coisas se tornaram o que elas são (ou como os eventos da minha vida culminaram numa história que vale a pena ser contada)

Quando completei seis anos, meus pais decidiram por uma mudança de cenário. Viemos da efervescente e histórica Londres para um vilarejo com menos de dez mil habitantes chamado Hogsmead. A escolha da cidade teve muita relação com a melhor escola do país, Hogwarts, e com uma oportunidade de trabalho para papai. Apesar de a minha irmã mais velha, Petúnia, não ter conseguido uma vaga no 1º ano na escola, com a enorme concorrência que havia, ainda tínhamos esperança de que eu entrasse. Enquanto o tempo não chegava, eu continuei estudando com ela em uma escolinha por perto.

A cidade estava sem nenhum redator para o jornal local. Meu pai assumiu as rédeas e rebatizou "O Pasquim" de "Profeta Diário". O jornal se tornou extremamente comum na vida de todos os habitantes da cidade em um curto período de tempo, o que foi um contraponto interessante à forma como nós mesmos nos enquadramos na cidade: passamos muito tempo nos sentindo um pouco isolados do resto da população local.

De início, eu amei nossa nova casa, de tijolinhos vermelhos e jardim florido, e meu quarto, muito maior do que o antigo, com espaço suficiente para minhas bonecas, meus livros e até a penteadeira que minha avó tinha me deixado de herança. A madeira clara dos meus móveis antigos combinava perfeitamente com minhas paredes azul-claro. Decidi que gostava do quarto e das ruazinhas largas de Hogsmead, bem como da alegria dos meus pais em se verem longe do turbilhão que era Londres. Vivi bons primeiros dias no vilarejo, até que algumas coisas aconteceram.

Eu não imaginei que fosse sofrer ostracismo por parte das outras crianças. Em Londres, a minha aparência, que assemelhava demais a da minha avó, tinha sido motivo de comentário em alguns momentos (basicamente, todas as piadinhas com as quais ruivos têm de conviver durante toda a vida), mas nunca da forma como aconteceu em Hogsmead. A primeira vez que eu desci para um dos parquinhos para brincar com as crianças, ansiosa para ter novos amigos, percebi todos me olhando de forma assustada. Antes que eu pudesse me apresentar, um deles, já não me lembro quem hoje, gritou "BRUXA!", e todos correram.

Esse foi o padrão das minhas interações nas primeiras semanas. Já no segundo dia eu entendi que a ofensa era dirigida a mim, o que não tinha ficado claro à princípio, e contei aos meus pais. Eles ficaram surpresos e foram conversar com as outras crianças para tentar entender a situação – havia uma explicação mística para o preconceito, como em cidades pequenas parece sempre acontecer, e eles genuinamente acreditavam que eu era uma bruxa que não possuía alma, como ouviram seus pais dizerem sobre uma outra ruiva que morara na cidade até pouco tempo. Meus pais conseguiram desmanchar essa ideia de mim, apresentando-me aos poucos aos demais, mas a antipatia que os outros sentiam por mim parecia ser irremovível. Apesar da mágoa e da confusão, eu consegui lidar com o medo que eles sentiam. A zombaria, a discriminação e a maldade foram uma história diferente.

Eu sempre tinha sido uma criança falante, sem problemas para expressar o que estava na minha mente e o que me incomodava. Ver outras pessoas em debandada assim que eu chegava mudou aquele lado em mim – comecei a sentir uma insegurança que não conhecia antes, uma tendência a me retrair em mim mesma que eu não tinha demonstrado até então. Simultaneamente, enquanto eu passava por tudo isso, Túnia, presenteada com cabelos loiros e olhos azuis como uma piscina, fez amizades com as crianças mais velhas. A rapidez com a qual ela se desvinculou de mim quando descobriu como eu poderia vir a ser um problema para seus relacionamentos me deixou ainda mais triste, ainda mais excluída.

Não é um mistério entender a rejeição que eu desenvolvi pela minha própria aparência depois de todos esses eventos. Não que eu me achasse feia ou diferente – mas se as outras pessoas achavam, eu precisava me adaptar. Passei a usar meu cabelo preso num coque e escondê-lo com toda sorte de acessórios sempre que possível. As sardas no meu rosto, assim que eu aprendi a usar maquiagem, foram escondidas embaixo de um bocado de pó, e meus cílios claros encontraram solução no rímel emprestado de Petúnia. Ainda assim, sem conseguir fazer amizades, minha postura mudou para uma mais retraída, fechada, apesar dos esforços dos meus pais para reforçar minha confiança.

