Olá, gente. Mais uma adaptação de um livro que eu simplesmente adoro. Essa história é mística e realmente fascinante. Gostaria de fazer alguns comentários pessoais a respeito dela.

Primeiro, o Inuyasha nessa história é meio homem e meio lobo, o que eu achei extremamente parecido com o Kouga. Pensei em mudar pra deixar ele meio homem e meio cachorro, mas percebi que ia ter que fazer alterações demais na história, então deixei assim mesmo.

A segunda coisa é que esse livro realmente se parece com a história original de Inuyasha e Kagome, especialmente nos acontecimentos do Kanketsu-Hen, mas não vou dar detalhes, é claro.

Espero que gostem da leitura ;D

...

CAPÍTULO I

Carnebwen, Cornualha. Primavera de 1815.

Como será enfrentar os credores sem se preocupar em ar rumar dinheiro para pagar as contas?, perguntava-se Kagome ao calcular o que devia.

Com um suspiro, deixou a caneta de lado e alongou as costas. Fazia um mês que a prima Kikyou falecera. Embora nunca houvessem se dado realmente bem, ao menos faziam companhia uma à outra.

O vento balançava a cortina, prenunciando uma tempes tade. A tranquilidade da casa próxima ao vilarejo e o anún cio de chuva a fizeram pensar na Espanha e nas risadas do pai e seus camaradas conversando até tarde da noite.

Kagome fechou os olhos, lembrando-se dos cadáveres da queles mesmos homens espalhados na capela, na Espanha, e a barriga do pai aberta num corte profundo que descia do peito até o abdômen, como se este houvesse sido rasgado pelas garras de um animal selvagem.

Com um calafrio, admitiu que era melhor estar ali. Não sabia como iria pagar as contas, mas ao menos tinha comi da, bebida e uma moradia que não se movia ao sabor de ordens vindas da Inglaterra. Ali estava segura.

A chuva não tardou a chegar: pingos grossos se chocando contra o telhado. O barulho era tão forte que ela quase nem percebeu o ruído de algo se movimentando lá fora. Imóvel, aguçou os ouvidos para escutar melhor, porém o ruído não tornou a ocorrer; só mesmo o barulho da chuva e das ondas do mar à distância.

Ao tornar a relaxar, um uivo agudo cortou o ar. Parecia vir do vilarejo e logo foi seguido por outros uivos, estes vin dos dos montes ao redor de Carnebwen.

Cães de caça, pensou.

Sem poder evitar, lembrou-se dos contos sobre seres mágicos que o pai contava ao redor da fogueira do acampa mento. Seres sobrenaturais buscando vítimas para saciar sua sede de sangue. Preocupada, levantou-se e foi fechar a janela.

Em seguida sorriu, dizendo a si mesma que tais seres não existiam, ou ao menos não existiam mais. Eram his tórias de antigamente, de uma época em que se dizia que os demônios andavam à solta. Lendas. Mesmo porque os uivos haviam cessado e a chuva já amainara, trazendo de volta a calma do campo.

Seu pai era obcecado por histórias sobrenaturais, no en tanto ela sempre se recusara a acreditar em superstições. Os uivos que ouvira certamente provinham dos cães de caça de lorde Hakudoshi perseguindo algum caçador ilegal. Bom se ria que o pobre caçador conseguisse escapar, caso contrário, os cães o destroçariam.

O relógio bateu dez horas da noite, fazendo-a pensar que havia gastado um tempo enorme calculando o que tinha de pagar sem ter recursos para tanto. Como não havia nada mais a fazer, melhor seria tomar um chá para se aquecer.

Ajeitando o xale sobre os ombros, foi para a cozinha, nos fundos da casa. A única vela acesa não bastava para dissi par as sombras e, de repente, ela pensou ouvir outro ruído, desta vez vindo do quintal.

Uma lufada de ar soprou, apagando a vela e escurecen do tudo. Ao aguçar os ouvidos, notou distintamente o som de uma respiração forte, quase ofegante, do lado de fora da porta.

Havia alguém ali!

Sentindo o sangue congelar, Kagome prendeu a respira ção e permaneceu imóvel. A porta fechada não bastava para fazê-la se sentir segura. Afinal, a casa ficava no meio do campo e longe do vilarejo. Não teria para onde correr, e gri tar também não adiantaria.

A porta se abriu de repente e o vulto de um homem apa receu. Ele ficou parado sob o umbral, a cabeça pendida para baixo, a mão tocando o batente para sustentá-lo. Parecia ferido como se viesse de uma batalha. No ar, um cheiro de suor misturado a sangue confirmava que ele estava machu cado. Um aroma ao qual ela se habituara nas incursões mi litares ao lado do pai.

Quando o estranho deu dois passos cambaleantes e adentrou a cozinha, Kagome prendeu a respiração. Não podia ser um caçador que entrara ilegalmente nas terras de lorde Hakudoshi. O desconhecido tinha o porte de um guerreiro e, mesmo ferido, sua presença demandava respeito. Era forte e tinha cabelos longos, agora ensopados pela chuva.

E a fitava com um olhar profundo; talvez, ameaçador.

— Você é Kagome Higurashi. — Não era uma pergunta, mas uma afirmação.

Engolindo em seco, ela meneou a cabeça, concordando.

— Vim buscar o relicário.

Antes que Kagome pudesse dizer algo, ele deu outro passo em sua direção. Então curvou o corpo e dobrou os joelhos, desabando sobre o chão de pedras da cozinha.

InuYasha acordou ouvindo o som suave da chuva no telhado. Seu corpo doía, sua visão estava turva. Suava, sentindo frio e calor ao mesmo tempo.

Sentia também o sangue circulando nas veias e espa lhando sua energia vital.

Seu corpo se curava rapidamente dos ferimentos, como acontecia com todos de sua espécie. Todavia, ainda levaria algum tempo para se restabelecer totalmente e ficar pronto para outra luta. Os Keun Marow deviam estar por perto, e certamente nenhuma mágica seria capaz de manter os Cães afastados, caso sentissem o cheiro de seu sangue ou do de Kagome Higurashi. Tal como ele, aqueles endemoniados possuíam olfato apurado.

Apesar da dor, ele se sentou. Encontrava-se no chão da cozinha, perto do fogão a lenha. A moça o enrolara em co bertores, porém ele ainda vestia as roupas molhadas. Ela havia retirado suas botas, o que demonstrava certo senso de hospitalidade.

Ao apalpar a cintura, notou que ela recolhera a espada que ele sempre trazia consigo.

Antes mesmo de vê-la, InuYasha sentiu seu cheiro.

— Quem é você?

Ao virar rapidamente a cabeça, ele a viu sentada numa cadeira, a poucos metros. Com uma pistola nas mãos, a jo vem o mantinha sob mira.

— Costuma receber visitas com uma arma? — ele perguntou, erguendo ligeiramente a mão num gesto de rendição.

— Visitas, não. Intrusos, com certeza. Ainda não respon deu à minha pergunta. Quem é você?

A despeito da situação, InuYasha não pôde deixar de se im pressionar com a coragem da moça. Isso era bom, pois ela precisaria de muita coragem para enfrentar o que estava por vir, principalmente se os Cães os descobrissem.

— Meu nome é InuYasha Taisho. Faz dois anos que a venho procurando, srta. Higurashi. É uma mulher difícil de rastrear, até mesmo para alguém com os meus poderes — comentou com um leve sorriso.

— Que poderes são esses? — quis saber Kagome, surpresa. Uma surpresa que não passou despercebida a InuYasha. — Se é um caçador que entrou ilegalmente nestas terras, saiba que lorde Hakudoshi é impiedoso nesses casos.

— Pareço um caçador ilegal? — retrucou InuYasha, fitando-a nos olhos e sentindo que ela se encontrava tensa. A besta dentro dele era capaz de perceber quando os outros tinham medo. — O que fez com minha espada?

— Escondi. Você a terá de volta se responder às minhas perguntas.

— Melhor devolver minha arma — ele replicou, ten tando não soar ameaçador, e já notando que não valeria a pena discutir com a moça que encontrara após tanto tem po de procura.

— Não confio em você.

— Se tivesse intenção de machucá-la, não necessitaria de minha espada. Meus dedos ao redor de seu pescoço se riam suficientes.

— Crê que vai conquistar minha confiança ao dizer tais coisas? Se não é um caçador ilegal, por que os cães o perse guiam? Está ferido, vi o sangue em suas roupas.

— Não é tão grave quanto parece — assegurou InuYasha, sabendo que a cada minuto que passava seu corpo se resta belecia dos machucados. — Não eram cães de caça que me perseguiam. Eram os Keun Marow. Mas não conseguiram me vencer, e Naraku certamente os punirá por isso.

