"Para que os Teus servos possam cantar as maravilhas dos Teus atos admiráveis, absolve as faltas dos seus lábios impuros, senhor."
Paolo Diacono
Capítulo Um
O VENTO LESTE ARREBENTAVA com imensa força na encosta que subia à quase cem metros de altura, formando uma muralha se vista de dentro de qualquer embarcação. Mas lá no topo, o pasto verde e fofo era brilhante e impecavelmente cuidado, e as roupas no varal tremulavam como a bandeira inglesa logo acima da casa, hasteada com honra e orgulho por seus moradores. Uma mulher de longos cabelos castanhos recolhia as roupas, dobrando-as cuidadosamente e guardando-as num cesto logo a seus pés. Vez ou outra ela fitava a vastidão azul em busca de alento e sem encontrá-lo, tornava ao seu afazer. Então, uma sineta suave tocou, mas não era a que havia na casa, os serviçais tinham ordens expressas para não se aproximarem dela, e uma vela amarelada apareceu por detrás dos rochedos logo abaixo do penhasco. A sineta tornou a tocar impaciente e um homem dependurou-se nos cordames pelo lado de fora da embarcação. A mulher, de cima do penhasco, o reconheceu de imediato e seu sorriso se abriu de um lado a outro do rosto. Ela correu pela borda do penhasco rindo e acenando, enquanto uma das mãos segurava o vestido para não tropeçar e cair. O homem soltou uma das mãos do cordame e acenou de volta, até a embarcação desaparecer por entre o rochedo seguinte. A mulher correu para casa, vestiu um casaco, e desceu impulsivamente a estrada de pedras que levava para a cidade sem esperar pela caleche. Era um bom pedaço de caminho a ser percorrido, mas a pequena e delicada mulher não se desencorajou e seguiu firme e certa de seu objetivo.
No píer de Portsmouth, os canhões ribombaram, anunciando a chegada da esquadra inglesa, sob o comando do esplêndido almirante George Kipling. O extenso porto, com sua usual algazarra, se alvoroçou ainda mais e até mesmo os comerciantes locais trataram de varrer o dormente de suas portas para receber qualquer um dos oficiais de tão digna esquadra.
Assim que a última embarcação acostou, os oficiais desceram ao trapiche do ancoradouro e depois de algumas instruções ministradas por lorde Kipling no deque, dispersaram-se cada qual com um intento específico: os centros de abastecimento. O único a não se dirigir imediatamente para lá foi o capitão Jack Aubrey, que girou nos tornozelos e tornou ao portaló de sua embarcação, mantendo-se à beira, ereto e com os braços atrás das costas, fitando a entrada do cais de número seis. Seus olhos se aguçaram quando uma jovem mulher passou apressada por entre os estivadores e sorriu alegre assim que o viu. Num salto Jack alcançou o trapiche e se pôs a caminhar rápido até ela. Quando finalmente se encontraram, ele enlaçou-a com os braços e lhe deu um abraço apertado e saudoso. Havia muito tempo que não a via.
— Que bom que tornou inteiro, meu amor - disse a jovem de longos cabelos castanhos, enquanto apalpava-lhe os braços.
— Minha querida Sophia, o mar é meu maior amigo - respondeu Jack, afastando-a e indicando o cais adiante como direção. - Vamos agora, tenho alguns negócios a resolver. E logo estarei em casa somente para você.
Por entre os amarrados, carregados de bagagem e estivadores, os dois caminharam sem presa, pois a certeza de permaneceriam juntos por muito tempo, agora, era clara e forte. Jack Aubrey tomou a direita, em direção ao escritório do oficial-comandante, e sua esposa, a senhora Aubrey, tornou a subir a ladeira que a levaria para casa.
Na casa no topo do morro, bem além da cidade, o clima formoso e feliz do teatro não havia afetado em nada os humores.
— Aquele pirralho sem-vergonha! Pé-de-chinelo imundo! Conseguiu a nau sem ter pelo menos feito uma presa de valor! - Jack Aubrey berrava aos quatro ventos, mas nem se dava conta disso, sua voz era costumeiramente forte e tanto mais agora tão indignado estava.
— Jack querido, não se exalte. Veja como está falando de seu amigo. Beba um pouco de chá...