A única amiga que eu fiz nessa época foi Mary MacDonald, uma menina da minha classe que também era de fora da cidade e a única amiga que eu tive dos seis aos dez anos. Mary também sofria discriminação, mas de uma forma muito mais terrível: ela me contou que ninguém tivera sido seu amigo porque ela tinha a pele negra. Mas Mary, desde pequena, estivera integrada em uma família que valorizava a autoestima e a beleza dela, de maneira que jamais tentara se esconder. Eu, ao contrário, que nunca tinha sofrido nada das proporções do que encontrara em Hogsmead, fui cegada pelo baque.

Mary foi minha força. Infelizmente para mim, seus pais, que tinham começado uma luta em Hogsmead contra o racismo, partiram logo que fiz dez anos. Nós duas tínhamos vivido grudadas e sido o porto-seguro uma da outra; perdê-la foi terrível. Quando estava com ela, as provocações não pareciam tão terríveis e interagir com outras crianças não parecia tão descuidado. Essencialmente, tínhamos sido nós duas contra o mundo. Nossos outros colegas de classe mantiveram a distância, e nós decidimos seguir a deixa, escolhendo a preservação. Apesar disso, tínhamos mantido uma relação cordial com a maioria, com a exceção de algumas crianças terríveis que nos atormentavam e de uma outra que, apesar de nunca nos perseguir ou ridicularizar, calava-se sempre que chegávamos perto.

O nome dele, eu descobri de imediato assim que me interessei (o que demorou apenas algumas semanas depois da mudança), era James Potter. Eu demorei algum tempo muito balançada pelo tratamento que recebera para dar atenção ao fato de que a janela do quarto ao lado, quando suas cortinas estavam abertas, permitia que eu enxergasse um quarto azul-escuro onde aquele menino, do cabelo explosivo e da energia borbulhante, passava as noites e os dias de chuva. Ele tinha muitos amigos. Eu fechava minhas cortinas quase que completamente, mas deixava um espacinho por onde observá-los, rindo, jogando vídeo-games e assistindo a filmes até as primeiras horas da manhã.

Nos anos que seguiram, mesmo depois de conhecer Mary, a solidão era tão grande que às vezes eu passava noites inteira me dividindo entre observá-lo, quando ele esquecia a cortina aberta, e ler meus livros de história. Eu usava uma luz fraca do abajur para desempenhar ambas atividades (mais para a segunda do que para a primeira). Ter minutos para saber mais sobre sua rotina se tornou um hábito que eu não consegui abandonar por bastante tempo.

À medida que o tempo passava, eu me tornei cada vez mais consciente das minhas diferenças, o que me fez buscar evitar o julgamento de todos. Nunca tentei aproximação alguma com meu vizinho por sua impressão de mim ser tão incerta. Além disso, ele parecia evitar ficar sozinho comigo e nunca se dirigia diretamente a mim na escola, apesar de algumas vezes eu pegá-lo olhando. Em casa, eu evitava seus olhos, e só me permitia observar quando estava certa de que não haveria um flagra. Quando Mary partiu, talvez em meio à solidão sufocante que senti, eu podia jurar tê-lo visto se aproximando do meu canto isolado de almoço nos jardins uma ou duas vezes, como se quisesse dizer alguma coisa. Ele nunca fazia o trajeto completo, e eu nunca tive a confirmação se era realmente comigo que ele queria falar.

Também durante esse tempo, outros eventos eclodiram. Mary impunha um respeito que eu não sabia como manifestar para os outros. Com sua saída, eu me tornei uma presa fácil, e uma das meninas da nossa série resolveu testar minha vulnerabilidade menos de uma semana depois da partida de Mary. Ela derrubou todo o lanche em cima da minha cabeça no refeitório, sugerindo que o molho de tomate do macarrão combinava com meu cabelo. Eu ainda lembro da estridência da sua voz e do molho descendo pela minha nuca. Ninguém disse uma palavra – não havia professores por perto e eu não tinha mais nenhum amigo.

Eu tive de fincar as unhas nas palmas da minha mão com muita força para me impedir de chorar.