— Vou perguntar mais uma vez — continuou Kagome, mantendo a pistola pronta para atirar. — Quem ou o que é você? O que quer de mim? Se for necessário, posso completar o trabalho que esses tais Keun Marow não terminaram.

Respirando fundo, InuYasha controlou a irritação. Teria de fornecer algumas explicações, mas não podia revelar todos os motivos que o haviam levado até ali.

— Eu já disse meu nome. Eu era amigo de seu pai. Ele guardava algo para mim: algo valioso e que precisava ser ocultado. Um relicário. Fui ferido na mesma emboscada que o matou. Quando me recuperei, você havia desaparecido, e o relicário também.

— Conheceu meu pai? — quis saber Kagome, surpresa.

— Sinto muito que ele tenha morrido — reafirmou InuYasha, desvencilhando-se dos cobertores. O movimento fa zia os machucados arder e queimar, porém ele prosseguiu. — Tentei encontrar informação a seu respeito nos registros do Exército, mas não a mencionavam.

— O Exército prefere não guardar informação a respeito dos órfãos dos soldados que morrem nas batalhas — retru cou Kagome, irônica.

— Seu pai a amava muito — assegurou InuYasha, erguendo-se para se pôr em pé a despeito da dor que ainda sentia.

— Ele me amava como um oficial ama o subalterno que lava suas meias e prepara a comida.

— Seu pai lhe garantiu um futuro, pois a tornou herdei ra de seus bens.

— A maneira como fala faz parecer que meu pai era um santo. Os bens que ele me deixou ele roubou dos franceses... Mas não vou reclamar. Embora eu já não tenha mais nada, ao menos isso me possibilitou voltar para cá.

De repente, Kagome cerrou os olhos um instante.

Será que percebe que posso ler seus pensamentos?, pen sou InuYasha, dando um passo na direção da moça. Ele tinha esse poder, mas os mortais normais não eram capazes de sentir quando tentava penetrar-lhes a mente.

A menos que ela...

Não pôde terminar o que pensava, pois Kagome tornou a abrir os olhos e ergueu ainda mais a pistola.

— Eu avisei de antemão, mas não quis me levar a sério — ainda disse antes de atirar.

Enquanto sentia a bala entrando pelas costelas, InuYasha deu um salto e se atirou sobre ela. O tiro não seria capaz de matá-lo, e também desse ferimento se recuperaria. Sem hesitar, ele a derrubou no chão e a imobilizou, deitando-se sobre seu corpo.

— Solte-me! — gritou Kagome começando a lutar, mas InuYasha foi mais rápido e fez a pistola voar longe com um golpe.

— Não a soltarei enquanto não prometer que não vai mais tentar me matar. Precisamos conversar.

Kagome ainda tentou acertá-lo com os punhos cerrados, porém ele segurou seus braços, imobilizando-a totalmente.

— Posso matá-lo depois de conversarmos? — ela pergun tou com sarcasmo, os olhos castanhos faiscando.

InuYasha a fitou nos olhos. Mesmo furiosa, ela era uma linda mulher.

— Depois que conversarmos, talvez não queira mais me matar. Quem sabe até vá me ajudar — sugeriu, fitando os lábios carnudos e de contornos suaves da bela srta. Higurashi. Lábios que pediam para ser beijados. — E já que estamos nesta posição... — Fazia tempo que não se deitava com uma mulher e seu corpo já começava a reagir, excitado.

— Arrogante, prepotente! — exclamou Kagome, recome çando a lutar.

Nesse momento, os uivos tornaram a soar, e desta vez não se encontravam muito longe.

Os Cães me farejam, pensou InuYasha.

Fazendo-a calar-se com um olhar, ele sussurrou as pala vras mágicas que poderiam despistar os Keun Marow. Eles até poderiam se aproximar da casa, mas a mágica os faria perder o rastro e, com um pouco de sorte, seguiriam adiante.

— Mantenha-se quieta — comandou ao ouvir ruídos lá fora.

Os ruídos logo cessaram e o silêncio retornou.

— O que estava lá fora? — sussurrou Kagome ao notar que ele relaxara. Quando InuYasha fez menção de se levantar, ela o reteve pelo braço. — Responda!

— Os Keun Marow. Foram embora, mas não conseguirei despistá-los por muito tempo. Poderia lançar uma mágica para envolver o povoado inteiro, mas perdi muito sangue e não sei se serei capaz. Não posso garantir que eles não nos encontrem mais tarde.

Apesar do perigo, InuYasha não pôde deixar de sentir o cor po firme de Kagome sob o seu. Mesmo amedrontada, o brilho castanho de seus olhos e os lábios rosados eram um convite às carícias. Ele sabia que a lua já se erguera no céu e isso o tornava ainda mais sensível.

Num impulso, inclinou o rosto e a beijou na boca.

Kagome reagiu, lutando para se desvencilhar, mas ao cabo de um instante acabou se rendendo. Relaxando, enlaçou os braços pelas costas do intruso e aceitou o beijo, enquanto o puxava para mais perto.

A resposta de Kagome excitou InuYasha ainda mais. Na po sição em que se encontrava, ele sabia que seria capaz de obter uma rendição total caso quisesse. Bastaria puxar a saia, livrá-la da roupa de baixo e penetrá-la...

Era tentador! E, pensando bem, que motivos ele teria para não fazê-lo?

Kagome recobrou o senso rapidamente. Virando o rosto, in terrompeu o beijo. Acertou-o com o cotovelo no local onde a bala havia perfurado a costela.

Com um uivo de dor, InuYasha rolou para o lado, libertando-a. Erguendo-se rapidamente, ela limpou a boca com as costas da mão.

— Quem pensa que é? — perguntou num tom que mistu rava confusão e desprezo. — Não pode simplesmente inva dir minha casa, me atacar e agir como se eu devesse lhe ser grata. Quem vai me salvar de você?

InuYasha a fitou de alto a baixo, apreciando o corpo que despertara seu desejo. Mas não podia seguir adiante e sedu zi-la, pois isso só tornaria as coisas mais difíceis. Não podia se envolver com quem em breve teria de matar.

— Foi somente um beijo e nada mais. Não tornará a acontecer — garantiu a contragosto.

Kagome não mais se moveu depois que InuYasha a fez sentar-se e trouxe uma xícara do chá que permanecia morno sobre o fogão a lenha. Os acontecimentos inesperados a haviam deixado sem ação.

— Vou revistar em torno da casa — ele disse, caminhan do para a porta.

Ao vê-lo sair, Kagome sentiu-se mais segura. A sensação não durou muito, substituída por uma impressão diferente: a de que nunca mais estaria segura.

Perturbada, tomou um gole do chá. Seguiu rememoran do o que tinha ouvido. O intruso não parecia ser um soldado, pois exalava mais força e poder que qualquer combatente, por mais corajoso que este fosse. Sendo assim, o que o teria levado ao campo de batalha?

Ele mencionara um relicário, um tesouro valioso que seu pai mantivera seguro, mas a história era confusa. Talvez se tratasse de um artigo pilhado na guerra.

— Em breve amanhecerá. Não poderão nos atacar de pois de o sol aparecer.

Ao erguer o olhar, Kagome deparou com InuYasha em pé à sua frente. Entretida com os próprios pensamentos, nem perce bera o tempo passar.

— Está se sentindo melhor?

— Sim, o chá ajudou. Obrigada.

— Achei minha espada lá fora — ele avisou, tocando a arma que trazia presa à cintura. — Espero que já confie em mim o suficiente para não achar que pretendo matá-la.

Ao ouvir aquilo, ela refletiu que na realidade não tinha certeza de nada. Afinal, o que havia mudado desde que aquele intruso invadira sua casa no meio da noite? Que garantia podia ter a respeito do que ele pretendia? Havia tantas perguntas sem resposta.

— Sei que precisa saber mais e que não teve respos tas para todas as perguntas — ele declarou de repente. — Contarei o que posso contar, mas não posso contar tudo; mesmo porque há coisas nas quais você não acreditaria.

— Está vendo? São coisas assim que me dão a sensação de estar vivendo um pesadelo. Você fala como se pudesse ler meus pensamentos, caminhou normalmente após ter leva do um tiro e recitou palavras mágicas para que esses tais Cães não possam farejá-lo. Como quer que eu me sinta?

— Sou capaz de ler alguns pensamentos — InuYasha ex plicou, puxando uma cadeira para sentar-se ao lado dela.

— Mas só os mais focados e fortes. Nasci com esse dom e meu corpo se cura rapidamente de ferimentos. Tenho tam bém o poder de utilizar magia para lutar. Na minha espécie, somos todos assim.

