Lily acordou cedo, ou achou que era cedo, já que ao olhar para o relógio viu que ele marcava 10h19. Como ainda não era possível usar magia dentro de casa, ela estava com 16 anos e 166 dias, não podia usar um feitiço para amenizar o clima. Assim, ela acordou às 10h19 do dia 15 julho, completamente ensopada com o calor. Era uma das sensações mais desagradáveis, pensou, acordar por conta do calor e não porque já tinha dormido tudo que deveria dormir.

De qualquer forma, ela levantou da cama sem estar muito mal humorada, pois ela havia decidido que, a partir daquele verão, ela seria uma pessoa diferente. Não que fosse mudar muita coisa, ela gostava do seu jeito, era responsável, mas sem ser necessariamente uma pessoa rígida. Ela sentia que apesar de estar orgulhosa por suas conquistas - era monitora na sua escola, uma das melhores alunas do seu ano -, ainda havia algo que devia desbravar, viver, mas não na vida acadêmica, ela sentia que era muito mais uma conquista pessoal, quase espiritual.

A responsabilidade que ela tanto prezava era muito mais uma questão de respeito do que de ter que cumprir normas, ela era responsável por compreender que existia um sentido por trás da regras, o que a levava a não seguir exatamente coisas em que ela não via sentido.

Ser responsável era respeitar os outros, como por exemplo entregar as tarefas escolares dentro do prazo estipulado pelo professor, já que ele, com certeza, deveria ter planejado seu dia e não era justo com aquela pessoa que lhe passava conhecimento não fazer o que fora aprazado. Esse não era, então, um aspecto que ela achava que precisava de mudança, mas ela achava que poderia ser mais ousada, afinal, era uma grifinória ou não? Arriscar-se mais com as coisas, com as pessoas, viver mais profundamente a vida.

Por isso, após o final o sexto ano, ela fez uma lista das coisas que desejava alcançar:

- Viver uma experiência concretamente enriquecedora;

- Fazer, ao menos, 2 amigos trouxas legais;

- Sair para programas inusitados;

- Explorar mais Hogsmeade;

- Terminar a coleção "clássicos da literatura bruxa";

- Emagrecer 5 kg (tudo bem, esse item não vai necessariamente me fazer crescer como pessoa, mas pode ajudar em outros aspectos, como ter experiências com meninos, etc – tudo faz parte do grande plano);

Por tudo isso, ao acordar naquele dia particular, ela não ficou especialmente desestimulada, mas decidiu que, se ia começar a fazer mudanças, tinha que começá-las imediatamente.

Ela desceu as escadas da sua casa vazia e entrou na cozinha, pegou um pouco do cereal e começou a comer. O que fazer hoje? Ela pensou. Estando imersa muito tempo no mundo bruxo por boa parte do ano, as férias escolares eram um período de grande, já que buscava experimentar tudo que o mundo trouxa tinha a lhe oferecer, como ir a shows, conhecer novas bandas, novas tecnologias. Claro que isso não se devia apenas a sua natural curiosidade, e sim ao fato de que geralmente ficava bastante isolada nesse período. Apesar de Claire e Lisa, suas amigas mais próximas, escreverem-lhe frequentemente, isso não bastava para ocupar os seus dias.

Pensando nisso, ela resolveu então ir andar no centro de Londres e esperar para ver o que o dia tinha a oferecer.

Após uma semana caminhando e sentando em cafés para ler, ela já havia concluído dois livros da lista: "o bruxo e o mar" e "em busca do feitiço perdido". Cansada de ficar sentada, resolveu sair para procurar discos novos para ouvir, pagou a conta e se dirigiu à porta.

Chegando em North Street, reduto das lojas de música, o odor da urina exposta ao ar livre entrou nas suas narinas. Continuou caminhando e passando pelas vitrines cheias de cartazes de shows, observando um grupo ou outro de pessoas que passava, em sua maioria jovens com piercings espalhados pelos corpos e cabelos arrepiados e coloridos, até que um particular anúncio chamou sua atenção: "precisa-se de ajudante de venda, paga-se 2 xelins pela hora. falar com Tom no balcão".

Olhando atentamente para loja agora a sua frente, percebeu que ela era um pouco diferente das demais. De certa forma, parecia uma loja mais democrática, no sentido que as demais lojas de música pareciam se dedicar muito para o punk, enquanto aquela ainda expunha outros artistas não tão extremos, como Rolling Stones, Led Zeppelin, The Doors.

Tomada por um impulso que só quem busca o novo consegue compreender, Lily entrou na loja e procurou por Tom.

O balcão estava vazio e o interior da loja parecia como se não tivesse vivalma. A loja parecia mais um corredor do que um estabelecimento, devido a sua estreiteza e longueza; todas as paredes estavam cobertas por discos e adesivos das mais variadas formas.