— Chá? Chá? Oferece chá a um homem que precisa muito mais de um trago do que...
— Querido, não quero que você fique mais exaltado ainda. Por favor, beba o chá e sente-se aqui comigo - ela lhe indicou o sofá.
Jack fitou a mulher por instantes, baixou os olhos e apanhou a xícara, para ir se sentar ao lado dela.
— Ele é seu amigo.
— Amigo da onça, isso sim!
— Ora, Jack, como o pobre iria saber sobre a promoção?
Jack não respondeu, olhava-a com seriedade.
— Não o recebi bem esta manhã?
— Oh, minha cara, com toda certeza que sim - respondeu Jack ainda sem nada beber, apenas fitava-a compenetrado, certamente pensando na nau que acabara de perder para o desnaturado e mal saído das fraldas Jake Jankins, capitão-tenente de meia tigela.
— Pois bem, já deveria ter esquecido essa história então.
As palavras da esposa não conseguiam penetrar a invisível barreira que mantinha preso os pensamentos do marido. Mas foi quando ela lhe tirou a xícara de chá intacta das mãos que Jack percebeu-lhe a presença novamente. E Sofia tinha o colo inteiramente despido, os braços delicados e brancos tocando as mãos de Jack, o que fez qualquer fiapo de Jake Jankins ou da nau, ou de qualquer jargão marítimo sumir por completo de seu cérebro. Sorriu maroto e com as pontas dos dedos tocou os seios dela, delicada e suavemente, para depois mergulhar seus lábios neles.
E naquela hora, Jack Aubrey nem se lembrou de que a chalupa Sophie era o único comando que lhe restava.
O bater intermitente e quase inaudível do pé descalçado do sapato escondido sob o complexo e elaborado vestido azul-celeste bordado indicava que a mulher na primeira fileira, à terceira cadeira do centro para fora, estava completamente envolta pelo dueto do violino e do cravo. Volta e meia ela mexia os lábios num profundo sorriso e, sem perceber, ofegava deslumbrada com a composição. Qualquer pessoa poderia ver a excitação e o prazer nos olhos dela, mas ninguém fazia idéia de que a mulher era a condessa de Norwich, porque, certamente, uma condessa não se sentaria em meio à multidão, bem diante do palco.
Era noite de estréias no teatro e alguns dos mais renomados artistas se apresentavam. No entanto, o centro das atenções não eram os flautistas ou os violinistas e muito menos os pianistas, e, sim, a realeza, que estava toda concentrada no balcão principal e para o qual todos os monóculos e binóculos eram apontados. O rei e a rainha, mais o duque de Winchester, conversavam na bancada, alheios a todo aquele assédio visual.
Após as apresentações, os oficiais, comerciantes mais abastados e outro tanto de pessoas privilegiadas se encontrariam numa recepção, na casa do comandante naval de Portsmouth, o oficial-comandante Hartcher. A festa de boas vindas ao almirante Kipling, ou lorde Kipling, como todos carinhosamente o chamavam em terra, fora totalmente organizado pela senhora Hartcher, esposa do comandante. Ela teve a magnífica idéia - sem falar na sorte pela chuva não se precipitar -, de organizar as mesas e a pista de danças em seu invejável jardim. As laranjeiras serviam de sustentação às lamparinas, dando aconchego aos arredores de cada mesa.
Os oficiais, como sempre, dividiam-se por hierarquia, em pequenos grupos de afeto, dispensando atenção às esposas vez ou outra. E as esposas estavam sentadas nos fundos da pista de dança, entretidas com a apresentação saudosa de um pequeno dueto entre um violino e um violoncelo.
Jack Aubrey conversava indiferente com outros dois capitães, e, a não ser pela esposa que o vigiava, parecia ter esquecido a rixa com o melhor amigo, porque Jack conversava com Jake Jankins e com o almirante Boile como se nada tivesse acontecido. Mas o tempo em noites de festa corria devagar e perdia espaço para a bebida. E era com esta que a senhora Aubrey mais se preocupava, conhecia a fama de beberrão do marido e toda indiscrição que o álcool lhe causava quando em excesso em seu cérebro. Apesar disso, Jack era um homem de grande respeito, confiança e honra, nenhum outro homem poderia negar.
Ao lado da anfitriã, a senhora Aubrey rodeava o salão com o propósito de cuidar do marido.