— E qual é a sua "espécie"? — quis saber Kagome, tentan do se concentrar no que ouvia e não se deixar levar pela perturbação que a proximidade dele causava.

Amhas-draoi. Somos mais conhecidos como Os Outros. Seres nascidos entre o mundo sobrenatural e o mundo humano.

— Como feiticeiras, magos e fadas? Isso é lenda. Tais seres não passam de mitos ou histórias para se contar ao redor de uma fogueira.

— Você queria respostas e eu as dei. Não posso obrigá-la a acreditar no que digo.

— E essas criaturas que o perseguiam? Também são amhas-draoi?

— Sim, mas pertencem ao lado negativo do mundo so brenatural. Há algo mais que precisa saber: não é a mim que tentam capturar e sim você. Querem capturá-la para se apoderar do relicário que você guarda.

Sem se conter, Kagome ergueu-se e bufou, incrédula.

— Basta, já ouvi o bastante. Não sei o que pretende ao me dizer tanta bobagem, mas não conseguirá me amedron tar, se é o que quer.

— Preciso reaver o relicário — disse InuYasha, tocando-a no braço. — É uma caixa não muito grande, antiga e adornada com pedras preciosas. Lembra-se agora?

Kagome semicerrou os olhos, tentando rememorar os dias após a morte do pai: a dor, a confusão, e por fim a excitação de partir do acampamento militar e retornar à Inglaterra.

— Creio que me lembro de algo assim. Mas faz muito tempo que não vejo essa caixa. Talvez tenha se perdido du rante minha viagem de volta... ou tenha sido roubada.

— Não é a primeira vez que o relicário some, mas creio que você ainda o tem, apesar de não se lembrar.

Cansada daquela conversa, Kagome resolveu parar de discutir.

— Vou dormir. Pode pernoitar aqui embaixo, mas eu o quero longe daqui quando eu acordar, amanhã.

— Confia em mim o bastante para me deixar permane cer em sua casa enquanto dorme?

— Não confio em você, mas admito que poderia ter me machucado se quisesse. De qualquer forma, tenho mais medo daquelas coisas que rondavam lá fora — explicou Kagome, erguendo-se e se preparando para subir para o pe queno quarto, na parte superior da casa.

— E quanto ao relicário? — InuYasha a reteve pelo braço.

— Boa noite, sr. Taisho. E, se eu tiver sorte, adeus. — Apesar de estar decidida a subir e se recolher, Kagome não conseguiu se afastar. InuYasha a fitava com uma expressão sé ria e profunda, porém se manteve calado.

Ela deu-lhe as costas e se afastou rumo à escada.

— Durma bem, Kagome Higurashi. — Ela o ouviu murmu rar lá embaixo, antes de fechar a porta do quarto.

Fitando o escuro parque londrino, do outro lado da janela, Naraku Onigumo tentava aparentar indiferença. Interiormente, porém, estava furioso.

— Vocês o perderam?

— Pensamos que a dor pela morte da irmã fosse enfra quecê-lo e desorientá-lo — disse com voz sibilante uma das duas criaturas sombrias que tinham vindo lhe trazer notí cias sobre a busca.

A simples menção ao assassinato que haviam perpe trado fez Naraku sorrir, mas ele logo recuperou o tom circunspeto. InuYasha Taisho, filho primogênito da família, era um problema.

Naraku tornou a fitar seus comandados. Os Keun Marow eram caçadores a mando das forças sobrenaturais negati vas, e tinham o apelido de Cães pela capacidade de farejar. Além disso, quando encontravam outro ser sobrenatural, o destroçavam e se alimentavam de sua carne e sangue, o que lhes trazia ainda mais força e energia. Eram temidos tanto pelos humanos quanto por outros seres mágicos. Malignos rastreadores, eram praticamente infalíveis.

— Você nos instruiu a seguir InuYasha à distância — pros seguiu o que aparentava ser o chefe do grupo. — Disse que não devíamos obstruir seu caminho até ele encontrar o relicário. Fizemos o que nos mandou fazer.

— Não são capazes de pensar por si próprios? — per guntou Naraku, virando-se com gesto brusco. Numa reação automática de defesa, o Cão maligno arregaçou os dentes para se proteger de um golpe que não ocorreu.

— Tínhamos receio de contrariá-lo, senhor — respondeu o Keun Marow. — Perdemos o rastro porque InuYasha decerto aplicou uma mágica para esconder seu cheiro. Uma mágica que só foi possível por causa de um odor novo que farejamos e que também não conhecíamos... de uma entidade desconhecida, a qual não pudemos identificar.

Uma mágica nova? Uma entidade desconhecida? Algo ou alguém que nem seres tão ancestrais quanto eles sabia o que era?

Interessante, pensou Naraku. Um dado novo que não dimi nuía a importância da caça a InuYasha Taisho, e acrescentava algo inesperado à missão.

InuYasha encontraria o relicário para ele, e depois que a caixa fosse aberta, possibilitando a reunião dos três irmãos Onigumo, os Cães poderiam finalmente se alimentar da carne e sangue de InuYasha, assimilando assim também sua magia. Alimentados pelos dons de InuYasha, eles se tornariam um exército invencível.

— Muito bem, prossiga na busca. Quero que encontre InuYasha Taisho, mas instrua seus homens a se manterem aten tos a esse novo odor — disse, aproximando-se e agarrando o Cão-chefe pelo pescoço como se fosse estrangulá-lo. — Não quero ouvir que falharam outra vez, e não subestimem InuYasha. Ele é um ser híbrido e em suas veias também corre sangue mortal. Porém, tem um poder jamais visto nos últi mos mil anos. InuYasha pode destruir a todos vocês se quiser. Devem ser gratos por ele ter uma honra descabida que o im pede de agir assim — completou, soltando o pescoço do Cão e empurrando-o para longe. Então, virou-se para a outra criatura maligna e continuou. — Tragam-me o relicário e InuYasha Taisho. O relicário não pode ser danificado, pois a vida de meus dois irmãos e nossa reunião depende da integrida de desse objeto sagrado. Quanto a InuYasha, não me importa em que estado o tragam, desde que esteja vivo.

— E quanto à outra fonte de magia que nunca vimos? — perguntou o segundo Cão.

— Quero que a tragam inteira também. Estou curioso para estudá-la.

Kagome desceu, na manhã seguinte, sentindo-se surpreen dentemente descansada. No fundo do coração, esperava ver que os eventos da noite anterior haviam sido alucinações causadas pela preocupação e pelo cansaço; ou talvez as his tórias supersticiosas do pai a houvessem influenciado mais do que imaginava.

O relógio acabava de bater sete horas e era o único som rompendo o silêncio. A sala se encontrava vazia, assim como a cozinha, e as portas se encontravam fechadas.

— Sr. Taisho? — chamou, mas não obteve resposta. — InuYasha? — repetiu. O silêncio permaneceu.

Devia ter sido mesmo imaginação, e sua vida prossegui ria monótona como de costume.

Afinal era o que ela desejava: uma existência sem sur presas ou fatos inesperados.

Mesmo assim, admitiu que se sentira excitada ao acor dar, como se algo importante finalmente fosse acontecer; algo capaz de mudar a maneira como vivia.

Ao entrar na cozinha, notou os cobertores sobre o chão e uma cesta com ovos sobre a mesa que não estavam ali na noite anterior. Ao lado da cesta, uma mensagem: Trazidos pelo sr. Freethy.

A mensagem fora assinada por InuYasha, provando que os fatos da noite anterior realmente haviam ocorrido. InuYasha Taisho era real!

Kagome suspirou. Os mexericos no vilarejo não tardariam a surgir quando soubessem que ela hospedara um desco nhecido. Demorara dois anos até que esquecessem o pas sado escandaloso que lhe imputaram, mas se o sr. Freethy havia encontrado InuYasha, o povoado inteiro já devia estar a par de sua presença na casa onde ela habitava sozinha.

Irritada, ia voltar para a sala quando um pequeno objeto dourado no chão da cozinha lhe chamou a atenção. Ao abaixar-se para recolhê-lo, viu que se tratava de um anel com a imagem de um lobo com a cauda entre os dentes. Ela vira um anel idêntico no dedo de InuYasha, mas aquele era muito menor e, portanto, não se tratava do mesmo. Decerto ele o perdera sem perceber. Será que retornaria para reavê-lo? Saberia que o havia perdido ali?

Kagome embrulhou o anel num lenço e o guardou no bolso do vestido. Por hora, o melhor era escondê-lo consigo.

