Sexta-feira, 31 de Outubro de 2008.

Sete da manhã.

O dia havia clareado há apenas alguns instantes, mas Sophia já estava de pé. Apenas de pé, porque esquecera de acordar entre levantar da cama e descer pelas escadas para preparar os sanduíches que levaria hoje à noite.

Seu noivo aparecera com essa idéia fim de semana passado. Enquanto estavam enroscados um no outro no sofá, assistindo um filme, ele lhe propusera uma viagem até o interior do país com ele e alguns amigos.

Passou vários minutos tentando convencê-la a deixar a civilização por um final de semana inteiro e ir se enfiar no meio do mato, rodeada pelo mais sortido leque de insetos nojentos que se pode imaginar. Finalmente a convenceu dizendo que ninguém – absolutamente ninguém – poderia incomodá-los tão longe, onde ele acreditava que não havia sequer sinal de celular.

Então, lá estava ela preparando comida para a viagem, àquela hora, antes de ir trabalhar. Assim que terminou o último sanduíche, guardou tudo na geladeira e sentou-se para tomar seu café da manhã, e depois subiu para tomar um banho.

A água morna desceu pelo seu corpo, despertando-a do resquício de sono que o café forte não foi capaz de eliminar. Vestiu uma saia leve e uma blusa vermelha, pegou o casaco e a bolsa, e desceu até a garagem, a chave na mão.

Ligando o carro, o rádio digital imediatamente deu sinal de vida, enchendo seus ouvidos com a melodia animada de It's a long way to the top, de AC/DC.

- Nada mais apropriado – diz antes de sair cantando pneus em direção ao trabalho.


Cinco da tarde.

Se sua mãe a visse agora: pálida, estressada e descabelada como estava, imploraria a ela que seguisse a carreira de professora, que tanto idealizara quando criança. Publicitária júnior de uma empresa importante na cidade de Los Angeles, corria pelos corredores levando relatórios de seu chefe para outros funcionários, último pedido do moreno de 40 anos para o qual já trabalhava há cinco.

Passou na sua mesa para pegar a bolsa, antes de ir até a recepção e largar em cima da mesa abarrotada de papéis o último relatório com uma barra de chocolate. Katherine, a recepcionista, levantou os olhos cor-de-mel cheios de gratidão.

- Deus a abençoe.

- Deus já desistiu de mim há tempos – lança um beijo no ar a Katherine – Sou um caso perdido.

E desce as escadas que dão no estacionamento, com a risada de Kate ecoando em seus ouvidos. Perto de seu bichinho prateado, ouve passos e então olha para trás, ver se alguém tentava alcançá-la com alguma tarefa de última hora. Nada. Ninguém à vista, e nenhum som mais se ouvia.

Seu coração de repente acelerou, e ela correu enfiar a chave na porta do carro, pronta para sair dali em alta velocidade, arriscando até a levar uma coluna de pedra pra casa com ela. Estava brigando com a fechadura, quando alguém chegou por trás e a agarrou.

Deu um grito e lutou quando sentiu braços fortes a segurarem com força. Então ouviu uma risada inconfundível, e foi virada bruscamente.

- Uou, calma aí, gatinha! – Josh, seu noivo preferido, estava rindo da sua cara.

- Josh! Pelo amor dos deuses, não me assuste desse jeito! – colocou a mão no peito, tentando acalmar seu coração, que parecia querer sair correndo, boca afora.

- Desculpe, docinho. – ela fez uma careta, odiava quando ele a chamava de docinho.

- O que diabos você está fazendo aqui, afinal?

- Vim te buscar para ter certeza de que não vai desistir de viajar comigo.

- Claro que não vou. Até já arrumei minhas coisas ontem à noite. Acordei cedo pra preparar um lanche também. Está tudo lá em casa, esperando eu chegar, catar tudo e enfiar no carro.

- Lanche? – ele franze as sobrancelhas.

- Sim, lanche. Suponho que devemos levar alguma coisa, não? Pelo que você me contou, civilização é o que menos vamos encontrar lá, então quero me prevenir.

- Sim, muito lindo da sua parte, bem Amélia. Mas nós vamos passar no mercado comprar coisas de comer... e beber. – ele sorri, malicioso.

- Bem, ainda assim vou levar os lanches. Não acordei cedo, preparei os lanches, para simplesmente deixá-los em casa.

- Tudo bem, tudo bem. – ele abre a porta do carro e a conduz para o banco do motorista. – Vamos pra casa, então.

- E seu carro? – ela pergunta, antes de fechar a porta.

– Está em casa. Achei que era melhor irmos com o seu carro.

- Hã... claro.

Ele fechou a porta e se dirigiu para o banco do passageiro. Ela sabia muito bem porque ele tinha escolhido logo o carro dela para essa viagem: o carro conversível preto que ele tinha não era propenso a pegar poeira de estrada. E já que ela tinha um carro velho... não haveria problema, ao ver de Josh. Muito cavalheiro da parte dele.