— É uma vergonha o que tenho de fazer, Meg, vigiá-lo dessa forma... não gosto disso.
— Eu sei, Sophia querida, mas conhecemos o nosso Jack e sabemos que a qualquer momento ele pode se rebaixar e causar grande mal a si mesmo.
—Ah, por Deus, não sei quanto tempo ainda posso suportar. Esses oficiais circundando Jack...
— Eles divertem-se com Jack, ele é uma ótima companhia.
— Vou até lá, Meg. Estou cansada. Desculpe-me.
— Não se incomode comigo, já é bem tarde, querida. Vá e tente levar seu marido para casa. - A senhora Hartcher sorriu amavelmente e despediu-se da amiga.
A jovem senhora Aubrey se aproximou da roda de oficiais com um jovial sorriso.
— Eis a mulher de quem gostaria de desfrutar a noite toda - disse o comandante Hartcher com os dentes arreganhados. Não era usual vê-lo alegrar-se tanto, mas havia uma explicação para aquilo.
— Senhores - cumprimentou ela com uma breve reverência e tomou o braço do marido.
— Devo admitir, comandante Aubrey, o senhor tem um ótimo gosto para mulheres - brincou o comandante.
— Na verdade, comandante, fui eu quem o escolhi - a senhora Aubrey respondeu à brincadeira, mas Jack não achou graça, desviou os olhos para o outro lado do jardim.
— Ora, vamos, meu caro capitão - Hartcher entendeu que a piadinha tinha sido mal interpretada -, a jovem Sophia pode afirmar muito bem o que falo.
— Com toda certeza - respondeu ela.
Mas Jack, apesar da nesga de sorriso tentando se abrir em seu rosto desculpou-se e pediu licença, dizendo estar cansado. O comandante, ao tomar a mão da senhora Aubrey para se despedir, completou:
— Venha a minha casa, capitão Aubrey, para jantarmos juntos no próximo domingo. E traga sua estimada esposa.
O caminho para casa foi feito em silêncio sepulcral, a fricção entre as rodas e a terra era a música de fundo, bumbando com os solavancos excessivos, já que Jack ordenara ao cocheiro que seguisse para casa o mais rápido possível. O cocheiro mal desceu para abrir a porta da carruagem e Jack já estava no dormente, entrando sem nem ao menos esperar por Sophia. Ela entrou devagar na casa, tirando o casaco devagar, dependurando-o no cabide da entrada e somente depois seguindo para o quarto, onde sabia que iria encontrar o marido. Na cama, deitado de costas, com as mãos sobre a cabeça, estava Jack.
— Sabe que eu não suporto o que você me faze passar diante deles.
— Ora, vamos, Jack querido, foi apenas uma brincadeirinha. Não irá ficar zangado comigo por causa disso, não é?
Jack a encarou, os olhos castanho-escuros dela cintilavam como estrelas, e o vestido azul claro de tecido mole e esvoaçante o fizera sentir ciúmes a noite toda.
— Tire esse maldito vestido! - urrou. - Que moda é essa que deixa as partes... as partes... - e ele apontou o dedo para o colo desnudo dela.
Sophia sorriu, aproximando-se dele, e deixou o vestido deslizar lentamente por seu corpo, como que o acariciando, e parar no chão, sob seus pés.
O entardecer do domingo continuou tão nebuloso quanto a manhã, chuvas esparsas, mas fortes, molhavam a estrada enquanto a carruagem dos Aubrey atravessava o porto na direção da casa do comandante Hartcher. Jack mantinha a cara feia, ainda indignado por não ter se desfeito da velha Sophie e conseguido a boa e muito mais nova, Relic, agora em posse do ordinário Jake Jankins, um inexperiente capitão que conseguira, sabe-se lá como, o comando daquela magnífica nau.
O comandante recebeu os convidados com pompa, ele gostava de se mostrar, tinha cacife para tal, e era genioso, mas também um homem de boa índole. Costeletas de porco, cordeiro regado a especiarias e acompanhamentos diversos, o jantar teve direito a tudo o que um comandante poderia pagar. O melhor vinho foi servido, e não menos do que quatro garrafas foram bebidas.
— Se não a ofendo, devo dizer que a senhora é uma beberrona, senhora Aubrey. No melhor sentido da palavra.
