Centro de Gravidade
FAN FICTION
ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)
DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores.
CATEGORIA: Quem viver verá!
CLASSIFICAÇÃO: Livre.
SPOILER: Todos e mais alguns que eu inventei agora.
SINOPSE: Me recuso a fazê-la. É para ser lida como se assiste
um daqueles filmes que nem os créditos mostram no início.
Assista e, se não gostar, saia no meio da sessão! Leia e, se
achar que está uma droga, rasgue, remova de seu diretório!
Mas mande feedback xingando a autora.
Essa fic é dedicada à grande escritora Claudia Modell.
Centro de Gravidade
"And when man faces destiny, destiny ends
and man comes into his own."
(André Malraux, The Voices of Silence)
PARTE I - Tempo de Despertar
Despertar dificilmente é um ato agradável para quem quer que
seja. Por pior que seja o sonho ou pesadelo, a transição do
sono para a dura realidade é sempre difícil. Em especial,
para alguém como Fox Mulder que raramente poderia afirmar que
dormira "o sono dos justos", como apregoa o dito popular.
Tornara-se um hábito para ele simplesmente desmaiar de
exaustão, à noite, nos lugares mais inusitados. Embora, em
geral, amanhecesse no desconfortável sofá da sala, já houvera
ocasiões em que despertara esparramado na banheira vazia ou
tombado sobre a mesa do escritório.
Mas não podia recordar-se de jamais ter acordado, como
daquela vez, no chão da cozinha, de qualquer cozinha. Sim,
porque aquela certamente não era a SUA cozinha. Não que
freqüentasse a cozinha de seu apartamento o suficiente para
ter dela recordações muito precisas. No máximo, abria a porta
da geladeira em busca de água ou preparava um pacote de
pipocas no microondas.
Porém, definitivamente, não reconhecia naquela cozinha a de
seu apartamento. Era arrumada demais, limpa demais para ser
sua. O teto era impecável e branco, nem uma teia de aranha ou
um traço de poeira, e, pasme, as DUAS lâmpadas frias da
luminária nele instalada funcionavam. AO MESMO TEMPO!
No chão, não havia décadas de pó ou farelos de pão ou aquela
azeitona que saltara da pizza no Natal passado, se alojara ao
lado do fogão e que ele ficara com tanta preguiça de catar.
Bem, não era mesmo a sua cozinha...
Tentou levantar-se, devagar. Sentia-se estranho,
desequilibrado. A cabeça pesada, como se seu centro de
gravidade houvesse mudado de lugar. Era difícil equilibrar-
se. A cabeça insistindo em puxar todo seu corpo para trás.
O maldito centro de gravidade, deslocando-se para lá e para
cá. Como se estivesse de ressaca...
Estranho... Não se lembrava de ter bebido na noite anterior.
A bem da verdade, não se lembrava de nada sobre a noite
anterior... Exceto, talvez, que ele era Fox William Mulder,
agente especial do FBI? ... Era?
Lutava para ficar de pé, mas aquela se revelava, cada vez
mais, uma tarefa impossível. O centro de gravidade passara da
cabeça para a barriga, que ficara muito, muito pesada. Se
tentasse ficar de pé, com certeza cairia para frente, puxado
pelas toneladas recém instaladas em sua barriga.
Melhor ficar de quatro. Isso mesmo... Sucesso total! Talvez
ajoelhar-se, para enxergar mais alto... Difícil com aquele
centro de gravidade móvel, mas não impossível.
Conseguiu, enfim, pôr-se de joelhos. Olhou a pia. Não havia
um único copo ou prato sujo, dentro ou sobre ela. A esponja,
limpa e seca e nova em folha, estava colocada no recipiente
adequado a exatos três centímetros do vidro de detergente.
Cheio! O pano de louça, branco como a neve, jazia
perfeitamente dobrado em dois e dependurado na respectiva
argola na parede.
Em última análise, um brinco. Não era mesmo, sua cozinha.
Jamais o seria.
