Heroína

Abro meus olhos. No começo, as imagens entram e saem de foco, as cores são confusas e não há sons. Minha cabeça dói horrivelmente como se houvesse uma tonelada sobre ela. Meus braços e pernas parecem presos a uma superficie fria, lisa e úmida, que eu julguei ser o chão. Minhas lembranças estão confusas e há algo em mim deixando-me tonta, embriagada.

Tento levantar meu corpo, mas não há forças para sustentar meu peso morto. O desejo de entender o que se passa a minha volta é forte, mas não o bastente para manter-me ali vivendo para descobrir. Presa ao chão, quase imploro para que ele me engula de vez, aquela sensasão de esmagamento parece tirar de mim aos poucos a vontade de viver, como se houvesse algum verme maligno corroendo tudo dentro de mim. Minhas emoções, meus movimentos, meus sentidos... está tudo sendo estraçalhado junto com a minha dignidade.

Sinto uma lágrima escorrendo em meu rosto. Tento abrir meus olhos, mas o mundo está girando rápido demais. O céu parece estar no chão e eu me sinto num lugar pior que o inferno. Acho que ainda estou chorando. Não consigo sentir mais nada a não ser aquele medo horrível e aquele desespero que ninguém é capaz de imaginar.

Minutos atrás eu estava nas nuvens. Eu era a melhor em tudo que eu fazia, eu podia ter o que eu quisesse e ser o que quisesse. Eu era incrível, insuperável... mas tudo que tenho agora é medo... visões macabras...

Eu estou em algum lugar pior que o inferno. Ouço gritos e não sei dizer se são os meus. Arrasto-me pelo que continuo julgando ser o chão na esperança de encontrar a saída daquele lugar horrível... mas tudo que encontro é uma pequena seringa com a ponta da agulha suja de sangue. Contém um pouco de líquido branco. Branco como a luz. Branco, puro... com uma aparencia agradável de liberdade.

Estou desesperada! Preciso ir embora dali, preciso voltar pra onde sou incrível e insuperável. Preciso voltar a ser quem eu sei que não sou... e de alguma maneira eu sei que aquele estranho liquido branco poderá me levar aonde eu quero chegar...

Minha cabeça parece doer mais a cada segundo. O mundo continua entrando e saindo de foco. Minha vizão está escurecendo... Será que estou morrendo? Uma ultima tentativa de sair daquele mundo, de me livrar daquela dor...

Mal senti a agulha furando minha pele. Mal senti o liquido que deveria queimar minhas veias ao passar. Mal senti a sensação de liberdade que aquilo deveria me proporcionar. Mas senti bem o medo. O desespero. Ouvi os gritos... e agora eu tinha certeza de que eram de alguém sendo torturado pelo demônio que logo viria me pegar. Eu não estava chorando... devia estar chovendo. Chovendo muito. Eu preciso de um lugar pra me esconder. O demonio vai me pegar. A chuva vai me afogar... os gritos! Os gritos estão me perseguindo...

Tentando encontrar a saída daquele lugar incrivelmente pior que o inferno, eu localizei o que parecia ser uma abertura em uma das paredes daquela prisão. Correndo e derrubando tudo no meu caminho, eu fui direto para esta abertura... Senti um vento frio no meu corpo, uma sensação de liberdade incrível, como se eu estivesse voando. Mas de repente tudo começou a passar rápido, as imagens confundiram-se ainda mais, o mundo girou horrívelmente rápido, senti meu corpo batendo em algum lugar duro, frio... e depois ficou tudo escuro. O peso foi saindo do meu corpo... as dores na minha cabeça foram passando devagar... minha mente passou a funcionar melhor e eu pude perceber quem era na verdade o demonio que iria me pegar. Aquele demonio branco, com cara de liberdade, com cara de quem me levaria onde eu quisesse... Sim, de fato ele me levou à algum lugar. O lugar que ele quis. É isso que ele faz... manipula, controla, eleva... para depois, logo em seguida, destruir.

O demonio, que um dia havia sido minha melhor amiga, minha "heroína", finalmente revelara sua face. Minha vida estava perdida. Ele conseguira o que viera buscar.