Eu lembro que corri para o banheiro e tentei limpar a blusa, com uma vontade que denunciava minha frustração. Para minha completa surpresa, a porta se abriu logo depois e uma das meninas da outra classe me ofereceu uma roupa para que eu me trocasse (ela tinha uma reserva porque fazia parte da equipe de futebol feminino). Depois de me ajudar, ela perguntou se eu não queria sentar com ela e as amigas. Chocada pelo convite, eu aceitei.

Naquele dia, Marlene McKinnon, quem primeiro me ajudou, apresentou-me a Emmeline Vance e Dorcas Meadowes. Depois de alguns meses de amizade, que acabou por se firmar como a melhor defesa contra minha impopularidade, elas pediram desculpas pela demora em nos aproximarmos e prometeram que fariam de tudo para tornar as coisas melhores para mim.

Em setembro, quando todas fizemos onze anos, fomos aceitas em Hogwarts. Para nossa surpresa, depois de uma entrevista com o diretor da escola, fomos direcionadas para a mesma casa, Grifinória. Junto conosco, James, alguns de seus amigos, Catherine (a menina do macarrão) e muitos outros alunos de fora de Hogsmead também ingressaram na escola, que era referência em toda a Inglaterra. Meus pais ficaram orgulhosíssimos, mas o abismo entre Túnia e eu pareceu aumentar com a minha aprovação, visto que ela não tinha conseguido a mesma coisa alguns anos antes.

Minha vida se tornou bastante regular a partir daí, enquanto os anos passavam. Com o tempo, a decoração do meu quarto recebeu novas estantes para meus livros, minhas cortinas passaram a ser cuidadosamente fechadas o dia inteiro, visto que eu não ia dividir minha rotina com um menino, e a puberdade foi deixada para trás, enquanto me estabelecia – ainda que meio desconfortável – na adolescência.

Durante essa época, apesar de ainda sofrer com algumas brincadeiras de mal-gosto, as coisas se tornaram mais típicas. Eu saí com um garoto pela primeira vez (e me decepcionei pela primeira vez); experimentei licor na cozinha dos McKinnon com minhas amigas, e todas detestamos a bebida; dormi além da conta e perdi o horário da escola algumas vezes. Ainda assim, eu não me sentia completamente confortável comigo mesma, e tendia a me esconder debaixo de chapéus, maquiagem e qualquer coisa que escondesse que, à primeira vista, eu podia muito bem parecer uma bruxa para algumas pessoas.

Foi na adolescência, quando eu estava prestes a completar dezoito anos e ingressara em meu penúltimo ano em Hogwarts, que tudo mudou.

Essa é minha história: a história de como eu deixei todos os adjetivos que eu não tinha escolhido sobre mim e aprendi a ser a Lily.


"Filha!", a voz de minha mãe me acordou, sua mão balançando meu ombro levemente. "Lily, levante!"

Remexi meus pés antes de encarar seus olhos azuis por entre minhas pálpebras semicerradas, assegurando com um grunhido que não demoraria. Ela saiu do quarto, apressada, enquanto eu me erguia sonolenta. Franzi a testa para a incomum luz matinal no meu quarto e levei um susto ao perceber o equívoco que tinha cometido no dia anterior, quando fui atraída pela Lua Cheia do lado de fora: tinha dormido, depois de anos de timidez, com a cortina aberta. Pior – a cortina do meu vizinho estava aberta, também, e ele podia ter me visto dormir.

Agradeci internamente por por sua ausência pontual, os olhos horrorizados ainda presos na janela. Ao me dar conta da hora, quando meu despertador apitou, corri para o banheiro para me aprontar para a aula.


"Você vai me atrasar,", minha irmã me saudou quando cheguei à cozinha.

Eu vestia o uniforme comum de Hogwarts: camisa branca e gravata, além da saia listrada até o joelho (apesar de algumas garotas diminuírem bastante o comprimento), mais minhas adições pessoais – um chapéu e uma presilha para meu cabelo. Petúnia estudava em uma faculdade vizinha, do outro lado da cidade, o que talvez justificasse a impaciência.

"Desculpa...", falei, pegando um pão da cesta. "Acordei quando mamãe subiu."

"Filha, tem de demorar menos...", minha mãe apareceu, colocando o relógio no pulso, já vestida para ir ao trabalho na sua floricultura. "Não vamos poder esperar por você."

Eu acenei. Não me importava de ir para a escola na minha bicicleta.

"Tudo bem", eu disse, ocupando-me em me alimentar. "Vejo vocês depois!"

