Frisco
FAN FICTION
ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)
DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores.
CATEGORIA: Sei lá! Conto, eu acho. Angst e Drama, com
certeza.
CLASSIFICAÇÃO: Sem restrições.
SPOILER: Não há.
SINOPSE: Uma calamidade pode trazer à tona o melhor e o pior
das pessoas. Eu que o diga...
AGRADECIMENTO: A Sky, Késsia e Graça, pelos elogios e,
principalmente, pelas críticas sinceras. A Claudia Modell,
brava defensora dos fracos e oprimidos, que com sua pena
ferina (esse é boa) partiu em minha defesa durante o ataque
das shippers malvadas.
PAGAMENTO: Em forma de feedbacks (positivos ou negativos) é
sempre bem vindo.
NOTA: Tive a idéia para essa estória numa bela tarde de
domingo assistindo a um desses documentários do Discovery
Channel ou algo que o valha. Os fatos vêm de lá, o resto é
pura ficção.
Frisco
PRÓLOGO
Ninguém pode avaliar as verdadeiras dimensões de uma
catástrofe até ser envolvido por ela. Mesmo assim, como parte
integrante do desastre, não se pode compreendê-lo em sua
plenitude, mas apenas pela experiência individual de cada um.
Quando se fala em calamidades, os números não são
significativos senão para os governantes ou para aqueles que
observam de fora o desenrolar dos fatos. Toda estatística,
nestes casos, é vazia e sem sentido porque não reflete os
acontecimentos em sua essência, mas apenas seus resultados
visíveis. São as pequenas coisas, as mudanças de conceitos e
de atitudes, o modo de encarar o próximo como um companheiro
de infortúnio, que dão a verdadeira medida de um desastre.
Esta estória tem a ambiciosa pretensão de relatar uma das
grandes catástrofes de nossos tempos como vista pelos olhos
de duas de suas vítimas. E, através desta visão pessoal dos
acontecimentos, tentar resgatar um pouco do real significado
humano do desastre.
Vamos aos fatos.
Embora não haja registro escrito, conta-se que, quando os
colonizadores espanhóis primeiro chegaram à baía de San
Francisco, na Califórnia, no final do século XVIII,
avistaram, na praia, três índios que choravam. Por causa
disso, o piloto espanhol atribuiu à baía o profético nome de
Enseada dos Chorões. Lendas à parte, entre 1769 e 1776, os
conquistadores espanhóis, soldados e padres franciscanos,
exploraram a região ao redor da baía, buscando o melhor lugar
para ali estabelecer um forte e duas missões religiosas. Em
outubro de 1776 foi, finalmente, fundada a missão de San
Francisco de Assis comemorada com fanfarras e foguetório, que
assustaram os habitantes nativos. Imediatamente depois,
iniciou-se a conversão dos índios e, com ela, a colonização
da Califórnia.
As doenças do homem branco, sarampo, cólera, varíola,
sífilis, no entanto, rapidamente devastaram a população
indígena, de tal modo que, em 1833, apenas 204, dos cerca de
300000, habitantes nativos restavam na área da baía.
A despeito de sua vocação como posto avançado do Reino de
Espanha, foi somente no final da década de 1830 que San
Francisco, nessa época denominada "pueblo" de Yerba Buena,
assumiu sua vocação comercial. Com a incorporação da
Califórnia como território dos EUA e a descoberta de ricos
filões de ouro na área, a região viu-se subitamente inundada
por uma horda de rancheiros e aventureiros, saltando de uma
população de 459 almas, em 1847, para 56000 habitantes, em
1860. Data também deste período a chegada de navios lotados
de trabalhadores chineses aos portos da cidade. O crescimento
da cidade, já batizada de San Francisco, desde 1851, teve de
ser rápido o bastante para suprir as necessidades geradas
pelo espantoso aumento de sua população. Fábricas, armazéns,
fundições foram construídos na área denominada South-of-
Market com essa finalidade e nela também estabeleceram-se os
trabalhadores necessários para manter os negócios operando,
um grupo cosmopolita formado, além dos chineses, por alemães,
poloneses, franceses, austríacos, irlandeses, chilenos e mais
um sem número de trabalhadores de diversas nacionalidades
reunidos inicialmente pela Corrida do Ouro e que ali
permaneceram depois que o sonho dourado se acabou. Em 1900,
um de cada cinco habitantes da cidade residia em South-of-
Market, em casas geminadas de madeira.
Em abril de 1906, a cidade foi abalada por um violento
terremoto seguido por um incêndio que durou quatro dias e a
reduziu a ruínas. Cerca de três anos depois, a cidade havia
sido quase que completamente reconstruída.
Desde então, San Francisco tem crescido sem parar, acabando
por tornar-se uma das mais demograficamente diversificadas
dos Estados Unidos. Embora permaneça sendo um importante
centro financeiro e mercantil, devido à sua grande tolerância
à não conformidade, a cidade tornou-se também uma Meca do
turismo internacional.
Em 1989, a área de San Francisco voltou a ser sacudida por um
violento tremor que alcançou 7.1 pontos na escala Richter e
deixou um saldo 62 mortos e 3800 feridos, causando prejuízos
estimados em 6 bilhões de dólares.
O estado da Califórnia situa-se sobre a junção de duas placas
tectônicas subterrâneas, denominada Falha de San Andreas.
Tais placas movimentam-se lentamente sob a superfície
terrestre há milhões de anos. Quando essas placas movem-se
uma de encontro à outra, os terremotos ocorrem ao longo da
Falha de San Andreas. Literalmente milhares de pequenos
abalos ocorrem na Califórnia todos os anos. No entanto, são
poucos os registros de terremotos realmente significativos
tais como os ocorridos em San Francisco em 1906 e 1989.
Conhecidos os dados concretos, passemos à ficção.
PARTE I – Tempos Antigos
A San Francisco do início do século XX despontava como uma
das cidades mais belas da América. As ruas limpas e
arborizadas próximas à baía vicejavam com seus belos
casarões, os reluzentes automóveis que as percorriam velozes,
as maravilhas da novíssima iluminação pública a eletricidade.
Um mundo próspero e bem organizado por onde circulava gente
rica e bonita, a elite de Frisco, como era carinhosamente
chamada a cidade por seus habitantes.
Esse era o mundo onde habitava William Mulder III. Nascido em
Boston, no seio de uma família tradicional e abastada, sua
mãe orgulhava-se de que seus antepassados haviam chegado à
América junto com os pioneiros no Mayflower. Aos trinta e
dois anos, Mulder, como ele preferia ser chamado, era um
daqueles homens a quem a idade acrescenta distinção sem
apagar os traços alegres da juventude. Formado em Eton, na
Inglaterra, "como os nobres", costumava dizer esnobe sua mãe,
administrava os negócios da família nas diversas cidades por
onde se espalhavam. Londres, Paris, Milão, Estocolmo, Nova
York, Berna, Madri já haviam sido sua morada temporária,
assim como o era agora San Francisco. Um homem do mundo, um
bon-vivant, refinado, sofisticado, hospedando-se sempre nos
melhores hotéis, freqüentando os melhores teatros e
restaurantes, disputado nas festas das famílias mais
influentes por onde quer que fosse. "Um belo rapaz",
suspiravam as mocinhas casadouras. "Um ótimo partido",
retrucavam suas mães.
Mas todo o luxo e glamour dessa resplandecente San Francisco
não se sustentavam sozinhos. Milhares de pessoas trabalhavam
nos bastidores desse mundo de sonhos para mantê-lo
funcionando. Eram imigrantes, em sua maioria, irlandeses,
chineses, italianos, gente humilde e trabalhadora que, com
seu suor, era responsável pela manutenção do brilho e do
deslumbramento da cidade. Gente pobre que morava em casas
simples em South-of-Market, uma parte pouco nobre da cidade
conquistada ao mar e aos pântanos por sucessivos aterros no
lado oposto às belas mansões brancas dos ricos. Gente humilde
que batalhava seus poucos dólares com esforço e vivia de
sacrifícios para manter a dignidade.
Esse era o mundo de Katherine Scully. Nascida ali mesmo, na
área pobre de Frisco, pertencia à terceira geração de uma
numerosa família de imigrantes irlandeses. Seu pai,
trabalhador do porto, carregara e descarregara navios durante
trinta anos para sustentar a família até sofrer um trágico
acidente que lhe ceifou a vida, havia cinco anos. A
Katherine, a filha mais velha, coubera, desde então, o
sustento da mãe e dos quatro irmãos menores. A diligente
mocinha, com dezenove anos na ocasião, não se intimidou
diante da responsabilidade e, de emprego em emprego, vinha
conseguindo cumprir esta difícil tarefa, embora com o
prejuízo de sua vida pessoal. Os vizinhos e conhecidos diziam
que a jovem ruiva assustava os pretendentes com a expressão
sisuda e fechada que tinha sempre estampada em seu belo
rosto. Não tinha namorados, nem amigas, era introvertida e
pouco se divertia, seu pensamento sempre voltado para o dever
de manter a família.
O Grand Hotel de San Francisco era um imponente construção de
linhas neoclássicas a poucos quarteirões da baía. Sua sólida
estrutura de quatro andares, toda em pedra e argamassa, era
considerada indestrutível. O contraponto à impressão pesada
causada pela estrutura eram as amplas janelas avarandadas que
a pontuavam, com suas balaustradas de ferro em arabescos tão
rebuscados que lembravam finas rendas pendendo da fachada.
O mais refinado hotel de Frisco, estrategicamente localizado
no coração da cidade, bem no meio de seu centro financeiro e
comercial e, ao mesmo tempo, próximo dos melhores
restaurantes e dos teatros mais badalados. Certamente o local
mais adequado, senão o único, para servir de residência
temporária a William Mulder, que ocupava um enorme e luxuoso
apartamento no último andar do hotel.
Um dos postos de trabalho mais disputados de San Francisco,
conhecido tanto pelos bons salários que costumava pagar a
seus funcionários, como pelas generosas gorjetas distribuídas
por seus abastados hóspedes. Certamente o melhor dos empregos
que Katherine Scully já tivera, a dois anos trabalhando como
camareira no hotel.
Os primeiros tímidos raios de sol infiltravam-se pela fina
gaze das cortinas, enchendo o quarto com sua luminosidade
suave e difusa. A manhã de 18 de Abril de 1906 despontava
como uma bela e agradável manhã de primavera. William Mulder
despertou sobressaltado, sentando-se de um pulo na cama não
desfeita. Tinha a boca seca, um desagradável aperto no
estômago, o coração descompassado. Um pesadelo, certamente,
embora ele não conseguisse lembrar-se ao certo qual.
Levantou-se em busca da jarra de água sobre o aparador de
mármore. Encheu o copo de cristal e sorveu todo seu conteúdo
de uma só vez, os olhos fechados na tentativa de recordar o
pesadelo. Não conseguia. Abriu os olhos e deparou-se com sua
própria imagem refletida no imenso espelho de moldura dourada
pendurado sobre o aparador. Tinha a aparência cansada, os
olhos cinzentos sombreados por olheiras que começavam a se
formar, os cabelos despenteados. Passou vagamente a mão sobre
o queixo onde a barba começava a despontar, procurou arranjar
os cabelos com os dedos. Tirou a gravata borboleta que pendia
descuidada da gola da camisa desabotoada sobre a lapela do
smoking negro.
Na noite anterior, havia assistido, juntamente com a boa
sociedade de Frisco, a uma impressionante encenação de Carmen
estrelada por ninguém menos do que Enrico Caruso, o mítico
tenor, no Mission Opera Theater. Depois da ópera, jantara em
casa de um banqueiro local tão interessado em financiar-lhe a
construção de uma nova fábrica na cidade, quanto em conseguir
nele um bom marido para a filha mais velha. Entediante.
Tentando salvar a noite, seguira para cear em um restaurante
da moda, na companhia de amigos boêmios e intelectuais que
afetavam seu desapego pelos bens materiais em infindáveis
discussões existencialistas, mas não esboçavam a mínima
reação no momento de pagar a conta, que sempre ficava a cargo
do rico Mulder.
Subitamente, achou-se cansado daquilo tudo, daquela
existência sem sentido, nem razão de ser. Estava na hora de
deixar San Francisco, concluiu.
Encheu novamente o copo de água e ia levá-lo aos lábios,
quando se deu conta do silêncio incomum que enchia o ar.
Cinco horas da manhã, marcava seu relógio de algibeira.
Estranho. Nem mesmo o canto dos pássaros ou o latir dos cães
na rua podiam ser ouvidos. Era como se o mundo houvesse
parado. Espiou a rua lá embaixo por uma janela, mas à exceção
de um chinês, puxando um carroção carregado de frutas e
verduras, que seguia, provavelmente, em direção ao mercado,
não havia mais ninguém lá fora. Era cedo ainda. Ainda
sentindo um desconfortável aperto nas entranhas, dirigiu-se à
porta do apartamento. Tinha uma sensação estranha, um
pressentimento, quando abriu a porta para espiar o corredor.
Kathy Scully trancava a porta do quarto que acabara de
arrumar. Havia conseguido um trabalho adicional no turno da
noite para obter dinheiro extra para a extensa lista de
medicamentos de que sua mãe necessitava para combater uma
pneumonia. Estava cansada. Apesar do trabalho noturno não ser
tão duro quanto o diurno, não estava acostumada a passar
noites em claro. Atribuía ao cansaço a desagradável sensação
de angústia que a invadia em meio ao silêncio opressivo que
reinava naquela manhã.
Angústia, cansaço, qual nada! Sabia que tinha de ser superior
a tudo aquilo se quisesse sobressair-se no trabalho. E era
para isso que trabalhava. Não fora à toa que conseguira, em
apenas dois anos, ser promovida de ajudante de lavanderia a
camareira chefe de andar. E tinha consciência de que, se
perseverasse em seus esforços, poderia galgar a governança em
mais alguns anos. Katherine não se considerava exatamente
ambiciosa. Mas tinha uma família para manter e faria tudo o
que estivesse ao seu alcance para proporcionar-lhes uma vida
melhor.
Scully, como era chamada no hotel para diferenciar-se das
oito outras Katherines que ali trabalhavam, assustou-se com o
ruído de uma porta sendo aberta. Virou-se bruscamente,
ficando frente a frente com William Mulder.
- Bom dia, sr. Mulder. – disse ela, tentando não deixar
transparecer o susto em sua voz. – E me desculpe se o
acordei... – acrescentou gentilmente diante do hóspede mais
notável do hotel.
Ele apenas sorriu da expressão assustada da moça e meneou a
cabeça, como se dissesse "não importa". Sempre com um leve
sorriso, examinou a bela camareira longamente. Os grandes
olhos azuis que se sobressaíam da tez alva, a boca pequena de
lábios carnudos e rosados, o queixo diligente, a mecha de
cabelos ruivos que insistia em escapar da touca branca que
cobria sua cabeça. O corpo miúdo, que ele adivinhava bem
feito, estava escondido sob o austero uniforme negro cujo
vestido deixava entrever apenas os tornozelos envoltos em
grossas meias, também negras. Os pés calçados em feios
sapatos abotinados pareciam pequeninos demais para sustentar-
lhe o corpo.
Ela deixou-se olhar pelo ilustre hóspede, ao mesmo tempo em
que o examinava, também. Sem dúvida um homem bem apessoado,
dono de um belo par de olhos estreitos e profundos, onde o
cinza se mesclava com a cor de avelãs. Um rosto anguloso com
malares salientes, onde o nariz, apesar de um tanto grande,
encaixava-se com perfeição. Seus ombros eram largos e os
braços fortes tinham as mãos enterradas nos bolsos do smoking
negro. Era alto, quase tão alto quanto o batente da porta,
com pernas longas, quase infinitas. Um conjunto deslumbrante,
muito diferente dos indefectíveis rapazes das vizinhanças de
South-of-Market que viviam se insinuando para ela.
Scully parecia apreciar o exame que ele lhe fazia e o
examinava também, Mulder percebeu, gostando da idéia.
Tratava-se de uma bela mulher, forte, saudável, muito
diferente das mocinhas lânguidas, louras e doentias que
normalmente encontrava na sociedade. Inconscientemente, ele
começou a despi-la em pensamentos, imaginando-lhe o colo
alvo, os seios firmes, as coxas macias...
A intensidade do olhar foi tamanha que a camareira corou,
embaraçada, e irritou-se com isso, terminando por desferir
uma sonora bofetada no rosto do hóspede. Imediatamente,
arrependeu-se.
- Me de-desculpe, senhor... – gaguejou sem jeito.
Ele levou a mão à bochecha, ainda sorrindo, com uma expressão
entre surpresa e divertida, quando um trovejar distante
encheu o silêncio. Era um ruído cavo e surdo que foi se
fazendo mais e mais intenso. A ele misturavam-se os estalos e
rangidos do madeirame empregado na construção, das portas e
caixilhos de janelas e das vigas de sustentação do teto
quando o solo tremeu pela primeira vez. E depois, os ruídos
dos objetos: os cristais que começavam a vibrar, o lustre do
corredor que balançava de um lado para o outro, como um
pêndulo. Tudo o que estava solto ou colocado sobre as mesas e
aparadores, copos, vasos, livros, relógios, tudo quicava
sobre as superfícies onde estava e acabava por espatifar-se
no chão com estardalhaço. Então, as paredes e o chão foram
fortemente sacudidos, rangendo e estalando. Quadros
despencavam de seus lugares, vidros que se quebravam, o
reboco se desprendia das paredes, engrossando o rugido até
torná-lo tão ensurdecedor que os sons que o compunham não
mais poderiam ser distinguidos.
Num reflexo, William Mulder agarrou a camareira Scully pelo
braço e a puxou com força para dentro do quarto, apenas um
instante antes do enorme lustre do corredor desabar no chão,
exatamente sobre o ponto onde ela havia estado. O tremor
intensificou-se desmesuradamente, violentas ondas de choque
inclinavam as paredes em ângulos inimagináveis, fazendo com
que o chão constantemente fugisse sob os pés de hóspede e
camareira e os obrigando a apoiar-se um no outro para se
manter de pé. O piso ondulava como a superfície encapelada do
mar fustigada pelo vento, até que desapareceu por completo
sob os pés assustados do casal.
"Às 5:13 da manhã de quarta-feira, 18
de abril de 1906, a cidade de San
Francisco, na Califórnia, foi
sacudida durante 48 segundos por um
terremoto cuja magnitude chegou a 7.8
pontos na escala Richter. Apenas para
efeito de comparação, os terremotos
que atingiram a Califórnia, em
outubro de 1989, e Kobe, no Japão, em
janeiro de 1995, alcançaram,
respectivamente, 7.0 e 6.9 pontos e
os tremores mais intensos de que se
tem notícia chegaram a 8.9 pontos. O
abalo pôde ser sentido desde Coos
Bay, no Oregon, até Los Angeles,
Califórnia. Centenas de casas e
edifícios ruíram, entre eles a
Prefeitura da cidade e o posto
central dos Correios. Milhares de
pessoas ficaram feridas ou
desabrigadas e centenas perderam a
vida."
Tão repentinamente quanto havia começado, o terremoto cessou
e um silêncio impressionante pairou sobre San Francisco. Tão
silencioso estava que Katherine Scully, deitada sobre os
escombros, em algum lugar que ela não saberia dizer qual era,
teve a impressão de poder ouvir caírem à sua volta os grãos
de poeira que tornavam o ar quase irrespirável. Estava
escuro, muito escuro e sufocante onde ela estava. Não sentia
dor, de modo que concluiu que não estava ferida. Apenas lhe
era difícil respirar o ar quase sólido de partículas que a
envolvia. Arfava, como se tivesse uma das crises asmáticas de
Tommy, seu irmão caçula.
Um aperto tomou seu peito quando pensou na família. Como
estariam a mãe e os irmãos após aquele violento terremoto?
Talvez estivessem feridos. Talvez, mesmo, estivessem
mortos... Um nó formou-se em sua garganta com a idéia. Ela
sentiu rolarem sem querer pela face lágrimas quentes de
desespero. Não podia suportar a idéia de ficar sozinha.
Sozinha... Um calafrio percorreu seu corpo, diante da idéia.
Tinha medo da solidão mais do que de qualquer outra coisa na
vida. Sacudiu a cabeça com força, para espantar a idéia que a
apavorava. Talvez estivessem bem, dizia com firmeza a si
mesma, tentando acalmar-se. Outros terremotos já haviam
ocorrido antes. A bem da verdade, desde outubro do ano
anterior, San Francisco vinha sendo sacudida regularmente por
tremores de intensidade variável e nada havia acontecido à
sua casa, até então. Era uma casa baixa, construída por seu
pai com as próprias mãos; simples, mas resistente. Sim! Era
bem possível que, naquele exato momento, seus irmãos
estivessem sentados ao redor da grande mesa de madeira, na
cozinha, falando todos ao mesmo tempo, na habitual algazarra,
enquanto a mãe, de pé, em frente ao fogão, preparava o café
da manhã. Sim. Era melhor pensar daquela forma e começar a
procurar depressa um modo de sair dali. Antes que eles
soubessem o que havia sucedido ao hotel e ficassem
preocupados com ela.
Decidida, começou a tatear ao redor de seu corpo para tentar
determinar sua localização e, principalmente, um modo como
sair dali. Acima de seu peito, havia uma superfície lisa e
inclinada que prosseguia ao longo de todo seu corpo,
elevando-se um pouco em direção à cabeça. Possivelmente, uma
parede tombada. Estendeu os braços para frente, acima da
cabeça, e verificou que havia espaço suficiente para sentar-
se. Estaria firme aquela parede? Para tirar a dúvida, deitada
como estava, esticou os braços para trás da cabeça e percebeu
que, às suas costas, a situação era a mesma, havia outra
parede que, provavelmente, servia de apoio àquela que se
inclinava sobre sua cabeça. Sim. Parecia seguro sentar-se.
Com alguma dificuldade, conseguiu seu intento. Lutou durante
alguns momentos para recobrar o fôlego, o ar denso de poeira
tornava o mínimo movimento em um esforço hercúleo.
Voltou a tatear ao redor, aleatoriamente. Os dedos de sua mão
esquerda esbarravam em pedaços de madeira e vidro, tapetes
felpudos e muitos destroços de pedras e argamassa das
paredes, teto e piso do edifício. Numa dessas explorações
táteis, seus dedos tocaram algo macio e frio. Pele humana. Os
dedos de uma mão. Fria, possivelmente, morta. A idéia causou
tanta repulsa a Katherine que ela recolheu sua mão ao regaço,
assustada. Oh, Deus! Dividia o pouco espaço de que dispunha
com um cadáver! Podia ouvir as batidas de seu próprio coração
martelando surdas em suas têmporas. Respirou fundo, sorvendo
montanhas de poeira, para se acalmar. No silêncio de seu
cárcere, podia ouvir o gotejar distante de algum encanamento
rompido. "Um cadáver!", pensava Kathy, assustada. Quisera ter
para onde fugir, a idéia de ter um cadáver tão perto lhe
causando náuseas. "É apenas um corpo sem vida.", tentava
acalmar a si mesma. "Os mortos não oferecem perigo. Os vivos,
sim...", insistia.
O gotejar constante da água era o único ruído que ouvia, além
de seus próprios batimentos cardíacos. Decidiu distrair-se,
contando os pingos. "Um, dois, três, quatro..." O estratagema
funcionou. Antes do qüinquagésimo pingo, já havia recuperado
a calma e resolvido continuar com a exploração das
vizinhanças.
Atrás e acima havia paredes sólidas, ela já o sabia. À sua
direita, podia sentir o toque de uma superfície lisa,
certamente, outra parede, que se estendia por todo o seu lado
direito, até onde ela conseguia alcançar. Não seria por ali
sua saída. Restava apenas explorar o lado esquerdo. "O
cadáver!" O pensamento a assaltou novamente e ela obrigou-se
a contar os pingos d'água outra vez. Com relutância, sua mão
recomeçou a tatear a escuridão de seu lado esquerdo. Evitava,
deliberadamente, as cercanias do ponto onde imaginava ter
tocado o cadáver. Ao menos daquele lado, parecia não haver
uma parede que restringisse sua passagem. Apenas destroços
cobriam o chão. E o cadáver... Inclinou ligeiramente o corpo,
tentando alcançar além do comprimento de seu braço estendido
no ar. Havia um vazio, até onde podia perceber.
Katherine Scully pôs-se de joelhos, decidida a engatinhar na
direção em que acreditava estar sua saída dali. Mesmo que
aquilo implicasse em passar por sobre o cadáver. No primeiro
movimento que fez, esbarrou novamente na mão fria. Julgou
ouvir um gemido muito baixo e seu coração disparou novamente.
"Pare com isso, Scully. Mortos não gemem. É apenas sua
imaginação.", ralhou consigo mesma. Amaldiçoando a escuridão,
tateou na direção onde achou que deveria estar o tronco do
morto. Sim, ali estava e havia espaço suficiente para passar
por sobre ele sem tocá-lo. Lentamente, esticou-se, apoiando
uma e depois a outra mão no chão, além do corpo. Ergueu um
dos joelhos para colocá-lo no vão entre o braço e o tronco do
cadáver e, então... Escorregou. Uma de suas mãos havia se
apoiado sobre algo roliço, um pé de mesa, talvez, e o objeto
deslizou, levando seu equilíbrio junto. Scully caiu com
estardalhaço, diretamente sobre a barriga do corpo estendido
abaixo dela.
- Ui! – soou uma voz masculina na escuridão.
Ao menos não se tratava de um cadáver, ela pensou aliviada.
- Me desculpe. – disse, erguendo-se e recuando até sua
posição inicial.
- Me desculpe, me desculpe. – gracejou a voz em falsete. –
Isso é tudo o que você sabe dizer, mocinha? – acrescentou o
homem, cuja voz ela instantaneamente reconheceu.
- Sr. Mulder? – ela grunhiu contrariada em resposta. – O
senhor está bem?
- Agora que você saiu de cima de mim, creio que sim. –
respondeu Mulder com ironia.
- Me desculpe, novamente... Não tive a intenção... – o tom
era seco, apesar da humildade das palavras.
- Não se preocupe. Eu estava apenas brincando. – ele
respondeu gentilmente, já arrependido do gracejo. – E, por
favor, chega de pedir desculpas, ok?
A camareira não respondeu, mas ele quase pôde vê-la,
assentindo com a cabeça.
- E já que você perguntou... Não... Acho que não estou
ferido, embora a cabeça me doa um pouco... – sua voz soava
vaga, como se estivesse falando consigo mesmo. - Mas há algo
sobre meu ombro que não me deixa mover... Acho que é um
móvel... um criado mudo, talvez. Você poderia me ajudar, por
favor, mocinha?
- Scully. Katherine Scully é meu nome. – informou ela com voz
cortante, enquanto tateava pelo tronco do homem à procura do
que o prendia.
- William Mulder. – respondeu, divertido com a irritação de
Scully. – Mas acho que você já sabe...
O toque macio da seda do smoking de Will Mulder era como uma
carícia para os dedos esfolados de Kathy e, a despeito das
condições, ela não podia se negar o prazer de desfrutar do
toque do tecido caro. Seguindo seu caminho de tentativas e
erros, seus dedos alcançaram o queixo do homem onde a barba
que despontava causou-lhe um frisson de deleite e susto,
fazendo-a recuar. Finalmente, suas mãos encontraram o
obstáculo que impedia o homem de erguer-se. Parecia,
realmente, um criado-mudo, ele tinha razão, caído sobre seu
ombro direito. Tentou empurrá-lo, mas o móvel não se movia.
- Não dá para empurrar. Vou tentar erguê-lo. Em três, ok?
Um... dois... três... – contou, erguendo sem dificuldade o
móvel, mais leve do que ela poderia supor.
Ouviu o entulho se movimentando e pôde sentir o deslocamento
de ar, quando Mulder se pôs sentado ao seu lado, recolocando
em suspensão no ar os montes de poeira.
- Muito obrigado, mocinha. – ele agradeceu com sinceridade,
sua respiração ruidosa do esforço.
- Apenas retribuí seu gesto, lá no corredor. – respondeu
seca.
Aquele homem a incomodava. Era cínico, debochado. "Mocinha,
mocinha..." Mesmo quando tentava ser gentil, havia algo em
sua voz, no modo como ele falava que... Era um janota, um
dândi, isso sim. Esnobe, pretensioso, tentando esconder-se
sob a aparência de um cavalheiro. Mais um entre os tantos
rapazes ricos e mimados que vez por outra apareciam no hotel.
