-Ribeiro-san? -me virei acanhada e sorri para a senhora, passando os dedos nervosamente entre os fios finos e negros do meu cabelo. -Vou deixá-la agora, contudo espero vê-la amanhã no horários combinado. Tenha uma boa noite senhorita, e novamente seja bem-vinda a Yokohama.
-Hai Toshirou-sama. -fiz uma reverência e depois de desejar-lhe boa noite a senhora saiu me deixando sozinha em meu novo apartamento.
Comecei a arrumar minhas coisas no quarto que já estava desocupado, já que o outro tinha uma plaquinha com os Kanjis, provavelmente o sobrenome da minha colega de apartamento. O quarto não era grande, possuía apenas um guarda-roupas e uma cama de solteiro, bem diferente do meu antigo, mais isso simplesmente me agradava, eu estava enfim ali, e não tinha palavras para expressar minha gratidão aos meus tios por isso. Puxei meu celular e enviei uma mensagem no Whatsapp para o grupo da família dizendo que havia chegado bem, e tirei algumas fotos do lugar para eles verem.
Bom deixem-me me apresentar, sou Eloá Ribeiro, olhos verdes amarelados, longos cabelos pretos que geralmente escorrem por minhas costas, corpo esguio, ou seja, todos os traços de uma índia brasileira, e mesmo os grandes seios que gradativamente destruíam minha coluna confirmavam isso.
O banheiro do apartamento era social, o que me fez ficar um pouco apreensiva, pois este tinha uma farmacinha com espelho, sim eu tinha problemas atualmente com o espelho, mas nem sempre foi assim, isso apenas começou após meu acidente, e mesmo estando tão longe daquele lugar agora, ainda sim os demônios da minha cabeça me assolavam ali. Então respirei fundo e me voltei para minha mala para pegar um pano, e ao voltar para o banheiro com ele fecho os olhos para não ver meu reflexo enquanto o cubro. Diria a minha colega de quarto que isso é uma promessa, e espero realmente que ela acredite ou eu teria problemas.
Faz mais de uma ano agora, um longo tempo para uma menina não se olhar no espelho -eu sei. Mas desde que acordei naquele hospital após o acidente que minha vida monótona, e pacatamente tranquila havia se transformado.
Depois de enfim terminar a arrumação do meu quarto novo, pego uma roupa limpa e uma toalha, me dirijo ao banheiro louca por um bom banho. É de baixo do chuveiro, que como todas as pessoas comuns -imagino eu- que meus pensamentos fluem mais precisos e nada ociosos, e o primeiro deles a me assaltar lembra-me maldosamente que diferente de como tento iludir-me todos os dias, eu não sou mais um pessoa comum, se é que o termo "pessoa" ainda possa se aplicar a mim. Todavia perversamente pontuo que não foi exatamente isso que sempre quis ao ler cada livro e mangá de romance, magia e aventura, não foi isso que desejei ardentemente do fundo do meu coração todas as noites antes de dormir, enquanto pegava uma brisa no rosto e observava a lua e as estrelas de minha janela do quarto.
"Cuidado com o que deseja Eloá" -dizia minha avó quando eu era criança. "Toda alma tem poder, e quando esse pode se conecta com o coração, a força é tamanha que mover montanhas se torna algo irrelevante" -quem dera eu tivesse dado ouvidos a minha avó.
Sai do banheiro já pronta para dormir, e já que havia comido no aeroporto, sufoquei a louca vontade que tinha de andar para conhecer a nova cidade, e assim me joguei na cama, me obrigando a dormir. Precisava descansar e aproveitar o silêncio de ter o apartamento só para mim. Toshirou-san me explicou que minha colega havia avisado que precisava sair para resolver umas coisas em Tókyo, mais que amanhã estaria de volta. Aquele não era um prédio da universidade, e quando meus tios procuraram um lugar para mim, aquele foi o único lugar acessível e com um custo bem mais baixo que o mercado oferecia, então as negociações de acomodação foram feitas rapidamente, e eu não poderia esquecer de amanhã agradecer a minha colega de ap. por isso.
Pena, fora esse sentimento que fez com que meus tios me enviassem para estudar ali, e apesar de saber disso, eu sinceramente não me importava nenhum pouco com isso, tudo que eu sentia era gratidão por tudo que fizeram por mim. Eles com toda certeza não queriam ver a sobrinha que tanto amavam emocionalmente perturbada, por isso, prontamente atenderam meu pedido de estudar em outro país. Era a melhor forma de começar uma nova vida, então ficaram mais que animados em me mandar para longe do Brasil para fazer faculdade.
A noite de sono foi o mesmo transtorno de sempre, e me vi arrependida por um minuto ao sentir meu corpo molhado de suor, causado pelos pesadelos, pois eu sabia que me arrependeria por não ter meus remédios para dormir dali em diante, mas eu não poderia passar pela alfandega com eles na mala sem uma explicação plausível, e sejamos realistas, nenhuma faculdade japonesa aceitaria uma estrangeira com transtornos psicológicos, então só me restava aprender a lidar com aquilo de outra forma a partir de agora.
