Capítulo 1
Omnia bona bonis¹
A porta do gabinete do Diretor de Hogwarts se fechou às costas da mulher altiva e arrogante, que parou sobre os calcanhares por uma fração de segundo e suspirou quase imperceptivelmente antes de dar o passo seguinte. Suas feições não demonstravam qualquer tipo de emoção, assemelhando-se a uma estátua do mais puro e límpido mármore, tanto em sua beleza quanto em sua frieza. Mas, no seu íntimo, ela estava satisfeita e quase em júbilo por ter conseguido galgar mais um degrau no caminho que levaria ela e sua família de volta ao círculo restrito da mais alta aristocracia da comunidade bruxa.
Estava feito. Seu filho retornaria a Hogwarts no ano seguinte para concluir sua educação, após terem sido relevados os seus atos como integrante dos Comensais da Morte. Tudo estava indo bem. Pouco a pouco, os Malfoy conseguiam reerguer os seus negócios e recuperar o respeito e a deferência com que seu nome sempre fora tratado. Era o fim da longa fase negra pela qual haviam passado sob o domínio e comando do Lord das Trevas, e ninguém poderia contestar o perdão que ela e sua família haviam obtido do Ministério da Magia, após a ajuda e proteção que dera a Harry Potter no fatídico episódio da Floresta Proibida.
A Floresta Proibida!
Narcissa Malfoy, com um trejeito rápido, prendeu por trás da orelha uma mecha de seus cabelos dourados que lhe caíam até os ombros em fio reto e lançou um olhar absorto pelas vidraças do corredor em direção àquele local sinistro, enquanto se dirigia para a saída do castelo. Uma ligeira sombra passou por seus olhos e ela sentiu uma leve pressão sobre o seu peito. Era ali que fora decidido o destino daqueles a quem ela mais amava. Fora ali que a sua inspiração em proteger O Menino Que Sobreviveu lhe propiciara a oportunidade de manter sua família viva e unida.
Sua família...
Ela desceu os últimos degraus que levavam ao gramado dos jardins da propriedade e se dirigiu até um ponto mais elevado, ali próximo, de onde podia vislumbrar a copa das árvores que compunham a mata espessa e fechada, onde ela traíra e enganara o poderoso Lord das Trevas. Seu antigo senhor estava morto, e o terror que a sua vingança poderia causar fora enterrado juntamente com seu corpo maldito: nada agora poderia atingi-la ou àqueles que lhe eram caros. Porém, ela não se sentia tranqüila. Alguma coisa apertava seu coração a ponto de levá-la a vagar distraída pelo terreno, que há pouco tempo atrás se transformara no palco da batalha que decidira o destino da humanidade.
Narcissa sentia um vazio em seu coração, uma ausência dolorida que, por mais que seu dia a dia tendesse a voltar à normalidade dos bons tempos, ela não conseguia aceitar e conviver. Apesar de ter seu filho de volta intacto e seu marido livre e anistiado, havia uma perda que ela jamais imaginara que a machucasse e entristecesse com tanta força e intensidade.
A bruxa de sangue-puro caminhou distraída pela trilha que levava morro abaixo, envolvida em seus pensamentos, considerando o motivo de sua agitação de espírito, buscando uma idéia ou palavra que a fizesse sentir-se melhor. Seus pés a levaram além da humilde cabana, que soltava pequenos rolos de fumaça pela chaminé, até a orla da floresta onde tudo se decidira. Um vento intenso balançava os galhos da flora centenária e atirava ao chão as folhas caducas que se juntavam e se agitavam em pequenos redemoinhos pela margem da mata. Mais acima, tons de cinza tingiam o céu da meia manhã, anunciando a chuva que se avizinhava. Ela se encontrava a poucos passos da entrada da floresta, quando uma voz rude a resgatou de seu transe:
— Sra. Malfoy! É a senhora? – Hagrid fez a pergunta da porta de seu casebre, olhando entre espantado e desconfiado para o rosto extremamente pálido da bruxa.
Narcissa, pega de surpresa e desconcertada ao verificar até onde caminhara durante aquele momento de devaneio, levou algum tempo para identificar seu interlocutor, mas quando o fez, tratou-o rispidamente e com sua usual arrogância:
— O que quer? Deixe-me em paz! – respondeu com desprezo, empertigando-se.
— A senhora pretende entrar na floresta? Não é uma boa idéia, mesmo com a trégua entre centauros e bruxos – aconselhou-a o meio-gigante, apesar do tratamento recebido.
A perda e o sofrimento dos últimos tempos não haviam tirado a elegância ou a beleza da bruxa loura e de olhos azuis, bem como sua empáfia e imponência. Ela sequer respondeu às preocupações do guarda-caça, enrugou o nariz para demonstrar seu desgosto em trocar palavras com aquele mestiço e seguiu convicta em direção à região de meia sombra: se ela não tinha motivos para embrenhar-se na mata, a simples opinião do grandalhão era o suficiente para ela contrariá-lo.
