Um

A primeira vez que Shinji e Hiyori se vêem é mais ou menos como todas as vezes que se seguiriam. Ele é um dos capitães mais antigos e respeitados do Gotei 13, e não consegue deixar de reparar no sopro de menina que desafia, ofende e, por fim, massacra o seu oponente. O fato de que o oponente é um homem alto e musculoso, com pelo menos cem anos a mais de experiência, não parece intimidá-la nem um pouco. Nem o fato de que ele, por acaso, é o seu professor.

Como a maioria dos capitães, Hirako Shinji tinha o hábito de, ocasionalmente, visitar a Academia em busca de talentos ocultos, diamantes brutos e prodígios promissores. Não era segredo para ninguém, afinal de contas, a saudável rivalidade entre as treze divisões do Gotei 13 e seus capitães, todos tentando superar uns aos outros, todos lutando para se aperfeiçoar cada vez mais, para mostrar sua superioridade. Cada capitão queria que sua divisão fosse a mais forte, e uma divisão forte exigia recrutas fortes. E, bem, ninguém ia negar que Sarugaki Hiyori era forte.

Não que derrotar o professor significasse grande coisa. O homem, sinceramente, era um idiota, e a sua humilhante derrota para uma adversária de habilidades tão rudes, imaturas e desprovidas de qualquer simulacro de técnica ou refinamento tornava aquilo ainda mais dolorosamente evidente. Não, Sarugaki Hiyori não estava nem um pouco próxima da perfeição. Seria ingênuo e irrealista, no entanto, esperar perfeição em qualquer aluno da Academia. O que Shinji estava procurando ali, como todos os outros capitães, era potencial. E potencial ela tinha, desprendendo-se de seu corpo em ondas pesadas e caudalosas, que faziam o ar à sua volta vibrar e os espíritos dos espectadores mais fracos estremecerem, paralisados.

Foi aí que Sarugaki Hiyori se virou, devagar, a espada abaixada, mas firmemente segura na mão direita, pronta para atacar, e foi aí que seus olhos, cheios de fúria, violência e plena satisfação, encontraram pela primeira vez os de Hirako Shinji.

O coração dele se esqueceu de bater por um segundo, e ele inspirou com força, sem fôlego e desorientado diante da força daquele olhar, e das coisas que conseguia ler nele. Ela não escondia nada, totalmente confiante e desprovida de vergonha, oferecendo casualmente à multidão ao seu redor cada pedaço de sua alma, a raiva que ela sentia por ser subestimada, o desejo de provar sua força, o êxtase do momento em que seu tolo adversário atingira o chão, esmagado, destruído, subjugado.

- O que você está olhando, idiota?

Uma onda de comoção de espalhou pelo salão, e Shinji sentiu sobre si o desconfortável peso de dezenas de olhos esperando, imaginando, adivinhando o que ia acontecer. A maior parte da platéia era constituída por alunos, colegas de Hiyori que a conheciam bem demais para se surpreender com a atitude da menina, mesmo dirigida a um dos mais famosos capitães do Gotei 13. Shinji quase podia ver a saliva escorrendo de suas bocas, a ansiedade primitiva pelo conflito, pela derrota e humilhação alheia e, mais particularmente, o desejo de ver Sarugaki Hiyori sendo finalmente colocada em seu devido lugar por alguém que tinha poder suficiente para fazê-lo. Não era preciso ser um gênio para adivinhar que a garota não era especialmente amada por seus colegas. Era de se esperar, em alguém com o seu temperamento e a sua força. Ela não precisava de ninguém, e não fazia o menor esforço para fingir precisar. E ele podia ver claramente, transbordando de seus olhos desafiadores, o pensamento de que ela não precisava dele também, e não importava nem um pouco se Shinji era o capitão da Quinta Divisão, um Hollow fedorento ou o próprio rei da Soul Society.

Shinji sacudiu inexistentes partículas de poeira de suas roupas impecáveis e jogou o longo cabelo loiro para trás do ombro, ganhando tempo para pensar no que fazer. Ele não queria satisfazer os desejos primitivos da sua audiência, não tinha a menor intenção de humilhar a garota. Por outro lado, também não dava para deixar um insulto daqueles passar em branco. Pensou, por segundo, em usar shunpo e derrotá-la rápido demais para qualquer um naquela sala ver, ou simplesmente recusar o desafio, declarando que ela era fraca demais para constituir uma oponente interessante. Recusou as duas idéias imediatamente, no entanto. Eram ambas comuns demais, normais demais. Hirako Shinji não tinha o menor desejo de parecer comum ou normal e, de qualquer forma, o conceito de normalidade era incompatível com a pequena e imprudente força da natureza que o desafiara.

E foi por isso que, sem quaisquer palavras, Hirako Shinji, capitão da Quinta Divisão do Gotei 13, levantou-se calmamente e aproximou-se de Sarugaki Hiyori. E, antes que ela tivesse tempo de dizer ou cometer qualquer outra imprudência, as suas mãos grandes enlaçaram a cintura fina da menina, erguendo-a no ar e jogando-a sobre seu ombro esquerdo. Um sorriso vitorioso emergiu nos lábios de Shinji diante do barulho de surpresa que escapou pela boca da garota e da sua temporária imobilidade provocada pelo choque, e ele dirigiu-se com passos tranqüilos até as portas do salão, abrindo-as e desaparecendo com a jovem estudante diante de uma audiência atônita.