— Acredito que o senhor queira dizer degustadora - ela riu sozinha.
— Certo, certo - riu-se o comandante, já tonto pelo vinho, assim como o resto de seus convidados. - E devo dizer que me surpreendi, minha cara senhora, quando soube que era com a senhora que o comandante Aubrey, aqui, se casou.
— E porque a surpresa, comandante? - quis saber ela, o copo de vinho indo aos lábios.
— Bem... a senhora sempre foi uma menina muito inteligente, e homens do mar, como eu e o comandante Aubrey, não devem se casar como mulheres inteligentes, se é que a senhora me entende?
Sophia abriu a boca para responder, mas a senhora Hartcher falou com antecedência:
— Sim, pois, acham que mulheres inteligentes são perversas e maliciosas - e bufou com o insulto.
— A mente de uma mulher como a da senhora Aubrey, minha cara esposa, é evoluída, e evolução abre caminhos.
— Talvez o senhor esteja me confundindo com uma mulher sem rumo, senhor comandante. O que não sou. Sei muito bem o que quero e onde quero chegar - respondeu Sophia, sem tirar os olhos do oficial de alto escalão.
— Continua a mesma menina, como posso ver - ele riu alto. - Sabe, Aubrey, meu caro, já desejei desposar essa menina.
Os olhos de Jack foram do comandante à esposa e de volta ao comandante.
— Surpreendi seu marido, senhora, pela primeira vez na vida, acredito - e riu alto novamente. - Sim, mas o pai de Sophia não foi a favor. Se o tivesse conhecido, capitão, diria que os dois são a mesma pessoa.
— Meu pai - Sophia Aubrey riu alto - não passava de um romântico inveterado. Sempre quis que eu me casasse-me por amor. E conseguiu!
Jack Aubrey não se encontrava para muitas palavras, ainda estava ressentido com a escolha do comandante, a decepção lhe fora amarga e muito grande. Sophia, porém, percebendo que a conversa do oficial superior se estendia para um caminho desagradável e desconfortável, dirigiu-se à senhora Hartcher, convidando-a para respirar um pouco de ar puro, insinuando que o charuto do comandante a desagradava (muito ao contrário, trazia a tona lembranças memoráveis de seu pai).
— Vejo que ainda está desgostoso com a minha decisão, Jack - murmurou Hartcher aproximando o rosto do ouvido do outro.
— Deveras.
Os dois se fitaram cuidadosamente.
— Cuidado, meu caro - alertou o comandante. - Mas tudo a seu tempo.
— Não irei discutir com o senhor, comandante, no entanto, confesso estar muito decepcionado com sua escolha. Jake Jankins não é o que se pode chamar de um mestre e comandante. - Jack coçou a cabeça e mirou as mulheres na sala ao lado. - Minha Sophia tenta a todo custo fazer-me esquecer disso, mas involuntariamente não posso.
— Eu rogo que sigas o conselho dela - falou Hartcher, apontando disfarçadamente para a esposa do colega.
Passava da meia-noite quando Jack e Sophia foram se deitar. Na verdade, Jack se encontrava esticado na cama e o pensamento contundindo a Relic. Sophia deitou ao lado dele, abraçando-o e recostando o rosto no peito desnudo do marido.
— Eu queria tanto aquela nau - murmurou confessando pela milionésima vez.
— Jack...
— Não, não me faça esquecer o que desejo. Seu corpo me inebria, me aquece e me conforta, mas não quero esquecer que EU poderia estar no comando...
— Você não pode tê-lo, é impossível já que já possui outro comandante. Talvez logo apareça outro navio...
— E outro comandante.
— Ora, Jack querido, me orgulho do homem que você é, com o navio que tem...
— Chalupa - consertou erguendo o dedo. - Chalupa. - E se pôs de pé, saindo do quarto.
Nos dias seguintes não houve melhora no humor de Jack Aubrey e até mesmo os oficiais sophies perceberam que seu comandante estava além do irritadiço. O tom de comando era ácido. E foi mais do que irritado que Jack zarpou para nova busca e apreensão nos mares além. Foram longos e solitários dias para a senhora Aubrey, que foi deixada em casa sem ao menos uma razoável despedida.
A porta do escritório oficial do comandante Hartcher abriu com leveza e por ela passou uma mulher de pouco mais de vinte anos.