Ele a irritava. Definitivamente.
Enquanto tentava retomar o compasso de sua respiração, Will
repassava, divertido, os diálogos que tivera com a camareira.
Acostumado às mocinhas tolas da sociedade, que emudeciam
aparvalhadas quando confrontadas com seu sarcasmo,
surpreendera-se com a reação daquela ruivinha. Ousada,
respondera a altura às suas ironias. Com a educação e a
finesse de uma dama. Sim! Ele gostava daquela arrogante
camareira Scully.
No silêncio que se instalara entre os dois, podiam agora
ouvir distantes as sinetas dos carros de bombeiros e alguns
gritos abafados. E havia sempre aquele gotejar contínuo em
algum ponto próximo de onde estavam. E a escuridão. Tão densa
que não lhes permitia ao menos divisar os vultos um do outro.
- É preciso achar... – começou ela.
- Precisamos encontrar... – começou ele, simultaneamente.
- ...um modo de sair daqui. – terminaram em uníssono.
Sorriram, cada um para si mesmo, do sincronismo de seus
pensamentos. Ao menos concordavam em alguma coisa.
- Minha vez de pedir desculpas... – falou Mulder. – Mas
quando você caiu por cima de mim, estava... – o tom de sua
voz era isento de qualquer sarcasmo, apenas a incitava a
continuar a sentença.
- Estava tentando passar para o seu lado esquerdo, – replicou
ela, - que parece ser o único onde não há um muro sólido
impedindo a passagem.
Will estendeu seu braço esquerdo vagarosamente e constatou
que ela estava certa. Até onde seu braço alcançava, para o
lado e na diagonal, para cima, aquela parede do covil parecia
composta por entulho. Um amontoado de fragmentos de pedra e
pedaços de móveis e sabe-se lá mais o quê, tinha um bom
potencial como ponto de escape daquele lugar.
- Parece que você está certa. – sua voz misturou-se, na
escuridão, ao ruído do entulho sendo remexido. – Sim... Este
lado não é sólido, posso tentar cavá-lo.
- Podemos! – ele ouviu dizer, aproximando-se, a voz de Kathy.
Um instante depois, Will pôde distinguir o roçar do vestido
da ruiva contra a seda de sua própria roupa. E, logo a
seguir, o barulho produzido pelas mãos dela, cavucando o
entulho.
- Espere! – fez ele, estendendo a mão às cegas até esbarrar
no ombro da mulher, roçando seu seio no caminho.
Ela ficou rígida sob seu toque. Se houvesse um mínimo de
claridade, ele estava certo que teria sido vítima de outro
tapa. Não fora intencional o que fizera. Mas, por alguma
razão que não saberia explicar, não pediu desculpas. Apenas
continuou a falar como se nada houvesse acontecido.
- É melhor concentrarmos nossos esforços num mesmo ponto,
mais perto do alto deste monte. – disse, guiando as mãos
delas com as suas para um ponto determinado no monte de
entulho. – Desse modo, nosso trabalho renderá mais.
Scully não pronunciou uma única palavra, apenas retirou as
mãos das dele um tanto bruscamente e recomeçou a escavar no
ponto indicado. Por dentro, fervia de indignação. Abusado
aquele senhor Mulder. Tocá-la daquele jeito! É certo que,
dada a escuridão, o toque poderia ter sido absolutamente
acidental. Mas ele nem ao menos pedira desculpas...
Descarado, abusado. Só porque ela era uma humilde camareira,
isso não lhe dava direitos sobre ela...
Ajoelhado ao seu lado, Will Mulder também remexia o entulho,
distraído. Aquele toque fortuito no seio da ruivinha...
Parecia ainda sentir a maciez de sua carne nas pedras ásperas
onde cavava. Havia corado, no momento do toque, tinha
certeza. Pudera sentir o sangue fluindo com força para sua
cabeça, as orelhas queimando, as bochechas formigando. Sorte
aquela escuridão toda encobrir sua maldita timidez! Sim,
porque não passava de um meninão tímido, por debaixo do fino
verniz de refinamento, das afetações de homem do mundo... Um
garoto bobo que ruborizava ao tocar o seio de uma bela
mulher...
Vários pequenos tremores, sem maiores conseqüências que não
levantar um bocado de poeira, ainda sacudiam o solo de tempos
em tempos. Homem e mulher realmente não lhes tomavam
conhecimento, entretidos que estavam em seus pensamentos.
Assim como pareciam não se importar com o calor que começava
a fazer ali dentro, nem com o ar viciado que respiravam.
Grossas bagas de suor escorriam por seus rostos e pescoços,
umedecendo-lhes as roupas. O ar pesado e quente ia tornando-
lhes a respiração cada vez mais penosa, turvando-lhes a
visão. Mas ambos pareciam completamente alheios ao
desconforto. A raiva surda não permitia que Kathy sentisse os
males que a aspereza do entulho ia infligindo às suas mãos.
Cavava para sair dali, cavava para afastar-se daquele homem o
mais rápido possível. Cavava, alheia a tudo o que não fosse o
simples ato de cavar.
Pedra após pedra, pedaço após pedaço iam sendo retirados do
lugar sem que isso revelasse o mínimo resultado prático. Nem
um sopro de ar fresco, nem uma ínfima réstia de luz. Mulder
começava a imaginar se estavam, de fato, escavando na direção
correta. Mas como sabê-lo? Não havia como. Por isso,
persistia cavando. Por isso, e pelos fortuitos toques de mãos
que ocasionalmente ocorriam com a irritada ruiva. No processo
de escavar o entulho na completa escuridão, por vezes, suas
mãos se esbarravam, por vezes, seus dedos se entrelaçavam,
enchendo Will de um estranho contentamento que o animava a
continuar cavucando, mesmo sem resultados.
E, uma vez mais, aconteceu. Os dedos de Will esbarraram
acidentalmente nos de Kathy. Mas não foi, em absoluto, por
acidente que eles se entrelaçaram na seqüência. Tampouco foi
por acidente que os dedos dele aprisionaram gentil, mas
firmemente, os da ruiva entre os seus. Por alguns longos
segundos, ela não esboçou reação, como que paralisada sob o
toque.
Kathy remexia, absorta, o entulho, quando um bocado de poeira
das escavações caiu sobre sua cabeça. A pobre estremeceu,
recordando-se subitamente de sua casa, de sua família.
Procurou ser objetiva e controlar-se, mas parecia ver diante
de seus olhos as velhas paredes ruindo. Os gritos
aterrorizados de seus irmãos e o silêncio sepulcral de sua
mãe ecoavam sinistros em seus ouvidos... E temeu intensamente
a solidão. Não pôde evitar as lágrimas que rolaram quentes
por suas faces cobertas de poeira, deixando trilhas
lamacentas por onde passavam. E, então, um alento... Sentiu o
toque em suas mãos, seus dedos aprisionados tão
carinhosamente por outros, afugentando a escuridão que
ameaçava tomar sua alma. E, por um instante, teve certeza de
que não estava sozinha. Uma louca sensação lhe dizia que
nunca estaria. E deixou-se ficar daquela forma, paralisada,
quase contente, até quando, enfim, despertou de seus
devaneios para a situação real e percebeu de quem partia
aquela gentil carícia.
- Droga! – Kathy exclamou irritada, enquanto tentava arrancar
com violência os dedos de sua prisão.
Mas sua irritação foi abafada por um violento tremor que a
fez desequilibrar-se e cair sobre William Mulder, o
derrubando ao solo. O monte aparentemente compacto de
escombros, que haviam tão obstinadamente escavado durante as
últimas horas, desabou sobre eles, um momento depois que o
homem rolou sobre seu lado e cobriu o corpo de Scully com o
seu, protegendo-a dos destroços que caíam com força sobre os
dois.
"Vários tremores secundários
continuaram abatendo-se sobre a
cidade de San Francisco nas horas que
se seguiram. A maior parte deles,
apenas movimentos leves de acomodação
do solo sem maiores conseqüências. Às
8:14 da manhã, entretanto, um
violento abalo sacudiu a cidade,
fazendo ruir grande parte das
construções já afetadas pelo choque
principal e espalhando pânico entre a
população."
O mundo chegava na forma de ecos distantes aos ouvidos de
Katherine Scully. Cães gemendo e uivando, sinos tocando ao
longe e vozes abafadas misturavam-se ao zunido alto em seus
ouvidos, em uma confusa cacofonia. A cabeça lhe doía leve,
mas incomodamente. Seus braços, presos, não a deixavam mover-
se. E havia aquela pressão em seu peito, tão grande que mal a
deixava respirar. Entreabriu os olhos, aturdida, e a branca
claridade a ofuscou, a obrigando a cerrá-los outra vez.
Talvez tivesse morrido, imaginou. Mas, nesse caso, haveria
cães no paraíso ou no inferno, ela os podia ouvir latindo.
Não... Não acreditava que houvesse cães por lá. Logo, devia
estar viva! Então, devia esforçar-se para entender o que se
passava. As coisas voltavam à sua mente aos poucos e
desordenadas. A escura prisão entre escombros... O
terremoto... Escavar o entulho em busca de uma saída...
William Mulder... Sim. Agora recordava-se do violento abalo
secundário e das paredes e pedras desabando sobre sua cabeça.
Respirou fundo, sufocada. "Ar fresco!", alegrou-se quando uma
lufada de ar frio encheu seus pulmões.
Forçou-se a abrir os olhos, a despeito da claridade que a
cegava. Demorou a acostumar-se com a luz, após quase três
horas de absoluta escuridão. Porém, quando o fez, pôde
perceber a nesga de céu azul visível por uma brecha nos
escombros, bem acima de sua cabeça, pela qual penetrava,
também, o raio de sol que teimava em ofuscá-la. Era um belo
dia de primavera, lá fora, ela não pôde deixar de pensar, ao
ver um bando de pássaros cortando, em revoada, a fresta azul
celeste. Pássaros negros. "Gralhas!", disse a si mesma,
quando o grasnar soturno feriu-lhe os ouvidos. "Mau
agouro..." diria vovó Scully em seu obscuro mundo de
superstições irlandesas.
Um calafrio percorreu o corpo de Katherine ao associar os
pressagos pássaros à imagem de sua casa em ruínas, silenciosa
como um túmulo, como se todos nela estivessem mortos...
Mordeu os lábios com tal força para conter o pranto que o
gosto acre de sangue se fez presente em sua boca. Logo agora,
que estava tão próxima de escapar daquele cárcere, agora que
podia ver o céu, justo naquele momento, não se podia deixar
esmorecer. Não devia, não tinha o direito de deixar morrerem
as esperanças. "Mau agouro é bobagem, vovó.", insistiu para
si mesma, bravamente varrendo os pensamentos sombrios para
algum canto escuro de sua cabeça. "Controle-se e lute,
Katherine Scully!" ordenou, obrigando-se a engolir as
lágrimas. Um gemido abafado a arrancou do transe e a fez
voltar a cabeça dolorida para o lado. Compreendeu, de súbito,
a razão da pressão em seu peito.
Will Mulder jazia desacordado sobre ela. Usara seu próprio
corpo como escudo para protegê-la. Mas os escombros haviam
sido inclementes com ele. Sua cabeça, apoiada no solo e
voltada para Scully, exibia um grosso filete de sangue que
lhe descia pela testa. Seu corpo imóvel e o de Kathy, por
extensão, estavam parcialmente soterrados por uma pilha de
fragmentos de paredes que cobriam parte de suas costas e suas
pernas. Ao menos, estava vivo. Ela podia sentir-lhe o hálito
quente na orelha.
- Sr. Mulder! – chamou em voz baixa, quase um sussurro.
Nada. Nenhuma reação foi esboçada pelo homem desacordado.
Talvez o ferimento em sua cabeça fosse mais grave do que
parecia, ela imaginou, começando a preocupar-se. Ele era
pesado demais para que ela conseguisse movê-lo. Poderia
estar, então, condenada a ficar ali para sempre...
- Sr. Mulder! – repetiu, um pouco mais alto, desta vez.
Outro gemido foi a resposta. E mais outro, à medida em que
ele abria os olhos vagarosamente. Will Mulder estava, também,
confuso. De um rosto de mulher, muito próximo ao seu, um par
de enormes olhos azuis o fitava de esguelha. Não conseguia
atinar a quem pertenceriam. Seu corpo todo doía. Ele inspirou
com força, necessitando do ar. Sentiu doerem-lhe ainda mais
as costas ao fazê-lo. Quando exalou o ar, um mecha de cabelos
ruivos deslocou-se, agitando-se sutilmente no ar diante de
seus olhos. "Ah, a ruivinha Scully...", lembrou-se.
- Sr. Mulder! – ela chamou uma vez mais, ao ver os olhos
cinzentos se abrirem. – Como se sente? Pode mover-se?
Ruidosamente, o monte de escombros mudou de posição quando
Mulder, apoiando os cotovelos um de cada lado da cabeça de
Kathy, ergueu o tronco, posicionando-se sobre a mulher. Tão
próximo estava o rosto de Will do da moça que tudo o que ele
conseguia enxergar eram os olhos azuis... Furiosos... Ele não
se pôde furtar um sorriso, quando ela bufou, incomodada. Ele
demorava-se mais do que o necessário naquela posição, apenas
para vê-la naquele estado. Enfim, ergueu mais um pouco o
tronco, apenas o suficiente para ter uma clara visão do rosto
feminino. Lindo, ainda que coberto de poeira. Trilhas de lama
em suas bochechas revelavam que ela estivera chorando, o
enchendo de um desejo pungente de poder acalentá-la nos
braços. Seus olhos detiveram-se nos lábios rosados que ele
sentiu-se tentado a beijar. Por um breve instante, pareceu
sentir-lhes o sabor doce, a textura macia. Mas percebeu que
ela mordiscava o lábio inferior irritada. "Melhor ter
cuidado...", concluiu. Ao pôr-se, finalmente, de quatro, o
fez de forma tão brusca que bateu com força a cabeça contra o
muro sólido que servia agora de teto ao covil.
- Ui! - exclamou, abaixando-se ligeiramente.
Desta vez, foi Kathy quem não pôde furtar-se um sorriso.
"Fica ainda mais bela quando sorri...", Will pensou em meio à
dor, enquanto se agachava encolhido ao lado dela. Foi somente
então que ele se deu conta de que a escuridão em que estavam
mergulhados anteriormente dera lugar à claridade e percebeu a
fresta por onde a luz do dia invadia o covil. Ele ainda
contemplava, entre perplexo e maravilhado, a nesga azul de
céu, quando Scully, sentada, começou a procurar um meio de
ampliá-la.
- Vai ficar o dia todo, aí, olhando, ou vai me ajudar? –
perguntou sarcástica, os lábios torcidos num meio sorriso,
tentando empurrar, já de joelhos, a parede sólida onde Mulder
havia batido com a cabeça.
Ele sorriu do jeito sempre surpreendente dela e adiantou-se
para ajudá-la. A cada minuto que passava, achava a ruivinha
mais e mais interessante, aumentava seu desejo de conhecê-la
melhor. Porém, enquanto esforçava-se para aumentar a abertura
na parede, Will ia, aos poucos, tomando ciência de que sair
dali implicava em que a vida retornaria ao seu curso normal,
que cada um seguiria seu caminho e que, talvez, nunca mais
ele viesse a encontrar a bela camareira novamente. Que, fora
daquele claustro, voltariam a ser o rico hóspede e a humilde
camareira, distanciados por um abismo quase que
intransponível, na sociedade mesquinha em que viviam.
Fantasiou-se em sua casa, em Boston, comunicando a seus pais,
por exemplo, seu iminente casamento com a pequena Scully. A
expressão de desaprovação da mãe dançou-lhe, por um momento,
diante dos olhos. Certamente, ela, com seu esnobismo, seria
uma daquelas pessoas que nunca aceitariam uma possível
ligação entre ele e alguém de classe inferior. E assim o
fariam muitos outros em seu círculo de relações. Porém, o
preconceito social não era um fenômeno unilateral,
proveniente das classes abastadas, ele sabia. Ainda tinha
viva a lembrança da última vez em que estivera em uma das
fábricas de sua família, em Detroit, e resolvera unir-se aos
operários, no refeitório, para o almoço. Mesmo que eles não
soubessem quem era ele e não o pudessem identificar como "o
filho do patrão", no mesmo instante em que se sentou na
comprida mesa, ao lado dos rapazes, a acalorada discussão que
levavam converteu-se em um silêncio incômodo e, por mais que
Mulder tentasse entabular alguma conversa com eles, tudo o
que obtinha em resposta eram desconfortáveis monossílabos.
Embora a ruivinha não lhe parecesse, a princípio, intimidada
por essa diferença social, Will não podia ter certeza de que
sua reação não se devesse à pressão e ao estresse impostos
pela situação em que se encontravam. Nem que, na volta ao
"mundo real", sua adorável petulância não murcharia por
completo. Tamanha incerteza o fazia desejar não sair daquele
confinamento. Isso e mais a quase certeza de que, fora dali,
ele a perderia para sempre. Para sempre. Para nunca mais. E o
pensamento o devastou. De repente, foi como se seus braços
perdessem as forças. Não queria mais sair dali. Não queria
perdê-la... Constatou que a amava... Estava amando! Era
inacreditável, dadas as circunstâncias, mas, sim, a amava.
Acreditava ter encontrado a mulher de sua vida e simplesmente
não a podia deixar escapar. Embora ela não o soubesse... Ao
mesmo tempo, no entanto, sabia que não poderiam ficar ali
enclausurados para sempre.
Com os braços suspensos no ar, observou longamente o
semblante da ruiva, procurando decidir o que fazer.
Ela, atarefada, parecia não percebê-lo, os olhos espertos,
velozes, investigando, explorando os escombros, varrendo cada
canto, cada fenda, de um lado para o outro, sem descanso,
até, enfim, cruzarem com o olhar de Will. E ali permanecerem,
como que aprisionados. E o que Katherine viu nos olhos
cinzentos naquele momento foi algo muito diferente do que
vira horas antes, quando ainda havia o corredor do hotel.
Quando o mundo ainda se dividia em ricos e pobres, hóspede e
camareira. O que ela viu naquele olhar foi solidão, uma
súplica por carinho, uma imensa tristeza, um pedido comovido
de desculpas, um menino carente de atenção... Um caldeirão de
sentimentos confundia-se em olhos profundos onde o cinza se
mesclava com a cor de avelãs.
A irritação e a raiva que agitavam o azul do olhar da mulher
cederam lugar à serenidade e à aceitação, fornecendo coragem
suficiente a Will para tomar-lhe o rosto entre as mãos e
pousar os lábios sobre os dela, num beijo terno e breve.
Voltou a fitá-la, apreensivo, sem soltar seu rosto, em busca
de algum sinal de desaprovação. Mas não havia sinal algum e
ele reaproximou-se, pressionando com os seus os lábios de
Kathy, dessa feita com ardor. Sua língua insinuou-se,
traçando os contornos da boca da mulher, que estremeceu,
entreabrindo os lábios para recebê-lo.
- Fogo! – gritaram vozes do lado de fora.
Imediatamente, o cheiro amargo de queimado tomou o ar,
separando o casal. Instantes depois, a fumaça começava a
invadir o parco espaço a que estavam confinados por cada
fresta entre aos escombros, os obrigando a lutar com rapidez
para aumentar a fenda na parte superior do covil. A fumaça
escura dominava todo o espaço, os fazendo tossir. O crepitar
das chamas em algum lugar próximo já era audível, quando, num
esforço final, Will e Kathy conseguiram deslocar um pedaço de
parede, ampliando a fresta o suficiente para que pudessem
esgueirar-se para fora.
A imponente construção que um dia fora o Grand Hotel não
passava agora de uma pilha alta de escombros, do topo da qual
Katherine Scully e William Mulder procuravam descer. Em um
ponto das ruínas, próximo aonde haviam emergido, erguia-se
uma grossa coluna de fumaça negra. De qualquer maneira,
correndo, pulando, tropeçando, escorregando, caindo, rolando,
ambos conseguiram, enfim, atingir o chão. Deixaram-se ficar,
deitados lado a lado, no meio da rua, sem fôlego, os olhos
fitos no céu azul, alheios às pessoas que circulavam ao
redor, tontos do susto e do esforço. O som cavo dos cascos
dos cavalos nos paralelepípedos e o tilintar das sinetas
anunciando a chegada dos bombeiros os obrigaram a erguer-se
do chão e sair do caminho, retirando-se para a calçada. Mas
onde deveria estar a calçada, havia um monte de tijolos que
até o dia anterior faziam parte da imponente fachada do banco
que se localizava defronte ao hotel. Por todo o lado para o
qual se olhasse, havia pilhas de tijolos e concreto e cacos
de vidro e destruição. Scully olhava em volta aturdida,
assustada. Os olhos esgazeados vagavam pelos escombros,
nervosos. Mulder, parado ao seu lado, a observava sem saber
ao certo o que fazer.
- Tenho que ir! – ela disse simplesmente, virando-se e
seguindo em direção a South-of-Market, sua vizinhança.
Não lhe disse adeus, não lhe dirigiu um único olhar. Apenas
saiu andando, deixando para trás um desconcertado Will, pasmo
a observá-la desaparecer numa esquina. Num impulso, ele a
seguiu, primeiro correndo em seu encalço, depois caminhando
silencioso ao seu lado, sem ousar quebrar seu silêncio com
perguntas ou comentários que pudessem soar tolos. Caminhar ao
lado dela já lhe bastava.
Os olhos curiosos de William distraíam-se em observar as
pessoas que lotavam as ruas. Havia mulheres e crianças em
camisolas e senhores distintos andando de pijamas pela via
pública como se estivessem na intimidade de suas alcovas.
Outros ainda envergavam os fraques elegantes com os quais
haviam provavelmente ido à ópera, na noite anterior, tendo ao
lado suas esposas em longos vestidos de noite, suas jóias
faiscando ao sol da manhã, os cabelos fugindo ao rigor dos
penteados e caindo desordenados sobre os olhos. E havia a
velha senhora que carregava uma grande gaiola dourada na qual
havia quatro lindos gatinhos, enquanto o ocupante de direito,
um papagaio, encarapitava-se no ombro da dona. E o homem
calvo com grandes bigodes de pontas retorcidas que levava nos
braços, como se fosse um bebê, um vaso de violetas para o
qual murmurava palavras de conforto. Não havia histeria ou
pânico por onde passavam. Só uma aceitação muda e tácita da
tragédia como um fato coletivo, um desígnio divino contra o
qual não se podia lutar.
De tempos em tempos, Mulder examinava o rosto de Katherine em
busca de algum sinal que revelasse o que ela poderia estar
pensando. Mas seu rosto era uma máscara de pedra,
indecifrável, na qual a única emoção visível era a
determinação. Ela andava e andava como se aquela fosse a
única coisa a ser feita no mundo. Embora, inicialmente,
Scully parecesse não perceber que ele a acompanhava, foi
graças a seu braço estendido, barrando o caminho do distraído
companheiro, que ele salvou-se de ser atropelado por um
automóvel em disparada, quando atravessavam uma rua. Ela não
compreendia porque ele a seguia. Mas o fato dele a acompanhar
não a incomodava em nada. Estranhamente, proporcionava-lhe
mesmo uma sensação de segurança que ajudava a amenizar os
maus pressentimentos que tinha em relação ao estado como
encontraria sua casa.
No caminho até lá, seguiam passando por diversas ruas onde o
tremor não havia causado mais danos que uns poucos vidros
quebrados ou rachaduras no reboco das paredes. Em outras, os
postes que sustentavam os fios elétricos inclinavam-se nos
ângulos mais absurdos ao longo de toda a extensão das
calçadas. À medida em que iam penetrando na área mais pobre
de San Francisco, porém, os sinais da destruição causada pelo
terremoto iam se tornando mais e mais evidentes. Ruas
inteiras não passavam de pilhas de escombros. Na rua
Valencia, um andar inteiro dos três que compunham o Valencia
Street Hotel havia afundado no solo, como se a terra o
houvesse engolido. Dezenas de cidadãos remexiam os escombros
na tentativa de resgatar as cerca de duzentas pessoas
soterradas com o desabamento. Por todo lado, grossas espirais
de fumaça emergiam das ruínas. As chamas consumiam a cidade.
"Centenas, talvez milhares de pessoas
perderam suas vidas quando as casas
de South-of-Market ruíram no solo
liqüefeito sob elas. Muitas dessas
construções incendiaram-se
imediatamente e seus habitantes
aprisionados não puderam ser
resgatados. No Valencia Street Hotel,
diversas pessoas afogaram-se devido
ao rompimento de uma tubulação de
água quando o hotel afundou no solo."
Quanto mais penetravam naquele caos de destruição e morte,
mais visivelmente perturbada ia ficando Katherine. Suas mãos
revolviam inquietas os bolsos do avental outrora branco de
seu uniforme. A respiração era curta e ofegante, enquanto
mordiscava nervosamente o lábio inferior. Andava cada vez
mais rápido, com passos impressionantemente longos para suas
pernas curtas. Mulder era obrigado a apressar o passo para
acompanhá-la.
Após dobrarem uma esquina, Kathy subitamente estacou, a
respiração suspensa, os olhos abertos como se quisessem
saltar das órbitas. Não havia uma única parede de pé naquela
rua. O solo, liqüefeito pelo tremor, engolira até mesmo os
escombros. Ela ainda avançou alguns metros antes de parar
novamente diante de uma dessas ruínas, semi-enterradas no
chão. Ela olhava transtornada, a pilha lamacenta de pedras e
entulho. A boca entreaberta dirigiu uma pergunta muda a um
homem idoso de aparência rude que a tudo observava a alguma
distância. O homem apenas encolheu os ombros e baixou os
olhos sombrios, enquanto a cabeça acenava uma sutil negativa.
Scully permaneceu imóvel, com os olhos secos, contemplando os
escombros. Os braços pendiam ao longo do corpo e as mãos
apertavam freneticamente as dobras das saias. Não emitia um
único som, apesar de seus lábios moverem-se numa ladainha
incessante.
Aquilo não estava acontecendo... Não podia estar... Sua mãe,
Tommy, Betty, Nell, Eric... mortos... todos mortos... Não
estava acontecendo! Mortos. Recusava-se a acreditar. Por que
fora poupada, oh, Deus? Por quê? Para ficar sozinha?
Apodrecer na solidão? Não era justo. Não podia estar
acontecendo... Seus olhos incrédulos não podiam aceitar que,
sob aquele monte de pedras, jaziam sem vida todos os seus
entes queridos, todos os que lhe haviam restado. Quis correr
até os escombros, escavá-los com as próprias mãos até
encontrar sua família ou abrir neles um buraco tão grande que
pudesse enterrar-se com ela. Mas não tinha forças. Um cansaço
tão grande abatia-se sobre ela que não seria capaz de mover-
se um centímetro de onde estava. E deixava-se ficar ali,
sentindo-se tão impotente quanto jamais sentira-se antes. Tão
vazia que nem mesmo lágrimas parecia ter para derramar.
Como um raio, a compreensão do que acontecera naquele local
atingiu William Mulder. Ali, sob o monte de escombros jaziam
a casa, a família, a vida de Scully. Ele pôde sentir sua
tristeza e compadeceu-se dela. Desejava ardentemente poder
reverter a situação que a afligia, mas sabia ser impossível
ressuscitar os mortos. Ao mesmo tempo, no entanto, não
suportava vê-la desamparada, sofrendo como sofria, em
silêncio, engolindo as lágrimas. E tudo o que lhe ocorreu, na
ocasião, foi tentar amenizar-lhe o sofrimento como pudesse.
Assim, acercou-se respeitosamente da mulher e pousou a mão em
seu ombro, o pressionando suavemente. Ela estremeceu e
voltou-se lentamente para ele, erguendo a cabeça para fitá-
lo. Tinha os olhos rasos d'água, das lágrimas que continha a
tanto custo. Will a envolveu em um abraço. E, com a cabeça
enterrada em seu peito, ela finalmente deu vazão ao pranto
que tentara evitar.
E chorou e soluçou como nunca em sua vida. Chorou a dor
imensa que sentia, o aperto que estrangulava seu peito, seu
coração. Soluçou toda a amargura e o ressentimento que trazia
contra a Natureza, contra o mundo, contra Deus por terem
feito aquilo com ela, por terem-na deixado só. E chorou até
que o pranto lavasse sua alma e levasse em sua torrente toda
dor e todo o ressentimento que ela carregava dentro de si. E
chorou até que suas lágrimas secaram e ela sentiu-se,
novamente, vazia, oca, sozinha, morta.