- Ora, ora – declarou Shunsui Kyoraku, quebrando casualmente o silêncio estupefato que se instalara – Seqüestrando jovens estudantes e escondendo-se com elas. Quem seria capaz de imaginar que Shinji era tão safado!

Fora do salão, Shinji percorria calmamente os corredores da Academia, sorrindo e cumprimentando quaisquer conhecidos que passassem por ele e ignorando os olhares estranhos lançados em sua direção, enquanto a pequena garota jogada sobre seu ombro esquerdo gritava, se sacudia e debatia como se possuída pelo demônio.

Quanta ingenuidade. Sarugaki Hiyori era o demônio.

Foi o que Shinji descobriu quando, ao finalmente alcançar um tranqüilo jardim onde teriam mais liberdade e privacidade e depositar a menina com todo o cuidado no chão, foi atingindo pelo soco mais forte da sua vida.

- O que você pensa que está fazendo, idiota?

Com uma mão apoiada no quadril e a outra fechada, sacudindo ameaçadoramente no ar, Hiyori berrava com toda a força de seus pequenos pulmões ofensas e obscenidades que Shinji nunca seria capaz de imaginar. Seu rosto estava doendo, e seus ouvidos também, mas o capitão decidiu ficar quieto e esperar enquanto o pequeno furacão descarregava sua raiva explosiva. Finalmente, depois do que pareceu um bom par de horas, a menina pareceu notar que seu discurso furioso e seus golpes violentos estavam atingindo ouvidos surdos e um corpo insensível, e Shinji permitiu-se um sorriso de satisfação, inclinando a cabeça para trás e semicerrando os olhos para melhor sentir o silêncio e a paz que se instalaram.

Era primavera, e a brisa suave que soprava trazia consigo uma chuva de pétalas de flores de cerejeira. Agora que a temperamental menina tinha finalmente se calado, ele podia ouvir claramente o murmurar do vento, assim como o som plúmbeo de uma pequena cascata de água cristalina desaguando no lago cinzento. Havia o som de pássaros também, e o zumbido dos insetos e, claramente distinguível, a respiração de Hiyori, desregulada e ofegante pela raiva e agitação. Ele abriu os olhos e encarou a menina novamente, seu peito subindo e descendo com a respiração rápida, as pontas do cabelo dourado roçando seus ombros estreitos, as feições infantis torcidas numa careta contrariada que, ele viria a aprender, era a mais constante expressão em seu rosto.

- O que diabos você quer, afinal de contas?

- Eu sou o seu superior e você me tratou com um desrespeito inadmissível. Você deveria se desculpar e buscar alguma maneira de se redimir, se tivesse algum bom senso.

A careta se fechou ainda mais, braços finos se cruzaram sobre o peito magro, e ela abriu a boca, provavelmente para gritar mais insultos. Surpreendentemente, no entanto, Hiyori rapidamente fechou a boca e desviou o olhar para o lado.

A verdade era que, no fundo, ela não queria gritar insultos. Queria dizer que era ele quem a tinha desrespeitado primeiro, encarando-a como se ela fosse um objeto qualquer que merecesse um lugar na sua prateleira, só porque ela era mais forte do que ele esperara, só porque ele, como todos aqueles capitães idiotas, queria os melhores alunos em sua própria divisão. Bem, ela não era um dos melhores alunos, e não fazia a menor questão de ser. Não perdia tempo decorando inutilidades para provas estúpidas, não tinha paciência para a teoria complicada e entediante dos feitiços e mistérios que regiam a sociedade em que viviam, e definitivamente não ia puxar o saco de ninguém para conseguir o que queria. Hiyori ia abrir o seu caminho através da Soul Society, sim, mas faria aquilo do mesmo jeito que sempre fizera tudo na vida – usando apenas a sua teimosia, sua força e sua determinação.

Ela queria dizer também que, se ele queria o seu respeito, teria que ganhá-lo. Ela não ligava a mínima se ele era o maldito capitão da maldita Quinta Divisão do maldito Gotei 13. Não ligava a mínima se ele tinha influência suficiente para abrir todas as portas para ela, ou fazer com que todas se fechassem em sua cara. E, definitivamente, não ligava a mínima se ele era poderoso o suficiente para esmagá-la num molambo sangrento no chão, se desejasse. Porque a verdade sobre Hiyori Sarugaki era que ela não se importava em perder para um oponente mais forte, não de verdade. Mas se tinha que perder, ela o faria como se tivesse ganhado.

E, é claro, ela também queria dizer, para que ele entendesse de uma vez por todas, que não era exatamente conhecida pelo seu bom senso.

Obviamente, no entanto, Hiyori não disse nada daquilo a Hirako Shinji. De jeito nenhum que ela ia perder seu tempo falando aquele tipo de bobagem, ou permitir que ele tivesse algum poder sobre ela ao descobrir como ela pensava e o que desejava. Seus pensamentos eram seus, só seus, e ninguém tinha o direito de descobri-los. Muito menos um capitão estúpido e arrogante de uma divisão idiota.