"Tchau! Esse chapéu é horroroso, por que ela insiste em usar isso?" Petúnia se despediu, já emendando uma conversa com minha mãe sobre mim enquanto elas saíam. Túnia deixava mamãe na floricultura e dirigia até Godric's Hollow, onde cursava Moda.

Depois de devidamente nutrida e tendo escovado os dentes, saí com a bicicleta para o jardim adorado da minha mãe, que tinha ganhado o concurso de jardim mais bonito várias vezes nos últimos anos. Dei uma olhada na aparência da minha companheira vermelho-berrante, de quando eu tinha completado doze anos (eu só tinha crescido uns vinte centímetros desde então e ela continuava a servir). Enquanto esperava o portão da garagem fechar, percebi um movimento do outro lado da cerca viva.

James Potter saía de casa com a mochila em um dos ombros, assoviando enquanto se virava para trancar a porta da casa dos Potter. Eu me surpreendi, porque raramente nos encontrávamos: ele em geral saía bem mais cedo. Baixei o rosto para evitar seus olhos e comecei a empurrar minha bicicleta em direção à rua. Eu sabia que ele estava namorando Catherine havia alguns meses. Eu não sabia mais o que pensar dele depois de uma decisão duvidosa como aquela.

Eu percebi pelo canto de olho que ele parou de andar quando me notou. Eu esperava que ele continuasse seu caminho, mas parecia estar me encarando.

Eu lancei um olhar confuso sobre o ombro.

"Ei!", ele sorriu ao falar e (como eu já tinha percebido antes) os cantos dos seus olhos se enrugaram com o sorriso. Tinha o rosto relaxado, o cabelo apontava em quase todas as direções e seus olhos castanho-esverdeados pareciam ainda sonolentos.

"Hm?", eu murmurei, sempre eloquente. "Oi."

"Eu incomodei você noite passada?", ele perguntou, espremendo a testa numa expressão preocupada. "Derrubei uma estante e fez um barulho muito alto."

Eu o encarei atônita. "Não... Na verdade, não acho que escutaria, minha janela estava fechada."

"Ah, menos mal!", ele sorriu de novo, a preocupação sendo varrida de seu rosto. "Você se esqueceu de fechar a cortina essa noite."

"Hmmm, é", eu falei, surpresa pela observação. Transferi meus olhos para minhas mãos no guidão da bicicleta enquanto sentia meu dedos formigarem em nervosismo, sem saber o que dizer.

"Perde uma grande vista fechando sua cortina toda noite", ele disse, antes que eu pensasse em alguma coisa, mudando o apoio de um pé para o outro. Quando eu o encarei, seu rosto esmoreceu. "Você sabe, eu não estava... Eu não estava falando de mim! Eu estava falando da Lua!"

"Oh!", eu exclamei, hesitando um segundo antes de empurrar minha bicicleta até a rua. "Sim, eu vi, estava linda."

"Estava", ele comentou, passando a mão pelo cabelo.

Um silêncio constrangido caiu entre nós. Eu voltei a olhá-lo, perguntando-me se tinha alguma coisa a acrescentar. Com a aparente negativa, visto que olhava ao longe, na direção de Hogwarts, apressei-me a sair do alcance dos seus olhos.

"É melhor eu ir, ou vou acabar chegando atrasada."

"Ah, sim!", ele disse, ainda parecendo embaraçado. "Desculpe, não queria... Bom, eu vou chegar atrasado de qualquer forma e talvez..."

Ele se calou, comprimindo os lábios. Como ele continuou a não dizer nada, eu acenei levemente com a cabeça como forma de despedida e dei o impulso na minha bicicleta. Meus pensamentos voaram embaralhados e eu agradeci ao vento por esfriar o calor no meu rosto. Sua voz novamente alcançou meus ouvidos, mas eu não soube dizer, àquela altura, se era minha imaginação ou a realidade.

"Fiquei observando a vista!"


N/A: depois de anos e anos e anos, decidi repostar essa história! Espero que ainda haja alguém que queira lê-la... Peço desculpas por qualquer alteração indesejada. Eu escrevi Da Minha Janela quando tinha quinze anos (era ainda mais nova do que a Lily) e é inevitável querer mudar algumas coisas e melhorar o que eu puder. Tomara que gostem e leiam e voltem a se apaixonar por essa história (ou comecem a se apaixonar se ainda não tinham lido). Obrigada por tudo! :]