O dia estava amanhecendo, e foi com a animação renovada que deixei meus demônios na cama e me dirigi ao banheiro para fazer minha higiene matinal. Escolhi um vestido rodado azul petróleo e uma bota cano alto preta, e por fim peguei um sobretudo para combinar com as botas, já que aquele era um dia de frio. Fiz uma maquiagem leve, já que minha pele bronzeada chamava atenção por si só ali, e prendi o cabelo num rabo de cavalo.
Sai do apartamento e caminhei rapidamente para a universidade, seguindo as instruções que a senhora Toshirou me deu ontem. Mantive meus olhos no chão e no derredor apenas para me certificar que seguia o caminho corretamente, e sorri contida ao notar que ninguém me olhava estranho, apenas alguns perceberam minha fisionomia diferente e a curiosidade era o único sentimento notável ali, e eu me senti orgulhosa por ter acertado em escolher aquele lugar para viver agora, pois com certeza ninguém ali me acharia estranha por não olhá-los nos olhos, e eu poderia a partir de agora sempre caminhar olhando para o chão sem chamar atenção desnecessária.
Quando alcancei a sala da coordenação do meu curso dei leves batidas na porta, e tratei logo de fazer uma reverência e me desculpar pelo incomodo, além é claro, de desejar um bom dia a senhora Toshirou, que parecia está levemente surpresa, muito provavelmente esta esperava que eu me atrasasse.
-Bom dia Ribeiro-san, fico feliz que tenha conseguido chegar aqui sem problemas. -eu apenas sorri, meu senso de direção era um dos meus pontos fortes. -Vou levá-la até sua sala, e irei pedir para que o representante da turma a ajude em suas próximas aulas. Mas por enquanto vou apresentar-lhe alguns de nossos prédios onde possivelmente terá algumas algumas de suas disciplinas.
Durante 43 minutos e 19 segundos a senhora Toshirou andou comigo pelo enorme campus, me apresentou vários prédios e aos seus diversos cursos, mais por fim entramos no ultimo ao qual ela explicou-me que seria onde eu teria minha primeira aula de hoje.
Eu estava duas semanas atrasadas, ou seja, tinha perdido duas semanas de aulas graças a "maravilhosa" burocracia brasileira, por causa disso, eu precisaria de ajuda para acompanhar as matérias. Entrei na sala quando a senhora Toshirou me mandou, depois de explicar a situação ao professor, que pediu que me apresentasse, e eu assim o fiz, tomando o cuidado de olhar para a parede do outro lado da sala, sem me focar desnecessariamente a ninguém, e quando esse martírio acabou o professor me mandou sentar e eu rapidamente me dirigi para o fim da sala. Tirei o caderno da mochila e passei a aula inteira copiando os cálculos sem realmente entender nada do que estava escrito ali. Segundo meu horário aquele era o professor Kimura, de matemática I -ótimo primeira aula logo de matemática, quase ri da minha desgraça.
-Minamino-san, poderia acompanhar a Ribeiro-san em suas próximas aulas? -ele olhava para os meninos da minha fila, e eu quase pulei de alegria pelo fim da aula.
-Claro professor Kimura, eu já havia sido avisado, será um prazer. -respondeu gentilmente em um voz firme, e me vi observando os longos cabelos cor de fogo do rapaz.
Reverenciamos o professor e este saiu , e eu sabia que nossa próxima aula seria de Bioquímica I, o que implicava que esta era em outro bloco.
-Sou Minamino Shuichi, é um prazer conhecê-la Ribeiro-san -eu levantei da cadeira mais mantive minha cabeça baixa.
-Ribeiro Eloá, é um prazer conhecê-lo Minamino-san, por favor tome conta de mim, e desde já me desculpo pelo trabalho que estou lhe dando. -levantei um pouco o olhar quando algumas garotas da sala suspiraram e pude ver que ele realmente tinha um corpo bonito, sem falar na pele branca que parecia ser bem macia, e as maças do rosto estavam avermelhadas provavelmente pelo frio, dando um contraste perfeito com seus cabelos.
-Por favor me chame de Shuichi, sei que não é comum em seu país chamar as pessoas pelo sobrenome, e realmente não me incomodo com isso. -afirmei agradecida e ele me deu passagem educadamente.
Coloquei a mochila nas costas e segui para fora da sala com ele bem atrás de mim. Quando saímos, esperei ele ir na frente me indicando o caminho a seguir.
-Então por favor me chame apenas de Eloá, Ribeiro-san soa realmente estranho para mim. -rir e ele riu também. -saímos do prédio e o lado de fora parecia estar mais frio que antes, e algumas pessoas se juntaram a nós.
-Minamino-san, você conseguiu responder a lista de exercícios do professor Ogawa? -uma moça bem vestida tocou o braço dele de leve.
-Sim Aoki-san, se quiser mais tarde eu posso te mostrar.
-Já disse para me chamar de Moriko, Minamino-san. -ele sorriu de leve.