Não poderia precisar por quanto tempo deixou-se ficar
desamparada, em prantos, envolta naquele abraço. Nos braços
de um estranho que a apertava junto ao peito e acariciava
seus cabelos sem nada dizer. Mas lentamente o calor do abraço
do estranho, a gentileza de suas carícias a foram preenchendo
outra vez, a trazendo de volta ao mundo dos vivos. E
Katherine compreendeu que, em honra da memória dos que haviam
partido, deveria continuar vivendo. E lutando.
Gentilmente, desvencilhou-se dos braços que a envolviam e
afastou-se um pequeno passo para trás, apenas o suficiente
para poder encarar o rosto daquele que a trouxera de volta à
vida. Com os olhos baixos, inspirou profundamente. A seguir,
tomou-lhe as mãos nas suas e as levou aos lábios, pousando um
singelo beijo em cada um dos nós esfolados de seus dedos.
Depois, fitou os olhos cinzentos tão intensamente que a
Mulder pareceu que ela lhe alcançava a alma, que lhe
descobria todos os segredos.
- Obrigada. – sussurrou Katherine, de modo quase inaudível.
Um sorriso triste estampou-se em seu semblante quando William
repetiu-lhe o gesto, beijando suas mãos feridas.
- Obrigado. – ele murmurou em resposta.
Nada mais restava a ser feito ali. Por mais que desejasse, o
olhar de Scully não seria capaz de fazer ressurgir das pedras
frias seus entes queridos. As quadras próximas já ardiam
consumidas pelo fogo voraz que começava a devorar a cidade.
As chamas aproximavam-se rapidamente de onde estavam e, em
breve, o local todo estaria semelhante a uma filial do
inferno. Em silêncio, William pousou o braço ao redor dos
ombros de Katherine que se deixou conduzir para longe dali.
"O fogo começou simultaneamente, por
toda a cidade, quando as donas de
casa começaram a preparar o café da
manhã para suas famílias, sem se dar
conta da ameaça que representavam as
chaminés em ruínas. Por toda parte,
nuvens de fumaça e chamas começaram a
se espalhar. O trabalho dos bombeiros
foi grandemente prejudicado pelo
rompimento das tubulações de água."
Por onde quer que passassem, na parte baixa da cidade, o
cenário era o mesmo. Ruínas e escombros, postes inclinados
nas calçadas onduladas de onde jorravam jatos de água
provenientes das tubulações rompidas. E havia o fogo, o
grande incêndio que já se alastrava por toda Frisco.
Bombeiros e cidadãos comuns uniam-se na tentativa de combater
as chamas que ameaçavam devastar a cidade. Mas seus esforços
pareciam inúteis. Mal logravam extinguir as labaredas em um
local, o fogo ressurgia devastador num ponto logo adiante.
Comentava-se que, entre as vítimas da catástrofe, estava o
Comandante do Corpo de Bombeiros, o que explicava a aparente
desordem no combate às chamas. Outro comentário corrente
informava que o exército, na figura do General Funston, era o
poder vigente na cidade agora em regime de lei marcial.
Milicianos postavam-se em cada esquina com o objetivo de
impedir saques às casas abandonadas, às pressas, por seus
moradores, com permissão de "atirar para matar" naqueles que
ousassem desobedecer às ordens.
Um alarido de vozes enchia o ar quando Kathy e Will
aproximaram-se da Shreve & Co., uma joalheria parcialmente
devastada pelo sismo. Da pequena multidão agrupada em frente
à loja, subitamente, destacou-se um homem que passou em
disparada por Mulder e Scully, os derrubando ao chão. O
estampido de um tiro fez calar as vozes do grupo, enquanto o
fugitivo desabava pesadamente no meio da rua, mortalmente
ferido. O miliciano que o alvejara dispersou a multidão aos
gritos e encaminhou-se com passos rápidos até o moribundo,
não dispensando mais que um olhar de soslaio para o casal
caído na calçada. Fez rolar o corpo caído com o pé, deu uma
breve examinada, certificando-se de que o homem estava, de
fato, morto, e virou-lhe as costas, voltando ao seu posto.
O ferimento causado pelo segundo tremor na cabeça de Will
sangrava novamente, uma vez que, na queda, sua cabeça havia
chocado contra o calçamento. Um fino filete de sangue
escorria por sua orelha quando ele ajudou Katherine a erguer-
se do chão.
- Você está ferido! – disse ela, enquanto sacava do bolso de
seu avental empoeirado um lenço milagrosamente branco e com
ele fazia uma compressa no ferimento que atou à cabeça de
Will com uma tira rasgada de suas anáguas. – Precisa de
cuidados médicos... O Central Emergency Hospital fica aqui
perto... Vamos até lá!
- Não é necessário. É apenas um arranhãozinho... – ele
protestava sem entusiasmo.
Seus protestos foram vãos, uma vez que Scully já o rebocava
vigorosamente pelo braço a caminho do hospital. Ele a
acompanhou amuado, como uma criança levada pela mãe ao
dentista. Surpreenderam-se, porém, ao chegar lá, com o estado
em que se encontrava o hospital. A construção de tijolos
aparentes estava parcialmente destruída, com sua fachada de
pedra totalmente arruinada, as chaminés desmoronadas, o
madeirame de sustentação do telhado exposto e o arco de pedra
da entrada rachado e prestes a desabar. Um atarantado
enfermeiro que tentava manobrar uma carroça na entrada do
pátio os informou que todo o atendimento de emergência estava
sendo feito no Mechanics' Pavilion, perto dali. Indiferente
aos protestos de Mulder, Scully o fez seguir até o pavilhão.
- Sua cabeça precisa de cuidados. Não há o que argumentar. –
afirmava imperiosa, quando, de tempos em tempos, ajeitava o
curativo da cabeça de William.
O Mechanics' Pavilion era uma grande estrutura de madeira,
normalmente usada para exposições e feiras. Dentro dela,
jaziam em compridas filas de colchões cerca de duzentas
pessoas, em sua maioria com ferimentos na cabeça ou nas
pernas. Uma dezena de médicos e enfermeiras andavam
atarantados em meio aos feridos que não paravam de chegar e
formavam um confuso amontoado na entrada do pavilhão.
- Espere-me aqui! – ordenou Kathy a seu acompanhante,
enquanto se afastava decidida em busca de alguém que os
atendesse.
Will se deixou ficar, aparvalhado, parte pela confusão que o
cercava, parte pela ligeira tontura que sentia. Acompanhou a
moça com o olhar até que ela desaparecesse no meio da
multidão. Ainda tentava localizá-la, quando um grito foi
ouvido.
- O telhado está em chamas!
Cercado pela massa assustada, William acabou vendo-se forçado
a abandonar o pavilhão no corre-corre que se formara entre os
que estavam perto das portas. Do lado de fora, podia ver as
chamas que ardiam no telhado. Procurava por Katherine com o
olhar entre as pessoas que deixavam o edifício, mas não
conseguia encontrá-la. As garras do medo fecharam-se
apertadas sobre sua garganta, tornando-lhe difícil a
respiração. O medo de perdê-la...
"Um princípio de confusão se formou
quando o telhado do Mechanics'
Pavilion incendiou-se, por volta de
1:00 da tarde, até que o médico
chefe, com um berro, pedisse calma e
comandasse a evacuação ordeira do
prédio. Os feridos foram transferidos
o Golden Gate Park, o Children's
Hospital e o Presidio em ambulâncias
ou quaisquer veículos que estivessem
à mão. Os corpos dos mortos foram
abandonados às chamas."
Foi com um alívio imenso que, finalmente, William viu
Katherine emergir pelas grandes portas de madeira, trazendo
nos braços uma criança com a perna enfaixada. Aproximou-se,
trêmulo de susto, ao mesmo tempo em que ela entregava a
criança aos cuidados de uma gorda enfermeira. Atordoada, a
ruiva recebeu o abraço apertado do homem sem nada
compreender. Muito estranho aquele senhor Mulder! A abraçava
como a uma velha amiga que não visse a vinte anos, quando não
haviam se passado mais que cinco minutos desde o alarme de
incêndio... Muito estranho... Meio louco!
O lenço atado à cabeça de Will estava empapado de sangue.
Suas feições estavam pálidas e seus lábios, descorados.
Gotículas de suor perolavam sua testa e lábio superior.
Parecia prestes a desfalecer. Prontamente, ela tomou seu
braço e o foi conduzindo em direção a um dos automóveis
parados nas proximidades. Porém, um ferido grave tomou sua
frente e ocupou o último lugar disponível no veículo. Kathy,
então, indagou ao motorista para onde seriam levados os
feridos e, nem bem ouviu a resposta, já fez menção de retomar
a caminhada na direção indicada. Will, no entanto, desta vez,
permaneceu imóvel.
- Veja bem, Katherine. – argumentou ele, convicto, parecendo,
repentinamente, recuperar-se. – Os feridos estão sendo
transferidos para lugares muito distantes e nós, com certeza,
não vamos conseguir uma condução até lá... E minha cabeça não
está assim tão mal... Além disso, o fogo está se alastrando
rapidamente e precisamos sair daqui o mais rápido possível...
E... – prosseguia ele numa ladainha sem fim.
- Ok! Está bem. – cortou ela. – Você não quer ir, é seu
direito. Tudo bem. – ele abriu um sorriso de criança feliz
diante das palavras de Scully. – Mas prometa-me que, assim
que houver uma oportunidade, vai me deixar fazer um curativo
decente nesse ferimento, ok? – ela arrematou, sorrindo também
da expressão quase infantil de felicidade de Mulder.
Seguiram caminhando para algum lugar onde o incêndio
parecesse mais distante. Já passava muito das duas da tarde
quando William e Katherine chegaram a Nob Hill, a parte alta
de San Francisco. Naquela região, onde estavam situadas as
residências dos primeiros milionários da Califórnia, o tremor
também deixara visíveis as marcas de sua devastadora
passagem. Mulder estacou por um longo momento diante de um
belo pórtico com elegantes colunas de mármore branco, tudo o
que restara da mansão dos Towne, uma importante família de
Frisco com quem mantinha relações comerciais. Um portal para
um passado glamouroso que não mais existia. Um pouco adiante,
localizava-se a residência do banqueiro Cartwright onde havia
jantado após a ópera, na noite anterior. Apenas a bela
escadaria em curva em mármore rosado com corrimões de cobre
ricamente trabalhados permanecia de pé, imponente, levando a
lugar nenhum. Estranho... Fora apenas na noite anterior que
estivera ali, mas lhe parecia ter acontecido uma eternidade
atrás.
Pelas calçadas, aqui e ali, as pessoas agrupavam-se ao redor
de fogões improvisados nas calçadas a partir de pilhas de
tijolos. O aroma de café que impregnava o ar próximo a um
desses grupos, fez recordar a Will e Kathy que seus estômagos
estavam vazios até aquela hora.
- Aceitam um pouco de café? – indagou a simpática senhora que
cuidava do fogo.
Sem hesitar, acercaram-se do fogão, onde a gentil mulher
serviu a cada um uma caneca fumegante de café e um pãozinho.
Sentaram-se no meio fio, ao lado dos outros, saboreando o
calor reconfortante da bebida e seu efeito lenitivo sobre
seus corpos cansados. Kathy observou divertida que a alegre
senhora que os convidara trazia cada pé calçado em um sapato
diferente, provavelmente um descuido causado pela pressa em
abandonar sua casa após o tremor. Assim como havia feito com
eles, a mulher abordava todos os que passassem, oferecendo-
lhes conforto e solidariedade na forma do café quente com
pão. Um pouco que podia significar muito para quem, como
Kathy, havia perdido tudo.
A vista, a partir da colina onde estavam, era apocalíptica. A
cidade, lá embaixo, transformada em ruínas pela mão poderosa
do terremoto, ardia agora sob as chamas do gigantesco
incêndio.
- Atenção, por favor! Todos parados por um instante! – gritou
um homem que apontava uma câmera fotográfica em na direção do
grupo, imortalizando Mulder, Scully, a gentil senhora dos
sapatos trocados, todo o estranho ajuntamento reunido em
volta do fogão de tijolos em uma fotografia cujo pano de
fundo era a impressionante destruição urbana lá embaixo. Um
fiel testemunho do momento que San Francisco atravessava.
Era estranho como, no geral, os ânimos não transpareciam a
gravidade do momento. As pessoas, impressionantemente calmas
dada a situação, pareciam indiferentes ao desastre. Mesmo
aquelas que tudo haviam perdido demonstravam este
comportamento estóico. Talvez mantivessem a louca esperança
de que tudo não passasse de um pesadelo. Talvez a calamidade
houvesse de tal forma anestesiado seus sentidos que elas
fossem incapazes de reagir de outro modo. Talvez fosse apenas
a aceitação pura e simples do destino como uma fatalidade
incontestável. Mesmo William e Katherine reagiam dessa forma,
a despeito de todas as dificuldades e perigos que já haviam
enfrentado até o momento.
Ao longe, ouviam-se as explosões que devastavam quadras
inteiras, lá embaixo, numa tentativa desesperada de conter o
avanço do fogo abrindo-se vãos suficientemente largos que
impossibilitassem sua propagação. E nem mesmo esse trovejar
constante de dinamite parecia afetar as pessoas.
Will e Kathy vagavam sem destino pelas ruas de Nob Hill.
Caminhavam lado a lado, em silêncio, entregues a seus
pensamentos. A companhia um do outro era suficiente para
satisfazê-los. Paravam aqui e ali para apreciar o que viam.
Como uma casa que tivera apenas a parede frontal derrubada,
com seus moradores sentados nas poltronas da sala, tomando
chá e conversando como se fosse mais uma outra tarde calma de
primavera.
Tudo o que restava de uma construção em uma esquina eram duas
paredes. De uma delas, à beira da calçada, pendia um letreiro
de ferro onde, em letras negras cuidadosamente pintadas sobre
o fundo amarelo, lia-se "Vidros". Na outra, miraculosamente
intocado pelo terremoto, sem uma trinca que fosse, havia um
grande espelho com as bordas bisotadas em belas flores e
arabesco caprichosos. Nele, refletiam-se as imagens de um
homem e uma mulher. Ele, alto e de porte atlético, usava o
que um dia fora um elegante smoking, agora pardacento de lama
e pó. Ela, de estatura baixa e compleição delicada, envergava
um sisudo uniforme negro, também enfeado pela sujeira. Tinham
ambos os cabelos desgrenhados e as feições escondidas sob uma
grossa camada de poeira. E, nos olhos, ah, os olhos... Um
surpreendente e complexo misto de abandono e enlevo e
tristeza e contentamento. Mulder e Scully sorriram,
simultaneamente, do que viram no espelho.
- Nossa! – exclamou Kathy. – Eu nem havia percebido o quão
esquisitos devemos estar parecendo desse jeito.
- Não mais estranhos do que quaisquer outras pessoas que
tenham sobrevivido a um desabamento. – ele respondeu com um
sorriso brincalhão. – Parecemos vivos, só isso! –
acrescentou.
Arrependeu-se imediatamente de tê-lo dito, quando percebeu a
sombra de tristeza que voejou no semblante de Katherine.
- Sim... vivos... – disse ela em voz baixa e soturna.
Mas a sombra dissipou-se no instante em que Will,
delicadamente, tocou seu cotovelo, a induzindo a seguir em
frente. Com a caminhada... Com a vida...
Logo adiante, havia o que, até horas atrás, fora uma praça.
Os bancos de pedra quebrados e as árvores arrancadas pelas
raízes davam a dimensão do tremor, naquele local. No entanto,
bem no centro do caos, estava uma fonte onde querubins
milagrosamente poupados da destruição jorravam água pelas
boquinhas. William e Katherine aproveitaram-se da benção
daquela água corrente e abundante para limpar seus rostos,
pescoços, mãos, suas almas.
Com gentileza, Scully obrigou Mulder a sentar-se na borda da
fonte e, em seguida, usando uma tira de pano branco arrancada
de suas fartas anáguas, começou a limpar-lhe habilmente o
ferimento na cabeça. Removida a crosta de sangue seco que
cobria a área, ela percebeu aliviada tratar-se de um corte
superficial cujo sangramento abundante devera-se à região
fartamente irrigada em que se localizava.
Will aceitava tudo imóvel e mudo. A destreza com que Kathy
manuseava o ferimento, a leveza de suas mãos o surpreendiam
agradavelmente. Faziam-no pensar em outras épocas, em sua
infância, quando seus pais ainda não eram tão ricos e
sofisticados. Pensava nas traquinagens do pequeno William
pelas ruas do bairro, que invariavelmente resultavam em um
joelho ou cotovelo esfolado, e no quanto ele ansiava por
receber os cuidados carinhosos da mãe ao chegar em casa. Até
o dia em que ela descobrira que "não era chique" fazer esse
tipo de coisa. A partir de então, todos os machucados do
menino eram, sem exceção, tratados por uma das criadas e os
carinhos da mãe foram escasseando na mesma medida em que ela
foi incorporando-se ao "mundo chique". O Will adulto ainda
sentia falta dos carinhos de sua mãe...
Com os olhos atentos, Katherine perscrutou o jardim semi
destruído ao seu redor e dirigiu-se ligeira a uma árvore
caída, voltando, em seguida, com um punhado de folhas nas
mãos.
- Vovó Scully era uma velha irlandesa supersticiosa. –
explicava ela, enquanto amassava as folhas entre as palmas
das mãos. – E meio bruxa, também! – acrescentou com um
sorriso engraçado, ao aplicar um emplastro das folhas
maceradas sobre o ferimento de Mulder. – Ela me ensinou
muitos segredos druidas sobre os poderes curativos das
plantas. E, já que não temos nada melhor para tratar esse
ferimento, acho que isso terá que bastar, por ora. –
arrematou, completando o curativo com mais tiras de pano
rasgadas de suas anáguas e um nó apertado.
Quando voltou a olhar para o rosto de William, ao encerrar o
curativo, ele a contemplava embevecido. Kathy, subitamente
envergonhada com o olhar, soltou uma mecha dos cabelos
castanhos que havia ficado presa entre as bandagens e tentou
colocá-la em seu lugar. Mas a mecha, teimosa, voltou a cair
sobre a testa de Will, emprestando um ar de menino bonito às
feições do homem sentado à sua frente. Com vagar, ele tomou-
lhe as mãos entre as suas e as levou aos lábios, num
agradecimento mudo. Katherine teve de se esforçar para evitar
que as lágrimas, que insistiam em encher seus olhos, não
saltassem deles e lhe escorressem pela face. Andava muito
lacrimogênea aquele dia, irritou-se em pensamentos.
Um aroma gostoso de comida trazido pela brisa invadiu suas
narinas, substituindo por um momento o cheiro amargo de
queimado que enchia o ar.
- Acho que a fome está começando a me deixar louca, mas sinto
cheiro de bife! – exclamou Scully, agradecida por algo que a
afastasse da iminência do pranto.
- Então estou louco também! Bife com batatas! – disse Mulder,
levantando-se de um pulo. – E vem dali! Vamos? – acrescentou,
puxando Katherine pela mão, na direção indicada.
De fato, um pouco adiante, um dos novos milionários locais
servia a quem passasse pela rua bifes e batatas assados por
ele mesmo numa churrasqueira improvisada construída sobre os
restos do muro de sua mansão. Da casa, atrás dele, pouco
restara além de uma lareira de pedra, que erguia-se como um
monumento ao caos, em meio ao amontoado de ruínas.
- Se a vida nos dá limões, façamos uma gostosa limonada! –
dizia ele sorrindo, enquanto preparava seus bifes. – Tanto me
deu o Senhor antes. E agora me convida a reparti-lo. Venham,
amigos! Compartilhem comigo as bênçãos de Deus!
De bom grado, Mulder e Scully aceitaram o alimento oferecido
e o comeram com apetite voraz. A primeira refeição de verdade
que faziam naquele dia... Um pedaço de pão, que acompanhava a
refeição, no entanto, foi cuidadosamente guardado por
Katherine no bolso de seu avental.
- Para uma eventualidade. – explicou ela ante o olhar
inquisidor de Will.
Ricos e pobres irmanados pela calamidade dividiam nas
calçadas o banquete frugal proporcionado por aquele homem.
- Deus o abençoe, senhor. – foram as palavras de Kathy ao
cavalheiro, ao devolver-lhe os pratos de folha de flandres,
após a refeição.
- Que o Senhor te acompanhe, menina. – respondeu o homem,
sorrindo e tocando-lhe de leve a testa, numa benção.
Andavam, perambulando a esmo, em busca de algum lugar para
descansar. Por todo lado, as ruas estavam apinhadas de gente.
Famílias em fuga carregavam seus poucos pertences no que quer
que possuísse rodas: carroças, carrinhos de bebê e carrinhos
de brinquedo cruzavam por eles repletos de mantimentos e
utensílios de cozinha, grandes malas montadas sobre patinetes
passavam, abarrotadas de roupas e cobertores. Um homem
arrastava ruidosamente atrás de si um pesado baú de madeira,
preso por cordas aos seus ombros. Um bando de crianças,
alheio à gravidade da situação, corria em volta do pobre
diabo gritando-lhe "ôas" e "upas", como se fosse um cavalo
puxando uma charrete.
Nas escadarias de um prédio em ruínas, Will e Kathy avistaram
uma jovem mãe e sua filha pequena, sentadas nos degraus.
- Quero ir para casa, mamãe. Quero ir para casa. –
choramingava a menina em voz débil.
- Não temos mais casa, querida. Recoste-se aqui e tente tirar
uma soneca, meu bem. – dizia a mulher com mais suave e
reconfortante das vozes, apertando a filha contra o peito.
Tinham ambas uma aparência debilitada, a criança parecia
prestes a desmaiar. Kathy compadeceu-se das duas e,
aproximando-se, ofereceu-lhes o pedaço de pão que tinha tão
cuidadosamente guardado mais cedo.
- É pouco, eu sei. – desculpou-se ela à mulher. – Mas espero
que ajude.
Dos olhos da mãe, uma singela lágrima brotou num
agradecimento silencioso à generosidade da jovem ruiva.
Sua atenção foi atraída por uma voz que proferia impropérios
em altos brados. Pertencia a um homem de longos cabelos
grisalhos desgrenhados que, vestido em um robe de seda grená,
andava pelas ruas em passos rápidos, descalço, esbravejando
contra quem ousasse lhe dirigir o olhar.
- Carter! – chamou Mulder, que nele reconheceu seu amigo
Cornelius Carter, o escritor de contos fantásticos.
Ainda na noite anterior, Mulder e Carter haviam estado
juntos, durante a ceia, envolvidos em uma longa discussão com
mais outros convivas. Na ocasião, ambos haviam defendido com
ardor a futilidade dos sentimentos e a total inutilidade do
amor na vida do ser humano.
- Um subterfúgio para os fracos. – argumentara Mulder.
- O ópio dos ignorantes. – acrescentara Carter.
Tão distante parecia a Will aquela argumentação...
Compreendia-se, naquele instante, um total ignorante até
aquele dia, agora que conhecia o verdadeiro sentido do amor.
De volta ao presente, o homem encaminhou-se até ele, parando
a poucos centímetros de seu rosto e, como resposta, começou a
cuspir palavrões e obscenidades com olhar ensandecido. Foi
tamanha a surpresa de Mulder, que ficou sem ação, enquanto o
enlouquecido Carter gritava, cuspia e gesticulava sobre seu
rosto.
- Com licença, senhor! – Scully salvou a situação, empurrando
Carter para o lado e puxando Mulder pelo braço para longe
dali.
De longe, William voltou-se para observar Carter, que agora
dirigia toda sua loucura a um poste de iluminação,
gesticulando e gritando-lhe impropérios, completamente louco,
totalmente inconsciente do ridículo de sua condição. Pobre
Carter! Que o inferno tivesse piedade de sua alma, Mulder não
pôde deixar de pensar com uma ponta de ironia.
O sol já se punha no horizonte quando William e Katherine
encontraram, por fim, um local para repousar suas pernas
fatigadas. Um recanto idílico. Um belo caramanchão recoberto
por uma viçosa trepadeira de flores escarlates escondia sob
sua sombra um grande banco de pedra. A partir dali,
descortinava-se uma magnífica vista da baía num ângulo do
qual nem a destruição do abalo, nem a fumaça do incêndio eram
visíveis. Apenas o plácido mar azul e o horizonte tingido
pelos tons avermelhados do crepúsculo compunham o sereno
quadro.
Sentaram-se lado a lado no banco de pedra. O sol,
transformado em uma bola ardente e alaranjada, desaparecia
rapidamente, como se mergulhasse nas águas do mar para seu
descanso noturno.
- Quando eu era criança, - começou Scully, em tom nostálgico,
os olhos pregados no sol poente, - meu pai sempre me levava
para ver o pôr do sol na praia. Ele dizia que, se eu fosse
uma boa menina e se Deus estivesse satisfeito comigo, eu
ouviria um "tchiii..." quando o sol mergulhasse por completo
no mar. Nem preciso dizer que nunca ouvi nada...
Calou-se. Mulder a ouvia em respeitoso silêncio, seus olhos
saltando ora para o horizonte, ora para a expressão absorta
da ruiva. Por fim, o astro rei mergulhou rápida e
definitivamente no horizonte, com se engolido pelo mar agora
avermelhado dos raios solares.
- E continuo não ouvindo... – prosseguiu ela. – Por que Deus
não está satisfeito comigo? – acrescentou, depois de um
momento, com voz rouca.
Os olhos azuis, ainda fitos no horizonte, estavam rasos
d'água. Sem uma palavra, Mulder envolveu-lhe os ombros
estreitos com o braço e beijou-lhe os cabelos com ternura.
Ela deixou-se ficar, entregue ao calor daquele abraço,
abandonada aos sentimentos. A tristeza a envolvia como um
manto. Uma melancolia, indefinível em palavras. Não podia
evitar de pensar em sua mãe, em Eric e Tommy e Nell e Betty.
Soterrados sob toneladas de pedras, nas ruínas de sua casa...
Doía-lhe tanto a idéia que as palavras morriam-lhe na
garganta, as lágrimas enchiam-lhe os olhos.
E havia o medo da solidão que tão pungente a assaltara
durante todo aquele dia. O mais terrível de todos os seus
pesadelos: ficar só. Tantas vezes acordara no meio da noite,
banhada em suor, um grito contido na garganta, após o mesmo
pesadelo recorrente, no qual se via despertando, de repente,
completamente só, em meio ao nada. Apenas deserto e desolação
para qualquer lado que olhasse. E sempre, nessas ocasiões,
apurara o ouvido para escutar o ressonar suave e
tranquilizador de Nell, com quem dividia a cama. E agora, não
havia mais Nell. Não havia mais família ou lar. Apenas o
fantasma da solidão rondando seu caminho.
Uma rajada gélida da brisa noturna a fez estremecer,
arrancando Katherine de seus sombrios devaneios. Somente
então, percebeu que já escurecera.
Will depositou seu casaco, gentilmente, sobre os ombros de
Kathy e, depois, voltou a envolver-lhe os ombros com o braço.
Seus olhos cinzentos estavam fitos no horizonte. Do outro
lado da baía, eram agora visíveis as luzes de Alameda e
Oakland.
- Estive pensando... – disse ele. Sua expressão era
sonhadora, quase que contente. – Amanhã, vamos tentar pegar o
ferry-boat para o outro lado. Tenho amigos em Alameda que
poderiam nos abrigar por uns dias, até as coisas voltarem ao
normal. O que você acha?
Assim falando, voltou-se para Katherine. Seus olhos
encontraram o azul dos dela e Scully poderia jurar que
brilhavam, apesar da escuridão. E ele sorria, um sorriso bobo
que o deixava com ar de menino. E ela não pôde deixar de
sorrir, em resposta, fazendo com que o olhar de Mulder se
tornasse ainda mais luminoso. E não pôde deixar de sentir que
o fantasma da solidão, que tanto a atemorizava, desvanecia-se
como que por mágica... Então, com um suspiro arrancado do
fundo das entranhas, Kathy compreendeu, por fim, o que
sentia. Estava amando... Amava aquele estranho senhor Mulder,
que a olhava de forma tão intensa que, naquele exato momento,
tornava sua respiração difícil.