— Minha estimada senhora Aubrey - o comandante arreganhou os dentes, solícito, e se aproximou dela com a mão estendida, tomando a dela e beijando-a. - Veio saber de Jack? Quando volta a casa? - indagou indicando uma cadeira.
— Na verdade, comandante, se não for ousadia demais, gostaria de saber o que foi que Jack fez para não merecer o comando de uma verdadeira nau.
O sorriso do comandante Hartcher desapareceu dos lábios e ele ergueu uma das sobrancelhas, indo sentar-se sobre a mesa, defronte a senhora Aubrey.
— Não seria conveniente a senhora vir até aqui com tal intenção, primeiro porque jamais lhe daria tal resposta e segundo, porque não é um assunto que lhe concerne - ele foi seco.
— Pois eu acredito que me diga respeito, sim. Jack é meu marido e é a mim que ele recorre quando algo não lhe faz bem...
— Então é a senhora quem veste as calças na casa do capitão Aubrey? - ele foi sarcástico, ofendendo-a de propósito.
— Não, não senhor. Apenas quero o melhor para ele.
— A Marinha Real também, senhora Aubrey. Mas tudo ao seu tempo.
Ela se calou por um momento, mas logo continuou:
— Eu sei que o senhor tem grande poder aqui, senhor Hartcher, e que o almirante Kipling permite que o senhor escolha os oficiais e suas respectivas naus, mas...
— Mas o quê, senhora? Irá se reportar a ele porque eu não dei uma embarcação descente a seu marido? - Houve outra longa pausa e as feições do comandante tornaram a ser gentis. - É maravilhoso que se importe com a carreira de seu marido, senhora, mas tenho a certeza de que ele sabe cuidar muito bem dela. Agora, se me dá licença, aguardo a visita da condessa de Norwich.
A senhora Aubrey saiu do escritório quieta, com certo arrependimento no peito e com medo de que o comandante Hartcher contasse a Jack sobre sua visita. Ao chegar ao térreo e antes de alcançar a porta de saída, avistou uma mulher alta e muito bem vestida, com cabelos negros presos num ordenado e inovador coque. Pequenas pedrinhas de diamante deixavam o penteado da mulher muito elegante e ostentavam todo o dinheiro que ela deveria possuir. A mulher passou como se não houvesse uma alma viva no saguão e subiu a escadaria de forma decidida, sabendo exatamente aonde queria ir.
A chalupa de guerra Sophie tornou ao porto de Portsmouth com duas presas de alto valor, mas o valor pago por elas havia sido alto, doze dos tripulantes haviam perdido a vida na emboscada e Jack Aubrey não via como poderia remediar a situação da chalupa para poder partir novamente a singrar os mares em busca de honras à coroa.
Para piorar a situação, Jake Jankins ancorara a Relic naquele porto também, e vinha sorridente e com o braço estendido para cumprimentar Jack. A contragosto, Jack apertou a mão de Jake, mas sem deixar transparecer seu desafeto, que só fizera crescer durante sua estadia no mar, e convidou-o para tomar uma bebida, logo mais, quando terminassem os trabalhos no cais.
Ao olhar adiante, Jack viu Sophia sorrindo e acenando e sentiu um calor subir em seu peito, tendo a certeza de que ficaria bem nos braços dela. Caminhou até o cais, abraçou-a e depois de combinarem o horário do jantar, separaram-se, seguindo a seus afazeres.
Às três horas, depois de tomar um agradável banho na estalagem onde se hospedou, Jake seguiu para a taverna onde encontraria Jack para tomarem uma bebida e colocarem a conversa em dia. Andando pela calçada apinhada e observando tudo ao redor, Jake quase não conseguiu desviar do alto homem que abria caminho pela multidão sem qualquer respeito, e ainda pôde vê-lo desrespeitar um grupo de senhoras ao dobrar a esquina. Um baque seco e um encontrão o trouxeram à realidade: ele próprio estava causando tumulto.
— Perdoe-me, senhora, não foi minha intenção - disse reverenciando e apontando o dedo para trás, mas sem qualquer efeito às damas a sua frente. Os olhos da senhora de baixa estatura estavam arregalados sobre Jake e ele pôde ouvir um insulto vindo dela. No entanto, a outra mulher, quase tão alta quanto ele, sorria divertida e o fitava como se o conhecesse.