Estando parada há mais de 3 minutos observando o ambiente, ela engoliu seco e resolveu falar:

- Oi, tem alguém aqui? Eu vi o anúncio na vitrine... – Ainda imóvel, viu pelo canto do olho uma sombra preta passando. Assustou-se achando ser um rato, mas se tranquilizou ao perceber que era apenas uma barata que passava. Aliviada, respirou fundo, quando escutou um barulho - alguém estava mexendo em algumas caixas que se encontravam no aposento logo atrás do balcão.

Uma cabeça grisalha surgiu e com ela o rosto redondo e amarelado do seu dono. Ele estava tentando remover com cuidado o contéudo da última caixa de uma pilha de quatro, mas sua altura não era suficiente, tendo que ficar na ponta dos pés, sendo que, mesmo assim, não conseguia colocar sua mão fundo suficiente para pegar o que quer que quisesse.

Percebendo uma oportunidade do destino, Lily vasculhou algum apoio pela loja e viu um pequeno banco de madeira avermelhado já completamente desgastado pelo tempo por trás do balcão. Ela cruzou a portinha que separava a bancada do resto da loja e pegou o banquinho.

Com ele em mãos, dirigiu-se ao senhor e colocou o banco próximo da pilha de caixas e subiu. Ele, como que acordado de um transe, percebeu então a presença de uma menina de pele muito branca com os cabelos ruivos subindo no seu banco e olhando para o interior da caixa que ele há algum tempo tentava alcançar.

- Quem é você? – Perguntou grosseiramente o homem grisalho que devia estar beirando seus 60 anos.

Lily o encarou com susto e o senhor, como que percebendo sua maneira de falar pela expressão na cara da garota, falou novamente de maneira mais suave:

- Desculpe-me, mas você me pegou de surpresa. Quem é você?

Pela mudança na expressão do senhor, Lily se sentiu mais segura e disparou:

- Bem, eu sou a ajudante de vendas que o senhor está precisando e, já que iniciamos os trabalhos, o senhor poderia me dizer especificamente o que está procurando nesta caixa. – Falou isso sorrindo de uma forma malandra que irradiava simpatia.

O senhor analisou a menina que estava no banco, era relativamente magra, não muito alta e usava uma calça jeans escura com a boca larga, um tênis vermelho e uma blusa cinza de alça. Apesar da ordinariedade do seu traje e do seu físico, era o rosto que realmente chamava atenção. Os cabelos ruivos e os olhos verdes intensos. Os seus traços eram comuns, o nariz um pouco arrebitado, a boca numa espessura mediana. Analisando muito bem, o verde não era tão intenso como ele tinha imaginado inicialmente, mas o espírito por trás daquele olhar e daquela expressão davam vida ao seu exterior, fazendo que todo aquele conjunto ganhasse uma especial graça e beleza.

O estilo da menina não combinava em nada com a proposta da loja, era sem extravagância demais, mas o temperamento que ela demonstrava com certeza se encaixava no trabalho e, pensando melhor, Ziggy, o outro ajudante de vendas, já cumpria a cota de exuberância necessária para qualquer loja do estilo. Talvez, até, ela desse um ar mais cool à loja, uma certa crueza flower power que estava faltando.

Com todos esses fatores em mente, Tom decidiu:

- Ok, você é maior de 16 anos, pelo menos?

- Sim, vou completar 17 anos em janeiro. Também sou bastante responsável e estou disponível para trabalhar em qualquer horário. – A última declaração foi feita de maneira despreocupada, mas Tom notou que havia mais por trás daquilo, acostumado com os adolescentes cheios de cicatrizes pessoais que rondavam a vizinhança, assim com ele mesmo, resolveu não fazer nenhuma observação a mais sobre o assunto. Isso fazia parte da personalidade de North Street, lá não havia julgamentos, as pessoas podiam se permitir e serem livres, o que não tinha necessariamente apenas o lado positivo, a julgar pelo crescente vício de heroína dos jovens e das mortes por overdose da região.

O que Tom não quis perguntar e Lily pensou ao fazer tal declaração foi na morte de seus pais. Há pouco mais de 1 ano eles sofreram um acidente de carro enquanto Lily estava na escola, ela só soube quando o enterro já estava pronto, já que sua irmã, Petúnia, queria a mínima interferência dela naquilo – ou em qualquer coisa. De certa forma, aquilo e sua ruptura com Snape, foi o que levaram Lily, após um longo período de reclusão interior, a decidir que iria mudar.