Foram pra casa. Ela em silêncio, ele comentando sobre as expectativas dele de como o fim de semana seria divertido e proveitoso. Ela torcia para que ele realmente tivesse razão, mas por algum motivo não estava tão convencida disso.


Dez da noite.

Quatro horas dirigindo. Quatro longas horas olhando uma rodovia cercada de mato, enquanto ouvia as baboseiras que Josh dizia para Betty e Matt, que estavam no banco de trás do carro.

Para falar a verdade, a conversa estava acontecendo só entre Josh e Betty, enquanto Matt só olhava pela janela a paisagem que corria como um borrão lá fora, lançando ocasionais olhares para Sophia quando algum comentário idiota era feito.

- Hey, docinho – Matt lançou um olhar furtivo pelo retrovisor para Sophia – Vire ali naquela estrada. – e apontou um desvio de terra do lado direito da estrada.

Ela guinou o carro naquela direção e o mato à volta deles se intensificou, as árvores ficaram mais altas e mais assustadoras. Moitas ficaram mais escuras. O lugar parecia horripilante, ainda mais àquela hora da noite, e bem no dia das Bruxas.

Seguiram por uns dez minutos pela estrada, até avistarem uma casa velha de madeira, de aparência bem precária, quase caindo aos pedaços. Sophia suspirou. Ótimo, pensou, só me faltava essa: uma casa que pode cair a qualquer momento em cima de nossas cabeças. Muito divertido, Josh, parabéns por pensar nessa.

Pararam em frente ao jardim, se é que podia chamar um monte de mato crescendo sem ninguém para impedir, de jardim. Desceram do carro, Sophia ligeiramente mal-humorada por ter passado tanto tempo dirigindo. Esperaram o carro de Maggie e Andrew, dois amigos de Sophia, chegar. Assim que eles pararam, Maggie desceu, olhando tudo em volta com um certo desprezo.

- Onde é que a gente se enfiou dessa vez, hein? – ela olhou para Sophia, rindo. – Isso aqui é pior do que o lugar que o Matt arrumou para nós acamparmos quando tínhamos dezesseis anos.

- Bem pior, diga-se de passagem. – Sophia sussurrou, para que só ela ouvisse.

- Bem, vamos entrar? – Josh parecia bem animado, e começou a tirar as malas do carro, com a ajuda de Matt. Betty veio com seus cabelos loiros oxigenados e abraçou Sophia pelo pescoço.

- Lugar legal, hein?

- Super!

Betty não pareceu perceber o tom sarcástico na voz da publicitária, porque começou a monologar sobre como tinham encontrado aquela casa num anúncio da Internet, como acharam interessante passar um tempo longe de tudo e todos, de como pensaram que se divertiriam com os amigos, e enquanto ela falava sem parar, Sophia tentava imaginar maneiras dolorosas de acabar com a raça dela.

Sophia nunca gostara de Betty. Ela sempre parecia alegre demais quando se aproximava de seu noivo, e o jeito como ela chegava perto dele, tocando nele enquanto falava alguma coisa, ou chegando a cabeça mais perto do ouvido de Josh para um comentário, parecia que estava dando em cima dele.

Foi essa a primeira impressão quando a conheceu em uma festa do chefe de Josh, uns anos atrás. Claro que depois ficou sabendo que ela namorava Matt, um amigo seu de infância, um loiro bonito, de olhos claros, alto, jornalista, por quem tinha um carinho muito grande. E, apesar de estar feliz por Matt estar feliz, preferia que ele tivesse arranjado coisa melhor.

Já o casal vinte, Maggie e Andrew, era outra história. Sophia conheceu Maggie também quando era criança. Ela, Sophia e Matt moravam na mesma rua, estudavam na mesma escola, e a amizade que surgiu dessas circunstâncias foi inevitável. Maggie era morena, tinha cabelos curtos e olhos azuis da cor do céu, que sempre encantaram por demais Sophia. Tinha conhecido Andrew na faculdade, e desde então estavam juntos, agora noivos, prontos para se casar no próximo verão.

Andrew estudava história, e já começara a dar aula em escolas secundárias em seu bairro. Fazia o tipo intelectual, tinha cara de nerd, mas era bonito, moreno, olhos negros, tentadores. Tinha uma adoração tão profunda por Maggie, que conquistou a aprovação de Sophia na mesma hora que o conheceu.

Agora estavam ali, os seis, naquela casa estranha e aparentemente podre por dentro, trancafiados durante um fim de semana inteiro. Se eles conseguissem sobreviver a isso sem se matarem – principalmente Sophia e Betty – estaria de bom tamanho.


Onze e meia da noite.

Estavam na sala de estar. Josh, Betty, Maggie e Andrew dançando ao som de uma música bem alegre. Sophia e Matt sentados no sofá, tomando uísque e conversando sobre futebol. O álcool já subira aos cérebros dos presentes, e ninguém mais parecia se importar com problema nenhum.

- Hey, docinho, vem dançar – diz Josh, puxando Sophia pela mão.

- Josh, já falei pra não me chamar de docinho. – ela vai em direção ao bar, pegar mais uísque. Josh também se serve de um copo.

- Desculpe, docinho. – ela o fulmina com o olhar – Só estou brincando. Você precisa relaxar, Soph.

- Desculpe. Eu tive um dia difícil no trabalho. – ela suspira, olhando no fundo dos olhos castanhos claros de Josh.

- Então, vamos fazer você relaxar, hã?

Ele a pega pela mão, e a leva embora dali, para o quarto que estão ocupando no andar de cima da casa. No corredor começa a beijar a boca rosada de Sophia com ferocidade, machucando-a e quase a fazendo sangrar. Abrem a porta, afoitos, o calor já subindo pelo rosto, deixando os dois mais corados que antes.

Josh joga a blusa de Sophia no chão do quarto, enquanto ela tenta tirar-lhe a camiseta de forma desesperada. Ele a empurra em direção da cama e deita por cima dela, beijando-lhe o pescoço.

Sophia está de olhos fechados, quando escuta um ruído estranho. Abre os olhos e olha ao redor do quarto. Pensa que é só imaginação, mas ouve o barulho de novo. Empurra Josh e se senta, para ouvir melhor.

- O que foi? – Josh pergunta, rudemente.

- Está ouvindo isso? – ela faz sinal para que ele escute atentamente.

- Estou ouvindo também. – Josh pára, apurando os ouvidos. – Será que Betty e Matt resolveram seguir nosso exemplo e estão brincando no outro quarto?

- Josh! – ela bate no seu braço, enquanto ele ri. – Matt não é do tipo barulhento.

- E como é que você sabe? – ele diz, não rindo mais.

- Ele é meu amigo. Eu sei.

- Às vezes, vocês parecem mais do que simples amigos.

- Josh, pára com essa crise de ciúmes. Matt e eu somos amigos de infância, é natural que sejamos próximos.

- É, sei. – ele fica emburrado, e então se levanta. – Eu vou descer.

- Josh...

Ele a ignora completamente, e desce as escadas. Sophia fica sentada na cama, olhando pela janela. A lua lá fora espia o quarto, curiosa. Resolve descer para junto de seus amigos bêbados, e é isso que faz. Passa por um quarto, sem perceber a porta aberta e a presença que a olha com cobiça.


Onze e cinqüenta da noite.

Sophia vai juntar-se a uma Maggie incrédula, que observa Betty e Josh dançarem colados e sensualmente, sem nenhum pudor, na frente dos amigos de seus respectivos noivos. Sophia encara Josh furiosamente, que simplesmente lança um olhar por cima do ombro de Betty.

- Onde está Matt? – Sophia pergunta, não achando o amigo na sala.

- Saiu assim que a palhaçada começou, Andrew foi atrás dele para acalmá-lo. Você não vai fazer nada?

- Não. Ele só está querendo fazer ciúmes. Deixe eles dançarem. Não vão passar disso, mesmo.

- Não sei, não, Soph...

- Maggie, relaxe. Josh nunca faria isso comigo, não importa quão bravo estiver.

Andrew volta sozinho, olhando em volta, procurando alguma coisa que obviamente não encontra. Lança um olhar zangado ao casal dançando, e se dirige às duas.

- Não encontro Matt em lugar nenhum.

- Como assim? – Sophia pergunta.

- Já procurei aqui embaixo, no banheiro, na cozinha, no escritório. Fui lá em cima, em todos os quartos, e não o encontrei. Fui até lá fora, nos jardins, mas nada. Ou ele foi embora daqui, ou está brincando de esconde-esconde comigo.

- Embora? Impossível! Ele não deixaria a gente aqui.

- Os carros estão lá fora? – pergunta Maggie, preocupada.

- Estão.

- Então é definitivamente impossível que ele tenha ido embora. Matt é mais sedentário que todos nós juntos. Jamais iria embora a pé deste fim de mundo. É uma caminhada e tanto até a estrada.

- Verdade. – Sophia disse, balançando a cabeça. – Vamos procurá-lo de novo. Se nos separarmos, talvez o encontremos.

De repente escutam um barulho estranho de alguma coisa sendo arrastada no andar de cima. Logo depois a parede perto de Josh e Betty estremece, como se alguma coisa estivesse passando por ela, causando uma rachadura feia, que faz com que os dois parem de dançar e recuem até onde os outros estão. Todos se olham, apavorados.

- O que foi isso? – diz Josh, numa voz trêmula.