— Marian - advertiu a mais alta -, creio que o comandante não tenha nos visto. A culpa é totalmente de Sir Ralph. Você viu como ele estava alterado ao sair do escritório do almirante.
Marian, a serviçal, não voltou a falar, no entanto, continuava parecendo contrariada. Jake sorriu para a alta senhora, ao mesmo tempo em que fazia outra reverência e, desta vez, parado, acompanhou o distanciamento das duas mulheres.
Naquela mesma tarde, Sophia saiu para comprar tudo o que precisava para preparar um delicioso jantar ao marido recém chegado. Depois de feita a feira, passou pela casa da senhora Hartcher para entregar uma manta que bordara e foi convidada para tomar chá em companhia dela e de outras amigas, entre elas Janet Jankins, que chegara de Plymouth naquela manhã.
— É óbvio que seu filho é um excelente oficial, mas sua amizade com a condessa deve ter lhe aberto caminhos - era Ema Kipling, esposa do almirante, que tentava fazer Janet Jankins confessar qualquer segredo.
— Ora, Ema, meu filho não conhece a condessa. Ele sempre estudou longe de casa e depois foi para o mar.
— Não venha me dizer que ela não quer o seu bem. Soube que vocês são grandes amigas e que a condessa lhe estendeu os braços quando seu marido perdeu tudo.
— Realmente não poderei negar isso. Ela me ajudou muito e jamais poderei retribuir o favor. Mas não é por ter tal amizade que eu abusaria a pedir mais ajuda. Se meu filho subiu de posto na hierarquia por conta própria ou com ajuda da condessa, não posso afirmar, somente posso dizer que teria sido outra vez privilegiada com essa graça.
— Não se ofenda, Janet - Ema sorriu e tocou a mão da outra -, nós estamos enciumadas, se é que me entende. Quem nos dera ter um pouco de sua afinidade com aquela influente mulher. Você poderia nos apresentar...
Janet sorriu, achando graça e balançou afirmativamente a cabeça.
— O que dizem sobre ela é verdade? - a jovem senhora Aubrey interrompeu as gargalhadas.
— E o que dizem sobre ela? - quis saber Janet. - Suponho que os boatos maliciosos sobre seus costumes e tratamento.
Sophia olhou para a senhora Hartcher e balançou a cabeça assentindo.
— Minha cara menina, a condessa é uma mulher vivida e auto-suficiente. Não precisa de ninguém para lhe dizer o que fazer ou regrar-lhe a vida. E como é viúva, homens tentam se casar com ela. Ou melhor, com seus bens - e Janet riu. - Ou até tornarem-se seus amantes. A condessa, no entanto, é seletiva nesse ponto e muito reservada. Não é qualquer um que chega e a conquista, por isso os homens inventam maldades sobre ela. Não que ela não seja uma pessoa difícil. Claro que é! Assim como cada uma de nós pode ser. Mas ela pode criar desafetos, mais do que nós, porque tem poder e dinheiro.
A explicação pareceu saciar por completo a curiosidade de Sophia, porque ela se calou e se reservou apenas a ouvir o que as outras comentavam. Por fim, depois de se despedir de todas as mulheres, Sophia foi interceptada por Janet quando já estava à porta.
— Você terá a oportunidade de conhecer a condessa, Sophia, e depois me conte o que achou dela, certo?
Jantares e confraternizações serviam tanto para a socialização quanto para as resoluções de transações comerciais. E Portsmouth, sendo um grande centro econômico e militar, tinha certas peculiaridades, como os bailes, as peças teatrais e operas, além dos concertos promovidos pela senhora Kipling, que adorava se mostrar para as outras mulheres. Bem, em verdade, para os outros homens. E uma cidade tão grande e populosa era palco de muitas distrações. Uma delas, em particular, era a comemoração do dia patrício de São George: toda uma gama de atrações era organizada durante meses, mas o que era mais que esperado eram os fogos de artifícios provindos da China, vistos dos grandes e exuberantes jardins do castelo de Portchester, pertencente ao conde de Fareham.