Agora tinha de lavar o rosto, tomar o desjejum e procu rar uma solução para seu problema mais urgente: conseguir adiar outra vez o pagamento de mais um mês de aluguel atrasado. Naquela manhã encontraria o sr. Houjo, dono da casa onde ela vivia. Para tanto colocara o melhor traje que possuía na esperança de adquirir um ar respeitável.

Se a notícia da presença de InuYasha em sua casa se es palhasse, tudo estava perdido. Os habitantes do pequeno vilarejo entre os montes tinham uma moral rígida e jamais a perdoariam por hospedar um homem.

Lembrou-se do beijo que InuYasha lhe roubara. Depois de vinte e dois anos acompanhando o pai e outros soldados, Kagome sabia como os homens agiam e pensavam. InuYasha não era exceção à regra, e demonstrara fazer uso da pior arma da espécie masculina: a sedução impingida pela força.

Com um suspiro, foi terminar de se aprontar. Ao sair, notou a grama e as flores ao redor da casa pisoteadas. Na parede, marcas de lama, como se mãos sujas tivessem se apoiado ali. No chão de terra, pegadas profundas.

Os tais Keun Marow, pensou com um calafrio. Os seres sobrenaturais que os supersticiosos tanto temiam e cha mavam de Cães Caçadores pela capacidade que tinham de farejar e rastrear sua presa. Tinham forma humana, mas dentes pontudos e afiados, capazes de estraçalhar as víti mas. Se de fato existiam, InuYasha os chamara ali.

Subitamente, a paz que circundava a casa desapareceu, e o silêncio se tornou opressivo. Perturbada, Kagome apressou o passo em direção à trilha que levava ao vilarejo. Precisava encontrar outras pessoas para se sentir segura.

Começou a caminhar cada vez mais rápido, rumo a Carnebwen, pensando que até mesmo o temido encontro com o asqueroso sr. Houjo seria bem-vindo agora.

Ao adentrar a ruazinha principal do povoado, o tempo começou a mudar. A manhã principiara ensolarada, mas agora o sol se escondia atrás de nuvens cinzentas e uma brisa fria soprava. Ao cruzar a rua do cais, notou que vários pescadores haviam preferido não sair para trabalhar, pois três barcos seguiam ancorados, flutuando ao sabor das on das fortes que quebravam contra as pedras. Ao passar por um grupo de jovens mulheres, prosseguiu adiante, tentando não fazer caso dos olhares de reprovação com que a fitavam. Algumas sorriam com malícia, outras a olhavam com um ar sério e constrangido.

— Dizem que é irmão dela. Eu não acharia nada mal ter um ou dois irmãos assim — comentou a mais nova.

As risadinhas que se seguiram quase fizeram Kagome se virar para enfrentá-las. Foi o sr. Houjo quem, aproximando-se, a salvou de um enfrentamento maior.

— Não têm nada melhor para fazer do que importunar os outros? — ralhou, irritado. Deu as costas para as mulheres e apressou o passo para alcançar Kagome. — Sinto muito que tenha de suportar essa falta de educação, srta. Higurashi.

— Obrigada, sr. Houjo. Tenho certeza que não fazem por mal — contemporizou Kagome.

Na verdade, não apreciava que fosse justamente o sr. Houjo quem a houvesse salvado da situação constrange dora. O proprietário da casa onde ela morava sempre fora amigável, mas depois de ela ficar sozinha, após a morte da prima, ele se tornara um pouco amigável demais...

Depois de avançarem um pouco mais, dobraram uma rua e pararam para conversar numa esquina.

— Fiquei preocupado quando soube do seu... problema — começou Houjo. — As pessoas por aqui falam muito e, por isso, preferi não acreditar até encontrá-la pessoalmente para me contar o que aconteceu.

— Obrigada. Mas não se trata do que estão dizendo. Fazem uma tempestade em copo d'água — explicou Kagome, decidindo mudar de assunto. — Vim procurá-lo para falar sobre o aluguel. Sei que estou atrasada e...

— Não se preocupe, compreendo sua situação. — Houjo não a deixou terminar. — Não deve ser fácil tocar a vida sen do uma mulher sozinha e sem família. — Tomou a mão dela. — Sem ter ninguém com quem possa contar para ajudar a suplantar as dificuldades ou oferecer conforto e apoio.

Se não devesse três meses de aluguel, ela não teria escrúpulo em acertar um tapa no rosto daquele atrevido. Mas como não podia fazê-lo, Kagome preferiu retirar a mão suavemente.

— Não é assim tão ruim, sr. Houjo. Se me der um pouco mais de tempo, conseguirei acertar tudo.

— Srta. Higurashi... Kagome — ele continuou, tomando-lhe a mão novamente. — Perdoe-me por ser tão explícito, mas Kikyou, sua falecida prima, me contou a respeito das dificul dades que a senhorita enfrentou na infância e de quando tinha de acompanhar seu pai. Ao tomar conhecimento disso, tive vontade de ajudá-la. Não posso lhe oferecer casamento, pois minha mãe não aceitaria o fato de a senhorita não ser bem-nascida nem ter família ou dote. Mas estou disposto a tornar sua vida mais fácil, se quiser. Não teria mais de pagar aluguel, por exemplo.

— Minha prima disse o que não devia — retrucou Kagome, puxando a mão com um gesto brusco e se afastando. — Nasci da mesma forma como o senhor, ou seja, entre as pernas de minha mãe, e embora tenha vivido uma infância difícil, isso não me tornou uma mulher disposta a se vender para não pagar o aluguel da casa onde mora.

Surpreso, Houjo hesitou. Sorriu com malícia e ergueu o queixo em atitude arrogante.

— Tem certeza? Conhece o ditado que diz "a maçã nunca cai longe da árvore"? Seja lá quanto for que seu hóspede esteja pagando, eu posso pagar mais.

Furiosa, Kagome deu meia-volta e começou a caminhar na direção que levava de volta a casa. Houjo a alcançou e, detendo-a pelo braço, a fez se virar.

— Podemos resolver isso de uma maneira fácil ou compli cada. Só depende da senhorita. Afinal, a senhorita me deve.

— O que é que ela lhe deve, senhor? — Soou uma voz grave.

Ao se virar, Kagome deparou com o olhar ameaçador com que InuYasha fitava Houjo. Ao vê-lo à luz do dia, notou que as velas na noite anterior não a deixaram perceber que ele era um homem lindo. Seus cabelos claros haviam sido corta dos com descuido, o que tornaria outro homem ridículo... mas não InuYasha Taisho. O nariz de ângulo perfeito, os olhos de um brilho profundo e o porte altivo de bravo guerreiro eram definitivamente impressionantes.

Com os braços cruzados sobre o peito, ele exalava uma arrogância que o tornava ainda mais másculo e poderoso. Vestido com roupa escura, parecia um predador pronto a atacar sua presa.

Era estranho que não o tivesse visto se aproximar. Na verdade, ele parecia ter surgido do nada e se materializado ao lado deles.

— O senhor deve ser o hóspede da srta. Higurashi — insi nuou Houjo com ironia.

— Não sou nenhum hóspede. Sou irmão dela.

— Irmão? — ecoou Houjo, mais irônico e incrédulo. — Vai ter de inventar uma história melhor para me convencer.

— Serei mais exato: sou meio-irmão da srta. Higurashi.

— Compreendo. Já me contaram que a mãe de Kagome Higurashi era uma mulher muito ocupada.

— Não tem o direito de insinuar tais coisas! — exclamou Kagome, sentindo o sangue ferver.

— Eu não saberia dizer, pois jamais conheci a sra. Higurashi — elaborou InuYasha. — Kagome e eu temos o mesmo pai, o major Toutousai Higurashi. Segui meu pai na carreira mi litar e por isso passo a maior parte do tempo em campanhas no estrangeiro. Sempre que volto à Inglaterra, visito minha irmã para me assegurar de que está bem, Como vê, ela tem família e não está tão só como o senhor supõe.

— Kikyou, sua falecida prima, tinha razão ao dizer que a senhorita era uma prostituta tal como sua mãe, srta. Higurashi — disparou Houjo, virando-se para Kagome. — Pois só uma prostituta pode se valer de um soldado bastardo para ajudá-la a vencer as dificuldades da vida.

Sem se conter, Kagome desferiu um soco na face do ho mem. Ela ainda ia aplicar outro golpe, porém InuYasha segu rou-lhe o braço.

— Fez mal em me agredir — Houjo falou por entre os dentes, retirando o lenço para limpar um pequeno filete de sangue que começava a lhe escorrer do lábio. — Tem até amanhã, neste mesmo horário, para me pagar o que deve. Se não o fizer, terá de desocupar a casa imediatamente, ou eu a processarei.

— Mas não tenho para onde ir!