Só havia um modo de saber a quem pertencia aquela cozinha e
Mulder não hesitou. Destemido, abriu a geladeira como
invadiria um recinto repleto de terroristas internacionais
armados até os dentes. De peito aberto. Que vengam los toros!
Iogurte, frutas, legumes, gelatina. Tudo fresquinho, dentro
do prazo de validade, cheiroso e brilhante.
Scully! Era a cozinha de Scully! Agora ele tinha certeza.
Mas a dúvida permanecia. O que diabos estava fazendo
adormecido no chão da cozinha de Scully? Não podia recordar-
se de modo algum de como teria ido parar ali, no apartamento
da parceira. Seria amnésia? Num impulso, conferiu o horário
em seu relógio de pulso com o do mostrador do microondas.
Idênticos. Logo, não havia tido um contato imediato ou algo
assim, acreditava.
Bem, só havia um jeito de saber... E que Deus o ajudasse.
Perguntar a Scully!
O apartamento estava mergulhado num profundo silêncio. Era
muito cedo e ela, provavelmente, dormia. De gatinhas,
brigando sempre contra seu centro de gravidade traiçoeiro que
teimava em jogá-lo para um lado e para o outro, Mulder
começou a mover-se pela casa. Tinha plena consciência do
ridículo de sua posição. Rastejava, como um inseto imundo,
pelo chão do apartamento de Dana Scully. Irritava-se só em
pensar nas dezenas de explicações que teria de dar a ela por
aquela situação. Mas que explicações daria se não as tinha?
Se não fazia a mínima idéia do que poderia estar lhe
acontecendo para vir parar ali. Bolas! Estava frito e sabia
disso...
Engatinhava pela sala e imaginava o olhar de reprovação de
Scully. Não havia nada pior no mundo do que aquele maldito
olhar de reprovação de Scully e seu silêncio torturante, que
faziam-no sentir como um moleque qualquer, pego em flagrante
em plena travessura. Era uma lenta agonia ser vítima daquele
olhar. Já havia passado por aquilo antes e conhecia bem os
efeitos devastadores que aqueles olhos azuis, furiosos e
acusadores, podiam exercer sobre ele. Penetrantes, pareciam
rasgar-lhe a carne como punhais. Cortavam-no em fatias finas,
quase translúcidas, e depois o serviam com azeite, alcaparras
e limão. Carpaccio de Fox Mulder... Às vezes, passavam
semanas daquela forma. Outras, abrandavam-se num dia, apenas
para reaparecem realimentados, poderosos e vitaminados, no
dia seguinte. Droga! Antes ela o condenasse a limpar todos os
banheiros do Bureau com sua escova de dentes. Ele o faria com
prazer só para não ter que enfrentar-lhe o olhar. Lamberia as
botas do Kersh... Não, pensando bem, isso não. Mulder podia
ser muitas coisas desprezíveis, mas jamais seria um lambe-
botas!
E lá se ia Fox Mulder, engatinhando, bamboleando (droga de
centro de gravidade!) pelo piso. Sorte Scully ter aquela
mania paranóica de organização e limpeza. Não havia
obstáculos pelo percurso. Imaginava aquela mesma cena se
passando em seu apartamento. Já teria atropelado uns tantos
sapatos, algumas outras azeitonas fugitivas e sementes de
girassol. Talvez encontrasse até aquela sua camisa azul da
qual tanto gostava e que julgava abduzida por alienígenas
loucos por Armani. Mas aquele era o chão de Scully e ali não
havia nem um grão de poeira, quanto mais roupa suja ou outros
trastes.
Ôoops!
Seu joelho aterrissou sobre uma superfície irregular e o
maldito centro de gravidade aproveitou a deixa para mudar de
lugar mais uma vez e... Pum! Lá estava outra vez Fox Mulder
esparramado no chão, a cara enfiada no carpete. Bosta!
Mas o que provocara sua queda? Tsc, tsc, tsc... Um escarpin
negro com um salto tão alto quanto um arranha-céu? Jogado no
meio da sala? Muito feio, Dana Scully!