A tradição era regada a muito vinho, comida e dança. E o baile tinha início logo depois do anoitecer, no salão de festas do castelo, onde, como há séculos atrás, um porteiro de auditório era incumbido de apresentar os convidados que chegavam. Os habitantes do castelo estavam empenhados nos preparativos e organização da recepção dos convidados.
O assunto da tarde já havia sido esquecido por muitos, mas a corte era um lugar de desconfiança, logo, deveriam estar cochichando pelos cantos o quão belo era o navio vermelho-sangue da condessa de Norwich e o que diabos ela estaria querendo ali. O navio também não passara despercebido aos olhos dos oficiais da Marinha Real e estes tinham a certeza de que boa coisa não seria, já que a realeza, quando aparecia por lá, sempre decidia aumentar ou cobrar um novo imposto.
— Isto foi entregue ontem pela manhã, querido - Sophia chegava com um abraço e uma carta selada nas mãos.
— Primeiro quero passar um tempo com você, depois poderei ler qualquer coisa que quiser.
— Mas é importante, Jack. Quase se extraviou no caminho, pelo que me disse o mensageiro.
— Tudo bem, quanto tempo poderei mesmo perder com essa leitura - brincou Jack ao tomar a carta das mãos da esposa. Ao se deparar com o selo que lacrava o papel não o reconheceu. E por mais que tentasse se recordar dos selos e brasões que conhecia, aquele em particular jamais tinha visto. Abriu a carta com certo receio, talvez fosse alguma amante que tivesse tomado coragem e quisesse estragar sua relação com Sophia, mas ao passo em que corria os olhos pela letra impecável, inclinada e arredondada, esse pensamento grotesco se afastava velozmente.
— De quem é?
— Da... é da condessa de Norwich - e sorriu ao ler os números que precediam o cifrão. - Ela agradece pelo aluguel do chalé nas colinas.
— Oh, então foi para ela que o senhor O'Connor alugou o chalé - Sophia parecia desconcertada, mas a verdade era que ela estava morrendo de vontade de conhecer a condessa e a mulher estivera tão perto e em sua propriedade o tempo todo. Que cega. - Devemos uma visita a ela - completou empolgada.
— Talvez você deva ir, minha cara. Eu tenho muito que resolver ainda.
A senhora Aubrey, porém não fez a visita, esperou para conhecer a condessa na festa daquela noite.
A condessa de Norwich recebera a fama de insuportável, intragável e insensível por conta dos cavalheiros da corte, o que era de se esperar, porque todos queriam se aproveitar da amizade ou desejavam manter uma relação muito pessoal com ela. E por se mostrar irredutível e deliberada quanto a sua desaprovação a bajuladores e pedantes, os rejeitados trataram de lhe dispor apelidos e descrever inverdades sobre relacionamentos que nem ao menos existiram. Mas o que não se podia negar era sua extrema beleza e o quão importante era sua presença na corte, porque ela fizera estreita amizade com a rainha e lhe fornecia os melhores tecidos que se tornavam magníficos vestidos de gala. Isso porque, o condado de Norwich era emergente centro têxtil, que alcançava mais conceito a cada dia.
O porteiro de auditório anunciou em forte tom:
— Do condado de Norfolk, a condessa de Norwich.
Rostos se viraram naquela direção, especialmente dos oficiais de alto escalão, curiosos para conhecerem a mulher que, contavam, assolava corações masculinos. Os olhos de Jack Aubrey não obtiveram atenção diferente, prenderam-se à condessa de tal forma que causaram constrangimento e ciúme à esposa. Então Jack soltou uma sonora gargalhada, chamando toda a atenção para si, e abriu caminho até onde a condessa tinha parado para cumprimentar o duque de Fareham.
— Não posso acreditar em meus olhos - Jack se dirigiu de forma impertinente à condessa, e os homens, especialmente os da corte, se aproximaram para ouvi-lo. Sophia Aubrey queria morrer tamanha a vergonha que estava sentindo.
Entretanto, a impertinência de Jack não foi sentida pela condessa, porque ela abriu um largo sorriso, surpresa ao fitar Jack Aubrey.
— Por São George! É você mesmo, Slimy?
Ele sorriu ao ouvir o apelido e tomou a mão dela sem cerimônia, beijando-a e então confirmando:
— Sim. Sou eu.
— Não acredito!
— Não? Pois sou eu - disse Jack estendendo os braços e exibindo-se. - Em carne e osso. Aliás, muita carne.