Com uma das mãos, ela afastou a mecha de cabelos castanhos
que teimava em cair-lhe na testa, enquanto a outra envolvia a
graciosa covinha no queixo de Will e aproximava seu rosto do
dela. "Estou sendo ousada demais! O que ele vai pensar de
mim?", ocorreu-lhe num segundo. "Dane-se! O que quiser
pensar, desde que compreenda que o amo...", imaginou no
segundo seguinte. Pousou seus lábios sobre os dele,
levemente. Surpreso, Mulder não reagiu no primeiro instante.
Porém, no momento seguinte, seus braços envolveram Scully e a
aproximaram de seu corpo e seus lábios pressionaram os da
mulher com mais força, num beijo correspondido com igual
ardor, num sentimento compartilhado com igual intensidade.
Lá em cima, um milhão de estrelas faiscavam no céu,
pontilhando o veludo negro da noite com um milhão de
diamantes.
Novamente, tudo era escuridão, tão negra, tão densa, quase
que se podia tocá-la... William estreitava os olhos tentando,
em vão, encontrar Katherine. Ele a sabia próxima, podia
ouvir-lhe a respiração, aspirava-lhe o aroma dos cabelos. Mas
não a via. E o temor de perdê-la, de não mais conseguir
encontrá-la o dominava. Queria gritar seu nome, chamá-la, mas
as palavras morriam em sua garganta. Subitamente, uma
claridade forte preencheu tudo. E ele a viu, parada a uns
poucos metros de distância. Quis correr até ela, mas uma
muralha de fogo brotou do chão, interpondo-se entre os dois,
impedindo a passagem. Will tentava desesperadamente atrair a
atenção de Kathy. De alguma forma, ele sabia que, embora as
chamas representassem um obstáculo intransponível para ele,
Katherine poderia facilmente atravessá-las e vir até ele em
segurança, se assim o desejasse. Mas ela contemplava o céu,
absorta, alheia a tudo o que se passava ao seu redor. Então,
a claridade se fez mais intensa sobre ela, um facho de luz
muito alva que a tragou em seu interior fazendo-a flutuar no
espaço. William gritou, mas seu grito saiu mudo da boca.
A lua ia alta no céu, quando Mulder despertou sobressaltado,
o peito esmagado pela tensão, o coração batendo
descompassado. Apreensivo, voltou com cuidado a cabeça para o
lado. A visão de Scully, ressonando tranqüila, os cabelos
ruivos derramando-se sobre seu ombro, o acalmou. Felizmente,
não passara de um pesadelo. O que sentira, no entanto, fora
cruelmente real! Ainda eram vívidas em sua lembrança as
imagens do fogo e da luz e de Scully flutuando no ar, em
direção ao espaço. Um pesadelo real demais...
Estreitou o aperto do braço que envolvia a mulher e, em
resposta, ela aninhou-se ainda mais contra ele, sorrindo em
seu sono. Will observou longamente o semblante feminino, tão
sereno em seu repouso, tão diferente da máscara indecifrável
que ela envergava mais cedo. O brilho prateado da lua
emprestava reflexos pálidos à pele muito branca e lançava
estranhas sombras nos olhos cerrados sob as longas pestanas.
O ritmo suave de sua respiração agia como um bálsamo sobre os
receios de William, devolvendo-lhe, pouco a pouco, a calma e
restaurando-lhe a habitual disposição sonhadora.
Era-lhe uma sensação totalmente nova aquela de estar amando
daquela forma. Aquela louca sensação de contentamento, de
satisfação em apenas tê-la ao seu lado, somada à outra,
contraditória, de que nem todo o tempo do mundo passado ao
lado dela seria suficiente para abrandar a dor dos breves
momentos de separação, o confundia e estarrecia. Era a
primeira vez que sentia-se assim. Havia tido envolvimentos
com muitas outras mulheres antes. Desde as filhas da boa
sociedade até as coristas e atrizes de vaudeville, nenhuma
outra mulher o havia feito sentir daquele modo antes.
Apaixonado, definitiva e irremediavelmente apaixonado.
Entregava-se por inteiro aos devaneios delirantes de sua
paixão. Contemplava as estrelas, imaginando, para cada uma
delas, algo que gostaria de fazer com Scully, um lugar que
visitariam, um presente que lhe daria, um modo de fazê-la
feliz...
Embora desperta, Scully hesitava em abrir os olhos. Temia que
a agradável sensação de tranqüilidade e bem estar que sentia
se dissipasse ao abri-los. Estava tão em paz consigo mesma
quanto não se sentia a tempos. Sonhara com sua mãe, seu pai,
seus irmãos, reunidos, felizes. Em seu sonho, eles não
falavam, apenas sorriam. Mas ela podia ouvir-lhes os
pensamentos e eram os melhores possíveis. "Liberte-se,
Katherine!", lhe diziam. "Nós estamos bem. Viva sua vida e
seja feliz!" E foi com essas palavras, ecoando em seus
ouvidos, na voz suave de sua mãe, que despertou. "Seja feliz,
Katherine..." E a primeira coisa que percebeu, ao despertar,
foi o aconchego do braço que a envolvia e estreitava, do
ombro onde sua cabeça repousava. E sorriu, feliz. Sim, ousava
dizer-se feliz, apesar de tudo.
Finalmente, abriu os olhos, com vagar, e viu-lhe o perfil
delineado contra a escuridão. Tinha a expressão sonhadora,
contemplava as estrelas. Os cantos da boca retorciam-se
sutilmente para cima, num sorriso. Ela podia dizê-lo feliz,
tal como ela. E isso aumentou seu contentamento. Então isso
era amar! Alegrar-se com a felicidade do outro, sofrer com
seu sofrimento, ser dois e ser um, ao mesmo tempo...
Envolto que estava em seu mundo de sonhos e planos, William
pareceu não perceber que era observado. Katherine não
resistiu, soprou-lhe de leve a orelha. Ele voltou a cabeça
para encará-la, seu mais belo sorriso estampado no rosto. Os
olhos encontraram-se, azul e cinza, mesclando-se, fundindo-
se, aprisionando-se mutuamente. E, pela eternidade do momento
que durou aquele olhar, apenas William e Katherine, Mulder e
Scully existiram em todo o universo.
Com um rugido, uma coluna de chamas surgiu da encosta da
colina a cerca de dez metros de onde estavam Will e Kathy, os
obrigando a levantar-se e retirar-se dali, à medida em que o
fogo avançava inclemente em sua direção. Num minuto, não
havia mais caramanchão ou trepadeira de flores escarlates ou
recanto agradável. Apenas um inferno flamejante, no local
onde até instantes antes fora seu paraíso particular.
Afastaram-se rapidamente, enquanto o fogo começava a surgir
aqui e ali, por toda Nob Hill, galgando a colina e espalhando
o pânico. Assustadas, as pessoas corriam de um lado para o
outro a procura de um local seguro. Mulder conduzia Scully
pela mão, procurando evitar a confusão que se formara, mas,
ao mesmo tempo, andando no contrafluxo da multidão que se
deslocava em direção ao Golden Gate Park, à beira da baía, na
parte baixa da cidade.
"Por volta de 09:00 PM, a brigada de
incêndio tentou erguer uma barricada
que impedisse o avanço do fogo na
direção de Nob Hill. Seus esforços
foram inúteis e, no início da
madrugada de 19 de Abril, o incêndio
começou a se alastrar naquela área."
Quando, enfim, conseguiram desvencilhar-se da massa humana e
do fogo, respiraram aliviados. Tudo ficara estranhamente
calmo e silencioso, depois de afastarem-se da balbúrdia da
turba apavorada. Havia apenas o crepitar distante das chamas
para encher o silêncio e a claridade da lua para iluminar a
noite, já que qualquer outro tipo de luz fora proibido pelas
autoridades, temerosas do surgimento de novos focos de
incêndio. As sombras alongadas das ruínas sobre o calçamento
irregular compunham figuras bizarras no chão. Uma brisa
quente e poeirenta soprava da direção onde estava o fogo,
enchendo-lhes as narinas do cheiro acre de fumaça e
anunciando que sua propagação até onde estavam não tardaria.
Estacaram na entrada de uma alameda ladeada por árvores
frondosas. Estava muito escura, as copas espessas impediam a
passagem dos raios fracos do luar. Mulder hesitou, apertando
a mão de Scully com força. Algo em seu coração, na boca de
seu estômago, formigando em suas pernas, lhe dizia para não
seguir adiante, para não entrar por aquela aléia obscura. Mas
a urgência imposta pelas chamas que avançavam céleres na
direção do casal, fê-lo contrariar os instintos e mergulhar,
junto com Scully, no breu do caminho sombrio. A cada passo
que davam, o silêncio e a escuridão adensavam-se ameaçadores,
a realidade parecia ficar mais distante. Mulder ia ficando
mais e mais apreensivo, à medida em que avançavam, as
sensações dolorosas do pesadelo de ainda a pouco tornavam-se
mais vivas. Os dedos de Scully, que ele apertava fortemente
entre os seus, pareciam-lhe tornar-se imateriais, como se
fossem areia, escapando-lhe por entre os dedos. A angústia o
ia dominando, secando-lhe a saliva, aumentando o nó na
garganta, a opressiva dificuldade de respirar.
De súbito, o vento fraco cessou, o ar tornou-se
surpreendentemente parado, o crepitar do fogo silenciou.
William parou, assustado, mas Katherine prosseguiu em frente,
seus dedos finalmente escapando das mãos de William. Mais
dois passos e ele não mais a conseguia avistar nas trevas.
Queria chamar-lhe o nome, pedir que voltasse, porém o nó em
sua garganta não deixava a voz sair. Quedava paralisado, como
se os pés estivessem cravados no chão. Abria os olhos
desmedidos, tentando divisar os contornos da mulher, mas seus
esforços eram vãos.
Katherine, por sua vez, seguia em frente, pela escuridão,
compelida por um chamado que ressoava baixo em seus ouvidos,
atraída por uma sombra que divisava ao longe. Nem ao menos
deu-se conta de que caminhava agora sozinha, que William
havia ficado para trás. Tudo o que sabia era que precisava
continuar andando, perseguir aquela voz que a chamava,
alcançar o vulto que lhe acenava na escuridão. E avançou,
como que hipnotizada, até que um nesga de céu visível por
entre as folhas das árvores atraiu sua atenção. Escuro,
pontilhado por um milhão de estrelas, tão vasto, tão belo,
tão intrigante. Desejou alcançar uma daquelas estrelas, tomá-
la nas mãos...
- Você quer ir até lá? Quer conhecer as estrelas? –
perguntava a voz em sua cabeça.
- Sim! – respondeu Kathy sem hesitação, os olhos fitos no
esplendor dos astros, nas promessas de libertação com que lhe
acenavam.
Will, estático, aterrorizado, ainda esforçava-se por
encontrar Kathy em meio às trevas. Como em seu sonho, a sabia
próxima, ouvia sua respiração. Mas não a conseguia enxergar,
por mais que tentasse.
Repentinamente, tudo fez-se claro e brilhante, como se a luz
do sol a tudo iluminasse. A inesperada claridade ofuscou
William, que piscou repetidas vezes até acostumar-se e
conseguir divisar Katherine, parada um par de metros adiante,
distraída, olhando as estrelas. Quis gritar, mas não
conseguia. As recordações do pesadelo o machucavam agora que
se tornavam lentamente realidade. A dolorosa certeza do que
estava por acontecer, de como tudo iria terminar, o esmagava,
tornando ainda mais difícil sua reação. Mulder, que sempre se
dissera agnóstico e vangloriava-se de não crer senão na
ciência, rogava agora pela interseção divina para impedir que
eles a levassem. Orava e suplicava pela vida de Scully como
não faria por sua própria vida.
- Não deixeis que eles a levem, Senhor! Oh, Deus, não
permitis que eles a tomem de mim...
Embora não soubesse quem ou o quê poderiam ser "eles",
parecia-lhe claro e certo que eram "eles" os responsáveis
pelo que estava acontecendo.
E a claridade que a tudo preenchia foi se intensificando e
tornando-se alaranjada, até assemelhar-se a uma muralha de
chamas interposta entre Will e Kathy. Uma barreira que
somente ela poderia transpor, pelo simples fato de querer
fazê-lo. William queria chamá-la, trazê-la de volta à
realidade, mas as palavras morriam estranguladas em sua
garganta.
E a claridade se fez mais e mais intensa até tornar-se tão
brilhante quanto mil sóis e concentrar-se, muito branca, em
torno de Katherine. Ela contemplava o espetáculo deslumbrada,
a ciranda de luzes e cores brincando lá no alto, a atraindo
irresistivelmente para si. E foi se sentindo leve, leve, até
perceber que seus pés não mais tocavam o solo, que flutuava
no ar. Era tão boa a sensação de voar... Ela olhava a rua lá
embaixo, as casas, as árvores, tudo ficando pequenino,
distante à medida em que subia.
- Veja, Mulder, como tudo é tão belo daqui de cima! –
exclamou alegremente.
E foi, então, que o viu, parado lá embaixo, os braços
estendidos para o alto, em sua direção, a boca entreaberta,
os olhos esgazeados. Mulder! Mulder! Como um relâmpago, ela
compreendeu o que estava se sucedendo e quis voltar.
- Deixem-me! Deixem-me! Não quero ir! – gritava Scully em
pensamentos.
- Mas você vai conhecer as estrelas... Como você queria... –
respondia, entre sedutora e zombeteira, a voz em sua cabeça,
enquanto ela era alçada cada vez mais alto no céu.
Seu último pensamento, antes de mergulhar na névoa brilhante
do esquecimento, que a perseguiria, nos anos vindouros, foi
doloroso e amargo: nunca havia dito a Mulder que o amava...
Com os pés solidamente grudados no chão, Mulder observava
Scully, a flutuar no espaço, subindo, subindo até desaparecer
num clarão.
- Scully! – conseguiu finalmente gritar, os braços estendidos
no vazio, como se quisesse alcançá-la.
Com um estrondo, a claridade desapareceu, tornando-se apenas
um rastro de luz que cortou veloz o firmamento. Envolto pelo
silêncio e pela escuridão, Mulder caiu de joelhos sobre o
calçamento, os olhos cravados no céu, acompanhando o rastro
luminoso que desaparecia no éter. Quando o último traço da
luz enfim se extinguiu, ele curvou-se sobre as pernas,
enterrou a cabeça entre as mãos e chorou. Solitário e
arrependido.
Nunca havia dito a Scully que a amava...
PARTE II – Tempos Atuais
"Você tem e-mail!" dizia a mensagem que pipocou, de repente,
na tela do notebook de Fox Mulder. Com enfado, ele
interrompeu a absorvente tarefa de arremessar lápis em
direção ao teto de sua sala no porão do Quartel General do
FBI e voltou os olhos para examinar o que lhe fora enviado.
Torcia para que não fosse mais uma notificação de auditoria
interna no Bureau ou um daqueles avisos de encerramento do
prazo de prestação de contas de viagem que o Departamento
Financeiro vivia lhe enviando.
"Muito estranho" dizia o assunto da mensagem.
"david_duchovny@hotmail.com" estava escrito no remetente.
Mulder esboçou um sorriso maroto. "Ah, Melvin! Quisera
você...", pensou divertido ao identificar um dos muitos
endereços de e-mails disfarce usados pelos Pistoleiros
Solitários. Bem, ao menos, havia uma chance de ser algo
interessante, imaginou enquanto abria a mensagem. Nela, além
do texto, havia dois arquivos anexados, imagens, pelo que
pôde perceber, que ele, curioso, foi imediatamente abrindo,
sem nem mesmo ler o texto antes.
O primeiro arquivo era a digitalização de uma foto que
mostrava um grupo de pessoas vestidas à moda do início do
século XX. Mulheres em vestidos compridos, alguns homens com
paletós de corte antiquado, outros em mangas de camisa e
suspensórios. As pessoas da foto reuniam-se em torno de uma
pilha de tijolos erguida no meio da rua sobre a qual
repousava um caldeirão, à guisa de fogão improvisado.
Entretanto, o que realmente chamava atenção na imagem era o
cenário que lhe servia de pano de fundo. Do alto da colina
onde o grupo se encontrava, podia-se ver edifícios semi-
destruídos e pilhas e pilhas de escombros até onde a vista
alcançava. E fumaça, rolos de fumaça negra que emergiam aqui
e ali por toda parte na paisagem.
Pareceu a Mulder, por um momento, já ter visto aquela imagem
antes. Déjà-vu, Discovery Channel, não fazia a menor idéia de
qual fosse a origem da lembrança! Contemplou a fotografia
longamente, tentando entender o porquê os Pistoleiros a
haviam enviado a ele, mas não conseguiu atinar com a razão.
"Talvez fosse melhor ler o texto da mensagem, Fox..." disse
uma vozinha zombeteira em sua cabeça. De fato, lá estava a
explicação, escrita no jeito disléxico de Frohike:
"encontrei essa foto (fig1) no bco de img do Congresso.
tirada em 1906, depois do gde terremoto de Sfrancisco.
reparar nas pessoas na foto. a outra (fig2) é uma ampliação
da (fig1).
será um caso pro AX??? ;)
fui!!! txau, frohike"
Com a curiosidade atiçada pelo texto, Fox Mulder abriu a
segunda imagem que mostrava os rostos de um homem e uma
mulher jovens. Ele os contemplou por alguns segundos,
perplexo.
- Scully, você precisa ver uma coisa! – chamou, com grande
excitação, interrompendo a parceira, concentrada na
elaboração de um relatório.
Dana Scully levantou-se um tanto a contragosto e caminhou
devagar até a mesa do parceiro. Não que a atividade que
Mulder havia interrompido fosse muito interessante. A bem da
verdade, era um dos relatórios mais entediantes que já tivera
que escrever em seus muitos anos de FBI. Mas levara uma boa
meia hora para conseguir concentrar-se o suficiente para
começar a escrevê-lo e, certamente, levaria outra meia hora,
no mínimo, para retomar o fio da meada, depois. Que fosse!
- Do que se trata, Mulder? – perguntou, acercando-se com um
suspiro.
Pelo tom da voz dele, certamente alguma notícia sobre o
aparecimento de círculos misteriosos nos campos de trigo, em
Iowa, ou avistamentos de luzes em algum canto esquecido por
Deus, no Novo México.
- Recebi isto dos Pistoleiros. – respondeu com os lábios
torcidos num meio sorriso, diante da visível irritação da
ruiva. – Veja que curioso... – completou, abrindo a primeira
imagem a qual a mulher examinou atentamente por alguns
instantes.
- San Francisco, grande terremoto de 1906. – afirmou segura,
após o exame, acrescentando irritada, - E...?
Apesar dos anos de trabalho juntos, Mulder sempre se
surpreendia com a perspicácia de Scully. Como ela podia saber
aquilo tudo com tanta certeza? Melhor nem perguntar,
concluiu, abrindo o texto do e-mail que a mulher leu
rapidamente.
- Continuo não entendendo onde você... – começou ela
exasperada, interrompendo-se quando o parceiro mostrou-lhe a
segunda foto.
- Somos nós na foto, Scully. – disse o agente, apontando a
imagem na tela de seu computador.
De fato, ali, cobertos por uma grossa camada de poeira, com
os cabelos desgrenhados e vestidos em trajes de época,
estavam estampados, no sépia da fotografia antiga, os rostos
de Mulder e Scully. Bastante mais jovens, era verdade, mas
perfeitamente reconhecíveis, a despeito da pouca definição da
imagem. Ela se deixou ficar, atônita, fitando com os olhos
arregalados a ampliação da velha fotografia. Difícil
acreditar no que via, mas era seu rosto ali! Registrado numa
imagem capturada a mais de noventa anos atrás...
Por um momento, imagens desconexas bailaram diante de seus
olhos. Um corredor luxuoso repleto de portas fechadas, uma
nesga de céu azul, um quarteirão inteiro tornado em ruínas,
um grande sol alaranjado se pondo no mar, luzes tão intensas
que feriam seus olhos... Tudo entremeado pela visão
apocalíptica de chamas e labaredas que pareciam querer
consumi-la. Uma estranha melancolia a invadiu, até ser
dissipada pela visão de um par de olhos cinzentos e um belo
sorriso de menino. E um calor agradável que brotava de algum
canto escondido de sua alma engolfou seu corpo como uma onda.
Foi quase como uma das tais experiências extra corpóreas das
quais Mulder tanto falava...
Estranhas sensações dominaram Scully por um instante, quando
ela contemplava aquela não menos estranha fotografia. No
entanto, seu tão decantado ceticismo prevaleceu e seu bom
senso a fez examinar a imagem na tela do notebook com seu
notório olhar crítico. Era difícil acreditar naquela foto...
Muito difícil acreditar... Principalmente, em se tratando de
algo enviado por Frohike...
- Sabe que dia é hoje, Mulder? – perguntou ela quando um
sorriso triunfante lhe surgiu no rosto.
Ele olhou para o mostrador de seu relógio rapidamente e
arrematou a triste constatação batendo com a mão espalmada
contra a testa, num gesto deliberadamente teatral.
- Droga! Primeiro de abril... 1 X 0, Pistoleiros! –
acrescentou, com um ar decepcionado.
A expressão de triunfo de Scully cedeu lugar a um suave
sorriso de compreensão diante da decepção de Mulder.
- Feliz Dia dos Bobos, parceiro.
Era, ao mesmo tempo, engraçada e comovente a expressão
desconsolada de Mulder. Como uma criança que percorreu todo o
longo caminho até a sorveteria, sonhando com uma casquinha de
chocolate, apenas para descobrir, ao chegar lá, que o freezer
estava quebrado... Os cantos da boca caídos, o olhar bobo, os
ombros derrotados. Num arroubo de compaixão, Scully o obrigou
a levantar-se e jogou-lhe o paletó sobre os ombros.
– Venha! Depois dessa, eu lhe pago o almoço... - convidou,
enquanto rebocava um amuado Fox Mulder pelo braço, em direção
à porta do escritório.
Por um momento, pelo canto do olho, ela teve a impressão que
o rosto de Mulder estava todo sujo de poeira e que, em lugar
do paletó Armani de corte impecável, o parceiro envergava um
antiquado smoking negro rasgado e coberto de sujeira. Sacudiu
a cabeça levemente para afastar aquela insistente sensação de
déjà-vu que a perseguia desde que colocara os olhos naquelas
estranhas fotos.
"Talvez essas fotos mereçam um pouco de investigação...",
disse uma vozinha curiosa dentro de sua cabeça. "Ora! Deixe
de besteira, Dana Scully!", ralhou mais alto a voz da razão,
forçando a ruiva a recuperar o senso crítico e seguir para o
almoço e mais um dia nos porões do FBI.
EPÍLOGO (versão original)
Katherine Scully reapareceu, em 1907, em pleno deserto de
Nevada, próximo ao local onde, anos mais tarde, seria erguida
Las Vegas. Insistia em contar a quem quer que fosse sobre os
seres de pele cinzenta e grandes olhos negros amendoados que
a haviam levado e sobre os estranhos e dolorosos
procedimentos a que fora submetida dos quais guardava
pequenas cicatrizes em forma de meia lua nas mãos e no rosto.
Tão desconexas e pouco convencionais eram suas estórias e
tamanhas sua convicção e sua fé no que contava, que acabou
sendo considerada louca e mantida interna em uma instituição
psiquiátrica.
Ao final de dez longos anos, ela percebeu que o único modo de
ser libertada era fazer o que o mundo esperava dela. Passou,
então, a negar tudo em que acreditava. Dizia que toda aquela
estória sobre homenzinhos cinzentos e experimentos bizarros
que havia repetido sem cessar durante tanto tempo não passava
de um delírio seu e que, na verdade, não era capaz de
recordar-se do que havia acontecido com ela entre 1906 e o
momento em que fora encontrada no deserto. Convencidos de que
seu surto psicótico estava superado, os médicos, finalmente,
a liberaram, numa tarde chuvosa de 1917. A partir de então,
Kathy vagou solitária pelo meio oeste americano, viajando
como clandestina em trens de carga, muito antes dessa prática
se tornar uma febre entre jovens e velhos no país. Amargou
fome e frio e uma existência solitária, sobrevivendo de
trabalhos ocasionais como lavar pratos ou varrer ruas em
troca de comida. Veio a falecer vítima de pneumonia em um
abrigo da Cruz Vermelha em Baltimore, Maryland, numa noite
fria de inverno em 1929. Deixava o pequenino William, de oito
anos de idade, fruto de um estupro sofrido durante suas
andanças pelos vagões de carga da vida.
Enquanto viveu, nunca mais pôs os pés em San Francisco.
Simplesmente, não conseguiria suportá-lo. Tampouco voltou a
tocar nas estórias do passado, embora, à noite, ao fechar os
olhos, se sentisse constantemente observada por um par de
olhos cinzentos profundos. O episódio de seu seqüestro, aos
poucos, tornou-se uma sucessão de lembranças vagas e
confusas, a fazendo, por vezes, imaginar se não havia
realmente se tratado de um pesadelo. Nesses momentos, levava
a mão à nuca e apalpava a pequena cicatriz rosada que lá
havia, convencendo-se de que tudo havia sido real.
William Mulder III passou os anos seguintes a 1906 procurando
pela pequena Scully por todos os lugares. Contratou os
melhores detetives e investigadores particulares, chegou ao
extremo de consultar médiuns e videntes, em busca de
informações sobre o paradeiro da bela ruiva que, com sua
petulância e destemor, fisgara seu coração num espaço de
tempo tão curto e tão longo quanto as vinte e quatro horas de
um dia. Com o passar dos anos e o insucesso das buscas, foi
se tornando um homem calado e introvertido, acabando por ser
apelidado de Estranho nas rodas que antes freqüentava.
Foi voluntário no Exército, em 1917, na primeira leva do
alistamento para a Primeira Guerra Mundial, e combateu os
alemães nas trincheiras lamacentas dos campos de batalha da
França e da Bélgica. Nesse tempo, tinha o costume de
oferecer-se como voluntário para toda sorte de missões
consideradas perigosas ou impossíveis. Sobreviveu a ataques
de gás mostarda, estilhaços de bombas e a uma perfuração no
abdômen causada por uma baioneta. Voltou à pátria, ao fim da
guerra, com o peito coberto de medalhas e o coração vazio de
esperanças.
Casou-se por conveniência, em 1921, com Lucille, uma jovem
lânguida, loura e doentia, filha da boa sociedade de Boston,
que lhe deu três filhos. Visitava San Francisco,
religiosamente, em todos os dias 18 de Abril, na vã esperança
de reencontrar Scully em uma esquina qualquer. Numa noite
fria do inverno de 1929, em plena Grande Depressão, faleceu,
vítima de um aneurisma cerebral. Suas últimas palavras, ditas
a Bill, o filho caçula, foram: "Não confie em ninguém."
Seu maior tesouro, conseguido a custo num leilão e guardado a
sete chaves numa pequena caixa de madeira perfumada, ele o
legou às chamas da lareira, na noite anterior à sua morte.
Uma preciosa e solitária lágrima rolou por sua face quando o
fogo consumiu a velha foto esmaecida onde um rapaz e uma
moça, com os cabelos desgrenhados e os rostos sujos de
poeira, apareciam em meio a um estranho grupo de pessoas
diante do cenário aterrador de uma cidade devastada pelo
sismo e purificada pelas chamas. Sim, o fogo, enfim, os havia
separado.
F I M
NOTAS FINAIS:
1. Nunca existiu um Grand Hotel em San Francisco. Nem nenhum
dos hotéis elegantes da época desabou durante o terremoto
propriamente dito. O Grand Hotel foi projetado e construído
pela minha imaginação apenas para poder vir abaixo na
estória.
2. Dados reais e fotos sobre o Grande Terremoto e o Incêndio
de 1906 podem ser encontrados no site do San Francisco Museum
(http://www.sfmuseum.org).
3. Por diversas razões, essa acabou se tornando uma estória
polêmica. Meu objetivo inicial não era escrever uma fanfic,
mas um conto. Peguei emprestados dos personagens de X-Files
algumas características físicas e psicológicas e partes dos
nomes. Mas SEMPRE disse, e insisto nisso, que os personagens
poderiam chamar-se Joãozinho e Maria ou Fred Flintstone e
Mortícia Addams. A porção XF da estória foi introduzida
apenas para torná-la uma fanfic. Mas tenham sempre em mente,
por favor, que os personagens que sofreram tanto na narrativa
NÃO SÃO nossos velhos conhecidos do seriado. Portanto, não me
crucifiquem ou me chamem de nomes que suas mamãezinhas não
aprovariam.
4. No mais, sinto muito se vocês acabaram por detestar essa
estória, mas MANDEM feedback. Please!