Pela segunda vez naquele dia, Hirako Shinji se viu atingido pela teimosa estudante, sendo dessa vez jogado ao chão pela força do pé pequeno e descalço chocando-se contra seu rosto. O capitão apoiou-se nos cotovelos, erguendo-se um pouco e finalmente perdendo a calma, uma inconfundível nota de histeria em sua voz:

- Você é louca, garota? Será que é idiota demais para perceber que eu posso te destruir em um segundo, se quiser?

Seus protestos caíram em ouvidos surdos, e Hiyori expressou o seu descaso atingindo-o novamente, dessa vez pressionando o pé pequeno contra o rosto do capitão até fazê-lo recuar para o chão. Ele bufou com irritação, perdendo a paciência, e puxou o tornozelo fino da menina, que caiu no chão com um grito de surpresa enquanto ele rolava para cima dela e a prendia com o peso de seu corpo.

- O que você pensa que está fazendo, idiota? – ela gritou, com toda a força de seus pulmões – Solte-me!

- Eu vou soltar – ele declarou gravemente, embora um sorriso profano brincasse em sua boca larga – Quando você pedir desculpas.

- Nunca!

O rosto dela estava vermelho, de raiva ou embaraço pela situação, e ele não pôde deixar de rir. Era simplesmente fácil demais, irritá-la, atingi-la, subjugá-la. Fácil demais.

O sorriso em seus lábios morreu, enquanto ele refletia em busca de um meio de explicar-lhe aquilo sem ganhar mais um chute na cara. Toda a beleza e promessa daquele potencial que ele enxergara na menina seriam inúteis, com um temperamento daqueles. Ela não chegaria longe, ele sabia muito bem, comportando-se assim. Nenhum capitão a aceitaria, nem ele próprio, com toda a sua paciência e interesse, seria capaz de ignorar tanto desrespeito e grosseria. Não era apenas adorável teimosia, impressionante força de caráter. Ela era imprudente, ignorante, intratável.

Mas não dava pra dizer aquilo, não sem levar um chute na cara.

- Você é forte, Sarugaki, e era por isso que eu estava olhando. E você tem que se acostumar, porque todo mundo vai olhar. Mas ser apenas forte não vai te levar a lugar algum. Você tem que ser esperta, também.

Ele levantou-se num salto e desembainhou sua espada, sentindo sobre si o olhar atônito da menina.

- Bem, o que está esperando? Você é forte, mas é lenta, não tem técnica, não tem refinamento. Você precisa de alguém competente para treiná-la, e eu estou aqui. Aproveite a chance.

Ela podia ter gritado insultos, chutado a cara dele ou virado as costas e ido embora. Era o que teria feito, normalmente. Sarugaki Hiyori simplesmente não tinha paciência para lidar com gente arrogante e cheia de pose que ficava dando conselhos estúpidos, e todo mundo sabia. Ainda assim...

Havia algo nele, algo diferente. Ao olhar para cima, e se deparar com o rosto sério e tranqüilo de Shinji, Hiyori sentira mais que alguém hierarquicamente superior tentando dominá-la e subjugá-la, sentira mais que alguém experiente tentando oprimi-la com as suas visões do que era certo e do que era errado. Hirako Shinji queria ajudá-la, apenas. Ele podia ajudá-la, também. Mas não se comportava como se sua maldita ajuda fosse a coisa mais magnífica e indispensável do universo. E, por aquilo, ela podia respeitá-lo. E confiar nele. Só um pouquinho.

Sarugaki Hiyori levantou-se num salto e desembainhou sua espada, um feroz sorriso de batalha desenhando-se em seu rosto. Só de olhar, ela sabia que Hirako Shinji era incomparavelmente mais rápido, mais forte e mais poderoso. E que ela ia, em alguns minutos, ou talvez até segundos, sofrer a mais estrondosa derrota da sua vida.

Mas ela ia perder como se estivesse ganhando.

- Vamos lá, idiota. Mostre-me o que você sabe.


N.A.

Depois de ler a (incrível) saga Turn Back The Pendulum, eu não pude deixar de imaginar como Shinji e Hiyori teriam se conhecido, e como a relação entre essas duas incríveis, trágicas e absolutamente hilárias personagens teria se construído. Essa história é um dos resultados de todo o absurdo tempo que eu passei pensando no assunto, quando deveria estar estudando ou lavando as minhas meias. Ela se inicia aqui, no primeiro encontro entre Shinji e Hiyori, e vai se desenvolver até o último capítulo do Turn Back The Pendulum. Já estou pensando na continuação, é claro, mas isso é papo para outro dia.

Espero que gostem, e lembro que críticas, sugestões e, claro, elogios serão extremamente bem vindos.

Ah, e Bleach, obviamente, pertence a mim. Assim como terrenos em Marte e o Oceano Atlântico. Se alguém quiser comprar, é só depositar o dinheiro na minha conta.

Lady Macbeth