— Não é problema meu. Por que não pede ajuda ao seu irmão?

Perturbada, Kagome pensou que, com um soco, havia per dido a casa onde morava, o primeiro e único lar que tivera.

Por que motivo Kikyou a odiara tanto? Por que fizera o comentário que a tirara do sério a ponto de agredir o sr. Houjo?

— Dê-lhe três dias e a srta. Higurashi partirá — disse InuYasha em um tom grave que não admitia ser refutado.

— E por que eu deveria ser tão condescendente?

— Pagarei o que ela deve, mas só se lhe der três dias.

— Não acredito que me pagará.

— Como queira. Mesmo assim, mantenho minha oferta. Trarei o dinheiro ainda hoje. Caso não o faça, pode proces sá-la, se quiser.

— Não será necessário — Kagome interferiu na conversa entre os homens. Afinal, era a vida dela.

Suspirou. O dia que começara bem agora se revelara um desastre, pois ela perdera o lar e teria de partir sem ter idéia de onde poderia ir.

— Posso compreender por que ela o escolheu como pro tetor — continuou Houjo, limpando a manga do casaco num gesto insolente de claro desprezo. — Mulheres como ela gos tam de quem tem dinheiro.

— Basta! — exclamou InuYasha. — O senhor terá o que lhe é devido, mas deve tomar cuidado. Já provou a força do punho de Kagome, mas garanto que não gostará de provar a do meu.

— A quantia total pelos três meses atrasados — lembrou Houjo após um momento de silêncio. — Ainda hoje.

— Não se preocupe — assegurou InuYasha, tomando o braço de Kagome e puxando-a na direção da casa que ela acabara de perder.

— Já pedi para você ir embora — repetiu Kagome, andan do inquieta em frente à lareira da sala.

InuYasha sentia a raiva dela. A zanga era palpável, como se pairasse no ar. Na ausência de Kagome, havia revistado a casa à procura do relicário e de eventuais armas que ela pudesse utilizar para afugentá-lo.

— Imaginou que ia conseguir me mandar embora com facilidade, srta. Higurashi? — perguntou com um sorriso frio. — Não me amedronto tão fácil.

— Nada disso teria acontecido se você não tivesse se mostrado para o sr. Freethy!

InuYasha comprimiu os lábios. Apenas sua irmã Rin fora capaz de enfrentá-lo daquela maneira... mas agora estava morta.

Tentando afastar a dor, concentrou-se em observar as curvas do corpo de Kagome delineadas sob o vestido. Era uma moça atraente. Houjo não se deixara seduzir à toa.

— Não partirei sem o relicário.

— Lá vem você outra vez com essa história. — Kagome, parou de caminhar e cruzou os braços com irritação. — Já disse que não o tenho mais. Está perdido, não sei onde foi parar.

— Posso sentir que está aqui.

— Tolice!

InuYasha sabia que tinha de ser cuidadoso com o que dizia. Não adiantaria contar-lhe sobre a Tríade, os três seres ma lignos, presos dentro do relicário. Duas delas não haviam conseguido escapar quando a caixa sagrada fora aberta, mas Naraku escapara e agora necessitava do objeto sagrado para libertar os irmãos demônios e, assim, dominar o mundo sobrenatural e o mundo dos mortais. Naraku era um desses seres, e por isso o perseguia com a intenção de se apoderar do relicário. Se Naraku sozinho já era capaz de comandar o exército dos Keun Marow, os Cães que a tudo farejavam, do que não seriam capazes caso lograssem se unir?

Ele não podia desperdiçar tempo tentando fazê-la compre ender tudo isso, mas também não podia se arriscar a deixá-la completamente alienada quanto ao que sucedia. Precisava de Kagome tanto quanto necessitava do relicário, pois também ela possuía poderes mágicos, ainda que não soubesse disso. Poderes que auxiliariam na luta contra a Tríade.

— Tem de estar aqui. Seu pai o carregava quando sofreu a emboscada. Estava com o relicário nas mãos. Sei, porque o vi com meus próprios olhos.

Kagome se virou com um gesto brusco e o fitou. Apesar de InuYasha pensar que ela fosse prolongar a discussão, estreitou os olhos.

— Esteve com meu pai?

A pergunta exigia cautela na resposta, decidiu InuYasha. Ele encontrava-se na capela de San Salas, onde o pai de Kagome sofrerá a emboscada, mas não poderia contar a ela o que de fato acontecera.

— Sim. Era uma antiga capela, localizada num lugar ermo entre os montes de Subjiana de Alava, na Espanha.

— Sei onde fica. Quando chegaram as ordens para pros seguirmos, não conseguimos encontrar meu pai. Ao cabo de muito procurar, finalmente o encontramos na capela, morto em meio a um verdadeiro mar de sangue.

— Eu me lembro — confirmou InuYasha. De fato era uma das poucas coisas das quais se recordava de seu último en contro com Naraku, quando fora ferido quase mortalmente.

— Também me lembro, apesar de fazer força para esque cer. Os cadáveres estavam mutilados, destroçados. Os solda dos ainda tentaram me impedir de entrar, mas não tiveram êxito. Encontrei meu pai aos pés do altar, como se houvesse sido oferecido em sacrifício.

— Eles não tinham força para enfrentar quem os atacou.

—Você não disse "nós" — retrucou Kagome rapidamente, er guendo o olhar. — Não disse que foi atacado junto com eles?

— Como assim?

— Contou-me que estava lá, lutando ao lado deles. Por que não morreu junto com os outros? Como conseguiu so breviver?

Surpreso, InuYasha admitiu que não conduzira a conver sa como devia. Talvez por estar distraído com a beleza de Kagome, permitira-se colocar numa posição em que teria de dar explicações, criando uma história coerente sem revelar o que realmente se passara.

Virou o rosto, tentando ganhar tempo. Kagome era uma mulher bonita, mas havia outras mulheres bonitas como ela. Portanto, isso não devia ter sido motivo para confundi-lo no que dizia.

A única coisa que a tornava especial era o sangue que corria em suas veias. O sangue que ele teria de oferecer em sacrifício para selar o relicário, aprisionando a Tríade ma ligna. Depois do sacrifício, Kagome seria somente mais um cadáver, sem nada de excepcional.

— Por que não morreu? — ela tornou a perguntar.

— Na verdade, quase morri. Mas você viu que meu corpo tem a capacidade de se regenerar rapidamente.

— Você não estava na capela. Procuramos sobreviven tes, mas só encontramos cadáveres.

— Meu relato parece estranho, mas tem de confiar em mim.

— Como posso confiar em você? Não sei nada a seu respeito.

Apesar de ela falar com rispidez e coragem, era visí vel que estava tensa e amedrontada. Sua voz fraquejava. Kagome podia não acreditar no mundo mágico ao qual ele pertencia, mas ao menos parecia disposta a ouvir. Ele ti nha de usar isso em vantagem própria, pois a cooperação dela tornaria mais fácil realizar sua tarefa.

Buscando ser menos intimidativo, puxou uma cadeira e sentou-se.

— O que quer saber?

O brilho nos olhos de Kagome subitamente mudou. Agora ela o fitava com surpresa e curiosidade. Após hesi tar um instante, sentou-se em outra cadeira. Então, tor nou a fitá-lo.

— Você disse que é um Outro. Que tem traços mágicos e humanos. Como? Por quê?

— Pense nos Outros como seres mortais que possuem algo a mais. Há homens e mulheres em nossa espécie. Somos como todo mundo, mas temos algo diferente que nos torna mágicos. Pode ser um talento inato para ler pensa mentos ou para controlar condições climáticas de um lo cal específico. Alguns de nós possui o dom da premonição. Por vezes é algo tão simples como o pomar de alguém de nossa espécie produzindo frutos suculentos, enquanto o ter reno do vizinho não produz senão ervas daninhas.

— Como é possível? — perguntou Kagome, incrédula.

Ao notar o ceticismo com que ela o fitava, InuYasha lem brou-se de como a mãe tentara explicar os dons mágicos da família quando ele era criança. Naquela época, também ele era cético e não acreditava nas coisas que ouvia.

— As histórias relatam que há muito tempo os seres má gicos copularam com seres mortais, gerando homens e mu lheres que compartilham de ambos os mundos. As paredes que hoje em dia separam tais mundos não existiam então.

— Você disse ao sr. Houjo que serviu no Exército. Fazia parte da mesma mentira que contou ao dizer que éramos meio-irmãos?

— Sim e não. Sou um soldado, mas não pertenço ao exér cito inglês. Pertenço à irmandade dos amhas-draoi: mestres treinados no uso das armas e na magia.

Ainda sem parecer convencida, Kagome o fitou por um lon go instante.