FAN FICTION
ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)
DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores.
CATEGORIA: Sei lá! Conto, eu acho. Angst e Drama, com
certeza.
CLASSIFICAÇÃO: Sem restrições.
SPOILER: Não há.
SINOPSE: Uma calamidade pode trazer à tona o melhor e o pior
das pessoas. Eu que o diga...
AGRADECIMENTO: A Sky, Késsia e Graça, pelos elogios e,
principalmente, pelas críticas sinceras. A Claudia Modell,
brava defensora dos fracos e oprimidos, que com sua pena
ferina (esse é boa) partiu em minha defesa durante o ataque
das shippers malvadas.
PAGAMENTO: Em forma de feedbacks (positivos ou negativos) é
sempre bem vindo.
NOTA: Tive a idéia para essa estória numa bela tarde de
domingo assistindo a um desses documentários do Discovery
Channel ou algo que o valha. Os fatos vêm de lá, o resto é
pura ficção.
Frisco
PRÓLOGO
Ninguém pode avaliar as verdadeiras dimensões de uma
catástrofe até ser envolvido por ela. Mesmo assim, como parte
integrante do desastre, não se pode compreendê-lo em sua
plenitude, mas apenas pela experiência individual de cada um.
Quando se fala em calamidades, os números não são
significativos senão para os governantes ou para aqueles que
observam de fora o desenrolar dos fatos. Toda estatística,
nestes casos, é vazia e sem sentido porque não reflete os
acontecimentos em sua essência, mas apenas seus resultados
visíveis. São as pequenas coisas, as mudanças de conceitos e
de atitudes, o modo de encarar o próximo como um companheiro
de infortúnio, que dão a verdadeira medida de um desastre.
Esta estória tem a ambiciosa pretensão de relatar uma das
grandes catástrofes de nossos tempos como vista pelos olhos
de duas de suas vítimas. E, através desta visão pessoal dos
acontecimentos, tentar resgatar um pouco do real significado
humano do desastre.
Vamos aos fatos.
Embora não haja registro escrito, conta-se que, quando os
colonizadores espanhóis primeiro chegaram à baía de San
Francisco, na Califórnia, no final do século XVIII,
avistaram, na praia, três índios que choravam. Por causa
disso, o piloto espanhol atribuiu à baía o profético nome de
Enseada dos Chorões. Lendas à parte, entre 1769 e 1776, os
conquistadores espanhóis, soldados e padres franciscanos,
exploraram a região ao redor da baía, buscando o melhor lugar
para ali estabelecer um forte e duas missões religiosas. Em
outubro de 1776 foi, finalmente, fundada a missão de San
Francisco de Assis comemorada com fanfarras e foguetório, que
assustaram os habitantes nativos. Imediatamente depois,
iniciou-se a conversão dos índios e, com ela, a colonização
da Califórnia.
As doenças do homem branco, sarampo, cólera, varíola,
sífilis, no entanto, rapidamente devastaram a população
indígena, de tal modo que, em 1833, apenas 204, dos cerca de
300000, habitantes nativos restavam na área da baía.
A despeito de sua vocação como posto avançado do Reino de
Espanha, foi somente no final da década de 1830 que San
Francisco, nessa época denominada "pueblo" de Yerba Buena,
assumiu sua vocação comercial. Com a incorporação da
Califórnia como território dos EUA e a descoberta de ricos
filões de ouro na área, a região viu-se subitamente inundada
por uma horda de rancheiros e aventureiros, saltando de uma
população de 459 almas, em 1847, para 56000 habitantes, em
1860. Data também deste período a chegada de navios lotados
de trabalhadores chineses aos portos da cidade. O crescimento
da cidade, já batizada de San Francisco, desde 1851, teve de
ser rápido o bastante para suprir as necessidades geradas
pelo espantoso aumento de sua população. Fábricas, armazéns,
fundições foram construídos na área denominada South-of-
Market com essa finalidade e nela também estabeleceram-se os
trabalhadores necessários para manter os negócios operando,
um grupo cosmopolita formado, além dos chineses, por alemães,
poloneses, franceses, austríacos, irlandeses, chilenos e mais
um sem número de trabalhadores de diversas nacionalidades
reunidos inicialmente pela Corrida do Ouro e que ali
permaneceram depois que o sonho dourado se acabou. Em 1900,
um de cada cinco habitantes da cidade residia em South-of-
Market, em casas geminadas de madeira.
Em abril de 1906, a cidade foi abalada por um violento
terremoto seguido por um incêndio que durou quatro dias e a
reduziu a ruínas. Cerca de três anos depois, a cidade havia
sido quase que completamente reconstruída.
Desde então, San Francisco tem crescido sem parar, acabando
por tornar-se uma das mais demograficamente diversificadas
dos Estados Unidos. Embora permaneça sendo um importante
centro financeiro e mercantil, devido à sua grande tolerância
à não conformidade, a cidade tornou-se também uma Meca do
turismo internacional.
Em 1989, a área de San Francisco voltou a ser sacudida por um
violento tremor que alcançou 7.1 pontos na escala Richter e
deixou um saldo 62 mortos e 3800 feridos, causando prejuízos
estimados em 6 bilhões de dólares.
O estado da Califórnia situa-se sobre a junção de duas placas
tectônicas subterrâneas, denominada Falha de San Andreas.
Tais placas movimentam-se lentamente sob a superfície
terrestre há milhões de anos. Quando essas placas movem-se
uma de encontro à outra, os terremotos ocorrem ao longo da
Falha de San Andreas. Literalmente milhares de pequenos
abalos ocorrem na Califórnia todos os anos. No entanto, são
poucos os registros de terremotos realmente significativos
tais como os ocorridos em San Francisco em 1906 e 1989.
Conhecidos os dados concretos, passemos à ficção.
PARTE I – Tempos Antigos
A San Francisco do início do século XX despontava como uma
das cidades mais belas da América. As ruas limpas e
arborizadas próximas à baía vicejavam com seus belos
casarões, os reluzentes automóveis que as percorriam velozes,
as maravilhas da novíssima iluminação pública a eletricidade.
Um mundo próspero e bem organizado por onde circulava gente
rica e bonita, a elite de Frisco, como era carinhosamente
chamada a cidade por seus habitantes.
Esse era o mundo onde habitava William Mulder III. Nascido em
Boston, no seio de uma família tradicional e abastada, sua
mãe orgulhava-se de que seus antepassados haviam chegado à
América junto com os pioneiros no Mayflower. Aos trinta e
dois anos, Mulder, como ele preferia ser chamado, era um
daqueles homens a quem a idade acrescenta distinção sem
apagar os traços alegres da juventude. Formado em Eton, na
Inglaterra, "como os nobres", costumava dizer esnobe sua mãe,
administrava os negócios da família nas diversas cidades por
onde se espalhavam. Londres, Paris, Milão, Estocolmo, Nova
York, Berna, Madri já haviam sido sua morada temporária,
assim como o era agora San Francisco. Um homem do mundo, um
bon-vivant, refinado, sofisticado, hospedando-se sempre nos
melhores hotéis, freqüentando os melhores teatros e
restaurantes, disputado nas festas das famílias mais
influentes por onde quer que fosse. "Um belo rapaz",
suspiravam as mocinhas casadouras. "Um ótimo partido",
retrucavam suas mães.
Mas todo o luxo e glamour dessa resplandecente San Francisco
não se sustentavam sozinhos. Milhares de pessoas trabalhavam
nos bastidores desse mundo de sonhos para mantê-lo
funcionando. Eram imigrantes, em sua maioria, irlandeses,
chineses, italianos, gente humilde e trabalhadora que, com
seu suor, era responsável pela manutenção do brilho e do
deslumbramento da cidade. Gente pobre que morava em casas
simples em South-of-Market, uma parte pouco nobre da cidade
conquistada ao mar e aos pântanos por sucessivos aterros no
lado oposto às belas mansões brancas dos ricos. Gente humilde
que batalhava seus poucos dólares com esforço e vivia de
sacrifícios para manter a dignidade.
Esse era o mundo de Katherine Scully. Nascida ali mesmo, na
área pobre de Frisco, pertencia à terceira geração de uma
numerosa família de imigrantes irlandeses. Seu pai,
trabalhador do porto, carregara e descarregara navios durante
trinta anos para sustentar a família até sofrer um trágico
acidente que lhe ceifou a vida, havia cinco anos. A
Katherine, a filha mais velha, coubera, desde então, o
sustento da mãe e dos quatro irmãos menores. A diligente
mocinha, com dezenove anos na ocasião, não se intimidou
diante da responsabilidade e, de emprego em emprego, vinha
conseguindo cumprir esta difícil tarefa, embora com o
prejuízo de sua vida pessoal. Os vizinhos e conhecidos diziam
que a jovem ruiva assustava os pretendentes com a expressão
sisuda e fechada que tinha sempre estampada em seu belo
rosto. Não tinha namorados, nem amigas, era introvertida e
pouco se divertia, seu pensamento sempre voltado para o dever
de manter a família.
O Grand Hotel de San Francisco era um imponente construção de
linhas neoclássicas a poucos quarteirões da baía. Sua sólida
estrutura de quatro andares, toda em pedra e argamassa, era
considerada indestrutível. O contraponto à impressão pesada
causada pela estrutura eram as amplas janelas avarandadas que
a pontuavam, com suas balaustradas de ferro em arabescos tão
rebuscados que lembravam finas rendas pendendo da fachada.
O mais refinado hotel de Frisco, estrategicamente localizado
no coração da cidade, bem no meio de seu centro financeiro e
comercial e, ao mesmo tempo, próximo dos melhores
restaurantes e dos teatros mais badalados. Certamente o local
mais adequado, senão o único, para servir de residência
temporária a William Mulder, que ocupava um enorme e luxuoso
apartamento no último andar do hotel.
Um dos postos de trabalho mais disputados de San Francisco,
conhecido tanto pelos bons salários que costumava pagar a
seus funcionários, como pelas generosas gorjetas distribuídas
por seus abastados hóspedes. Certamente o melhor dos empregos
que Katherine Scully já tivera, a dois anos trabalhando como
camareira no hotel.
Os primeiros tímidos raios de sol infiltravam-se pela fina
gaze das cortinas, enchendo o quarto com sua luminosidade
suave e difusa. A manhã de 18 de Abril de 1906 despontava
como uma bela e agradável manhã de primavera. William Mulder
despertou sobressaltado, sentando-se de um pulo na cama não
desfeita. Tinha a boca seca, um desagradável aperto no
estômago, o coração descompassado. Um pesadelo, certamente,
embora ele não conseguisse lembrar-se ao certo qual.
Levantou-se em busca da jarra de água sobre o aparador de
mármore. Encheu o copo de cristal e sorveu todo seu conteúdo
de uma só vez, os olhos fechados na tentativa de recordar o
pesadelo. Não conseguia. Abriu os olhos e deparou-se com sua
própria imagem refletida no imenso espelho de moldura dourada
pendurado sobre o aparador. Tinha a aparência cansada, os
olhos cinzentos sombreados por olheiras que começavam a se
formar, os cabelos despenteados. Passou vagamente a mão sobre
o queixo onde a barba começava a despontar, procurou arranjar
os cabelos com os dedos. Tirou a gravata borboleta que pendia
descuidada da gola da camisa desabotoada sobre a lapela do
smoking negro.
Na noite anterior, havia assistido, juntamente com a boa
sociedade de Frisco, a uma impressionante encenação de Carmen
estrelada por ninguém menos do que Enrico Caruso, o mítico
tenor, no Mission Opera Theater. Depois da ópera, jantara em
casa de um banqueiro local tão interessado em financiar-lhe a
construção de uma nova fábrica na cidade, quanto em conseguir
nele um bom marido para a filha mais velha. Entediante.
Tentando salvar a noite, seguira para cear em um restaurante
da moda, na companhia de amigos boêmios e intelectuais que
afetavam seu desapego pelos bens materiais em infindáveis
discussões existencialistas, mas não esboçavam a mínima
reação no momento de pagar a conta, que sempre ficava a cargo
do rico Mulder.
Subitamente, achou-se cansado daquilo tudo, daquela
existência sem sentido, nem razão de ser. Estava na hora de
deixar San Francisco, concluiu.
Encheu novamente o copo de água e ia levá-lo aos lábios,
quando se deu conta do silêncio incomum que enchia o ar.
Cinco horas da manhã, marcava seu relógio de algibeira.
Estranho. Nem mesmo o canto dos pássaros ou o latir dos cães
na rua podiam ser ouvidos. Era como se o mundo houvesse
parado. Espiou a rua lá embaixo por uma janela, mas à exceção
de um chinês, puxando um carroção carregado de frutas e
verduras, que seguia, provavelmente, em direção ao mercado,
não havia mais ninguém lá fora. Era cedo ainda. Ainda
sentindo um desconfortável aperto nas entranhas, dirigiu-se à
porta do apartamento. Tinha uma sensação estranha, um
pressentimento, quando abriu a porta para espiar o corredor.
Kathy Scully trancava a porta do quarto que acabara de
arrumar. Havia conseguido um trabalho adicional no turno da
noite para obter dinheiro extra para a extensa lista de
medicamentos de que sua mãe necessitava para combater uma
pneumonia. Estava cansada. Apesar do trabalho noturno não ser
tão duro quanto o diurno, não estava acostumada a passar
noites em claro. Atribuía ao cansaço a desagradável sensação
de angústia que a invadia em meio ao silêncio opressivo que
reinava naquela manhã.
Angústia, cansaço, qual nada! Sabia que tinha de ser superior
a tudo aquilo se quisesse sobressair-se no trabalho. E era
para isso que trabalhava. Não fora à toa que conseguira, em
apenas dois anos, ser promovida de ajudante de lavanderia a
camareira chefe de andar. E tinha consciência de que, se
perseverasse em seus esforços, poderia galgar a governança em
mais alguns anos. Katherine não se considerava exatamente
ambiciosa. Mas tinha uma família para manter e faria tudo o
que estivesse ao seu alcance para proporcionar-lhes uma vida
melhor.
Scully, como era chamada no hotel para diferenciar-se das
oito outras Katherines que ali trabalhavam, assustou-se com o
ruído de uma porta sendo aberta. Virou-se bruscamente,
ficando frente a frente com William Mulder.
- Bom dia, sr. Mulder. – disse ela, tentando não deixar
transparecer o susto em sua voz. – E me desculpe se o
acordei... – acrescentou gentilmente diante do hóspede mais
notável do hotel.
Ele apenas sorriu da expressão assustada da moça e meneou a
cabeça, como se dissesse "não importa". Sempre com um leve
sorriso, examinou a bela camareira longamente. Os grandes
olhos azuis que se sobressaíam da tez alva, a boca pequena de
lábios carnudos e rosados, o queixo diligente, a mecha de
cabelos ruivos que insistia em escapar da touca branca que
cobria sua cabeça. O corpo miúdo, que ele adivinhava bem
feito, estava escondido sob o austero uniforme negro cujo
vestido deixava entrever apenas os tornozelos envoltos em
grossas meias, também negras. Os pés calçados em feios
sapatos abotinados pareciam pequeninos demais para sustentar-
lhe o corpo.
Ela deixou-se olhar pelo ilustre hóspede, ao mesmo tempo em
que o examinava, também. Sem dúvida um homem bem apessoado,
dono de um belo par de olhos estreitos e profundos, onde o
cinza se mesclava com a cor de avelãs. Um rosto anguloso com
malares salientes, onde o nariz, apesar de um tanto grande,
encaixava-se com perfeição. Seus ombros eram largos e os
braços fortes tinham as mãos enterradas nos bolsos do smoking
negro. Era alto, quase tão alto quanto o batente da porta,
com pernas longas, quase infinitas. Um conjunto deslumbrante,
muito diferente dos indefectíveis rapazes das vizinhanças de
South-of-Market que viviam se insinuando para ela.
Scully parecia apreciar o exame que ele lhe fazia e o
examinava também, Mulder percebeu, gostando da idéia.
Tratava-se de uma bela mulher, forte, saudável, muito
diferente das mocinhas lânguidas, louras e doentias que
normalmente encontrava na sociedade. Inconscientemente, ele
começou a despi-la em pensamentos, imaginando-lhe o colo
alvo, os seios firmes, as coxas macias...
A intensidade do olhar foi tamanha que a camareira corou,
embaraçada, e irritou-se com isso, terminando por desferir
uma sonora bofetada no rosto do hóspede. Imediatamente,
arrependeu-se.
- Me de-desculpe, senhor... – gaguejou sem jeito.
Ele levou a mão à bochecha, ainda sorrindo, com uma expressão
entre surpresa e divertida, quando um trovejar distante
encheu o silêncio. Era um ruído cavo e surdo que foi se
fazendo mais e mais intenso. A ele misturavam-se os estalos e
rangidos do madeirame empregado na construção, das portas e
caixilhos de janelas e das vigas de sustentação do teto
quando o solo tremeu pela primeira vez. E depois, os ruídos
dos objetos: os cristais que começavam a vibrar, o lustre do
corredor que balançava de um lado para o outro, como um
pêndulo. Tudo o que estava solto ou colocado sobre as mesas e
aparadores, copos, vasos, livros, relógios, tudo quicava
sobre as superfícies onde estava e acabava por espatifar-se
no chão com estardalhaço. Então, as paredes e o chão foram
fortemente sacudidos, rangendo e estalando. Quadros
despencavam de seus lugares, vidros que se quebravam, o
reboco se desprendia das paredes, engrossando o rugido até
torná-lo tão ensurdecedor que os sons que o compunham não
mais poderiam ser distinguidos.
Num reflexo, William Mulder agarrou a camareira Scully pelo
braço e a puxou com força para dentro do quarto, apenas um
instante antes do enorme lustre do corredor desabar no chão,
exatamente sobre o ponto onde ela havia estado. O tremor
intensificou-se desmesuradamente, violentas ondas de choque
inclinavam as paredes em ângulos inimagináveis, fazendo com
que o chão constantemente fugisse sob os pés de hóspede e
camareira e os obrigando a apoiar-se um no outro para se
manter de pé. O piso ondulava como a superfície encapelada do
mar fustigada pelo vento, até que desapareceu por completo
sob os pés assustados do casal.
"Às 5:13 da manhã de quarta-feira, 18
de abril de 1906, a cidade de San
Francisco, na Califórnia, foi
sacudida durante 48 segundos por um
terremoto cuja magnitude chegou a 7.8
pontos na escala Richter. Apenas para
efeito de comparação, os terremotos
que atingiram a Califórnia, em
outubro de 1989, e Kobe, no Japão, em
janeiro de 1995, alcançaram,
respectivamente, 7.0 e 6.9 pontos e
os tremores mais intensos de que se
tem notícia chegaram a 8.9 pontos. O
abalo pôde ser sentido desde Coos
Bay, no Oregon, até Los Angeles,
Califórnia. Centenas de casas e
edifícios ruíram, entre eles a
Prefeitura da cidade e o posto
central dos Correios. Milhares de
pessoas ficaram feridas ou
desabrigadas e centenas perderam a
vida."
Tão repentinamente quanto havia começado, o terremoto cessou
e um silêncio impressionante pairou sobre San Francisco. Tão
silencioso estava que Katherine Scully, deitada sobre os
escombros, em algum lugar que ela não saberia dizer qual era,
teve a impressão de poder ouvir caírem à sua volta os grãos
de poeira que tornavam o ar quase irrespirável. Estava
escuro, muito escuro e sufocante onde ela estava. Não sentia
dor, de modo que concluiu que não estava ferida. Apenas lhe
era difícil respirar o ar quase sólido de partículas que a
envolvia. Arfava, como se tivesse uma das crises asmáticas de
Tommy, seu irmão caçula.
Um aperto tomou seu peito quando pensou na família. Como
estariam a mãe e os irmãos após aquele violento terremoto?
Talvez estivessem feridos. Talvez, mesmo, estivessem
mortos... Um nó formou-se em sua garganta com a idéia. Ela
sentiu rolarem sem querer pela face lágrimas quentes de
desespero. Não podia suportar a idéia de ficar sozinha.
Sozinha... Um calafrio percorreu seu corpo, diante da idéia.
Tinha medo da solidão mais do que de qualquer outra coisa na
vida. Sacudiu a cabeça com força, para espantar a idéia que a
apavorava. Talvez estivessem bem, dizia com firmeza a si
mesma, tentando acalmar-se. Outros terremotos já haviam
ocorrido antes. A bem da verdade, desde outubro do ano
anterior, San Francisco vinha sendo sacudida regularmente por
tremores de intensidade variável e nada havia acontecido à
sua casa, até então. Era uma casa baixa, construída por seu
pai com as próprias mãos; simples, mas resistente. Sim! Era
bem possível que, naquele exato momento, seus irmãos
estivessem sentados ao redor da grande mesa de madeira, na
cozinha, falando todos ao mesmo tempo, na habitual algazarra,
enquanto a mãe, de pé, em frente ao fogão, preparava o café
da manhã. Sim. Era melhor pensar daquela forma e começar a
procurar depressa um modo de sair dali. Antes que eles
soubessem o que havia sucedido ao hotel e ficassem
preocupados com ela.
Decidida, começou a tatear ao redor de seu corpo para tentar
determinar sua localização e, principalmente, um modo como
sair dali. Acima de seu peito, havia uma superfície lisa e
inclinada que prosseguia ao longo de todo seu corpo,
elevando-se um pouco em direção à cabeça. Possivelmente, uma
parede tombada. Estendeu os braços para frente, acima da
cabeça, e verificou que havia espaço suficiente para sentar-
se. Estaria firme aquela parede? Para tirar a dúvida, deitada
como estava, esticou os braços para trás da cabeça e percebeu
que, às suas costas, a situação era a mesma, havia outra
parede que, provavelmente, servia de apoio àquela que se
inclinava sobre sua cabeça. Sim. Parecia seguro sentar-se.
Com alguma dificuldade, conseguiu seu intento. Lutou durante
alguns momentos para recobrar o fôlego, o ar denso de poeira
tornava o mínimo movimento em um esforço hercúleo.
Voltou a tatear ao redor, aleatoriamente. Os dedos de sua mão
esquerda esbarravam em pedaços de madeira e vidro, tapetes
felpudos e muitos destroços de pedras e argamassa das
paredes, teto e piso do edifício. Numa dessas explorações
táteis, seus dedos tocaram algo macio e frio. Pele humana. Os
dedos de uma mão. Fria, possivelmente, morta. A idéia causou
tanta repulsa a Katherine que ela recolheu sua mão ao regaço,
assustada. Oh, Deus! Dividia o pouco espaço de que dispunha
com um cadáver! Podia ouvir as batidas de seu próprio coração
martelando surdas em suas têmporas. Respirou fundo, sorvendo
montanhas de poeira, para se acalmar. No silêncio de seu
cárcere, podia ouvir o gotejar distante de algum encanamento
rompido. "Um cadáver!", pensava Kathy, assustada. Quisera ter
para onde fugir, a idéia de ter um cadáver tão perto lhe
causando náuseas. "É apenas um corpo sem vida.", tentava
acalmar a si mesma. "Os mortos não oferecem perigo. Os vivos,
sim...", insistia.
O gotejar constante da água era o único ruído que ouvia, além
de seus próprios batimentos cardíacos. Decidiu distrair-se,
contando os pingos. "Um, dois, três, quatro..." O estratagema
funcionou. Antes do qüinquagésimo pingo, já havia recuperado
a calma e resolvido continuar com a exploração das
vizinhanças.
Atrás e acima havia paredes sólidas, ela já o sabia. À sua
direita, podia sentir o toque de uma superfície lisa,
certamente, outra parede, que se estendia por todo o seu lado
direito, até onde ela conseguia alcançar. Não seria por ali
sua saída. Restava apenas explorar o lado esquerdo. "O
cadáver!" O pensamento a assaltou novamente e ela obrigou-se
a contar os pingos d'água outra vez. Com relutância, sua mão
recomeçou a tatear a escuridão de seu lado esquerdo. Evitava,
deliberadamente, as cercanias do ponto onde imaginava ter
tocado o cadáver. Ao menos daquele lado, parecia não haver
uma parede que restringisse sua passagem. Apenas destroços
cobriam o chão. E o cadáver... Inclinou ligeiramente o corpo,
tentando alcançar além do comprimento de seu braço estendido
no ar. Havia um vazio, até onde podia perceber.
Katherine Scully pôs-se de joelhos, decidida a engatinhar na
direção em que acreditava estar sua saída dali. Mesmo que
aquilo implicasse em passar por sobre o cadáver. No primeiro
movimento que fez, esbarrou novamente na mão fria. Julgou
ouvir um gemido muito baixo e seu coração disparou novamente.
"Pare com isso, Scully. Mortos não gemem. É apenas sua
imaginação.", ralhou consigo mesma. Amaldiçoando a escuridão,
tateou na direção onde achou que deveria estar o tronco do
morto. Sim, ali estava e havia espaço suficiente para passar
por sobre ele sem tocá-lo. Lentamente, esticou-se, apoiando
uma e depois a outra mão no chão, além do corpo. Ergueu um
dos joelhos para colocá-lo no vão entre o braço e o tronco do
cadáver e, então... Escorregou. Uma de suas mãos havia se
apoiado sobre algo roliço, um pé de mesa, talvez, e o objeto
deslizou, levando seu equilíbrio junto. Scully caiu com
estardalhaço, diretamente sobre a barriga do corpo estendido
abaixo dela.
- Ui! – soou uma voz masculina na escuridão.
Ao menos não se tratava de um cadáver, ela pensou aliviada.
- Me desculpe. – disse, erguendo-se e recuando até sua
posição inicial.
- Me desculpe, me desculpe. – gracejou a voz em falsete. –
Isso é tudo o que você sabe dizer, mocinha? – acrescentou o
homem, cuja voz ela instantaneamente reconheceu.
- Sr. Mulder? – ela grunhiu contrariada em resposta. – O
senhor está bem?
- Agora que você saiu de cima de mim, creio que sim. –
respondeu Mulder com ironia.
- Me desculpe, novamente... Não tive a intenção... – o tom
era seco, apesar da humildade das palavras.
- Não se preocupe. Eu estava apenas brincando. – ele
respondeu gentilmente, já arrependido do gracejo. – E, por
favor, chega de pedir desculpas, ok?
A camareira não respondeu, mas ele quase pôde vê-la,
assentindo com a cabeça.
- E já que você perguntou... Não... Acho que não estou
ferido, embora a cabeça me doa um pouco... – sua voz soava
vaga, como se estivesse falando consigo mesmo. - Mas há algo
sobre meu ombro que não me deixa mover... Acho que é um
móvel... um criado mudo, talvez. Você poderia me ajudar, por
favor, mocinha?
- Scully. Katherine Scully é meu nome. – informou ela com voz
cortante, enquanto tateava pelo tronco do homem à procura do
que o prendia.
- William Mulder. – respondeu, divertido com a irritação de
Scully. – Mas acho que você já sabe...
O toque macio da seda do smoking de Will Mulder era como uma
carícia para os dedos esfolados de Kathy e, a despeito das
condições, ela não podia se negar o prazer de desfrutar do
toque do tecido caro. Seguindo seu caminho de tentativas e
erros, seus dedos alcançaram o queixo do homem onde a barba
que despontava causou-lhe um frisson de deleite e susto,
fazendo-a recuar. Finalmente, suas mãos encontraram o
obstáculo que impedia o homem de erguer-se. Parecia,
realmente, um criado-mudo, ele tinha razão, caído sobre seu
ombro direito. Tentou empurrá-lo, mas o móvel não se movia.
- Não dá para empurrar. Vou tentar erguê-lo. Em três, ok?
Um... dois... três... – contou, erguendo sem dificuldade o
móvel, mais leve do que ela poderia supor.
Ouviu o entulho se movimentando e pôde sentir o deslocamento
de ar, quando Mulder se pôs sentado ao seu lado, recolocando
em suspensão no ar os montes de poeira.
- Muito obrigado, mocinha. – ele agradeceu com sinceridade,
sua respiração ruidosa do esforço.
- Apenas retribuí seu gesto, lá no corredor. – respondeu
seca.
Aquele homem a incomodava. Era cínico, debochado. "Mocinha,
mocinha..." Mesmo quando tentava ser gentil, havia algo em
sua voz, no modo como ele falava que... Era um janota, um
dândi, isso sim. Esnobe, pretensioso, tentando esconder-se
sob a aparência de um cavalheiro. Mais um entre os tantos
rapazes ricos e mimados que vez por outra apareciam no hotel.