Exteriormente, as pessoas ao seu redor não percebiam tanto o impacto da morte dos seus pais e da perda da sua mais antiga amizade, ela tentava levar como se tudo estivesse normal na superfície, mas, lentamente, interiormente, após todo o sofrimento, foi crescendo uma fome dentro dela de transformação.

A vida dela havia mudado, não havia como voltar atrás, e ela também havia mudado, a sua maneira de viver não mais correspondia aos seus anseios.

A ruptura dessas relações, familiar e fraternal, deu a Lily um senso muito aguçado de efemeridade e, naturalmente, um forte estímulo para aproveitar mais as coisas que vivia. Ao mesmo tempo em que pessoalmente sofreu esse abalo, o mundo bruxo também estava em mudança, uma não tão favorável para nossa protagonista. O bruxo que se autodenominava Lorde Voldemort estava ganhando mais adeptos e, o que antes parecia improvável, sua política estava ganhando contornos mais concretos.

Tudo ocorria de forma muito sutil, como alerta dado boca a boca para que os nascidos trouxas evitassem andar sós, um olhar desdém mais proeminente dos pais das famílias bruxas mais tradicionais no Expresso Hogwarts, coisas que podiam passar batidas, mas que para Lily mostravam um grande sinal de alerta, principalmente após o incidente com Snape.

Assim, ao declarar que estava disponível em qualquer horário, implicitamente estava o fato de que ninguém realmente iria ligar para o horário que ela chegasse em casa, pois Petúnia e ela, apesar de morarem na mesma casa, estabeleceram uma rotina própria sem muito contato, elas revezavam as feiras semanais e quase não se encontravam em casa.

- Certo. – disse Tom - O horário em que estou precisando de gente é à noite, funcionamos 24 horas. Pela tarde e início da noite eu fico sozinho aqui, o que não é problema. À noite é que é o horário de pico e Ziggy, o ajudante que trabalhará com você, já não consegue dar conta sozinho. Você trabalharia das 21h às 05h, tem certeza que pode esse horário?

- Sim, como já falei, não tenho nenhuma restrição de horário, na verdade, sou mais ativa à noite mesmo – disse Lily.

- Tudo bem. Você consegue enxergar uma fita adesiva vermelha no fundo da caixa? Pegue-a para mim e depois pode ir. Falarei com Ziggy que você virá às 20h30 e ele passará tudo o que você precisa saber, ok? Os pagamentos ocorrem a cada domingo e não funcionamos na segunda-feira.

- Tá ótimo – falou Lily, localizando a fita que ele mencionará e passando-a para o senhor.

- Por acaso, qual seu nome? – perguntou Tom, pegando a fita adesiva.

- Ah, desculpe, meu nome é Lily Evans. – respondeu Lily, descendo do banco e estendendo sua para cumprimentar seu novo empregador.

- Hum, acho que combina com você de certa forma – respondeu Tom olhando bem no rosto dela e apertando a mão que estava no ar - Escute, você não parece frequentar muito essa vizinhança, então acho bom estabelecermos certos parâmetros. Como você pode perceber essa é uma loja de música num bairro aparentemente não muito amigável, apesar dos rapazes serem mais moles do que aparentam. Devido à estrutura da loja, fica difícil quando estamos no balcão prestarmos atenção ao que o pessoal está fazendo no fundo e por isso coloquei o anúncio. Seu trabalho será, praticamente, auxiliar Ziggy e ficar de olho no que as pessoas estão fazendo, já que sofremos uma série de pequenos furtos, mas não precisa ser muita na cara e ficar como um cão guarda. Só ficar por aí fingindo que está disponível para qualquer questão. Não gosto que meus funcionários se droguem ou bebam durante o expediente, mas, se for inevitável, só se certifique de usar uma quantidade que não atrapalhe o seu trabalho. Caso eu apanhe você fazendo o contrário, você será dispensada dos serviços, certo?

- Entendi, ficar fiscalizando como quem não quer nada e não ficar alta, não é? – De certa forma, a fiscalização já era algo muito comum, já que desde o seu quarto ano em Hogwarts Lily era monitora. A parte das bebidas e drogas Lily achou bastante desnecessário, mas, outro lado, aquilo era North Side, certo? Fazia sentido.

Apesar de não ser próxima com esse tipo de coisa, não é como se fosse algo do outro mundo para Lily, ela saiu bastante para shows no último verão e viu muito coisa que acabou a tornando habituada ao uso de drogas e bebidas ao seu redor.

Tendo ajudado Tom a lacrar algumas caixas com a fita que acabara de pegar, Lily deu um último adeus e se dirigiu de volta para casa. Sem saber exatamente porquê, ela sentiu uma onda de ansiedade quando estava esperando pelo metrô, da mesma forma que sentira na primeira vez que fora para Hogwarts, como se algo excitante estivesse prestes a acontecer.