— De onde vocês vêm?

— Da costa sul, perto de Penzance. Minha família mora lá.

Kagome arregalou os olhos, como se estranhasse o fato de ele possuir uma família.

— Tem irmãos e irmãs?

— Não — mentiu InuYasha, incapaz de dissimular a irrita ção que a pergunta lhe causara.

Ao ver a sombra no rosto dele, Kagome intuiu que havia tocado num ponto fraco. InuYasha parecia visivelmente pertur bado agora, e o movimento brusco que fez, entrelaçando os dedos das mãos, confirmava que não se sentia à vontade.

Contrariada, ela sentiu-se enternecer. Imediatamente afastou a sensação, pois a última coisa de que precisava era simpatizar com aquele homem.

— Tem outras questões? — perguntou InuYasha, movendo-se sobre a cadeira.

Kagome ficou confusa ao vê-lo incomodado ao falar de si próprio. Afinal, InuYasha revelava um aspecto vulnerável da própria personalidade, e aquilo a cativara.

Entretanto, mais do que nunca era necessário manter frieza e distância.

— Só mais uma: você me ajudará a procurar o relicário? Se estiver aqui, eu o entregarei a você. Pode procurar onde quiser, mas aconselho a não ter muita esperança, pois já disse que nunca mais vi a tal caixa adornada com pedras preciosas desde que vim da Espanha.

InuYasha tornou a se ajeitar sobre a cadeira. O movimento ressaltava os músculos dos braços e as mãos fortes e, por um instante, ela pensou que aquele homem poderia prote gê-la dos perigos do mundo. Contudo, aquelas mãos e braços não estavam acostumados a proteger. Mais provavelmente, a atacar e destruir.

— Já revistei o andar térreo e não encontrei nada — re velou InuYasha. — Portanto, deve estar no andar superior.

— Revistou minha casa? — Espantou-se Kagome. — Quando?

— Enquanto estava no vilarejo.

— Pelo visto, essa família que você afirma ter não o ensinou a ter modos. Como se atreve a bisbilhotar nas mi nhas coisas?

— Não bisbilhotei. Você mesma disse que eu poderia pro curar onde quisesse.

— A questão é que acabei de dizer isso, e você revistou minha casa muito antes!

— Não tenho tempo para discutir a respeito, senhorita. Os Cães Keun Marow estão confusos, mas retornarão.

Ela sabia que InuYasha tinha razão. Na verdade, ele teria poder e força física suficiente para revistar a casa inteira com ou sem consentimento dela, mas mesmo assim pedia permissão para fazê-lo. Kagome se lembrou das marcas, fora da casa, que havia visto naquela manhã. Ao tornar a fitar InuYasha, não pôde deixar de pensar no que ele contara sobre si próprio. Seus olhos eram de uma cor amarelada, como os de um lobo, e brilhavam com uma luz singular.

— Vamos procurar lá em cima — convidou, já se levan tando da cadeira.

— Como Kikyou pôde esconder tal segredo de mim? — murmurou Kagome, inconformada, após erguerem uma tábua do chão do quarto onde dormira sua falecida prima. Cerrou os olhos com força para não chorar. Era penoso descobrir que a única parenta que lhe restara, depois da morte do pai, a houvesse ludibriado daquela maneira. Ainda que jamais houvessem sido amigas de verdade, Kagome teria sido inca paz de ocultar da prima segredos como aquele.

— Desconfianças e traições dentro da própria família são as que mais doem — reconheceu InuYasha, sabendo disso mais do que ninguém.

— Era minha prima, a única pessoa que me restou na família.

— Tem razão para estar triste, mas sua prima não me rece suas lágrimas.

O relicário estava ali, enrolado num tecido puído. Ao en trarem no aposento da falecida Kikyou, InuYasha imediatamente sentira a presença do objeto, apesar de não poder adivinhar onde se encontrava.

Um ano e nove meses haviam se passado até encontrá-lo! A antiquíssima caixinha de prata estava enegrecida e amassada, como se uma energia poderosa a houvesse for çado a se abrir.

Ao terminarem de desenrolá-la do tecido que a cobria, perceberam que o relicário estava danificado. No centro da tampa ainda repousava uma pedra ônix brilhante.

Ao lado desta havia duas cavidades vazias, de onde tinham sido retiradas as outras pedras preciosas que adornavam a caixa. Kagome se lembrava que de um lado havia um rubi e do outro, uma pérola.

O que mais a magoou, foi a carta dobrada ao lado do objeto. Uma mensagem de Kikyou endereçada ao sr. Houjo, na qual sua prima pedia que ele vendesse a última pedra preciosa e que se assegurasse de que o dinheiro não fosse parar nas mãos de Kagome.

A carta jamais chegara às mãos de Houjo, assim como a pedra ônix que permanecia incrustada na tampa do relicário.

— Aqui está. É seu — ela murmurou, entregando o reli cário a InuYasha. — Sinto muito que esteja danificado. Prometo que pagarei quando puder.

Ao receber a caixa, InuYasha sentiu a energia que se des prendia desta. Uma energia sombria, maligna.

Murmurou as palavras mágicas que, com um pouco de sorte, manteriam tal energia cerrada dentro da caixa.

Ao terminar, fitou Kagome.

— O valor dessas pedras é maior do que você seria capaz de ganhar, mesmo vivendo cem vidas.

— Eu disse que pagaria e o farei.

— Sua prima era quem devia pagar por estas pedras — afirmou InuYasha, tornando a enrolar o relicário no tecido.

— Minha prima está morta.

— Mas o sr. Houjo não está. E, se não estou engana do, ele trazia uma pérola de pureza e tamanho inigualáveis pendurada no pescoço. Vou encontrá-lo ainda hoje. Ele terá de pagar com a vida caso não queira devolvê-la.

— Teria coragem de matá-lo por isso?

InuYasha lembrou-se de como Houjo era repulsivo. O ho mem tinha a personalidade de uma víbora, e o mundo pas saria melhor sem ele.

— Roubar, vender pedras preciosas que não lhe pertencem e destratar e insultar uma mulher como você são motivos mais do que suficientes para condenar alguém à morte.

Kagome baixou o olhar, sorrindo. Nunca haviam dito algo tão agradável antes.

Com um suspiro, olhou ao redor. Os poucos vestidos que tinha estavam empilhados sobre a mobília da sala. Mesmo com a ajuda de InuYasha, tinha somente três dias para arru mar tudo e partir.

Havia muita neblina naquele dia, o que tornava o ar úmido. InuYasha saíra dizendo que ia preparar coisas para a viagem, mas que voltaria logo.

Uma voz que ela preferia não escutar, perguntava se ele realmente voltaria. Afinal, agora que tinha reavido o relicário, por que se importaria com o que acontecesse com ela? Podia muito bem sumir antes de aquelas horríveis criatu ras retornarem.

Dobrou uma camisola, distraída. Se InuYasha partira, tal vez as tais criaturas o seguissem e ele não tornasse a apa recer, pensou com um arrepio.

De qualquer maneira, ela precisava partir, arrumar ou tro lugar para morar.

Começava a dobrar um vestido quando ouviu um uivo não muito distante. Segundos depois, ouviu ruídos lá fora de alguém, ou algo, se aproximando.

Com um calafrio, olhou em torno de si buscando algo que pudesse servir de arma. Recolheu o castiçal de metal sobre a mesa e o empunhou, pronta para se defender. Pelo visto, teria mesmo de usá-lo, pois tornara a ouvir ruídos, agora do lado de fora da porta de entrada.

— Quem está aí? — perguntou em voz alta, erguendo o castiçal.

Quando a porta se abriu, foi InuYasha quem apareceu. Tinha os cabelos úmidos pela neblina.

— Arrumou uma boa arma — disse, fitando o castiçal de ferro. — Não é cortante, mas ao menos é dura e pesada.

— Você escondeu todas as minhas armas — acusou Kagome, baixando o castiçal.

— Com razão. Se eu deixasse sua pistola à vista, correria o risco de levar outro tiro. Meu corpo se autorregenera ra pidamente, mas esse não é um poder ilimitado. Se eu sofrer muitos ferimentos, posso morrer como qualquer homem.

Passado o susto, Kagome teve de lutar para não se deixar vencer pelo desânimo. Sentando-se numa cadeira, deposi tou o castiçal no chão.

— Ouvi um uivo. Agora que sei quem são esses Cães, sinto um arrepio na espinha cada vez que os ouço.

— Estão procurando a caixa — explicou InuYasha. — O mestre que os comanda deseja o relicário acima de todas as coisas.

— Virão aqui? — Parte dela queria fugir correndo da quelas criaturas infernais, mas outra a incitava a permane cer e enfrentá-los. Afinal, ela crescera em meio à guerra e aprendera a lutar.

— Estamos seguros por enquanto. Criei um escudo má gico ao redor de nós para que não nos farejem, e armei uma pista com rastros falsos, como se eu houvesse ido para o vilarejo. Por isso demorei a voltar: para fazer algo que chamasse a atenção dos Keun Marow sem parecer óbvio demais.

— Por que buscam o relicário?

— Naraku quer o objeto sagrado — contou InuYasha, cami nhando até a janela e fechando as cortinas. Já havia escu recido, e a noite enevoada estava mais escura do que nunca. — Necessita do relicário para efetuar a Reunião.

Kagome tornou a suspirar. As respostas de InuYasha, como sempre, apenas lhe suscitavam mais dúvidas.

— Quem é Naraku? Ou trata-se de uma daquelas coisas que não pode ou não quer me contar?

InuYasha a fitou com incerteza, como se tentasse decidir até onde deveria prosseguir nas explicações. Silencioso, cami nhou até a lareira, recolheu a haste de ferro para remexer as brasas e atiçou o fogo. Por fim, tornou a colocar a haste ao lado da lareira e se virou para Kagome.

— Naraku é um dos três irmãos da Tríade. São demônios nascidos da feiticeira Tsukumi. Donos de uma magia fortís sima, querem dominar o mundo sobrenatural e o mundo humano. Já tentaram fazê-lo uma vez, mas foram derro tados e aprisionados. Agora almejam retornar para lograr seu intento.

Enfim ela obtinha algumas respostas que tinha lógica, apesar de não fazerem sentido para quem não acreditasse em superstições.

— E quanto ao relicário?

— A Tríade foi aprisionada dentro do relicário. Por isso, este tinha de estar guardado e escondido, para impedir que fugissem.

— Mas alguém abriu o relicário...

— Sim — confirmou InuYasha com um brilho gelado nos olhos. Um brilho mortal como o de um animal selvagem. — Alguém quebrou os selos que fechavam o relicário. Naraku conseguiu escapar, mas eu consegui manter os dois outros demônios aprisionados. Foi uma luta feroz e quase morri. Mas, felizmente, obtive sucesso.

Agora as coisas começavam a fazer sentido para Kagome. Ela se lembrou da cena na capela da Espanha, do sangue derramado por todos os lados. Aquela era a luta à qual InuYasha se referia.

— Num determinado momento — ele prosseguiu —, Naraku conseguiu escapar e fui obrigado a segui-lo. Mas perdi o relicário. Quase morri ao enfrentá-lo e Naraku desapareceu.

— Foi por isso que me seguiu? Por saber que o relicário se encontrava entre as coisas de meu pai?

— Sim. Mas assim como eu segui o rastro dele, Naraku também seguiu o meu. Ele sabe que eu tentaria reaver o re licário a qualquer custo. Apesar do imenso poder que possui, não pode se locomover no mundo dos mortais com a mesma facilidade, pois pertence a outra dimensão. Por isso colocou os Keun Marow para me seguir até eu encontrar a caixa.

Kagome compreendia agora que o pai havia se envolvido inadvertidamente naquela situação. Será que sabia o que estava arrumando para si próprio ao se apoderar da caixa de prata incrustada com gemas preciosas que encontrara num antigo castelo francês dominado pelo exército inglês? Seu pai estava tentando salvar o mundo de ser dominado pelos demônios da Tríade ou simplesmente se apoderara do objeto pelo valor das pedras preciosas?

— E o que acontecerá agora que você encontrou o relicário? — perguntou Kagome, ainda com dificuldade em acredi tar numa história que parecia tão irreal. O olhar sombrio de InuYasha demonstrava que esta era tão real quanto o fato de ela ter de partir por não ter pagado o aluguel da casa que ocupava.

— Só há duas possibilidades: eu tornar a aprisionar Naraku no relicário, junto com os dois outros demônios da Tríade, ou Naraku destruir a todos nós.

No silêncio que seguiu, Kagome ouviu distintamente os ruídos do lado de fora da casa: passos sorrateiros e o leve tinir de metal de armas.

Não precisou ouvir os uivos para saber que os Keun Marow tinham chegado.

InuYasha ouviu o ruído dos Cães no mesmo instante em que leu o pensamento dela. Seus músculos se retesaram ins tantaneamente e seus dentes se cerraram. Os Cães não o levariam. Não seria alimento para o exército de Naraku, nem para o prazer sádico daquele demônio, pensou, lembrando-se da irmã.

Enfiou os dedos no bolso das calças, porém o anel da irmã não estava lá. Em vez da jóia encontrou a pérola que pretendia ter dado a Kagome. Mas o momento de presenteá-la com a gema passara... caso houvesse realmente existido.

Um uivo soou atrás da casa indicando a aproximação dos Cães. InuYasha sentiu a ira voltar; uma ira alimentada por tantas mortes na família, tantos entes queridos roubados por aqueles seres do mal. Mais uma batalha se aproximava, e seu corpo já começava a se transformar em preparação para a luta.

No entanto, ele não iria se expor diante de Kagome. Não chegara ainda o momento de testar seus limites.

— Confia em mim? — perguntou, fitando-a nos olhos.

— Tenho escolha? — ela respondeu, sentindo o sangue gelar.

Na certeza de que ela manteria o controle e não entraria em pânico, InuYasha desembainhou a espada. Tendo sido des coberto pelos Keun Marow, o exército demoníaco de Naraku, ele teria de ter cautela ao usar de magia, pois esta poderia ser absorvida pelos Cães e aumentar o poder deles.

— Mantenha-se fora do meu caminho, mas obedeça às minhas instruções.

Subitamente, ouviram um barulho de vidro se estilha çando na cozinha.

— Temos de sair! Crê que pode saltar pela janela?

— Sim — assegurou Kagome, sabendo que era a si mesma quem teria de convencer.

Uivos soaram vindos da cozinha: os Keun Marow esta vam dentro da casa.

Quando InuYasha quebrou o vidro da janela, o primeiro Cão já surgia na sala, seguido por outro. As criaturas hor rendas pararam e farejaram o ar, já retirando um longo punhal da cintura.

— Que imenso prazer encontrá-los... — InuYasha disse por entre os dentes, dando um passo adiante e enterrando a espada no Cão mais próximo.

Soltando um uivo infernal, o estranho ser se encolheu e tombou morto. O segundo Keun Marow se surpreendeu com o rápido ataque. Segundos depois saltava sobre o cadáver do companheiro e encarava InuYasha.

— O trabalho desta noite nos proporcionará uma boa re feição — disse, arregaçando os dentes enormes e pontudos.

InuYasha sentiu outro Cão entrar pela cozinha. Era neces sário esperar o máximo possível. Quanto mais deles esti vessem dentro da casa, mais efetiva seria a mágica que os impediria de agir. Tinham de estar concentrados num grupo, pois, se estivessem dispersos, a magia teria de se espalhar em várias direções e isso a enfraqueceria.

Seria necessário aguardar e fugir no momento propício. Os Keun Marow eventualmente descobririam seus rastros, contudo a feitiçaria seria capaz de dar a ele e Kagome um tempo de vantagem.

Tinha de defender Kagome e mantê-la viva, pois sem ela seria impossível tornar a selar o relicário.

Outro Cão irrompeu, vindo da cozinha. Não podiam es perar mais.

— Agora! — disse InuYasha, puxando Kagome para a janela, ao mesmo tempo que erguia a espada no ar para impedir a aproximação dos dois Keun Marow.

Um segundo antes de obedecer, Kagome viu os Cães avan çarem sobre eles, um deles tentando abocanhar o pescoço de InuYasha. Após um golpe certeiro, ele atingiu a criatura do demônio, perfurando-a com a espada antes de ser atingido.

— Salte, Kagome! — InuYasha comandou.

Ao ver o outro Cão se preparando para atacar, ela se precipitou para a janela. InuYasha tentou atingi-lo, entretan to o golpe foi de raspão e não impediu o avanço do Keun Marow, que a mordeu no braço enquanto raspava as gar ras afiadas em suas costas. Kagome gritou de dor. Brandindo a espada, InuYasha conseguiu libertá-la da criatura e a aju dou a saltar. No segundo seguinte, ela se lançava para a escuridão enevoada.

Com um gesto rápido, InuYasha aproveitou um instante de desconcerto do Cão e o atacou com a espada. A criatura urrou e deu um salto para trás, escapando do golpe.

— Onde está o restante de vocês? — exigiu do Keun Marow agora acuado por sua espada mortífera.