— Não posso acreditar em meus olhos - ela disse depois de morder o lábio inferior e observá-lo.
— E por quê?
— Você, dentro desse uniforme imponente. Convenhamos, Slimy, você jamais foi um seguidor de regras.
— Oh, bem, quanto a isso... - ele deu de ombros ainda sorrindo - a vida muda a gente.
— Contudo, você sempre soube velejar muito bem - concluiu a condessa arrancando um sorriso ainda mais largo do rosto de Jack Aubrey. - Agora me diga quem é a jovem ao seu lado? Ela parece um tanto...
Somente naquele instante foi que Jack se deu conta de que a esposa estava ao seu lado.
— Essa é... essa é... a senhora Aubrey - falou um tanto constrangido, dando espaço para que Sophia pudesse se aproximar um pouco mais da condessa.
— É uma honra, senhora condessa - disse a jovem mulher.
— O prazer é todo meu, senhora, em conhecer a mulher que domou esse coração selvagem.
Os lábios da condessa sorriram, mas Jack pensou ter visto um leve desapontamento nos olhos dela, quando se fitaram pouco depois das apresentações e a condessa não quis permanecer em companhia deles. Decepcionado, Jack fez uma breve mesura, seguindo a condessa com os olhos, e foi quando entendeu o porquê do distanciamento: logo atrás deles estavam alguns cavalheiros cortesãos, gracejando e zombando em voz alta o suficiente para que toda aquela parte do salão ouvisse.
Os oficiais amigos de Jack chegaram com uma chuva de perguntas sobre a condessa, mas este desconversou de imediato, inserindo o nome de Jake Jankins na roda, pois o moço recebera uma condecoração por ter resgatado do mar o comandante do Starlight. Entretanto, Jack tinha o pensamento na mulher do outro lado do salão, lá os cavalheiros da corte entretinham-se em gracejar dos vestidos e ternos dos comerciantes emergentes.
Deitado em sua cama, o dia raiando nublado, Jack continuava a pensar na condessa. Queria ter alongado mais a conversa, queria ter lhe perguntado tantas outras coisas, especialmente sobre como ela se tornara uma condessa, mas conhecendo a família dela como conhecera, sabia que a educação que lhe deram a tornaria uma mulher de grande prestígio.
— O que foi, meu amor? - Sophia entrou no quarto com uma bandeja nas mãos. - Faz horas que você está acordado. Por que não levantou?
Jack nada falou.
— Foi uma noite agradabilíssima.
— Sim, foi - ele retrucou.
— E você se portou tão bem.
Ele riu e se ajeitou na cama para receber o desjejum.
— Vocês, mulheres, são tão estranhas.
Sophia se afastou, indo sentar no largo batente da janela, que dava vistas para o porto.
— Você nunca me disse que conhecia a condessa - ela falou com certo remorso.
— Eu não fazia idéia de que Gussie era uma condessa, essa em especial. - Ao terminar a frase, Jack vislumbrou ciúme nos olhos da esposa. - Fomos criados juntos, você sabe - emendou logo depois, consertando a frase mal pensada.
— A condessa é a tal Gussie? Tive a impressão de que ela fosse bem mais nova do que você.
— Não. Eu a chamava de menina por conta do jeito meigo que tinha...
Se por um lado Sophia estava aliviada pelo marido ter esquecido a rixa com Jake Jankins, agora sua apreensão aumentara. Pensar num homem e num posto perdido era mil vezes melhor do que pensar em outra mulher.
— Tanto tempo se passou. Muita coisa deve ter mudado nela.
— Acredito que sim, da mesma forma como mudou em mim - e Jack sorriu, beijando a mão da esposa. - Mas devo discordar dos adjetivos que a ela empregam. Gussie sempre foi uma boa pessoa.
— Certamente que foi.
Jack fitou a esposa com espanto, não conhecia aquele lado áspero que ela apresentava agora.
— E você, meu querido, não pode ter sido má pessoa, porque o homem que você é hoje excede expectativas.
Jack soltou uma gargalhada, abraçou a esposa e a beijou.
À noite, Jake Jankins foi convidado para jantar na casa do almirante Kipling, onde encontrou a mãe e seu melhor amigo com a esposa, Jack Aubrey.