Mulder se deixou ficar, por uns instantes, caído no chão,
esperando que a parceira aparecesse na porta da sala, com
cara amassada e pijamas, os cabelos desgrenhados, a arma em
punho, à procura do invasor. Ele! Visualizava claramente o
modo como sua expressão se transformaria, da ferocidade
assustada pelo despertar tumultuado até o desprezo e a
desaprovação quando identificasse nele o causador do
distúrbio. Em câmera lenta, como numa dessas cenas de efeitos
especiais dos filmes... Aterrador!
Estatelado no chão, Fox Mulder rezava, sim, rezava e
implorava a todas as divindades conhecidas e desconhecidas
para que Scully não acordasse. Muitos segundos, talvez
minutos transcorreram. Em seu senso de tempo distorcido pelo
pânico, dias e meses se passaram, ele aguardando o fim com os
olhos estreitados e os lábios contraídos em antecipação.
Mas ela não apareceu. Aleluia!
Ainda outra vez, colocou-se de gatinhas, com dificuldade, o
centro de gravidade passeando do alto de sua cabeça até os
quadris com a maior sem-cerimônia, recusando-se a parar onde
quer que fosse, dançando chá-chá-chá com sua paciência... E
seguiu Mulder, risivelmente, arrastando-se pelo chão,
balançando para lá e para cá, em direção ao quarto.
Era estranho Scully não ter acordado com o barulho de sua
queda. Normalmente a parceira tinha um sono muito leve. Não
que já tivesse dormido com ela da maneira como gostaria, mas
já haviam dormido lado a lado de muitos modos estranhos e em
muitas ocasiões diferentes antes. Talvez ela não estivesse em
casa... Mas, nesse caso, o que diabos ele estaria fazendo em
seu apartamento? Talvez fosse exatamente isso! Ela havia sido
seqüestrada por algum membro do Sindicato ou um bandido
qualquer dos tantos que ambos normalmente investigavam e
perseguiam e Mulder, buscando a parceira, havia sido
envenenado, drogado ou sabe-se lá o quê... Isso explicava sua
incapacidade em ficar de pé, sua confusão mental, sua total
ausência de lembranças...
Mas não explicava o barulho de água, uma torneira sendo
aberta, que vinha agora do banheiro. Quis tatear a cintura à
procura de sua arma, porém a mera idéia de tirar uma das mãos
do chão para tanto já fez com que seu centro de gravidade
saísse para passear novamente, correndo a passos largos na
direção de seu nariz. Mulder precisou usar de todo o seu
treinamento em Quantico e dos muitos anos de experiência em
atividades de campo para não tombar novamente de cara no
chão. Com muito esforço e oração, conseguiu reequilibrar-se e
evitar mais uma queda miserável.
Sentia-se nu e desprotegido, sem sua arma na mão. E se fosse
o seqüestrador lavando as mãos sujas de sangue no banheiro de
Scully? Como poderia Mulder proteger-se e à parceira, quem
sabe, desarmado como estava? Era um alvo fácil daquele modo.
Um único tiro e seria mais uma vítima indefesa...
Pior! E se fosse a própria Scully, escovando os dentes,
lavando o sono da cara na água fria da pia? Como justificar
sua presença ali, naquelas condições humilhantes? Começava a
imaginar se não seria melhor topar com um bandido sanguinário
no banheiro do que com Dana Scully, agente especial, FBI,
desarmada e perigosa, cruel e desalmada em sua perfeição e
superioridade.
O que não tem remédio, remediado está, diz o dito popular.
Nunca fora homem de refugar diante de uma briga. Não iria
começar daquela vez.
Decidido, rastejou silenciosamente até a origem do ruído que
infernizava sua imaginação. Espreitou a porta aberta.
Chinelos de frufrus cor-de-rosa. Bandidos sanguinários não
usam chinelos de frufrus cor-de-rosa... Logo, tinha de ser
Scully. A ruiva escovava os dentes meticulosamente, o olhar
fixo no espelho. Alívio foi sua primeira sensação. Pânico foi
a segunda. "Coragem, Mulder! