Prólogo

Aquilo estava muito estranho. A primeira coisa que vi foi à claridade do céu cinzento; senti o ar frio bater em minha pele descoberta, mas o que realmente fez um arrepio avassalador correr por minha espinha foi à imagem de um garoto de costas.
Não, por favor, não.
- Estava te esperando, amor - sua voz cortou o vento.
Eu paralisei enquanto ele se virava para mim, revelando a única face que eu não queria ver nunca mais nesse mundo.
- Você não vai me dar um abraço de boas vindas? - Ele deu um passo em minha direção, me fazendo instintivamente dar um passo para trás. - Por que está com essa cara? Você não está feliz em me ver?
Eu soube que a partir dali minha vida voltaria a ser o mesmo inferno de antes, era como um pesadelo do qual eu não conseguia acordar - e não sabia se um dia conseguiria novamente. Mas seria eu capaz de lidar com tudo aquilo novamente? Eu teria de ser, e isso ia além de minha própria proteção, pois agora eu não estava mais sozinha.

Capítulo 1
Drive

Ótimo, está todo mundo me olhando. Aproveitem e tirem uma foto de uma vez. Escola nova, casa nova, cidade nova, país novo, continente novo! Mas não acaba aí. Vida nova, família nova.
Sempre gostei de me mudar, de lugar e escola, mas precisava exagerar? Mudar três vezes de estado não bastava, não. Eu tinha que mudar de continente. Certo, eu admito, eu estou amando esse lugar. Apesar de ser tudo muito diferente do Brasil, eu sempre fui apaixonada por Londres.
Continuei caminhando, nervosa e com a cabeça abaixada pelo estacionamento com Quinn ao meu lado. Era na casa dela que eu estava hospedada por causa do intercâmbio. Eu não daria muito trabalho a família, eu acho, afinal passaríamos todos os dias da semana naquele colégio, e somente os fins de semana em casa, o que era opcional. O termo de responsabilidade que cada responsável assinava determinava quantas vezes por semana podíamos sair fora do horário de aula. O meu determinava quatro.
- Onde vai ser o meu quarto? - eu perguntei ansiosa a Quinn. As malas que eu carregava estavam pesadas, e todo mundo ainda me olhava como se eu fosse uma alienígena.
- Fica naquele prédio - ela respondeu e fez sinal com a cabeça, já que também carregava malas, apontando a frente.
Eu olhei e lá estavam quatro prédios de três andares cada, todos com acabamentos em tijolos. Ao nosso lado ficava a escola.
Entramos no segundo prédio, e finalmente eu senti o calor dos aquecedores fazendo carinho em minha pele. Esse frio de Londres me mata.
- Terceiro andar, quarto 209 - ela leu no papelzinho todo amassado.
- Quem será que vai dividir o quarto comigo? - eu perguntei ansiosa enquanto subíamos a escada. - E por que todo mundo fica me olhando desse jeito? - Que saco!
- Alguma garota do terceiro ano, assim como você - ela respondeu. - E o que você esperava quando colocou cinco cores no seu cabelo, não chamar a atenção?
Eu não tinha pensado em chamar a atenção exatamente, como não consegui decidir qual cor colocar no cabelo, resolvi colocar as cinco mais legais.
- Tomara que ela seja legal - eu desejei levemente ofegante por causa daquelas escadas que pareciam não acabar nunca.
- Se não for a Brooke, você sobrevive - ela disse, tentando jogar os cabelos que caiam na cara para trás mexendo a cabeça. - Mas não espere grande coisa.
Uhú, como você é positiva amiga.
Finalmente, terceiro andar. As paredes do corredor eram vermelhas, quase vinho. As garotas por todos os lados se arrumavam, conversavam aos cochichos ou simplesmente passavam me encarando. Eu vou começar a ficar paranóica daqui a pouco desse jeito.
As aulas já haviam começado fazia uma semana, mas eu havia recebido minha aceitação em cima da hora, e meu visto demorou a sair. Fora que no Brasil eu estava no meio do bimestre, e agora eu teria que fazer ele de novo. Pelo menos a matéria seria diferente aqui. Mas que foi sacanagem me fazer ir seis meses em uma escola a toa foi. Tinha chegado sábado, e passei o fim de semana na casa de Quinn. Lá até que era legal. E grande. Tomara que eles me adotem. Tá, parei. Ainda tenho mãe - graças a Deus a um oceano e mais alguns quilômetros de distância -, longe o bastante pra não me importunar. Pena que minhas amigas tenham ficado por lá também.
- Hayley - Quinn me chamou. Eu me virei e notei que ela havia ficado para trás - é aqui.
Voltei até onde ela estava e observei a porta com o número 203 gravado nela.
- Ela não vai abrir com a força do seu pensamento - disse Quinn impaciente. - E as suas malas de chumbo estão pesadas.
Respirei fundo deixando uma das malas no chão e abrindo a porta.
Não era exatamente isso o que eu esperava. O quarto era rosa, havia um frigobar branquinho; duas camas de solteiro separadas pelo espaço do criado mudo entre elas; um guarda-roupa; uma estante com uma TV, uma porta que só poderia dar para o banheiro; e a parede de frente a porta tinha uma janela com uma escrivaninha embaixo.
Na cama mais próxima a porta uma bonita garota de cabelos curtos castanho-dourados estava sentada calçando as meias três quartos brancas. Ela ergueu os olhos para mim e me estudou por um momento. Sabe, as pessoas por aqui podiam disfarçar um pouco, seria legal.
- Oi - ela me cumprimentou simpática.
- Oi - eu cumprimentei de volta e larguei minhas malas ao pé da cama de madeira clara coberta por um edredom roxo. Me larguei naquela cama sentindo meu corpo afundar confortavelmente.
- O que você acha que está fazendo? - perguntou Quinn largando as malas que carregava junto as minhas. - O sinal vai bater em cinco minutos! Coloca seu uniforme logo.
Eu olhei para ela de olhos arregalados e depois para as malas.
- Mas eu não tenho idéia de onde esteja! - eu disse desesperada sentando na cama de uma vez.
- Eu te ajudo a procurar - minha nova companheira de quarto ofereceu.
- Ótimo, ainda tenho que passar no meu quarto, que fica no segundo andar, ok? - e dizendo isso saiu.
Eu peguei uma mala e comecei a vasculhar enquanto a garota vasculhava em outra. Como eu sempre deixo tudo pra última hora, minha mala estava uma completa bagunça. Mas peraí, se a Quinn tinha pegado o uniforme pra mim, ele tinha que estar por cima. Saí abrindo as malas restantes até finalmente encontrar.
- Encontrei! - eu comuniquei a garota - Valeu.
Entrei no banheiro e me troquei de qualquer jeito, passando uma escova no cabelo em seguida e ouvi o sinal tocar. Provavelmente o sinal por perto, porque o som era consideravelmente alto. Enfiei todo o material que vi pela frente na mochila, coloquei-a sobre os ombros e disparei para a porta. Fiquei confusa ao ver as garotas caminhando calmamente. Encontrei com Quinn no final da escadaria.
- Quais são seus horários? - ela perguntou e eu a olhei confusa. Tinha me esquecido disso; no Brasil as aulas eram por turma, não por matéria. Merda.
- Acho que você tem que pegar na secretaria então - ela explicou ao notar minha cara. - Se formos rápido eu te mostro onde é.
Apressamos o passo, atravessamos o caminho que levava até a escola, subimos uma escadinha e entramos na escola. Logo perto da porta havia um escrito de "secretaria" em cima de uma janela que dava para outro cômodo. Nossa Quinn, eu nunca teria achado esse lugar sozinha?!
- Você é a aluna nova, certo? - uma mulher com cabelos brancos misturados aos castanhos me olhou por cima dos óculos de quadrados.
Não, sou um pavão disfarçado, querida. Eu assenti silenciosamente com a cabeça.
- Antes de entregar seus livros e papéis - ela continuou -, o diretor gostaria de conhecê-la.
Uh, legal. Sala do diretor no primeiro dia, que animador.
Ela saiu da secretária e eu a acompanhei por um corredor a te a diretoria. Quinn me cutucou e me passou a boina que usava e um elástico de cabelo que tinha no pulso. "Acho melhor esconder as mechas" ela sussurrou pra mim. Enquanto a secretária avisava o diretor foi o que eu fiz. Prendi meu cabelo pra cima e o escondi inteiro dentro da boina. Nossa, devo ter ficado gata, viu.
- Tchau - ela sussurrou ao soar do sino. Era por isso que havia um sinal perto os dormitórios: um para nos avisar que era hora de sair de lá e o daqui para avisar que as aulas começariam imediatamente. Faz sentido.
A secretária me deu espaço e eu entrei na sala, sentindo a porta se fechar atrás de mim. Tenso. O diretor fez sinal para que eu me sentasse na cadeira defronte a ele na mesa. Ele aparentava uns quarenta e poucos anos, com feições duras.
- Boa tarde, senhorita James - ele me cumprimentou formalmente. - Então, o que você achou das nossas instalações?
- Bom, eu acabei de chegar - eu disse mexendo minhas mãos no colo. - Mas realmente gostei daqui. Obrigada pela vaga.
- É sempre bom termos a oportunidade de conviver com pessoas estrangeiras - ele disse. Valeu aí por me chamar de experimento -, e diferente de nós. - Então agora é ET? - Quer dizer que está se adaptando bem?
Qual parte do "eu acabei de chegar" esse cara não entendeu? E parece que todo mundo acha que o Brasil é puro mato, que somos todos Tarzan e Jane, ou mulatas que sambam.
Eu assenti com a cabeça e sorri, reprimindo meus pensamentos.
- Bom, eu não sei se você pretende fazer faculdade por aqui mesmo, mas acho que isso serve para qualquer universidade - ele continuou. - Temos atividades extracurriculares aqui, o que geralmente conta muito na aceitação das pessoas nas universidades. Dê uma olhada nas opções que temos aqui - ele me estendeu um papel. - Se você se interessar por alguma...
Eu comecei a ler as opções. Balé, futebol, basquete... Líderes de torcida. Gostei. Continuei a procurar algo mais que me interessasse. Conselho estudantil, parece importante.
- Acho que me interesso por duas - eu disse devolvendo o papel. - O grupo de líderes de torcida e do conselho estudantil.
- Ótimo! - ele exclamou animado. - Converse com a chefe das líderes de torcida, Peyton Sawyer, e se informe dos horários. Para a próxima reunião do conselho, você será avisada. Preencha e depois deixe na secretaria. Boa aula!
- Obrigada - eu agradeci, peguei os formulários e fui embora. Passei na secretária pra pegar meus livros, horários e chaves.
Primeira aula, Biologia. A secretária me levou até lá para justificar meu atraso. Respirei fundo e entrei. Havia uma carteira vazia próxima a janela, onde um garoto loiro estava ao lado. Todo mundo me encarava enquanto eu sentava. Isso tá começando a me irritar. Comecei a preencher os formulários vagarosamente pra me distrair. Eu não entendia nada que o professor falava mesmo. As regras eram basicamente as mesmas de qualquer escola, fora que os prédios eram trancados às onze horas automaticamente e garotos pegos nos dormitórios femininos e vice-versa estavam sujeitos a expulsão.
O sinal soou antes do que eu esperava. A segunda e terceira aula seriam de matemática. Liguei para Quinn e ela me falou onde ficava a sala. Os dois períodos foram consideravelmente rápidos também, e eu conseguia entender tudo; números eram mais fáceis que biologia pelo menos. Hora do intervalo.
- Você devia deixar alguns livros no armário - sugeriu o professor de matemática antes que eu deixasse a sala. - Sua mochila parece cheia.
Eu agradeci e sai da sala. Armários... não tinha pensado nisso. Fui seguindo a multidão até achar os armários cinzas. O meu armário ficava no meio. Coloquei os livros ali empilhados e larguei a mochila junto. Voltei a seguir a multidão até achar Quinn. Já tínhamos tomado café-da-manhã então, depois de entregar os formulários na secretaria, ela me mostrou a escola. Tínhamos uma quadra coberta no lado de trás da escola, e atrás da quadra um longo gramado; de um dos lados havia uma cantina que ficava aberta praticamente o dia todo; no terceiro andar do prédio da escola só havia mais armários e classes; a biblioteca ficava no primeiro andar.
A aula depois do intervalo foi de biologia de novo. Comecei a acompanhar pelo livro e até que entendi umas coisas. Depois, geografia. Eu já disse que eu odeio geografia? Pois é, odeio. Eu até decoro na marra e no tédio, mas eu nunca consigo lembrar muita coisa depois de uma semana. Se eu já era péssima na geografia do país em que eu vive e estudei sobre desde pequena, imagina aqui. Aquela aula se arrastou horrores, e quando eu estava quase dormindo, o sinal tocou.
Finalmente, almoço. Já estava parecendo que o Aslam estava rugindo dentro do meu estômago. Tá, às vezes eu sou dramática. Liguei para Quinn e ela me encontrou perto dos armários. Fomos para cantina, e eu não sabia exatamente o que fazer. Eu tenho uma certa insegurança com coisas novas, medo de errar, sei lá. Fui pegando mais ou menos o que ela pegava pra comer... nenhum segredo. Algumas comidas daqui eram um pouquinho diferentes, e eu fiz uma careta me perguntando se aquilo era bom. Com certeza pelo menos o brownie deveria ser bom. Sentamos na mesa onde o grupo de amigas da Quinn estava. Eu comi em silêncio, me sentindo totalmente deslocada com o assunto delas. Enquanto mordiscava meu brownie comecei a observar as outras mesas do refeitório. As mesas pareciam conter cada uma um tipo de grupo, como as patricinhas, os nerds, os veteranos, as calouras, os skatistas, os noiados...
Fiquei observando as pessoas por ali até achar um rosto conhecido: a garota com quem eu dormiria essa noite. Tá, ficou estranho. A garota com quem eu dividiria o dormitório. A monotonia das conversas de Quinn com as amigas já estava me irritando, então eu murmurei um "te vejo mais tarde" e saí em direção a garota.
Ao lado dela na mesa estava sentada uma garota branquinha com sardas fraquinhas e cabelos pretos e dois garotos inegavelmente lindos, eu tenho que admitir, estavam sentados em frente a elas.
- Se importa? - eu interrompi a conversa animada deles.
- Claro que não - a garota de cabelos curto me deu espaço ao seu lado -, senta aí.
- Esse é o Tom - ela apontou para o garoto a sua frente, que sorriu -, essa é a Beatrice - ela apontou para a garota a seu lado -, e esse é o Dougie - ela apontou para o garoto de frente a Beatrice. - Ah! E eu sou a Carolina.
- Hayley - eu me apresentei sorrindo.
- E aí, tá gostando daqui? - Beatrice me perguntou.
- É, aqui é legal, mas ainda tá difícil acompanhar as aulas.
- Ah, com isso não precisa se preocupar, eu até hoje não consigo acompanhar - disse Dougie e a gente caiu na risada.
- Você deve acostumar com o tempo, relaxa - incentivou Beatrice.
- Gostei do cabelo - Dougie me elogiou.
- É maneiro - disse Tom. - Quantas cores?
- Valeu. São cinco. - eu murmurei sem graça.
- Suas mechas são muito fofas - Carolina disse e passou a mão pelo meu cabelo. Beatrice concordou com a cabeça. - Vamos povo?
- Vejo vocês em vinte minutos! - disse Carolina aos garotos antes de entramos para o prédio feminino.
- Preciso de um banho - eu disse mexendo nas minhas roupas espalhadas em cima da cama. Eu tenho talento pra bagunçar roupas.
- Toma banho rápido então se quiser descer com a gente - avisou Carolina.
Legal, eles querem minha companhia.
- Ok - peguei um uniforme limpo e minha nécessaire e fui para o banheiro. Espaçoso o bastante e de azulejos brancos. Prendi meu cabelo em um coque alto e coloquei a toca por cima, tirei a roupa e entrei no boxe de vidro quase fume. Aquela água quente parecia tirar a tensão que passei durante a manhã.
Já praticamente pronta me analisei no espelho de corpo inteiro ao lado da janela. Aquela saia xadrez preto e branca parecia ligeiramente curta demais pra quem passa o dia todo sentada; sapato de boneca com salto e meias até o joelho pretas; camiseta social branca três quartos com uma gravata preta e o colete cinza com gola em "v" por cima com o símbolo da escola. O uniforme era legal, apesar de eu ter que usar um shortinho preto por baixo da saia, só pra garantir. Eu penteei mais uma vez o cabelo arrumando minha franja.
- Pronta? - Carolina perguntou me fazendo desviar a atenção do espelho.
- Quase - eu disse passando meu gloss ligeiramente vermelho nos lábios. - Agora sim.
Eu estava saindo do quarto quando dois vultos cortaram na minha frente. Observei o cabelo ruivo e liso - liso-chapinha, tava na cara - da garota mais alta e os cabelos negros e compridos da garota ao lado dela se distanciarem.
- Aff - reclamou Carolina revirando os olhos. Eu olhei para ela sem entender. - Na boa, nunca se meta com essas duas putas. São a Peyton Sawyer e a Brooke Davis. Elas acham que mandam na escola.
- É pelo jeito você não curte muito elas - eu disse rindo. - Mas está anotado.
Pelo menos agora eu sabia quem era a Peyton, ou pelo menos conhecia as costas dela. Melhor nem ir falar com ela agora, senão acho que a Carolina vai ter um troço.
- Gente, eu tenho um horário livre agora - eu informei enquanto caminhávamos até a escola. - Algum de vocês também tem?
Eles negaram com a cabeça. Legal, o que eu vou fazer um período inteira sozinha? Alguns raios de sol atravessavam as nuvens, talvez eu fique em algum lugar aqui fora, tomando um ar. Fomos até os armários e quando o sinal bateu eu desci com o livro que estava lendo e o celular. Fiquei andando até chegar no gramado que ficava atrás quadra, onde achei um banco de madeira. Sentei ali e coloquei os fones de ouvido. Olhei em volta e tudo estava quieto. De repente aquela gravata apertada começou a me incomodar, então puxei o nó para baixo e abri três botões da minha camiseta. Abri meu livro e mergulhei na história de "A Mediadora".