— Não vieram, pois não acreditávamos que você esta ria aqui. Viemos apenas pela mágica estranha — revelou o ser demoníaco, segurando o abdômen semiaberto. — Naraku quer saber o que é.

InuYasha cerrou o maxilar. Kagome estava sozinha lá fora. Sem titubear, soltou um rugido e, dando um pulo para a frente, enterrou a espada no último Cão.

Nauseado pelo aroma fétido de sangue, deu meia-volta e arrombou a porta de entrada com um golpe de espada na maçaneta. Ao sair, deparou com Kagome caída sobre os arbus tos abaixo da janela, o vestido rasgado pelas garras do Cão cheio de sangue.

— Kagome — chamou, abaixando-se para tocá-la no rosto. Ela abriu os olhos devagar.

Aliviado, InuYasha a ajudou a erguer o corpo.

— Talvez tenha quebrado o braço.

— Que ótima notícia. — Kagome foi irônica.

Ao ouvir aquilo, InuYasha não pôde deixar de sorrir. Não conhecia muita gente capaz de manter o humor após ser atacada pelos Cães de Naraku.

— Cuidaremos de seus ferimentos quando eu tirá-la daqui.

— Os Cães...

— Estão mortos. Mas não estamos a salvo aqui. Pode viajar?

Kagome cerrou os olhos um instante e mordeu o lábio an tes de assentir em silêncio.

— Não teremos de ir muito longe antes de eu poder cui dar de seus machucados. Mas garanto que estará muito mais forte amanhã.

Kagome engoliu em seco, sabendo que sua vida mudara, e que já não havia mais certeza sobre o que a aguardava no dia seguinte.

InuYasha passou os braços por trás de suas costas e pernas para erguê-la. Começou a caminhar rapidamente.

Sem pensar, Kagome encostou a cabeça no ombro largo e suspirou.

Ao sentir o calor dela em seus braços, InuYasha a fitou. Sem saber por que, refletiu que até alguns anos antes teria sido capaz de sair em busca de uma mulher como aquela para torná-la sua esposa, ter filhos, constituir família. Viver uma vida mais calma, na qual pudesse usufruir prazeres simples e a paixão de uma companheira. Infelizmente, tais fanta sias haviam sido substituídas por uma realidade sombria.

De repente uma intuição o fez parar. Ao longe, em meio ao ruído das ondas quebrando na praia, ouviu o ruído de passos de Cães, algo que somente sua audição apurada de lobo era capaz de detectar.

Outro grupo de Keun Marow se aproximava!

Sabendo que não poderia enfrentar as criaturas com Kagome naquele estado, refletiu que o melhor seria escapar dali.

Sem titubear, cerrou os olhos com força e murmurou as palavras mágicas. Não demorou e sumiram entre as árvores do bosque oposto à trilha que levava ao vilarejo.

Ao abrir os olhos, Kagome viu o céu ainda escuro da noite; um brilho cinzento começava a surgir do lado leste. Ao erguer o rosto, notou estar numa clareira entre árvores e arbustos.

Sentiu uma pontada no ombro descendo ao longo do bra ço. Mais que isso, logo tomou consciência de que seu corpo inteiro doía terrivelmente.

Zonza, tentou ordenar as idéias. As lembranças que lhe vinham à mente eram imagens de InuYasha carregando-a pelo bosque, enquanto ela repousava a cabeça em seu peito vigo roso escutando o pulsar de seu coração.

— Acordou? — indagou uma voz agora familiar. — Eu já estava ficando preocupado.

— Aproxime-se para que eu possa vê-lo — pediu Kagome, virando o rosto na direção da voz. O movimento a fez sentir mais dor no ombro. Ao enxergá-lo, finalmente, notou que InuYasha tinha uma expressão ainda mais sombria e cansada do que na noite anterior, talvez pelo fato de a barba haver crescido. — Minhas roupas? — perguntou ao tomar consci ência de que vestia o casaco dele e, por baixo, somente uma combinação leve.

— Os Keun Marow destruíram seu vestido.

Ao ouvir aquilo, Kagome imediatamente se preocupou com o anel que encontrara naquela manhã e guardara no bolso da saia.

— Está preocupada com isso? — perguntou InuYasha, er guendo nos dedos o anel com a figura de um lobo.

— Eu o encontrei no chão.

— Não se preocupe. O anel pertencia à minha irmã.

— Disse que não tinha irmãs — ela acusou, revoltada.

— Não tenho mais — ele replicou, seco, demonstrando não estar disposto a falar no assunto. Guardou o anel e se ajoelhou ao lado dela. Sem hesitar, abriu o casaco, fazendo-a sentir uma lufada de ar frio contra a pele descoberta dos braços e sob o pescoço.

Profundamente concentrado, InuYasha passou a tocar os ferimentos um a um, repousando suavemente os dedos quentes sobre as feridas, enquanto murmurava palavras ininteligíveis.

Kagome sentiu um calor brotar dentro do corpo até irra diar pelos poros. Tinha a impressão de que o corpo de InuYasha envolvera o dela, trazendo-lhe calor e conforto.

Não fazia sentido. Estava ferida, mas já não sentia dor. Na verdade, sentia... prazer.

InuYasha cerrou os olhos com força e enrijeceu o corpo intei ro. No instante seguinte, sua mão caiu e um leve tremor o perpassou dos pés à cabeça.

De repente, um silêncio ainda mais intenso tomou conta de tudo.

InuYasha reabriu os olhos e a fitou.

— Como se sente? — quis saber. Kagome franziu a sobrancelha.

— A dor passou! — exclamou, surpresa. Moveu a cabeça, o braço. Não sentia desconforto algum.

Sentou-se. Estava cansada, mas nada além disso. Havia sangue coagulado em seu braço, porém a pele estava outra vez lisa e intacta.

— O que você fez?

— O que tinha de fazer — ele respondeu apenas. Chocada, Kagome se deu conta de que InuYasha agora exibia os ferimentos que haviam sido dela. O céu clareara ainda mais, e era possível notar o sangue úmido sob sua camisa.

— O que você fez? — ela repetiu, agora aflita, compreen dendo que ele transferira as feridas para si próprio. — Por que fez isso? — insistiu, pondo-se de joelhos. — Não sabe que preciso de você?

— Precisa? — ecoou InuYasha, surpreso.

— Necessito que me defenda daquelas criaturas. Você me colocou nesta situação, portanto é bom que continue vivo para me ajudar a sair dela.

— Você não teria suportado os ferimentos e a perda de sangue.

— Mas não pode trazer para si ferimentos que não são seus. Era o meu braço que estava quebrado. Foi por minha culpa que aconteceu, pois eu não soube controlar a queda.

— Não foi culpa sua, mas há algo que deve aprender: numa queda, não se preocupe em se proteger, pois estarei lá para ampará-la. Mesmo que eu houvesse ficado dentro de casa, minha mágica me transportaria para ampará-la.

— Devo cair de costas e confiar que vai me segurar?

— Sim. Tem de confiar. Mas não na docilidade de um lobo. Jamais aproxime os dedos de seus dentes afiados.

Ao vê-la se retrair sem compreender, ele cerrou os olhos por um breve instante. Sorriu ao tornar a abri-los.

— É verdade, Kagome. Posso mantê-la a salvo de Naraku e de seus Cães. Mas não posso fazer nenhuma outra promessa.

Eram palavras cruéis, destinadas a destruir o momen to de cumplicidade que acabavam de compartilhar. Kagome não podia compreender os motivos do guerreiro mágico, mas sabia que era necessário aceitar o aviso. Não haveria promessas. Nem futuro. Assim eram os homens. Quanto às mulheres, tinham somente duas opções: amá-los, a despeito do que eram, ou não amá-los jamais. Ela sabia o que a pri meira escolha acarretara para a mãe. Portanto, não incor reria no mesmo erro.

— O que faremos? Não podemos voltar, pois aquelas bes tas estarão nos esperando.

— Seguiremos viagem rumo à costa. Nós nos mantere mos fora das estradas e permaneceremos ocultos até che garmos à região de Lands End. De qualquer maneira só teremos de fazê-lo até chegar o primeiro de maio, dia do Beltane, a consagração da primavera e celebração do sabá da fertilidade, que une os homens e as mulheres.

— O que acontecerá em Lands End durante a celebração do Beltane?

— Será o momento em que poderei aprisionar Naraku no relicário outra vez.

— Estaremos a salvo?

InuYasha nada respondeu. Em vez disso, levantou-se e co meçou a preparar as coisas para partirem, apagando os ves tígios de que haviam estado ali.

— Responda! — insistiu Kagome. — O que acontecerá de pois do Beltane?

— Tudo vai terminar — ele respondeu, fitando-a com uma expressão insondável. — Será o fim de tudo.