— A senhora não pode entrar aí! E a senhora me deve respeito: sou um professor de Hogwarts! – ele ainda esbravejou, enquanto o vulto desaparecia atrás de um carvalho.
"Que insolente" – pensou Narcissa, enquanto saltava por sobre um tronco caído na trilha selvagem –, "Bellatrix saberia como colocá-lo em seu devido lugar!"
Bellatrix...
Finalmente o motivo da sua tristeza e amargura viera à tona e tomara conta de sua mente. Não que ela não houvesse sofrido e lamentado a morte da irmã, a única pessoa a quem ela considerava como um parente, mas ela sabia que sua atitude na clareira ali próxima provocara a ruína do Lord das Trevas e, em conseqüência, a desgraça de sua Comensal da Morte mais fiel: Bellatrix jamais se entregaria aos opositores de seu Mestre e o acompanharia aonde quer que fosse, mesmo que isso significasse morrer com ele.
Narcissa perambulou a esmo por entre as árvores, o peito pressionado por sentimentos de perda e arrependimento; há muito que ela se sentia sufocada pelos fatos ocorridos, há muito que ela buscava uma oportunidade para ficar a sós consigo mesma e extravasar sua dor; e naquele ambiente lúgubre e desolado ela se sentiu a salvo de olhares curiosos e ficou à vontade para dar vazão à sua angústia.
O passado voltou nítido a sua mente, e ela se viu lembrando de detalhes de sua infância, quando ela e Bellatrix eram mais próximas, do jeito como ela prendia os longos cabelos negros num coque sobre a nuca, da maneira como criticava a irmã caçula por sempre usar suas madeixas louras caídas até a altura dos ombros, do orgulho que sentira quando Bellatrix se tornara a preferida do Lord e até da forma como a irmã idolatrava seu Mestre em detrimento dos sentimentos que pudesse nutrir por seus familiares.
Ela jamais imaginara a falta que sentiria de sua irmã, mesmo com seu gênio dominador e atitudes petulantes. E essa constatação a fez parar num certo ponto da trilha que seguia e se entregar ao pranto que há muito sentia necessidade de dar vazão, mas que insistia em reprimir. Narcissa largou-se sobre o manto de folhas pútridas, que forrava o chão da floresta, e entregou-se ao choro, forte, violento e desesperado. Ela não acreditava que pudesse sentir tanto aquela ausência; aliás, a realidade da morte de Bellatrix jamais passara por sua cabeça. Mesmo nos longos anos em que ela esteve reclusa em Azkaban, Narcissa jamais a visitara, mas sabia que ela estava lá e que um dia ela voltaria para seu convívio.
Muito depois, quando suas lágrimas secaram, lhe veio uma sensação de raiva e rancor por sua irmã ter sido arrancada tão violentamente de seu convívio – ela apanhou um graveto que estava próximo e o atirou com toda sua força contra um tronco próximo, tentando extravasar sua ira.
Ela sentia falta até mesmo dos momentos em que Bella era cruel com ela e seus familiares: não importava, ela era assim e era assim que Narcissa a amava – pegou um tufo de folhas em decomposição e arremessou novamente contra a árvore que a assistia impassível.
Sentia falta até mesmo da maneira como ela desprezava Lucius, depois que ele caíra em desgraça perante o Lord: "Ah... você!" – ela se referia a ele ironicamente ao avistá-lo – apanhou outro monte de folhas, juntamente com uma pequena pedra que jazia sob sua perna, e fez menção de também atirá-la ao longe, mas suas forças se acabaram e ela apenas conseguiu soltar um grito longo e profundo, que traduzia toda sua tristeza e decepção.
Narcissa deixou-se cair de borco sobre a turfa úmida, esgotada e rendida pelo momento. Ela se sentia carente e, naquela carência, aninhou a pequena pedra envolta em turfa e folhas decompostas em seu peito e passou a acariciar e girar o pequeno fragmento na palma da mão, como se aquilo lhe desse algum alento, como se pudesse distraí-la de seu pesar; desejou do fundo do coração que as coisas tivessem sido diferentes, que ela também tivesse conseguido salvar sua irmã naquele dia, e que ela estivesse ali ao seu lado, agora, naquele momento. Ela queria sua Bella de volta... Ela queria Bella ao seu lado... Sua Bella... Bellatrix...
Uma brisa gelada e incomum varreu a trilha estreita, levantando preguiçosamente algumas folhas recém-caídas dos galhos mais baixos e sacudindo os arbustos que concorriam por um espaço sob a sombra eterna. Um leve arrepio percorreu o corpo da mulher prostrada ao solo, e o sussurro de uma voz conhecida ecoou em seus ouvidos:
— Cissa?
x x x
¹Para os bons, tudo é bom.
