Quanto nos pesa a alma?...

Hoje acordei e estava vazio. Tentei, por momentos, percorrer o meu interior, mas nada encontrava.
Esforcei-me por recordar graça de uma memória feliz, mas nada... Branco foi tudo o que vi.

(...)

Em tempos acordei e estava cheio. Cheio de tudo e de todos, farto de amor e melodias, prosas e poemas.
Arrisquei tudo, seduzi todos. A minha vida era perfeita... Pelos menos era o que pensava. A minha alma estava nutrida, não precisava de mais nada.
Os dias eram círculos, limitava-me aos círculos. Ainda hoje percorro a rotunda da minha vida. Pisava e desrespeitava as linhas circulares bem assentes no chão. A minha existência abraçava as festas, o álcool, o prazer momentâneo, o amor, as almas cariciadas por um beijo.
Era Deus, calculava eu. Cálculos bem equacionados por um louco como eu. Todos os dias eram diferentes das noites. Durante a lua posta, enquanto a escuridão cobria o globo, era outro um pouco alterado. Era um morcego: de noite mostrava quem realmente era, enquanto que de dia tentava adormecer a minha verdadeira essência, no entanto não a todo o custo, não a conseguia esconder.
Poderia demorar anos a descrever o meu negrume, a minha mágoa, a dimensão da minha tristeza. Não sei, realmente não sei o que fiz. No que me tornei. No que me converti. Pondo de parte os rodeios, mas recorrendo às perífrases, deixo aqui o meu testemunho.
Fui convidado a participar numa das reuniões organizadas num club nocturno local. "Vai ser interessante, se é que me percebes!" não, não percebia na altura, presumia – essa é a palavra certa. Deixava-me levar sempre. Era tão incapaz, por outro lado, tão influente. A minha fama recheava o ar. Todos, literalmente, me eram súbitos. A minha vontade era ordem, mas até quando durava o meu reinado? Hoje sei a resposta. Prometi a mim próprio deixar-me desta vida, mas com que fim? Tinha amigos, sucesso escolar, era bonito, amado, correspondido, afundava-me em luxos e glória. Apenas me faltavam um par de asas e voar, dizia eu para mim em tom de troça. Era perfeito e assumia.
Uma semana passara e como sempre o fizera, escapava às escondidas para mais uma noite dionisíaca, mas não se enganem - a reunião não era naquele dia.
Não tinha que esperar nas longas fileiras, nem mesmo de mostrar identificação. Todos da elite sabiam o meu nome. "Entra irmão". Entrei. Em meu torno encontravam-se somente faces familiares que para mim estavam completamente gastas, no entanto eu era cínico e mantinha o diálogo vivo por conveniência. Não era difícil, eu era muito bom actor, aliás, toda a minha vida foi uma autêntica peça de teatro, ou um daqueles romances que todos gostam de ler.
O som fazia vibrar todos os vultos que me rodeavam, narcotizando as mentes, alimentando o espírito. Uma ou duas criaturas dirigiam-se até mim. Primeiro era agarrado, depois beijado. Era levado na envolvência até que os nossos corpos se entrelaçassem num só nó. Eram-me oferecidas drogas de todo o tipo - aceitava. O meu corpo estava, com certeza, embuchado de mim. Era sempre assim, infelizmente, não contra minha vontade na altura, mas contra a minha vontade agora. Voltei para casa às sete da manhã, enquanto todos ainda dormiam. Aos poucos e poucos ia escrevendo a minha própria história de terror. Não me faltava imaginação: não precisava de psicopatas nem de espíritos de outro mundo, apenas eu.
Os dias passavam e, de modo notável, os resultados escolares permaneciam sempre iguais. Todos me perguntavam "Como consegues?" eu realmente não sabia, mas não me interessava muito. A matéria que estudava era outra totalmente diferente.
Nem sempre fui assim. Há relativamente pouco tempo era um rapazinho simpático e pequenino. "Que adorável!" me diziam. Não era materialista, nem egocêntrico. Andava de baloiço com a minha mãe aos fins-de-semana e corria radiante pelos corredores lá de casa. Sinto saudades dos velhos tempos. Os meses correram e o destino funesto caiu sobre a minha família: a minha mãe faleceu devido ao cancro que tinha no pulmão e o meu pai suicidou-se com o choque. Foram longos anos de depressão para mim e para a minha irmã, que após a morte dos nossos pais, acabamos por ser separados. Eu fui viver com os meus tios para Lisboa e ela para outro lugar remoto de Portugal que não me chegaram a dizer na altura. Praticamente, era-me dada toda a liberdade do mundo. Os meus tios e minha prima nunca estavam em casa. Fazia a minha própria comida, lavava a minha roupa, enfim, tomava conta de mim. Nos meus tempos livres costumava escrever histórias fantásticas. Escrevia romances, mitos, poemas, abraçava a caneta e era difícil despegar-me. As folhas cobertas de tinta azul e os meus personagens eram a minha única companhia.
Quando finalmente alcancei o secundário, foram várias as mudanças que me sucederam. Tudo em mim se transformou. A princípio estava nervoso, ninguém me conhecia. Assentava-me e aconchegava-me fechado em mim no canto da sala para que ninguém notasse a minha presença. Mergulhava a minha mente nos livros e nada me distraía.
Foi na aula de Matemática, a disciplina predileta, que conheci uma rapariga bem-parecida. Nesse momento a minha vida começou a encovar-se.