Ele a irritava. Definitivamente.
Enquanto tentava retomar o compasso de sua respiração, Will
repassava, divertido, os diálogos que tivera com a camareira.
Acostumado às mocinhas tolas da sociedade, que emudeciam
aparvalhadas quando confrontadas com seu sarcasmo,
surpreendera-se com a reação daquela ruivinha. Ousada,
respondera a altura às suas ironias. Com a educação e a
finesse de uma dama. Sim! Ele gostava daquela arrogante
camareira Scully.
No silêncio que se instalara entre os dois, podiam agora
ouvir distantes as sinetas dos carros de bombeiros e alguns
gritos abafados. E havia sempre aquele gotejar contínuo em
algum ponto próximo de onde estavam. E a escuridão. Tão densa
que não lhes permitia ao menos divisar os vultos um do outro.
- É preciso achar... – começou ela.
- Precisamos encontrar... – começou ele, simultaneamente.
- ...um modo de sair daqui. – terminaram em uníssono.
Sorriram, cada um para si mesmo, do sincronismo de seus
pensamentos. Ao menos concordavam em alguma coisa.
- Minha vez de pedir desculpas... – falou Mulder. – Mas
quando você caiu por cima de mim, estava... – o tom de sua
voz era isento de qualquer sarcasmo, apenas a incitava a
continuar a sentença.
- Estava tentando passar para o seu lado esquerdo, – replicou
ela, - que parece ser o único onde não há um muro sólido
impedindo a passagem.
Will estendeu seu braço esquerdo vagarosamente e constatou
que ela estava certa. Até onde seu braço alcançava, para o
lado e na diagonal, para cima, aquela parede do covil parecia
composta por entulho. Um amontoado de fragmentos de pedra e
pedaços de móveis e sabe-se lá mais o quê, tinha um bom
potencial como ponto de escape daquele lugar.
- Parece que você está certa. – sua voz misturou-se, na
escuridão, ao ruído do entulho sendo remexido. – Sim... Este
lado não é sólido, posso tentar cavá-lo.
- Podemos! – ele ouviu dizer, aproximando-se, a voz de Kathy.
Um instante depois, Will pôde distinguir o roçar do vestido
da ruiva contra a seda de sua própria roupa. E, logo a
seguir, o barulho produzido pelas mãos dela, cavucando o
entulho.
- Espere! – fez ele, estendendo a mão às cegas até esbarrar
no ombro da mulher, roçando seu seio no caminho.
Ela ficou rígida sob seu toque. Se houvesse um mínimo de
claridade, ele estava certo que teria sido vítima de outro
tapa. Não fora intencional o que fizera. Mas, por alguma
razão que não saberia explicar, não pediu desculpas. Apenas
continuou a falar como se nada houvesse acontecido.
- É melhor concentrarmos nossos esforços num mesmo ponto,
mais perto do alto deste monte. – disse, guiando as mãos
delas com as suas para um ponto determinado no monte de
entulho. – Desse modo, nosso trabalho renderá mais.
Scully não pronunciou uma única palavra, apenas retirou as
mãos das dele um tanto bruscamente e recomeçou a escavar no
ponto indicado. Por dentro, fervia de indignação. Abusado
aquele senhor Mulder. Tocá-la daquele jeito! É certo que,
dada a escuridão, o toque poderia ter sido absolutamente
acidental. Mas ele nem ao menos pedira desculpas...
Descarado, abusado. Só porque ela era uma humilde camareira,
isso não lhe dava direitos sobre ela...
Ajoelhado ao seu lado, Will Mulder também remexia o entulho,
distraído. Aquele toque fortuito no seio da ruivinha...
Parecia ainda sentir a maciez de sua carne nas pedras ásperas
onde cavava. Havia corado, no momento do toque, tinha
certeza. Pudera sentir o sangue fluindo com força para sua
cabeça, as orelhas queimando, as bochechas formigando. Sorte
aquela escuridão toda encobrir sua maldita timidez! Sim,
porque não passava de um meninão tímido, por debaixo do fino
verniz de refinamento, das afetações de homem do mundo... Um
garoto bobo que ruborizava ao tocar o seio de uma bela
mulher...
Vários pequenos tremores, sem maiores conseqüências que não
levantar um bocado de poeira, ainda sacudiam o solo de tempos
em tempos. Homem e mulher realmente não lhes tomavam
conhecimento, entretidos que estavam em seus pensamentos.
Assim como pareciam não se importar com o calor que começava
a fazer ali dentro, nem com o ar viciado que respiravam.
Grossas bagas de suor escorriam por seus rostos e pescoços,
umedecendo-lhes as roupas. O ar pesado e quente ia tornando-
lhes a respiração cada vez mais penosa, turvando-lhes a
visão. Mas ambos pareciam completamente alheios ao
desconforto. A raiva surda não permitia que Kathy sentisse os
males que a aspereza do entulho ia infligindo às suas mãos.
Cavava para sair dali, cavava para afastar-se daquele homem o
mais rápido possível. Cavava, alheia a tudo o que não fosse o
simples ato de cavar.
Pedra após pedra, pedaço após pedaço iam sendo retirados do
lugar sem que isso revelasse o mínimo resultado prático. Nem
um sopro de ar fresco, nem uma ínfima réstia de luz. Mulder
começava a imaginar se estavam, de fato, escavando na direção
correta. Mas como sabê-lo? Não havia como. Por isso,
persistia cavando. Por isso, e pelos fortuitos toques de mãos
que ocasionalmente ocorriam com a irritada ruiva. No processo
de escavar o entulho na completa escuridão, por vezes, suas
mãos se esbarravam, por vezes, seus dedos se entrelaçavam,
enchendo Will de um estranho contentamento que o animava a
continuar cavucando, mesmo sem resultados.
E, uma vez mais, aconteceu. Os dedos de Will esbarraram
acidentalmente nos de Kathy. Mas não foi, em absoluto, por
acidente que eles se entrelaçaram na seqüência. Tampouco foi
por acidente que os dedos dele aprisionaram gentil, mas
firmemente, os da ruiva entre os seus. Por alguns longos
segundos, ela não esboçou reação, como que paralisada sob o
toque.
Kathy remexia, absorta, o entulho, quando um bocado de poeira
das escavações caiu sobre sua cabeça. A pobre estremeceu,
recordando-se subitamente de sua casa, de sua família.
Procurou ser objetiva e controlar-se, mas parecia ver diante
de seus olhos as velhas paredes ruindo. Os gritos
aterrorizados de seus irmãos e o silêncio sepulcral de sua
mãe ecoavam sinistros em seus ouvidos... E temeu intensamente
a solidão. Não pôde evitar as lágrimas que rolaram quentes
por suas faces cobertas de poeira, deixando trilhas
lamacentas por onde passavam. E, então, um alento... Sentiu o
toque em suas mãos, seus dedos aprisionados tão
carinhosamente por outros, afugentando a escuridão que
ameaçava tomar sua alma. E, por um instante, teve certeza de
que não estava sozinha. Uma louca sensação lhe dizia que
nunca estaria. E deixou-se ficar daquela forma, paralisada,
quase contente, até quando, enfim, despertou de seus
devaneios para a situação real e percebeu de quem partia
aquela gentil carícia.
- Droga! – Kathy exclamou irritada, enquanto tentava arrancar
com violência os dedos de sua prisão.
Mas sua irritação foi abafada por um violento tremor que a
fez desequilibrar-se e cair sobre William Mulder, o
derrubando ao solo. O monte aparentemente compacto de
escombros, que haviam tão obstinadamente escavado durante as
últimas horas, desabou sobre eles, um momento depois que o
homem rolou sobre seu lado e cobriu o corpo de Scully com o
seu, protegendo-a dos destroços que caíam com força sobre os
dois.
"Vários tremores secundários
continuaram abatendo-se sobre a
cidade de San Francisco nas horas que
se seguiram. A maior parte deles,
apenas movimentos leves de acomodação
do solo sem maiores conseqüências. Às
8:14 da manhã, entretanto, um
violento abalo sacudiu a cidade,
fazendo ruir grande parte das
construções já afetadas pelo choque
principal e espalhando pânico entre a
população."
O mundo chegava na forma de ecos distantes aos ouvidos de
Katherine Scully. Cães gemendo e uivando, sinos tocando ao
longe e vozes abafadas misturavam-se ao zunido alto em seus
ouvidos, em uma confusa cacofonia. A cabeça lhe doía leve,
mas incomodamente. Seus braços, presos, não a deixavam mover-
se. E havia aquela pressão em seu peito, tão grande que mal a
deixava respirar. Entreabriu os olhos, aturdida, e a branca
claridade a ofuscou, a obrigando a cerrá-los outra vez.
Talvez tivesse morrido, imaginou. Mas, nesse caso, haveria
cães no paraíso ou no inferno, ela os podia ouvir latindo.
Não... Não acreditava que houvesse cães por lá. Logo, devia
estar viva! Então, devia esforçar-se para entender o que se
passava. As coisas voltavam à sua mente aos poucos e
desordenadas. A escura prisão entre escombros... O
terremoto... Escavar o entulho em busca de uma saída...
William Mulder... Sim. Agora recordava-se do violento abalo
secundário e das paredes e pedras desabando sobre sua cabeça.
Respirou fundo, sufocada. "Ar fresco!", alegrou-se quando uma
lufada de ar frio encheu seus pulmões.
Forçou-se a abrir os olhos, a despeito da claridade que a
cegava. Demorou a acostumar-se com a luz, após quase três
horas de absoluta escuridão. Porém, quando o fez, pôde
perceber a nesga de céu azul visível por uma brecha nos
escombros, bem acima de sua cabeça, pela qual penetrava,
também, o raio de sol que teimava em ofuscá-la. Era um belo
dia de primavera, lá fora, ela não pôde deixar de pensar, ao
ver um bando de pássaros cortando, em revoada, a fresta azul
celeste. Pássaros negros. "Gralhas!", disse a si mesma,
quando o grasnar soturno feriu-lhe os ouvidos. "Mau
agouro..." diria vovó Scully em seu obscuro mundo de
superstições irlandesas.
Um calafrio percorreu o corpo de Katherine ao associar os
pressagos pássaros à imagem de sua casa em ruínas, silenciosa
como um túmulo, como se todos nela estivessem mortos...
Mordeu os lábios com tal força para conter o pranto que o
gosto acre de sangue se fez presente em sua boca. Logo agora,
que estava tão próxima de escapar daquele cárcere, agora que
podia ver o céu, justo naquele momento, não se podia deixar
esmorecer. Não devia, não tinha o direito de deixar morrerem
as esperanças. "Mau agouro é bobagem, vovó.", insistiu para
si mesma, bravamente varrendo os pensamentos sombrios para
algum canto escuro de sua cabeça. "Controle-se e lute,
Katherine Scully!" ordenou, obrigando-se a engolir as
lágrimas. Um gemido abafado a arrancou do transe e a fez
voltar a cabeça dolorida para o lado. Compreendeu, de súbito,
a razão da pressão em seu peito.
Will Mulder jazia desacordado sobre ela. Usara seu próprio
corpo como escudo para protegê-la. Mas os escombros haviam
sido inclementes com ele. Sua cabeça, apoiada no solo e
voltada para Scully, exibia um grosso filete de sangue que
lhe descia pela testa. Seu corpo imóvel e o de Kathy, por
extensão, estavam parcialmente soterrados por uma pilha de
fragmentos de paredes que cobriam parte de suas costas e suas
pernas. Ao menos, estava vivo. Ela podia sentir-lhe o hálito
quente na orelha.
- Sr. Mulder! – chamou em voz baixa, quase um sussurro.
Nada. Nenhuma reação foi esboçada pelo homem desacordado.
Talvez o ferimento em sua cabeça fosse mais grave do que
parecia, ela imaginou, começando a preocupar-se. Ele era
pesado demais para que ela conseguisse movê-lo. Poderia
estar, então, condenada a ficar ali para sempre...
- Sr. Mulder! – repetiu, um pouco mais alto, desta vez.
Outro gemido foi a resposta. E mais outro, à medida em que
ele abria os olhos vagarosamente. Will Mulder estava, também,
confuso. De um rosto de mulher, muito próximo ao seu, um par
de enormes olhos azuis o fitava de esguelha. Não conseguia
atinar a quem pertenceriam. Seu corpo todo doía. Ele inspirou
com força, necessitando do ar. Sentiu doerem-lhe ainda mais
as costas ao fazê-lo. Quando exalou o ar, um mecha de cabelos
ruivos deslocou-se, agitando-se sutilmente no ar diante de
seus olhos. "Ah, a ruivinha Scully...", lembrou-se.
- Sr. Mulder! – ela chamou uma vez mais, ao ver os olhos
cinzentos se abrirem. – Como se sente? Pode mover-se?
Ruidosamente, o monte de escombros mudou de posição quando
Mulder, apoiando os cotovelos um de cada lado da cabeça de
Kathy, ergueu o tronco, posicionando-se sobre a mulher. Tão
próximo estava o rosto de Will do da moça que tudo o que ele
conseguia enxergar eram os olhos azuis... Furiosos... Ele não
se pôde furtar um sorriso, quando ela bufou, incomodada. Ele
demorava-se mais do que o necessário naquela posição, apenas
para vê-la naquele estado. Enfim, ergueu mais um pouco o
tronco, apenas o suficiente para ter uma clara visão do rosto
feminino. Lindo, ainda que coberto de poeira. Trilhas de lama
em suas bochechas revelavam que ela estivera chorando, o
enchendo de um desejo pungente de poder acalentá-la nos
braços. Seus olhos detiveram-se nos lábios rosados que ele
sentiu-se tentado a beijar. Por um breve instante, pareceu
sentir-lhes o sabor doce, a textura macia. Mas percebeu que
ela mordiscava o lábio inferior irritada. "Melhor ter
cuidado...", concluiu. Ao pôr-se, finalmente, de quatro, o
fez de forma tão brusca que bateu com força a cabeça contra o
muro sólido que servia agora de teto ao covil.
- Ui! - exclamou, abaixando-se ligeiramente.
Desta vez, foi Kathy quem não pôde furtar-se um sorriso.
"Fica ainda mais bela quando sorri...", Will pensou em meio à
dor, enquanto se agachava encolhido ao lado dela. Foi somente
então que ele se deu conta de que a escuridão em que estavam
mergulhados anteriormente dera lugar à claridade e percebeu a
fresta por onde a luz do dia invadia o covil. Ele ainda
contemplava, entre perplexo e maravilhado, a nesga azul de
céu, quando Scully, sentada, começou a procurar um meio de
ampliá-la.
- Vai ficar o dia todo, aí, olhando, ou vai me ajudar? –
perguntou sarcástica, os lábios torcidos num meio sorriso,
tentando empurrar, já de joelhos, a parede sólida onde Mulder
havia batido com a cabeça.
Ele sorriu do jeito sempre surpreendente dela e adiantou-se
para ajudá-la. A cada minuto que passava, achava a ruivinha
mais e mais interessante, aumentava seu desejo de conhecê-la
melhor. Porém, enquanto esforçava-se para aumentar a abertura
na parede, Will ia, aos poucos, tomando ciência de que sair
dali implicava em que a vida retornaria ao seu curso normal,
que cada um seguiria seu caminho e que, talvez, nunca mais
ele viesse a encontrar a bela camareira novamente. Que, fora
daquele claustro, voltariam a ser o rico hóspede e a humilde
camareira, distanciados por um abismo quase que
intransponível, na sociedade mesquinha em que viviam.
Fantasiou-se em sua casa, em Boston, comunicando a seus pais,
por exemplo, seu iminente casamento com a pequena Scully. A
expressão de desaprovação da mãe dançou-lhe, por um momento,
diante dos olhos. Certamente, ela, com seu esnobismo, seria
uma daquelas pessoas que nunca aceitariam uma possível
ligação entre ele e alguém de classe inferior. E assim o
fariam muitos outros em seu círculo de relações. Porém, o
preconceito social não era um fenômeno unilateral,
proveniente das classes abastadas, ele sabia. Ainda tinha
viva a lembrança da última vez em que estivera em uma das
fábricas de sua família, em Detroit, e resolvera unir-se aos
operários, no refeitório, para o almoço. Mesmo que eles não
soubessem quem era ele e não o pudessem identificar como "o
filho do patrão", no mesmo instante em que se sentou na
comprida mesa, ao lado dos rapazes, a acalorada discussão que
levavam converteu-se em um silêncio incômodo e, por mais que
Mulder tentasse entabular alguma conversa com eles, tudo o
que obtinha em resposta eram desconfortáveis monossílabos.
Embora a ruivinha não lhe parecesse, a princípio, intimidada
por essa diferença social, Will não podia ter certeza de que
sua reação não se devesse à pressão e ao estresse impostos
pela situação em que se encontravam. Nem que, na volta ao
"mundo real", sua adorável petulância não murcharia por
completo. Tamanha incerteza o fazia desejar não sair daquele
confinamento. Isso e mais a quase certeza de que, fora dali,
ele a perderia para sempre. Para sempre. Para nunca mais. E o
pensamento o devastou. De repente, foi como se seus braços
perdessem as forças. Não queria mais sair dali. Não queria
perdê-la... Constatou que a amava... Estava amando! Era
inacreditável, dadas as circunstâncias, mas, sim, a amava.
Acreditava ter encontrado a mulher de sua vida e simplesmente
não a podia deixar escapar. Embora ela não o soubesse... Ao
mesmo tempo, no entanto, sabia que não poderiam ficar ali
enclausurados para sempre.
Com os braços suspensos no ar, observou longamente o
semblante da ruiva, procurando decidir o que fazer.
Ela, atarefada, parecia não percebê-lo, os olhos espertos,
velozes, investigando, explorando os escombros, varrendo cada
canto, cada fenda, de um lado para o outro, sem descanso,
até, enfim, cruzarem com o olhar de Will. E ali permanecerem,
como que aprisionados. E o que Katherine viu nos olhos
cinzentos naquele momento foi algo muito diferente do que
vira horas antes, quando ainda havia o corredor do hotel.
Quando o mundo ainda se dividia em ricos e pobres, hóspede e
camareira. O que ela viu naquele olhar foi solidão, uma
súplica por carinho, uma imensa tristeza, um pedido comovido
de desculpas, um menino carente de atenção... Um caldeirão de
sentimentos confundia-se em olhos profundos onde o cinza se
mesclava com a cor de avelãs.
A irritação e a raiva que agitavam o azul do olhar da mulher
cederam lugar à serenidade e à aceitação, fornecendo coragem
suficiente a Will para tomar-lhe o rosto entre as mãos e
pousar os lábios sobre os dela, num beijo terno e breve.
Voltou a fitá-la, apreensivo, sem soltar seu rosto, em busca
de algum sinal de desaprovação. Mas não havia sinal algum e
ele reaproximou-se, pressionando com os seus os lábios de
Kathy, dessa feita com ardor. Sua língua insinuou-se,
traçando os contornos da boca da mulher, que estremeceu,
entreabrindo os lábios para recebê-lo.
- Fogo! – gritaram vozes do lado de fora.
Imediatamente, o cheiro amargo de queimado tomou o ar,
separando o casal. Instantes depois, a fumaça começava a
invadir o parco espaço a que estavam confinados por cada
fresta entre aos escombros, os obrigando a lutar com rapidez
para aumentar a fenda na parte superior do covil. A fumaça
escura dominava todo o espaço, os fazendo tossir. O crepitar
das chamas em algum lugar próximo já era audível, quando, num
esforço final, Will e Kathy conseguiram deslocar um pedaço de
parede, ampliando a fresta o suficiente para que pudessem
esgueirar-se para fora.
A imponente construção que um dia fora o Grand Hotel não
passava agora de uma pilha alta de escombros, do topo da qual
Katherine Scully e William Mulder procuravam descer. Em um
ponto das ruínas, próximo aonde haviam emergido, erguia-se
uma grossa coluna de fumaça negra. De qualquer maneira,
correndo, pulando, tropeçando, escorregando, caindo, rolando,
ambos conseguiram, enfim, atingir o chão. Deixaram-se ficar,
deitados lado a lado, no meio da rua, sem fôlego, os olhos
fitos no céu azul, alheios às pessoas que circulavam ao
redor, tontos do susto e do esforço. O som cavo dos cascos
dos cavalos nos paralelepípedos e o tilintar das sinetas
anunciando a chegada dos bombeiros os obrigaram a erguer-se
do chão e sair do caminho, retirando-se para a calçada. Mas
onde deveria estar a calçada, havia um monte de tijolos que
até o dia anterior faziam parte da imponente fachada do banco
que se localizava defronte ao hotel. Por todo o lado para o
qual se olhasse, havia pilhas de tijolos e concreto e cacos
de vidro e destruição. Scully olhava em volta aturdida,
assustada. Os olhos esgazeados vagavam pelos escombros,
nervosos. Mulder, parado ao seu lado, a observava sem saber
ao certo o que fazer.
- Tenho que ir! – ela disse simplesmente, virando-se e
seguindo em direção a South-of-Market, sua vizinhança.
Não lhe disse adeus, não lhe dirigiu um único olhar. Apenas
saiu andando, deixando para trás um desconcertado Will, pasmo
a observá-la desaparecer numa esquina. Num impulso, ele a
seguiu, primeiro correndo em seu encalço, depois caminhando
silencioso ao seu lado, sem ousar quebrar seu silêncio com
perguntas ou comentários que pudessem soar tolos. Caminhar ao
lado dela já lhe bastava.
Os olhos curiosos de William distraíam-se em observar as
pessoas que lotavam as ruas. Havia mulheres e crianças em
camisolas e senhores distintos andando de pijamas pela via
pública como se estivessem na intimidade de suas alcovas.
Outros ainda envergavam os fraques elegantes com os quais
haviam provavelmente ido à ópera, na noite anterior, tendo ao
lado suas esposas em longos vestidos de noite, suas jóias
faiscando ao sol da manhã, os cabelos fugindo ao rigor dos
penteados e caindo desordenados sobre os olhos. E havia a
velha senhora que carregava uma grande gaiola dourada na qual
havia quatro lindos gatinhos, enquanto o ocupante de direito,
um papagaio, encarapitava-se no ombro da dona. E o homem
calvo com grandes bigodes de pontas retorcidas que levava nos
braços, como se fosse um bebê, um vaso de violetas para o
qual murmurava palavras de conforto. Não havia histeria ou
pânico por onde passavam. Só uma aceitação muda e tácita da
tragédia como um fato coletivo, um desígnio divino contra o
qual não se podia lutar.
De tempos em tempos, Mulder examinava o rosto de Katherine em
busca de algum sinal que revelasse o que ela poderia estar
pensando. Mas seu rosto era uma máscara de pedra,
indecifrável, na qual a única emoção visível era a
determinação. Ela andava e andava como se aquela fosse a
única coisa a ser feita no mundo. Embora, inicialmente,
Scully parecesse não perceber que ele a acompanhava, foi
graças a seu braço estendido, barrando o caminho do distraído
companheiro, que ele salvou-se de ser atropelado por um
automóvel em disparada, quando atravessavam uma rua. Ela não
compreendia porque ele a seguia. Mas o fato dele a acompanhar
não a incomodava em nada. Estranhamente, proporcionava-lhe
mesmo uma sensação de segurança que ajudava a amenizar os
maus pressentimentos que tinha em relação ao estado como
encontraria sua casa.
No caminho até lá, seguiam passando por diversas ruas onde o
tremor não havia causado mais danos que uns poucos vidros
quebrados ou rachaduras no reboco das paredes. Em outras, os
postes que sustentavam os fios elétricos inclinavam-se nos
ângulos mais absurdos ao longo de toda a extensão das
calçadas. À medida em que iam penetrando na área mais pobre
de San Francisco, porém, os sinais da destruição causada pelo
terremoto iam se tornando mais e mais evidentes. Ruas
inteiras não passavam de pilhas de escombros. Na rua
Valencia, um andar inteiro dos três que compunham o Valencia
Street Hotel havia afundado no solo, como se a terra o
houvesse engolido. Dezenas de cidadãos remexiam os escombros
na tentativa de resgatar as cerca de duzentas pessoas
soterradas com o desabamento. Por todo lado, grossas espirais
de fumaça emergiam das ruínas. As chamas consumiam a cidade.
"Centenas, talvez milhares de pessoas
perderam suas vidas quando as casas
de South-of-Market ruíram no solo
liqüefeito sob elas. Muitas dessas
construções incendiaram-se
imediatamente e seus habitantes
aprisionados não puderam ser
resgatados. No Valencia Street Hotel,
diversas pessoas afogaram-se devido
ao rompimento de uma tubulação de
água quando o hotel afundou no solo."
Quanto mais penetravam naquele caos de destruição e morte,
mais visivelmente perturbada ia ficando Katherine. Suas mãos
revolviam inquietas os bolsos do avental outrora branco de
seu uniforme. A respiração era curta e ofegante, enquanto
mordiscava nervosamente o lábio inferior. Andava cada vez
mais rápido, com passos impressionantemente longos para suas
pernas curtas. Mulder era obrigado a apressar o passo para
acompanhá-la.
Após dobrarem uma esquina, Kathy subitamente estacou, a
respiração suspensa, os olhos abertos como se quisessem
saltar das órbitas. Não havia uma única parede de pé naquela
rua. O solo, liqüefeito pelo tremor, engolira até mesmo os
escombros. Ela ainda avançou alguns metros antes de parar
novamente diante de uma dessas ruínas, semi-enterradas no
chão. Ela olhava transtornada, a pilha lamacenta de pedras e
entulho. A boca entreaberta dirigiu uma pergunta muda a um
homem idoso de aparência rude que a tudo observava a alguma
distância. O homem apenas encolheu os ombros e baixou os
olhos sombrios, enquanto a cabeça acenava uma sutil negativa.
Scully permaneceu imóvel, com os olhos secos, contemplando os
escombros. Os braços pendiam ao longo do corpo e as mãos
apertavam freneticamente as dobras das saias. Não emitia um
único som, apesar de seus lábios moverem-se numa ladainha
incessante.
Aquilo não estava acontecendo... Não podia estar... Sua mãe,
Tommy, Betty, Nell, Eric... mortos... todos mortos... Não
estava acontecendo! Mortos. Recusava-se a acreditar. Por que
fora poupada, oh, Deus? Por quê? Para ficar sozinha?
Apodrecer na solidão? Não era justo. Não podia estar
acontecendo... Seus olhos incrédulos não podiam aceitar que,
sob aquele monte de pedras, jaziam sem vida todos os seus
entes queridos, todos os que lhe haviam restado. Quis correr
até os escombros, escavá-los com as próprias mãos até
encontrar sua família ou abrir neles um buraco tão grande que
pudesse enterrar-se com ela. Mas não tinha forças. Um cansaço
tão grande abatia-se sobre ela que não seria capaz de mover-
se um centímetro de onde estava. E deixava-se ficar ali,
sentindo-se tão impotente quanto jamais sentira-se antes. Tão
vazia que nem mesmo lágrimas parecia ter para derramar.
Como um raio, a compreensão do que acontecera naquele local
atingiu William Mulder. Ali, sob o monte de escombros jaziam
a casa, a família, a vida de Scully. Ele pôde sentir sua
tristeza e compadeceu-se dela. Desejava ardentemente poder
reverter a situação que a afligia, mas sabia ser impossível
ressuscitar os mortos. Ao mesmo tempo, no entanto, não
suportava vê-la desamparada, sofrendo como sofria, em
silêncio, engolindo as lágrimas. E tudo o que lhe ocorreu, na
ocasião, foi tentar amenizar-lhe o sofrimento como pudesse.
Assim, acercou-se respeitosamente da mulher e pousou a mão em
seu ombro, o pressionando suavemente. Ela estremeceu e
voltou-se lentamente para ele, erguendo a cabeça para fitá-
lo. Tinha os olhos rasos d'água, das lágrimas que continha a
tanto custo. Will a envolveu em um abraço. E, com a cabeça
enterrada em seu peito, ela finalmente deu vazão ao pranto
que tentara evitar.
E chorou e soluçou como nunca em sua vida. Chorou a dor
imensa que sentia, o aperto que estrangulava seu peito, seu
coração. Soluçou toda a amargura e o ressentimento que trazia
contra a Natureza, contra o mundo, contra Deus por terem
feito aquilo com ela, por terem-na deixado só. E chorou até
que o pranto lavasse sua alma e levasse em sua torrente toda
dor e todo o ressentimento que ela carregava dentro de si. E
chorou até que suas lágrimas secaram e ela sentiu-se,
novamente, vazia, oca, sozinha, morta.