Eles continuaram conversando, mais não dei muita importância para o que diziam, na verdade o frio ali era o que me incomodava, e eu já me via implorando aos Deuses para que entrássemos logo na sala. Quando ele fez menção de entrar no prédio a frente eu quase corri para dentro, e Shuichi me olhou por um momento antes de voltar a caminhar.
O professor Ogawa me explicou que até o fim da disciplina eu faria dupla com Shuichi, e me pediu para que me empenhasse e não atrapalhasse o desempenho do representante de classe. Respirei fundo e o prometi que estudaria com afinco, e que não me escoraria em meu colega. Depois disso me dirigi a mesa que dividiria até o fim do semestre com Shuichi, e ambos assistimos a aula em silêncio.
-Quer almoçar comigo? -ele perguntou enquanto arrumávamos nossos materiais para sair. -Assim eu poderia lhe explicar o assunto.
-Eu realmente agradeço, mais não quero incomodar seu almoço também. -eu estava morrendo de fome já que não tinha tomado café da manhã.
-Não se preocupe com isso, e no mais depois teremos aula de Anatomia e Física Animal, e o bloco é um pouco longe do refeitório, por isso será melhor se ficarmos juntos. -ele explicou gentil, e eu reprimi um suspiro.
-Realmente agradeço por tudo. -ele apenas sorriu e eu o segui em silencio até o refeitório.
Fiquei um pouco envergonhada quando percebi que meu prato tinha mais que o dobro de comida que o dele, mais isso não pareceu incomodá-lo. Ele caminhou pelas mesas e eu o segui para as mesas duplas próximo as paredes de vidro, onde podíamos ver as belas árvores da pracinha do lado.
-Itadakimasu. -dissemos juntos e involuntariamente eu ri, mas disfarcei com uma tosse leve.
-Eu fiz algumas anotações para você, então ficará mais fácil acompanhar a matéria. -me segurei para não levantar demais o rosto, mais a surpresa com toda certeza estava estampada em meu rosto.
-Sinceramente eu não sei como agradece-ló Minamino-san, você é um anjo. -disse alegre.
-Shuichi, por favor. E não foi nada demais, me ajudou a estudar e como você é minha dupla em todas as disciplinas é o minimo que posso fazer para te ajudar, ou seja, me ajudar também. -eu fiquei de boca aberta. -A não ser que você não se sinta bem em minha presença...
-Não, não mesmo, eu realmente agradeço por tudo que fez por mim.
-Não foi nada, eu imagino como deve está sendo assustador para você morar sozinha em outro país, e ainda está atrasada para as aulas. -ele falou e parecia seriamente preocupado.
-Na verdade tirando as aulas, que graças a você eu conseguirei recuperar o tempo perdido, eu me sinto realmente animada por poder viver aqui.
-Se precisar de qualquer coisa é só falar comigo, eu irei ajudá-la no que puder.
-Realmente agradeço. -eu me vi tentada a olhar em seus olhos, descobrir a cor deles, ver se suas palavras realmente acalçavam ali, mais me segurei e me concentrei no arroz cozido, atacando-o.
O almoço transcorreu tranquilo, e ambos conversamos sobre nossas vidas, e me vi realmente alegre por conversar com ele, pois Shuichi não era invasivo e sempre tinha um ponto de vista mais otimista sobre tudo.
Fomos para a aula, e quando só faltava apenas mais uma, e me vi tremendo de frio enquanto caminhávamos entre os blocos ali.
-Eloá, segura. -ele me jogou uma latinha de chá quente, e eu a segurei agradecida, e não notei quando levantei o olhar dando de cara com aqueles lindos olhos verdes.
Foi mais rápido do que eu poderia prever, longos cabelos brancos, assim como seu quimono, e orelhas de cachorro, mais alto e eu me aproximei, era a primeira vez que eu via tanta beleza na essência de alguém.
-Você é lindo! -afirmei e quando pisquei e olhei para Shuichi eu já não sabia mais quem era quem, era como se um estivesse sobrepondo o outro, mas ao notar o rosto vermelho de Shuichi me dei conta do que tinha dito, e como uma louca me virei correndo e fugindo dali.
-Que merda, idiota, idiota, idiota. -reclamava comigo mesma em português enquanto tentava achar a saída daquele lugar e ir para casa. -Que bom, perdi um provável amigo, e nem o assunto das matérias eu consegui. Droga, agora ficarei sem dupla também, parabéns Eloá.
Quando consegui chegar em casa deixei a bendita latinha de chá na mesinha e fui para o quarto pegar uma roupa para tomar banho. Ainda bati a cabeça algumas vezes na cerâmica do banheiro me chamando de idiota. Tudo que eu precisava fazer era manter os meus olhos longe dos olhos das pessoas, e no primeiro dia de aula eu já surto como a louca que sou.
Com a calefação ligada, eu vesti um vestidinho curto e fino e já me dirigia ao quarto quando à chave da porta da sala foi virada e minha colega de apartamento entrou, então me dirigi animada para recebê-la.
-Você! -ambos nos olhamos boquiabertos, aquilo só podia ser brincadeira.