A rapariga que a princípio parecia ser simpática mostrou ser bastante peculiar. Sempre extravagante, indisciplinada, indócil, o que por alguns dias me surpreendeu, mas que com o tempo me fui acostumando. A minha personalidade havera-se permutado. Aconteceu tudo tão rápido, mas soube tão bem. Era livre, julgava eu. Passado pouco tempo, já era conhecido em todas as escolas e todos falavam de mim. Os meus tios pagavam-me tudo o que queria para compensar as horas que me deixavam sozinho. Roupas de marca, saídas à noite e magnificência foi só o começo da criação do monstro em que me tornei. Queimei todas as recordações dos meus pais e mandei fora a roupa juntamente com todas as histórias que tinha criado. O rapazinho feiticeiro, o aventureiro, as rimas e os ditongos encontravam-se agora no entulho. Não sentia falta das minhas criações, aliás, tinha vergonha. Ninguém as poderia descobrir – seria alvo de chacota de certeza.
Pouco tempo depois, a minha irmã veio visitar-me juntamente com os meus avós paternos. Estavam a viver em Reguengos de Monsaraz. A menina era bonita e loira como eu, no entanto não a sentia tão próxima. Sabia certamente que era a minha irmã, mas não era o mesmo. Pela hora do jantar voltaram para Évora.
Lembro-me que numa noite, enquanto ninguém estava em casa, convidei quase todos do secundário para uma festa. A rapariga que conheci na aula de Matemática veio também. Levei-a para o quarto e tranquei-me lá dentro. "O que estás a fazer?" perguntou ela, enquanto eu beijava suavemente o seu pescoço. Olhamo-nos os dois. Fechei os olhos e foi aí que aconteceu. Não a amava nem sentia culpa, apenas queria experimentar, já estava na altura. Consegui ser muito insensível. Quando saímos do quarto não estava quase ninguém na festa. Comecei a arrumar tudo para que os meus tios não desconfiassem.
Vivia completamente cego. Realmente via, mas não via.
Sexta chegara, era o dia da reunião. Os meus amigos apanharam-me à porta de minha casa e fomos todos juntos para o club nocturno. Pela primeira vez depois de ter mudado, senti-me estranho, como se tivesse uma bola de bowling na barriga fazendo peso. Previa algo, não sabia bem o que era. Tentei ignorar.
A música, as pessoas, as luzes e as drogas funcionaram como narcotizantes. Bebi vários copos. Eram-me oferecidos de graça, porquê ignorar? Shots e Martinis foram só algumas das bebidas que ingeri em excesso. Quando comecei a desordenar os conceitos concretos do mundo racional decidi parar. Uma rapariga aproximou-se de mim, de botas altas e o top completamente decotado. Não lhe vi bem a cara, pareceu-me bonita e também me agradou a sua voz. Sussurrou-me ao ouvido e embora não tenha ouvido nada, decidi assentir com a cabeça. Ninguém no seu perfeito ou imperfeito juízo rejeitaria a companhia de uma bela jovem. A moça puxou-me o braço e foi aí que comecei a reparar nos seus traços e curvas notavelmente bem definidos.
Embatia contra os dançarinos amadores que se encontravam anestesiados pelo ritmo. O som abafado desvanecia-se à medida que era arrastado pela pequena. Encostou-me a uma parede da casa-de-banho e docemente iniciou o fim da minha vida. Iniciar o fim... Estranho, não?
Fui encontrado caído no chão por um dos meus amigos que me esbofeteou de imediato. "Estás bem?". Levou-me para sua casa. Quando, após cem anos de sono, abri os olhos tinha todos os meus amigos à minha volta "Que aconteceu?", "Que se passou?", mas eu não sabia... Não me lembrava. De todas as vezes que me tentava recordar de algo, nada me ocorria. Era como tentar lembrar-me de alguma coisa que nunca aconteceu, só imaginando ou sonhando.
Sentia-me sujo, impuro, contaminado. Não fui logo para casa. Passei por um parque primeiro. Admirava a alegria das criaturas. Tanta felicidade, tanto amor. E eu? Não era digno de ser amado. Sempre (com esperança) disse que um dia encontraria realmente o amor da minha vida. Esse dia nunca chegou.
Algum tempo depois decidi examinar-me através de uma introspecção. Podia ter sido contagiado com o vírus da Sida "Não, não penses nisso".
Nesse dia cheguei a casa ninguém lá estava. Pela primeira vez precisava de companhia, pela primeira vez sentia falta dos meus amigos, da minha mãe e do meu pai.
Subi até ao quarto e comecei a chorar. Dizem que a dor é a fraqueza a sair do corpo, mas sentia-me tão fraco por mais que chorasse. As gotas incolores não paravam de cair, estavam fora do controlo. Deplorava a miséria da minha vida. Que final tão sorumbático. Puxei de um caderno e comecei a escrever. Adormeci. Não sonhei. Acordei e estava tudo branco. Branco foi tudo o que vi. Tentei, por momentos, percorrer o meu interior, mas nada encontrava.
"As palavras, as letras, a tinta e o papel foram comigo. Sucumbi. A caneta foi a única coisa que por momentos me prendeu à vida, agora que rolou e caiu no chão já nada me algema. Vá, leva-me, leva-me para outro lugar que não este. Porque continuo aqui? Espero ter servido de exemplo. O mal foi que este exemplo me roubou a vida, mas pode ser que salve duas ou três, talvez mais.
Vou agora, na esperança de um dia voltar, quem sabe... De que me valeu possuir o mundo? Reinar o Universo? Explodir grandeza? De que nos vale tudo se acabamos por ficar sem nada?
Choro novamente. Choro por nada e choro por tudo. Lamento a minha história. Hoje acordei e agora coloco a questão: Acordarei de novo ou dormirei para sempre?"

Em tempos acordei e estava cheio. Cheio de tudo e de todos, farto de amor e melodias, prosas e poemas...

Vitor Brito