Não poderia precisar por quanto tempo deixou-se ficar
desamparada, em prantos, envolta naquele abraço. Nos braços
de um estranho que a apertava junto ao peito e acariciava
seus cabelos sem nada dizer. Mas lentamente o calor do abraço
do estranho, a gentileza de suas carícias a foram preenchendo
outra vez, a trazendo de volta ao mundo dos vivos. E
Katherine compreendeu que, em honra da memória dos que haviam
partido, deveria continuar vivendo. E lutando.
Gentilmente, desvencilhou-se dos braços que a envolviam e
afastou-se um pequeno passo para trás, apenas o suficiente
para poder encarar o rosto daquele que a trouxera de volta à
vida. Com os olhos baixos, inspirou profundamente. A seguir,
tomou-lhe as mãos nas suas e as levou aos lábios, pousando um
singelo beijo em cada um dos nós esfolados de seus dedos.
Depois, fitou os olhos cinzentos tão intensamente que a
Mulder pareceu que ela lhe alcançava a alma, que lhe
descobria todos os segredos.
- Obrigada. – sussurrou Katherine, de modo quase inaudível.
Um sorriso triste estampou-se em seu semblante quando William
repetiu-lhe o gesto, beijando suas mãos feridas.
- Obrigado. – ele murmurou em resposta.
Nada mais restava a ser feito ali. Por mais que desejasse, o
olhar de Scully não seria capaz de fazer ressurgir das pedras
frias seus entes queridos. As quadras próximas já ardiam
consumidas pelo fogo voraz que começava a devorar a cidade.
As chamas aproximavam-se rapidamente de onde estavam e, em
breve, o local todo estaria semelhante a uma filial do
inferno. Em silêncio, William pousou o braço ao redor dos
ombros de Katherine que se deixou conduzir para longe dali.
"O fogo começou simultaneamente, por
toda a cidade, quando as donas de
casa começaram a preparar o café da
manhã para suas famílias, sem se dar
conta da ameaça que representavam as
chaminés em ruínas. Por toda parte,
nuvens de fumaça e chamas começaram a
se espalhar. O trabalho dos bombeiros
foi grandemente prejudicado pelo
rompimento das tubulações de água."
Por onde quer que passassem, na parte baixa da cidade, o
cenário era o mesmo. Ruínas e escombros, postes inclinados
nas calçadas onduladas de onde jorravam jatos de água
provenientes das tubulações rompidas. E havia o fogo, o
grande incêndio que já se alastrava por toda Frisco.
Bombeiros e cidadãos comuns uniam-se na tentativa de combater
as chamas que ameaçavam devastar a cidade. Mas seus esforços
pareciam inúteis. Mal logravam extinguir as labaredas em um
local, o fogo ressurgia devastador num ponto logo adiante.
Comentava-se que, entre as vítimas da catástrofe, estava o
Comandante do Corpo de Bombeiros, o que explicava a aparente
desordem no combate às chamas. Outro comentário corrente
informava que o exército, na figura do General Funston, era o
poder vigente na cidade agora em regime de lei marcial.
Milicianos postavam-se em cada esquina com o objetivo de
impedir saques às casas abandonadas, às pressas, por seus
moradores, com permissão de "atirar para matar" naqueles que
ousassem desobedecer às ordens.
Um alarido de vozes enchia o ar quando Kathy e Will
aproximaram-se da Shreve & Co., uma joalheria parcialmente
devastada pelo sismo. Da pequena multidão agrupada em frente
à loja, subitamente, destacou-se um homem que passou em
disparada por Mulder e Scully, os derrubando ao chão. O
estampido de um tiro fez calar as vozes do grupo, enquanto o
fugitivo desabava pesadamente no meio da rua, mortalmente
ferido. O miliciano que o alvejara dispersou a multidão aos
gritos e encaminhou-se com passos rápidos até o moribundo,
não dispensando mais que um olhar de soslaio para o casal
caído na calçada. Fez rolar o corpo caído com o pé, deu uma
breve examinada, certificando-se de que o homem estava, de
fato, morto, e virou-lhe as costas, voltando ao seu posto.
O ferimento causado pelo segundo tremor na cabeça de Will
sangrava novamente, uma vez que, na queda, sua cabeça havia
chocado contra o calçamento. Um fino filete de sangue
escorria por sua orelha quando ele ajudou Katherine a erguer-
se do chão.
- Você está ferido! – disse ela, enquanto sacava do bolso de
seu avental empoeirado um lenço milagrosamente branco e com
ele fazia uma compressa no ferimento que atou à cabeça de
Will com uma tira rasgada de suas anáguas. – Precisa de
cuidados médicos... O Central Emergency Hospital fica aqui
perto... Vamos até lá!
- Não é necessário. É apenas um arranhãozinho... – ele
protestava sem entusiasmo.
Seus protestos foram vãos, uma vez que Scully já o rebocava
vigorosamente pelo braço a caminho do hospital. Ele a
acompanhou amuado, como uma criança levada pela mãe ao
dentista. Surpreenderam-se, porém, ao chegar lá, com o estado
em que se encontrava o hospital. A construção de tijolos
aparentes estava parcialmente destruída, com sua fachada de
pedra totalmente arruinada, as chaminés desmoronadas, o
madeirame de sustentação do telhado exposto e o arco de pedra
da entrada rachado e prestes a desabar. Um atarantado
enfermeiro que tentava manobrar uma carroça na entrada do
pátio os informou que todo o atendimento de emergência estava
sendo feito no Mechanics' Pavilion, perto dali. Indiferente
aos protestos de Mulder, Scully o fez seguir até o pavilhão.
- Sua cabeça precisa de cuidados. Não há o que argumentar. –
afirmava imperiosa, quando, de tempos em tempos, ajeitava o
curativo da cabeça de William.
O Mechanics' Pavilion era uma grande estrutura de madeira,
normalmente usada para exposições e feiras. Dentro dela,
jaziam em compridas filas de colchões cerca de duzentas
pessoas, em sua maioria com ferimentos na cabeça ou nas
pernas. Uma dezena de médicos e enfermeiras andavam
atarantados em meio aos feridos que não paravam de chegar e
formavam um confuso amontoado na entrada do pavilhão.
- Espere-me aqui! – ordenou Kathy a seu acompanhante,
enquanto se afastava decidida em busca de alguém que os
atendesse.
Will se deixou ficar, aparvalhado, parte pela confusão que o
cercava, parte pela ligeira tontura que sentia. Acompanhou a
moça com o olhar até que ela desaparecesse no meio da
multidão. Ainda tentava localizá-la, quando um grito foi
ouvido.
- O telhado está em chamas!
Cercado pela massa assustada, William acabou vendo-se forçado
a abandonar o pavilhão no corre-corre que se formara entre os
que estavam perto das portas. Do lado de fora, podia ver as
chamas que ardiam no telhado. Procurava por Katherine com o
olhar entre as pessoas que deixavam o edifício, mas não
conseguia encontrá-la. As garras do medo fecharam-se
apertadas sobre sua garganta, tornando-lhe difícil a
respiração. O medo de perdê-la...
"Um princípio de confusão se formou
quando o telhado do Mechanics'
Pavilion incendiou-se, por volta de
1:00 da tarde, até que o médico
chefe, com um berro, pedisse calma e
comandasse a evacuação ordeira do
prédio. Os feridos foram transferidos
o Golden Gate Park, o Children's
Hospital e o Presidio em ambulâncias
ou quaisquer veículos que estivessem
à mão. Os corpos dos mortos foram
abandonados às chamas."
Foi com um alívio imenso que, finalmente, William viu
Katherine emergir pelas grandes portas de madeira, trazendo
nos braços uma criança com a perna enfaixada. Aproximou-se,
trêmulo de susto, ao mesmo tempo em que ela entregava a
criança aos cuidados de uma gorda enfermeira. Atordoada, a
ruiva recebeu o abraço apertado do homem sem nada
compreender. Muito estranho aquele senhor Mulder! A abraçava
como a uma velha amiga que não visse a vinte anos, quando não
haviam se passado mais que cinco minutos desde o alarme de
incêndio... Muito estranho... Meio louco!
O lenço atado à cabeça de Will estava empapado de sangue.
Suas feições estavam pálidas e seus lábios, descorados.
Gotículas de suor perolavam sua testa e lábio superior.
Parecia prestes a desfalecer. Prontamente, ela tomou seu
braço e o foi conduzindo em direção a um dos automóveis
parados nas proximidades. Porém, um ferido grave tomou sua
frente e ocupou o último lugar disponível no veículo. Kathy,
então, indagou ao motorista para onde seriam levados os
feridos e, nem bem ouviu a resposta, já fez menção de retomar
a caminhada na direção indicada. Will, no entanto, desta vez,
permaneceu imóvel.
- Veja bem, Katherine. – argumentou ele, convicto, parecendo,
repentinamente, recuperar-se. – Os feridos estão sendo
transferidos para lugares muito distantes e nós, com certeza,
não vamos conseguir uma condução até lá... E minha cabeça não
está assim tão mal... Além disso, o fogo está se alastrando
rapidamente e precisamos sair daqui o mais rápido possível...
E... – prosseguia ele numa ladainha sem fim.
- Ok! Está bem. – cortou ela. – Você não quer ir, é seu
direito. Tudo bem. – ele abriu um sorriso de criança feliz
diante das palavras de Scully. – Mas prometa-me que, assim
que houver uma oportunidade, vai me deixar fazer um curativo
decente nesse ferimento, ok? – ela arrematou, sorrindo também
da expressão quase infantil de felicidade de Mulder.
Seguiram caminhando para algum lugar onde o incêndio
parecesse mais distante. Já passava muito das duas da tarde
quando William e Katherine chegaram a Nob Hill, a parte alta
de San Francisco. Naquela região, onde estavam situadas as
residências dos primeiros milionários da Califórnia, o tremor
também deixara visíveis as marcas de sua devastadora
passagem. Mulder estacou por um longo momento diante de um
belo pórtico com elegantes colunas de mármore branco, tudo o
que restara da mansão dos Towne, uma importante família de
Frisco com quem mantinha relações comerciais. Um portal para
um passado glamouroso que não mais existia. Um pouco adiante,
localizava-se a residência do banqueiro Cartwright onde havia
jantado após a ópera, na noite anterior. Apenas a bela
escadaria em curva em mármore rosado com corrimões de cobre
ricamente trabalhados permanecia de pé, imponente, levando a
lugar nenhum. Estranho... Fora apenas na noite anterior que
estivera ali, mas lhe parecia ter acontecido uma eternidade
atrás.
Pelas calçadas, aqui e ali, as pessoas agrupavam-se ao redor
de fogões improvisados nas calçadas a partir de pilhas de
tijolos. O aroma de café que impregnava o ar próximo a um
desses grupos, fez recordar a Will e Kathy que seus estômagos
estavam vazios até aquela hora.
- Aceitam um pouco de café? – indagou a simpática senhora que
cuidava do fogo.
Sem hesitar, acercaram-se do fogão, onde a gentil mulher
serviu a cada um uma caneca fumegante de café e um pãozinho.
Sentaram-se no meio fio, ao lado dos outros, saboreando o
calor reconfortante da bebida e seu efeito lenitivo sobre
seus corpos cansados. Kathy observou divertida que a alegre
senhora que os convidara trazia cada pé calçado em um sapato
diferente, provavelmente um descuido causado pela pressa em
abandonar sua casa após o tremor. Assim como havia feito com
eles, a mulher abordava todos os que passassem, oferecendo-
lhes conforto e solidariedade na forma do café quente com
pão. Um pouco que podia significar muito para quem, como
Kathy, havia perdido tudo.
A vista, a partir da colina onde estavam, era apocalíptica. A
cidade, lá embaixo, transformada em ruínas pela mão poderosa
do terremoto, ardia agora sob as chamas do gigantesco
incêndio.
- Atenção, por favor! Todos parados por um instante! – gritou
um homem que apontava uma câmera fotográfica em na direção do
grupo, imortalizando Mulder, Scully, a gentil senhora dos
sapatos trocados, todo o estranho ajuntamento reunido em
volta do fogão de tijolos em uma fotografia cujo pano de
fundo era a impressionante destruição urbana lá embaixo. Um
fiel testemunho do momento que San Francisco atravessava.
Era estranho como, no geral, os ânimos não transpareciam a
gravidade do momento. As pessoas, impressionantemente calmas
dada a situação, pareciam indiferentes ao desastre. Mesmo
aquelas que tudo haviam perdido demonstravam este
comportamento estóico. Talvez mantivessem a louca esperança
de que tudo não passasse de um pesadelo. Talvez a calamidade
houvesse de tal forma anestesiado seus sentidos que elas
fossem incapazes de reagir de outro modo. Talvez fosse apenas
a aceitação pura e simples do destino como uma fatalidade
incontestável. Mesmo William e Katherine reagiam dessa forma,
a despeito de todas as dificuldades e perigos que já haviam
enfrentado até o momento.
Ao longe, ouviam-se as explosões que devastavam quadras
inteiras, lá embaixo, numa tentativa desesperada de conter o
avanço do fogo abrindo-se vãos suficientemente largos que
impossibilitassem sua propagação. E nem mesmo esse trovejar
constante de dinamite parecia afetar as pessoas.
Will e Kathy vagavam sem destino pelas ruas de Nob Hill.
Caminhavam lado a lado, em silêncio, entregues a seus
pensamentos. A companhia um do outro era suficiente para
satisfazê-los. Paravam aqui e ali para apreciar o que viam.
Como uma casa que tivera apenas a parede frontal derrubada,
com seus moradores sentados nas poltronas da sala, tomando
chá e conversando como se fosse mais uma outra tarde calma de
primavera.
Tudo o que restava de uma construção em uma esquina eram duas
paredes. De uma delas, à beira da calçada, pendia um letreiro
de ferro onde, em letras negras cuidadosamente pintadas sobre
o fundo amarelo, lia-se "Vidros". Na outra, miraculosamente
intocado pelo terremoto, sem uma trinca que fosse, havia um
grande espelho com as bordas bisotadas em belas flores e
arabesco caprichosos. Nele, refletiam-se as imagens de um
homem e uma mulher. Ele, alto e de porte atlético, usava o
que um dia fora um elegante smoking, agora pardacento de lama
e pó. Ela, de estatura baixa e compleição delicada, envergava
um sisudo uniforme negro, também enfeado pela sujeira. Tinham
ambos os cabelos desgrenhados e as feições escondidas sob uma
grossa camada de poeira. E, nos olhos, ah, os olhos... Um
surpreendente e complexo misto de abandono e enlevo e
tristeza e contentamento. Mulder e Scully sorriram,
simultaneamente, do que viram no espelho.
- Nossa! – exclamou Kathy. – Eu nem havia percebido o quão
esquisitos devemos estar parecendo desse jeito.
- Não mais estranhos do que quaisquer outras pessoas que
tenham sobrevivido a um desabamento. – ele respondeu com um
sorriso brincalhão. – Parecemos vivos, só isso! –
acrescentou.
Arrependeu-se imediatamente de tê-lo dito, quando percebeu a
sombra de tristeza que voejou no semblante de Katherine.
- Sim... vivos... – disse ela em voz baixa e soturna.
Mas a sombra dissipou-se no instante em que Will,
delicadamente, tocou seu cotovelo, a induzindo a seguir em
frente. Com a caminhada... Com a vida...
Logo adiante, havia o que, até horas atrás, fora uma praça.
Os bancos de pedra quebrados e as árvores arrancadas pelas
raízes davam a dimensão do tremor, naquele local. No entanto,
bem no centro do caos, estava uma fonte onde querubins
milagrosamente poupados da destruição jorravam água pelas
boquinhas. William e Katherine aproveitaram-se da benção
daquela água corrente e abundante para limpar seus rostos,
pescoços, mãos, suas almas.
Com gentileza, Scully obrigou Mulder a sentar-se na borda da
fonte e, em seguida, usando uma tira de pano branco arrancada
de suas fartas anáguas, começou a limpar-lhe habilmente o
ferimento na cabeça. Removida a crosta de sangue seco que
cobria a área, ela percebeu aliviada tratar-se de um corte
superficial cujo sangramento abundante devera-se à região
fartamente irrigada em que se localizava.
Will aceitava tudo imóvel e mudo. A destreza com que Kathy
manuseava o ferimento, a leveza de suas mãos o surpreendiam
agradavelmente. Faziam-no pensar em outras épocas, em sua
infância, quando seus pais ainda não eram tão ricos e
sofisticados. Pensava nas traquinagens do pequeno William
pelas ruas do bairro, que invariavelmente resultavam em um
joelho ou cotovelo esfolado, e no quanto ele ansiava por
receber os cuidados carinhosos da mãe ao chegar em casa. Até
o dia em que ela descobrira que "não era chique" fazer esse
tipo de coisa. A partir de então, todos os machucados do
menino eram, sem exceção, tratados por uma das criadas e os
carinhos da mãe foram escasseando na mesma medida em que ela
foi incorporando-se ao "mundo chique". O Will adulto ainda
sentia falta dos carinhos de sua mãe...
Com os olhos atentos, Katherine perscrutou o jardim semi
destruído ao seu redor e dirigiu-se ligeira a uma árvore
caída, voltando, em seguida, com um punhado de folhas nas
mãos.
- Vovó Scully era uma velha irlandesa supersticiosa. –
explicava ela, enquanto amassava as folhas entre as palmas
das mãos. – E meio bruxa, também! – acrescentou com um
sorriso engraçado, ao aplicar um emplastro das folhas
maceradas sobre o ferimento de Mulder. – Ela me ensinou
muitos segredos druidas sobre os poderes curativos das
plantas. E, já que não temos nada melhor para tratar esse
ferimento, acho que isso terá que bastar, por ora. –
arrematou, completando o curativo com mais tiras de pano
rasgadas de suas anáguas e um nó apertado.
Quando voltou a olhar para o rosto de William, ao encerrar o
curativo, ele a contemplava embevecido. Kathy, subitamente
envergonhada com o olhar, soltou uma mecha dos cabelos
castanhos que havia ficado presa entre as bandagens e tentou
colocá-la em seu lugar. Mas a mecha, teimosa, voltou a cair
sobre a testa de Will, emprestando um ar de menino bonito às
feições do homem sentado à sua frente. Com vagar, ele tomou-
lhe as mãos entre as suas e as levou aos lábios, num
agradecimento mudo. Katherine teve de se esforçar para evitar
que as lágrimas, que insistiam em encher seus olhos, não
saltassem deles e lhe escorressem pela face. Andava muito
lacrimogênea aquele dia, irritou-se em pensamentos.
Um aroma gostoso de comida trazido pela brisa invadiu suas
narinas, substituindo por um momento o cheiro amargo de
queimado que enchia o ar.
- Acho que a fome está começando a me deixar louca, mas sinto
cheiro de bife! – exclamou Scully, agradecida por algo que a
afastasse da iminência do pranto.
- Então estou louco também! Bife com batatas! – disse Mulder,
levantando-se de um pulo. – E vem dali! Vamos? – acrescentou,
puxando Katherine pela mão, na direção indicada.
De fato, um pouco adiante, um dos novos milionários locais
servia a quem passasse pela rua bifes e batatas assados por
ele mesmo numa churrasqueira improvisada construída sobre os
restos do muro de sua mansão. Da casa, atrás dele, pouco
restara além de uma lareira de pedra, que erguia-se como um
monumento ao caos, em meio ao amontoado de ruínas.
- Se a vida nos dá limões, façamos uma gostosa limonada! –
dizia ele sorrindo, enquanto preparava seus bifes. – Tanto me
deu o Senhor antes. E agora me convida a reparti-lo. Venham,
amigos! Compartilhem comigo as bênçãos de Deus!
De bom grado, Mulder e Scully aceitaram o alimento oferecido
e o comeram com apetite voraz. A primeira refeição de verdade
que faziam naquele dia... Um pedaço de pão, que acompanhava a
refeição, no entanto, foi cuidadosamente guardado por
Katherine no bolso de seu avental.
- Para uma eventualidade. – explicou ela ante o olhar
inquisidor de Will.
Ricos e pobres irmanados pela calamidade dividiam nas
calçadas o banquete frugal proporcionado por aquele homem.
- Deus o abençoe, senhor. – foram as palavras de Kathy ao
cavalheiro, ao devolver-lhe os pratos de folha de flandres,
após a refeição.
- Que o Senhor te acompanhe, menina. – respondeu o homem,
sorrindo e tocando-lhe de leve a testa, numa benção.
Andavam, perambulando a esmo, em busca de algum lugar para
descansar. Por todo lado, as ruas estavam apinhadas de gente.
Famílias em fuga carregavam seus poucos pertences no que quer
que possuísse rodas: carroças, carrinhos de bebê e carrinhos
de brinquedo cruzavam por eles repletos de mantimentos e
utensílios de cozinha, grandes malas montadas sobre patinetes
passavam, abarrotadas de roupas e cobertores. Um homem
arrastava ruidosamente atrás de si um pesado baú de madeira,
preso por cordas aos seus ombros. Um bando de crianças,
alheio à gravidade da situação, corria em volta do pobre
diabo gritando-lhe "ôas" e "upas", como se fosse um cavalo
puxando uma charrete.
Nas escadarias de um prédio em ruínas, Will e Kathy avistaram
uma jovem mãe e sua filha pequena, sentadas nos degraus.
- Quero ir para casa, mamãe. Quero ir para casa. –
choramingava a menina em voz débil.
- Não temos mais casa, querida. Recoste-se aqui e tente tirar
uma soneca, meu bem. – dizia a mulher com mais suave e
reconfortante das vozes, apertando a filha contra o peito.
Tinham ambas uma aparência debilitada, a criança parecia
prestes a desmaiar. Kathy compadeceu-se das duas e,
aproximando-se, ofereceu-lhes o pedaço de pão que tinha tão
cuidadosamente guardado mais cedo.
- É pouco, eu sei. – desculpou-se ela à mulher. – Mas espero
que ajude.
Dos olhos da mãe, uma singela lágrima brotou num
agradecimento silencioso à generosidade da jovem ruiva.
Sua atenção foi atraída por uma voz que proferia impropérios
em altos brados. Pertencia a um homem de longos cabelos
grisalhos desgrenhados que, vestido em um robe de seda grená,
andava pelas ruas em passos rápidos, descalço, esbravejando
contra quem ousasse lhe dirigir o olhar.
- Carter! – chamou Mulder, que nele reconheceu seu amigo
Cornelius Carter, o escritor de contos fantásticos.
Ainda na noite anterior, Mulder e Carter haviam estado
juntos, durante a ceia, envolvidos em uma longa discussão com
mais outros convivas. Na ocasião, ambos haviam defendido com
ardor a futilidade dos sentimentos e a total inutilidade do
amor na vida do ser humano.
- Um subterfúgio para os fracos. – argumentara Mulder.
- O ópio dos ignorantes. – acrescentara Carter.
Tão distante parecia a Will aquela argumentação...
Compreendia-se, naquele instante, um total ignorante até
aquele dia, agora que conhecia o verdadeiro sentido do amor.
De volta ao presente, o homem encaminhou-se até ele, parando
a poucos centímetros de seu rosto e, como resposta, começou a
cuspir palavrões e obscenidades com olhar ensandecido. Foi
tamanha a surpresa de Mulder, que ficou sem ação, enquanto o
enlouquecido Carter gritava, cuspia e gesticulava sobre seu
rosto.
- Com licença, senhor! – Scully salvou a situação, empurrando
Carter para o lado e puxando Mulder pelo braço para longe
dali.
De longe, William voltou-se para observar Carter, que agora
dirigia toda sua loucura a um poste de iluminação,
gesticulando e gritando-lhe impropérios, completamente louco,
totalmente inconsciente do ridículo de sua condição. Pobre
Carter! Que o inferno tivesse piedade de sua alma, Mulder não
pôde deixar de pensar com uma ponta de ironia.
O sol já se punha no horizonte quando William e Katherine
encontraram, por fim, um local para repousar suas pernas
fatigadas. Um recanto idílico. Um belo caramanchão recoberto
por uma viçosa trepadeira de flores escarlates escondia sob
sua sombra um grande banco de pedra. A partir dali,
descortinava-se uma magnífica vista da baía num ângulo do
qual nem a destruição do abalo, nem a fumaça do incêndio eram
visíveis. Apenas o plácido mar azul e o horizonte tingido
pelos tons avermelhados do crepúsculo compunham o sereno
quadro.
Sentaram-se lado a lado no banco de pedra. O sol,
transformado em uma bola ardente e alaranjada, desaparecia
rapidamente, como se mergulhasse nas águas do mar para seu
descanso noturno.
- Quando eu era criança, - começou Scully, em tom nostálgico,
os olhos pregados no sol poente, - meu pai sempre me levava
para ver o pôr do sol na praia. Ele dizia que, se eu fosse
uma boa menina e se Deus estivesse satisfeito comigo, eu
ouviria um "tchiii..." quando o sol mergulhasse por completo
no mar. Nem preciso dizer que nunca ouvi nada...
Calou-se. Mulder a ouvia em respeitoso silêncio, seus olhos
saltando ora para o horizonte, ora para a expressão absorta
da ruiva. Por fim, o astro rei mergulhou rápida e
definitivamente no horizonte, com se engolido pelo mar agora
avermelhado dos raios solares.
- E continuo não ouvindo... – prosseguiu ela. – Por que Deus
não está satisfeito comigo? – acrescentou, depois de um
momento, com voz rouca.
Os olhos azuis, ainda fitos no horizonte, estavam rasos
d'água. Sem uma palavra, Mulder envolveu-lhe os ombros
estreitos com o braço e beijou-lhe os cabelos com ternura.
Ela deixou-se ficar, entregue ao calor daquele abraço,
abandonada aos sentimentos. A tristeza a envolvia como um
manto. Uma melancolia, indefinível em palavras. Não podia
evitar de pensar em sua mãe, em Eric e Tommy e Nell e Betty.
Soterrados sob toneladas de pedras, nas ruínas de sua casa...
Doía-lhe tanto a idéia que as palavras morriam-lhe na
garganta, as lágrimas enchiam-lhe os olhos.
E havia o medo da solidão que tão pungente a assaltara
durante todo aquele dia. O mais terrível de todos os seus
pesadelos: ficar só. Tantas vezes acordara no meio da noite,
banhada em suor, um grito contido na garganta, após o mesmo
pesadelo recorrente, no qual se via despertando, de repente,
completamente só, em meio ao nada. Apenas deserto e desolação
para qualquer lado que olhasse. E sempre, nessas ocasiões,
apurara o ouvido para escutar o ressonar suave e
tranquilizador de Nell, com quem dividia a cama. E agora, não
havia mais Nell. Não havia mais família ou lar. Apenas o
fantasma da solidão rondando seu caminho.
Uma rajada gélida da brisa noturna a fez estremecer,
arrancando Katherine de seus sombrios devaneios. Somente
então, percebeu que já escurecera.
Will depositou seu casaco, gentilmente, sobre os ombros de
Kathy e, depois, voltou a envolver-lhe os ombros com o braço.
Seus olhos cinzentos estavam fitos no horizonte. Do outro
lado da baía, eram agora visíveis as luzes de Alameda e
Oakland.
- Estive pensando... – disse ele. Sua expressão era
sonhadora, quase que contente. – Amanhã, vamos tentar pegar o
ferry-boat para o outro lado. Tenho amigos em Alameda que
poderiam nos abrigar por uns dias, até as coisas voltarem ao
normal. O que você acha?
Assim falando, voltou-se para Katherine. Seus olhos
encontraram o azul dos dela e Scully poderia jurar que
brilhavam, apesar da escuridão. E ele sorria, um sorriso bobo
que o deixava com ar de menino. E ela não pôde deixar de
sorrir, em resposta, fazendo com que o olhar de Mulder se
tornasse ainda mais luminoso. E não pôde deixar de sentir que
o fantasma da solidão, que tanto a atemorizava, desvanecia-se
como que por mágica... Então, com um suspiro arrancado do
fundo das entranhas, Kathy compreendeu, por fim, o que
sentia. Estava amando... Amava aquele estranho senhor Mulder,
que a olhava de forma tão intensa que, naquele exato momento,
tornava sua respiração difícil.
Com uma das mãos, ela afastou a mecha de cabelos castanhos
que teimava em cair-lhe na testa, enquanto a outra envolvia a
graciosa covinha no queixo de Will e aproximava seu rosto do
dela. "Estou sendo ousada demais! O que ele vai pensar de
mim?", ocorreu-lhe num segundo. "Dane-se! O que quiser
pensar, desde que compreenda que o amo...", imaginou no
segundo seguinte. Pousou seus lábios sobre os dele,
levemente. Surpreso, Mulder não reagiu no primeiro instante.
Porém, no momento seguinte, seus braços envolveram Scully e a
aproximaram de seu corpo e seus lábios pressionaram os da
mulher com mais força, num beijo correspondido com igual
ardor, num sentimento compartilhado com igual intensidade.
Lá em cima, um milhão de estrelas faiscavam no céu,
pontilhando o veludo negro da noite com um milhão de
diamantes.
Novamente, tudo era escuridão, tão negra, tão densa, quase
que se podia tocá-la... William estreitava os olhos tentando,
em vão, encontrar Katherine. Ele a sabia próxima, podia
ouvir-lhe a respiração, aspirava-lhe o aroma dos cabelos. Mas
não a via. E o temor de perdê-la, de não mais conseguir
encontrá-la o dominava. Queria gritar seu nome, chamá-la, mas
as palavras morriam em sua garganta. Subitamente, uma
claridade forte preencheu tudo. E ele a viu, parada a uns
poucos metros de distância. Quis correr até ela, mas uma
muralha de fogo brotou do chão, interpondo-se entre os dois,
impedindo a passagem. Will tentava desesperadamente atrair a
atenção de Kathy. De alguma forma, ele sabia que, embora as
chamas representassem um obstáculo intransponível para ele,
Katherine poderia facilmente atravessá-las e vir até ele em
segurança, se assim o desejasse. Mas ela contemplava o céu,
absorta, alheia a tudo o que se passava ao seu redor. Então,
a claridade se fez mais intensa sobre ela, um facho de luz
muito alva que a tragou em seu interior fazendo-a flutuar no
espaço. William gritou, mas seu grito saiu mudo da boca.
A lua ia alta no céu, quando Mulder despertou sobressaltado,
o peito esmagado pela tensão, o coração batendo
descompassado. Apreensivo, voltou com cuidado a cabeça para o
lado. A visão de Scully, ressonando tranqüila, os cabelos
ruivos derramando-se sobre seu ombro, o acalmou. Felizmente,
não passara de um pesadelo. O que sentira, no entanto, fora
cruelmente real! Ainda eram vívidas em sua lembrança as
imagens do fogo e da luz e de Scully flutuando no ar, em
direção ao espaço. Um pesadelo real demais...
Estreitou o aperto do braço que envolvia a mulher e, em
resposta, ela aninhou-se ainda mais contra ele, sorrindo em
seu sono. Will observou longamente o semblante feminino, tão
sereno em seu repouso, tão diferente da máscara indecifrável
que ela envergava mais cedo. O brilho prateado da lua
emprestava reflexos pálidos à pele muito branca e lançava
estranhas sombras nos olhos cerrados sob as longas pestanas.
O ritmo suave de sua respiração agia como um bálsamo sobre os
receios de William, devolvendo-lhe, pouco a pouco, a calma e
restaurando-lhe a habitual disposição sonhadora.
Era-lhe uma sensação totalmente nova aquela de estar amando
daquela forma. Aquela louca sensação de contentamento, de
satisfação em apenas tê-la ao seu lado, somada à outra,
contraditória, de que nem todo o tempo do mundo passado ao
lado dela seria suficiente para abrandar a dor dos breves
momentos de separação, o confundia e estarrecia. Era a
primeira vez que sentia-se assim. Havia tido envolvimentos
com muitas outras mulheres antes. Desde as filhas da boa
sociedade até as coristas e atrizes de vaudeville, nenhuma
outra mulher o havia feito sentir daquele modo antes.
Apaixonado, definitiva e irremediavelmente apaixonado.
Entregava-se por inteiro aos devaneios delirantes de sua
paixão. Contemplava as estrelas, imaginando, para cada uma
delas, algo que gostaria de fazer com Scully, um lugar que
visitariam, um presente que lhe daria, um modo de fazê-la
feliz...
Embora desperta, Scully hesitava em abrir os olhos. Temia que
a agradável sensação de tranqüilidade e bem estar que sentia
se dissipasse ao abri-los. Estava tão em paz consigo mesma
quanto não se sentia a tempos. Sonhara com sua mãe, seu pai,
seus irmãos, reunidos, felizes. Em seu sonho, eles não
falavam, apenas sorriam. Mas ela podia ouvir-lhes os
pensamentos e eram os melhores possíveis. "Liberte-se,
Katherine!", lhe diziam. "Nós estamos bem. Viva sua vida e
seja feliz!" E foi com essas palavras, ecoando em seus
ouvidos, na voz suave de sua mãe, que despertou. "Seja feliz,
Katherine..." E a primeira coisa que percebeu, ao despertar,
foi o aconchego do braço que a envolvia e estreitava, do
ombro onde sua cabeça repousava. E sorriu, feliz. Sim, ousava
dizer-se feliz, apesar de tudo.
Finalmente, abriu os olhos, com vagar, e viu-lhe o perfil
delineado contra a escuridão. Tinha a expressão sonhadora,
contemplava as estrelas. Os cantos da boca retorciam-se
sutilmente para cima, num sorriso. Ela podia dizê-lo feliz,
tal como ela. E isso aumentou seu contentamento. Então isso
era amar! Alegrar-se com a felicidade do outro, sofrer com
seu sofrimento, ser dois e ser um, ao mesmo tempo...
Envolto que estava em seu mundo de sonhos e planos, William
pareceu não perceber que era observado. Katherine não
resistiu, soprou-lhe de leve a orelha. Ele voltou a cabeça
para encará-la, seu mais belo sorriso estampado no rosto. Os
olhos encontraram-se, azul e cinza, mesclando-se, fundindo-
se, aprisionando-se mutuamente. E, pela eternidade do momento
que durou aquele olhar, apenas William e Katherine, Mulder e
Scully existiram em todo o universo.
Com um rugido, uma coluna de chamas surgiu da encosta da
colina a cerca de dez metros de onde estavam Will e Kathy, os
obrigando a levantar-se e retirar-se dali, à medida em que o
fogo avançava inclemente em sua direção. Num minuto, não
havia mais caramanchão ou trepadeira de flores escarlates ou
recanto agradável. Apenas um inferno flamejante, no local
onde até instantes antes fora seu paraíso particular.
Afastaram-se rapidamente, enquanto o fogo começava a surgir
aqui e ali, por toda Nob Hill, galgando a colina e espalhando
o pânico. Assustadas, as pessoas corriam de um lado para o
outro a procura de um local seguro. Mulder conduzia Scully
pela mão, procurando evitar a confusão que se formara, mas,
ao mesmo tempo, andando no contrafluxo da multidão que se
deslocava em direção ao Golden Gate Park, à beira da baía, na
parte baixa da cidade.
"Por volta de 09:00 PM, a brigada de
incêndio tentou erguer uma barricada
que impedisse o avanço do fogo na
direção de Nob Hill. Seus esforços
foram inúteis e, no início da
madrugada de 19 de Abril, o incêndio
começou a se alastrar naquela área."
Quando, enfim, conseguiram desvencilhar-se da massa humana e
do fogo, respiraram aliviados. Tudo ficara estranhamente
calmo e silencioso, depois de afastarem-se da balbúrdia da
turba apavorada. Havia apenas o crepitar distante das chamas
para encher o silêncio e a claridade da lua para iluminar a
noite, já que qualquer outro tipo de luz fora proibido pelas
autoridades, temerosas do surgimento de novos focos de
incêndio. As sombras alongadas das ruínas sobre o calçamento
irregular compunham figuras bizarras no chão. Uma brisa
quente e poeirenta soprava da direção onde estava o fogo,
enchendo-lhes as narinas do cheiro acre de fumaça e
anunciando que sua propagação até onde estavam não tardaria.
Estacaram na entrada de uma alameda ladeada por árvores
frondosas. Estava muito escura, as copas espessas impediam a
passagem dos raios fracos do luar. Mulder hesitou, apertando
a mão de Scully com força. Algo em seu coração, na boca de
seu estômago, formigando em suas pernas, lhe dizia para não
seguir adiante, para não entrar por aquela aléia obscura. Mas
a urgência imposta pelas chamas que avançavam céleres na
direção do casal, fê-lo contrariar os instintos e mergulhar,
junto com Scully, no breu do caminho sombrio. A cada passo
que davam, o silêncio e a escuridão adensavam-se ameaçadores,
a realidade parecia ficar mais distante. Mulder ia ficando
mais e mais apreensivo, à medida em que avançavam, as
sensações dolorosas do pesadelo de ainda a pouco tornavam-se
mais vivas. Os dedos de Scully, que ele apertava fortemente
entre os seus, pareciam-lhe tornar-se imateriais, como se
fossem areia, escapando-lhe por entre os dedos. A angústia o
ia dominando, secando-lhe a saliva, aumentando o nó na
garganta, a opressiva dificuldade de respirar.
De súbito, o vento fraco cessou, o ar tornou-se
surpreendentemente parado, o crepitar do fogo silenciou.
William parou, assustado, mas Katherine prosseguiu em frente,
seus dedos finalmente escapando das mãos de William. Mais
dois passos e ele não mais a conseguia avistar nas trevas.
Queria chamar-lhe o nome, pedir que voltasse, porém o nó em
sua garganta não deixava a voz sair. Quedava paralisado, como
se os pés estivessem cravados no chão. Abria os olhos
desmedidos, tentando divisar os contornos da mulher, mas seus
esforços eram vãos.
Katherine, por sua vez, seguia em frente, pela escuridão,
compelida por um chamado que ressoava baixo em seus ouvidos,
atraída por uma sombra que divisava ao longe. Nem ao menos
deu-se conta de que caminhava agora sozinha, que William
havia ficado para trás. Tudo o que sabia era que precisava
continuar andando, perseguir aquela voz que a chamava,
alcançar o vulto que lhe acenava na escuridão. E avançou,
como que hipnotizada, até que um nesga de céu visível por
entre as folhas das árvores atraiu sua atenção. Escuro,
pontilhado por um milhão de estrelas, tão vasto, tão belo,
tão intrigante. Desejou alcançar uma daquelas estrelas, tomá-
la nas mãos...
- Você quer ir até lá? Quer conhecer as estrelas? –
perguntava a voz em sua cabeça.
- Sim! – respondeu Kathy sem hesitação, os olhos fitos no
esplendor dos astros, nas promessas de libertação com que lhe
acenavam.
Will, estático, aterrorizado, ainda esforçava-se por
encontrar Kathy em meio às trevas. Como em seu sonho, a sabia
próxima, ouvia sua respiração. Mas não a conseguia enxergar,
por mais que tentasse.
Repentinamente, tudo fez-se claro e brilhante, como se a luz
do sol a tudo iluminasse. A inesperada claridade ofuscou
William, que piscou repetidas vezes até acostumar-se e
conseguir divisar Katherine, parada um par de metros adiante,
distraída, olhando as estrelas. Quis gritar, mas não
conseguia. As recordações do pesadelo o machucavam agora que
se tornavam lentamente realidade. A dolorosa certeza do que
estava por acontecer, de como tudo iria terminar, o esmagava,
tornando ainda mais difícil sua reação. Mulder, que sempre se
dissera agnóstico e vangloriava-se de não crer senão na
ciência, rogava agora pela interseção divina para impedir que
eles a levassem. Orava e suplicava pela vida de Scully como
não faria por sua própria vida.
- Não deixeis que eles a levem, Senhor! Oh, Deus, não
permitis que eles a tomem de mim...
Embora não soubesse quem ou o quê poderiam ser "eles",
parecia-lhe claro e certo que eram "eles" os responsáveis
pelo que estava acontecendo.
E a claridade que a tudo preenchia foi se intensificando e
tornando-se alaranjada, até assemelhar-se a uma muralha de
chamas interposta entre Will e Kathy. Uma barreira que
somente ela poderia transpor, pelo simples fato de querer
fazê-lo. William queria chamá-la, trazê-la de volta à
realidade, mas as palavras morriam estranguladas em sua
garganta.
E a claridade se fez mais e mais intensa até tornar-se tão
brilhante quanto mil sóis e concentrar-se, muito branca, em
torno de Katherine. Ela contemplava o espetáculo deslumbrada,
a ciranda de luzes e cores brincando lá no alto, a atraindo
irresistivelmente para si. E foi se sentindo leve, leve, até
perceber que seus pés não mais tocavam o solo, que flutuava
no ar. Era tão boa a sensação de voar... Ela olhava a rua lá
embaixo, as casas, as árvores, tudo ficando pequenino,
distante à medida em que subia.
- Veja, Mulder, como tudo é tão belo daqui de cima! –
exclamou alegremente.
E foi, então, que o viu, parado lá embaixo, os braços
estendidos para o alto, em sua direção, a boca entreaberta,
os olhos esgazeados. Mulder! Mulder! Como um relâmpago, ela
compreendeu o que estava se sucedendo e quis voltar.
- Deixem-me! Deixem-me! Não quero ir! – gritava Scully em
pensamentos.
- Mas você vai conhecer as estrelas... Como você queria... –
respondia, entre sedutora e zombeteira, a voz em sua cabeça,
enquanto ela era alçada cada vez mais alto no céu.
Seu último pensamento, antes de mergulhar na névoa brilhante
do esquecimento, que a perseguiria, nos anos vindouros, foi
doloroso e amargo: nunca havia dito a Mulder que o amava...
Com os pés solidamente grudados no chão, Mulder observava
Scully, a flutuar no espaço, subindo, subindo até desaparecer
num clarão.
- Scully! – conseguiu finalmente gritar, os braços estendidos
no vazio, como se quisesse alcançá-la.
Com um estrondo, a claridade desapareceu, tornando-se apenas
um rastro de luz que cortou veloz o firmamento. Envolto pelo
silêncio e pela escuridão, Mulder caiu de joelhos sobre o
calçamento, os olhos cravados no céu, acompanhando o rastro
luminoso que desaparecia no éter. Quando o último traço da
luz enfim se extinguiu, ele curvou-se sobre as pernas,
enterrou a cabeça entre as mãos e chorou. Solitário e
arrependido.
Nunca havia dito a Scully que a amava...
PARTE II – Tempos Atuais
"Você tem e-mail!" dizia a mensagem que pipocou, de repente,
na tela do notebook de Fox Mulder. Com enfado, ele
interrompeu a absorvente tarefa de arremessar lápis em
direção ao teto de sua sala no porão do Quartel General do
FBI e voltou os olhos para examinar o que lhe fora enviado.
Torcia para que não fosse mais uma notificação de auditoria
interna no Bureau ou um daqueles avisos de encerramento do
prazo de prestação de contas de viagem que o Departamento
Financeiro vivia lhe enviando.
"Muito estranho" dizia o assunto da mensagem.
"david_duchovny@hotmail.com" estava escrito no remetente.
Mulder esboçou um sorriso maroto. "Ah, Melvin! Quisera
você...", pensou divertido ao identificar um dos muitos
endereços de e-mails disfarce usados pelos Pistoleiros
Solitários. Bem, ao menos, havia uma chance de ser algo
interessante, imaginou enquanto abria a mensagem. Nela, além
do texto, havia dois arquivos anexados, imagens, pelo que
pôde perceber, que ele, curioso, foi imediatamente abrindo,
sem nem mesmo ler o texto antes.
O primeiro arquivo era a digitalização de uma foto que
mostrava um grupo de pessoas vestidas à moda do início do
século XX. Mulheres em vestidos compridos, alguns homens com
paletós de corte antiquado, outros em mangas de camisa e
suspensórios. As pessoas da foto reuniam-se em torno de uma
pilha de tijolos erguida no meio da rua sobre a qual
repousava um caldeirão, à guisa de fogão improvisado.
Entretanto, o que realmente chamava atenção na imagem era o
cenário que lhe servia de pano de fundo. Do alto da colina
onde o grupo se encontrava, podia-se ver edifícios semi-
destruídos e pilhas e pilhas de escombros até onde a vista
alcançava. E fumaça, rolos de fumaça negra que emergiam aqui
e ali por toda parte na paisagem.
Pareceu a Mulder, por um momento, já ter visto aquela imagem
antes. Déjà-vu, Discovery Channel, não fazia a menor idéia de
qual fosse a origem da lembrança! Contemplou a fotografia
longamente, tentando entender o porquê os Pistoleiros a
haviam enviado a ele, mas não conseguiu atinar com a razão.
"Talvez fosse melhor ler o texto da mensagem, Fox..." disse
uma vozinha zombeteira em sua cabeça. De fato, lá estava a
explicação, escrita no jeito disléxico de Frohike:
"encontrei essa foto (fig1) no bco de img do Congresso.
tirada em 1906, depois do gde terremoto de Sfrancisco.
reparar nas pessoas na foto. a outra (fig2) é uma ampliação
da (fig1).
será um caso pro AX??? ;)
fui!!! txau, frohike"
Com a curiosidade atiçada pelo texto, Fox Mulder abriu a
segunda imagem que mostrava os rostos de um homem e uma
mulher jovens. Ele os contemplou por alguns segundos,
perplexo.
- Scully, você precisa ver uma coisa! – chamou, com grande
excitação, interrompendo a parceira, concentrada na
elaboração de um relatório.
Dana Scully levantou-se um tanto a contragosto e caminhou
devagar até a mesa do parceiro. Não que a atividade que
Mulder havia interrompido fosse muito interessante. A bem da
verdade, era um dos relatórios mais entediantes que já tivera
que escrever em seus muitos anos de FBI. Mas levara uma boa
meia hora para conseguir concentrar-se o suficiente para
começar a escrevê-lo e, certamente, levaria outra meia hora,
no mínimo, para retomar o fio da meada, depois. Que fosse!
- Do que se trata, Mulder? – perguntou, acercando-se com um
suspiro.
Pelo tom da voz dele, certamente alguma notícia sobre o
aparecimento de círculos misteriosos nos campos de trigo, em
Iowa, ou avistamentos de luzes em algum canto esquecido por
Deus, no Novo México.
- Recebi isto dos Pistoleiros. – respondeu com os lábios
torcidos num meio sorriso, diante da visível irritação da
ruiva. – Veja que curioso... – completou, abrindo a primeira
imagem a qual a mulher examinou atentamente por alguns
instantes.
- San Francisco, grande terremoto de 1906. – afirmou segura,
após o exame, acrescentando irritada, - E...?
Apesar dos anos de trabalho juntos, Mulder sempre se
surpreendia com a perspicácia de Scully. Como ela podia saber
aquilo tudo com tanta certeza? Melhor nem perguntar,
concluiu, abrindo o texto do e-mail que a mulher leu
rapidamente.
- Continuo não entendendo onde você... – começou ela
exasperada, interrompendo-se quando o parceiro mostrou-lhe a
segunda foto.
- Somos nós na foto, Scully. – disse o agente, apontando a
imagem na tela de seu computador.
De fato, ali, cobertos por uma grossa camada de poeira, com
os cabelos desgrenhados e vestidos em trajes de época,
estavam estampados, no sépia da fotografia antiga, os rostos
de Mulder e Scully. Bastante mais jovens, era verdade, mas
perfeitamente reconhecíveis, a despeito da pouca definição da
imagem. Ela se deixou ficar, atônita, fitando com os olhos
arregalados a ampliação da velha fotografia. Difícil
acreditar no que via, mas era seu rosto ali! Registrado numa
imagem capturada a mais de noventa anos atrás...
Por um momento, imagens desconexas bailaram diante de seus
olhos. Um corredor luxuoso repleto de portas fechadas, uma
nesga de céu azul, um quarteirão inteiro tornado em ruínas,
um grande sol alaranjado se pondo no mar, luzes tão intensas
que feriam seus olhos... Tudo entremeado pela visão
apocalíptica de chamas e labaredas que pareciam querer
consumi-la. Uma estranha melancolia a invadiu, até ser
dissipada pela visão de um par de olhos cinzentos e um belo
sorriso de menino. E um calor agradável que brotava de algum
canto escondido de sua alma engolfou seu corpo como uma onda.
Foi quase como uma das tais experiências extra corpóreas das
quais Mulder tanto falava...
Estranhas sensações dominaram Scully por um instante, quando
ela contemplava aquela não menos estranha fotografia. No
entanto, seu tão decantado ceticismo prevaleceu e seu bom
senso a fez examinar a imagem na tela do notebook com seu
notório olhar crítico. Era difícil acreditar naquela foto...
Muito difícil acreditar... Principalmente, em se tratando de
algo enviado por Frohike...
- Sabe que dia é hoje, Mulder? – perguntou ela quando um
sorriso triunfante lhe surgiu no rosto.
Ele olhou para o mostrador de seu relógio rapidamente e
arrematou a triste constatação batendo com a mão espalmada
contra a testa, num gesto deliberadamente teatral.
- Droga! Primeiro de abril... 1 X 0, Pistoleiros! –
acrescentou, com um ar decepcionado.
A expressão de triunfo de Scully cedeu lugar a um suave
sorriso de compreensão diante da decepção de Mulder.
- Feliz Dia dos Bobos, parceiro.
Era, ao mesmo tempo, engraçada e comovente a expressão
desconsolada de Mulder. Como uma criança que percorreu todo o
longo caminho até a sorveteria, sonhando com uma casquinha de
chocolate, apenas para descobrir, ao chegar lá, que o freezer
estava quebrado... Os cantos da boca caídos, o olhar bobo, os
ombros derrotados. Num arroubo de compaixão, Scully o obrigou
a levantar-se e jogou-lhe o paletó sobre os ombros.
– Venha! Depois dessa, eu lhe pago o almoço... - convidou,
enquanto rebocava um amuado Fox Mulder pelo braço, em direção
à porta do escritório.
Por um momento, pelo canto do olho, ela teve a impressão que
o rosto de Mulder estava todo sujo de poeira e que, em lugar
do paletó Armani de corte impecável, o parceiro envergava um
antiquado smoking negro rasgado e coberto de sujeira. Sacudiu
a cabeça levemente para afastar aquela insistente sensação de
déjà-vu que a perseguia desde que colocara os olhos naquelas
estranhas fotos.
"Talvez essas fotos mereçam um pouco de investigação...",
disse uma vozinha curiosa dentro de sua cabeça. "Ora! Deixe
de besteira, Dana Scully!", ralhou mais alto a voz da razão,
forçando a ruiva a recuperar o senso crítico e seguir para o
almoço e mais um dia nos porões do FBI.
EPÍLOGO (versão original)
Katherine Scully reapareceu, em 1907, em pleno deserto de
Nevada, próximo ao local onde, anos mais tarde, seria erguida
Las Vegas. Insistia em contar a quem quer que fosse sobre os
seres de pele cinzenta e grandes olhos negros amendoados que
a haviam levado e sobre os estranhos e dolorosos
procedimentos a que fora submetida dos quais guardava
pequenas cicatrizes em forma de meia lua nas mãos e no rosto.
Tão desconexas e pouco convencionais eram suas estórias e
tamanhas sua convicção e sua fé no que contava, que acabou
sendo considerada louca e mantida interna em uma instituição
psiquiátrica.
Ao final de dez longos anos, ela percebeu que o único modo de
ser libertada era fazer o que o mundo esperava dela. Passou,
então, a negar tudo em que acreditava. Dizia que toda aquela
estória sobre homenzinhos cinzentos e experimentos bizarros
que havia repetido sem cessar durante tanto tempo não passava
de um delírio seu e que, na verdade, não era capaz de
recordar-se do que havia acontecido com ela entre 1906 e o
momento em que fora encontrada no deserto. Convencidos de que
seu surto psicótico estava superado, os médicos, finalmente,
a liberaram, numa tarde chuvosa de 1917. A partir de então,
Kathy vagou solitária pelo meio oeste americano, viajando
como clandestina em trens de carga, muito antes dessa prática
se tornar uma febre entre jovens e velhos no país. Amargou
fome e frio e uma existência solitária, sobrevivendo de
trabalhos ocasionais como lavar pratos ou varrer ruas em
troca de comida. Veio a falecer vítima de pneumonia em um
abrigo da Cruz Vermelha em Baltimore, Maryland, numa noite
fria de inverno em 1929. Deixava o pequenino William, de oito
anos de idade, fruto de um estupro sofrido durante suas
andanças pelos vagões de carga da vida.
Enquanto viveu, nunca mais pôs os pés em San Francisco.
Simplesmente, não conseguiria suportá-lo. Tampouco voltou a
tocar nas estórias do passado, embora, à noite, ao fechar os
olhos, se sentisse constantemente observada por um par de
olhos cinzentos profundos. O episódio de seu seqüestro, aos
poucos, tornou-se uma sucessão de lembranças vagas e
confusas, a fazendo, por vezes, imaginar se não havia
realmente se tratado de um pesadelo. Nesses momentos, levava
a mão à nuca e apalpava a pequena cicatriz rosada que lá
havia, convencendo-se de que tudo havia sido real.
William Mulder III passou os anos seguintes a 1906 procurando
pela pequena Scully por todos os lugares. Contratou os
melhores detetives e investigadores particulares, chegou ao
extremo de consultar médiuns e videntes, em busca de
informações sobre o paradeiro da bela ruiva que, com sua
petulância e destemor, fisgara seu coração num espaço de
tempo tão curto e tão longo quanto as vinte e quatro horas de
um dia. Com o passar dos anos e o insucesso das buscas, foi
se tornando um homem calado e introvertido, acabando por ser
apelidado de Estranho nas rodas que antes freqüentava.
Foi voluntário no Exército, em 1917, na primeira leva do
alistamento para a Primeira Guerra Mundial, e combateu os
alemães nas trincheiras lamacentas dos campos de batalha da
França e da Bélgica. Nesse tempo, tinha o costume de
oferecer-se como voluntário para toda sorte de missões
consideradas perigosas ou impossíveis. Sobreviveu a ataques
de gás mostarda, estilhaços de bombas e a uma perfuração no
abdômen causada por uma baioneta. Voltou à pátria, ao fim da
guerra, com o peito coberto de medalhas e o coração vazio de
esperanças.
Casou-se por conveniência, em 1921, com Lucille, uma jovem
lânguida, loura e doentia, filha da boa sociedade de Boston,
que lhe deu três filhos. Visitava San Francisco,
religiosamente, em todos os dias 18 de Abril, na vã esperança
de reencontrar Scully em uma esquina qualquer. Numa noite
fria do inverno de 1929, em plena Grande Depressão, faleceu,
vítima de um aneurisma cerebral. Suas últimas palavras, ditas
a Bill, o filho caçula, foram: "Não confie em ninguém."
Seu maior tesouro, conseguido a custo num leilão e guardado a
sete chaves numa pequena caixa de madeira perfumada, ele o
legou às chamas da lareira, na noite anterior à sua morte.
Uma preciosa e solitária lágrima rolou por sua face quando o
fogo consumiu a velha foto esmaecida onde um rapaz e uma
moça, com os cabelos desgrenhados e os rostos sujos de
poeira, apareciam em meio a um estranho grupo de pessoas
diante do cenário aterrador de uma cidade devastada pelo
sismo e purificada pelas chamas. Sim, o fogo, enfim, os havia
separado.
F I M
NOTAS FINAIS:
1. Nunca existiu um Grand Hotel em San Francisco. Nem nenhum
dos hotéis elegantes da época desabou durante o terremoto
propriamente dito. O Grand Hotel foi projetado e construído
pela minha imaginação apenas para poder vir abaixo na
estória.
2. Dados reais e fotos sobre o Grande Terremoto e o Incêndio
de 1906 podem ser encontrados no site do San Francisco Museum
(http://www.sfmuseum.org).
3. Por diversas razões, essa acabou se tornando uma estória
polêmica. Meu objetivo inicial não era escrever uma fanfic,
mas um conto. Peguei emprestados dos personagens de X-Files
algumas características físicas e psicológicas e partes dos
nomes. Mas SEMPRE disse, e insisto nisso, que os personagens
poderiam chamar-se Joãozinho e Maria ou Fred Flintstone e
Mortícia Addams. A porção XF da estória foi introduzida
apenas para torná-la uma fanfic. Mas tenham sempre em mente,
por favor, que os personagens que sofreram tanto na narrativa
NÃO SÃO nossos velhos conhecidos do seriado. Portanto, não me
crucifiquem ou me chamem de nomes que suas mamãezinhas não
aprovariam.
4. No mais, sinto muito se vocês acabaram por detestar essa
estória, mas MANDEM feedback. Please!
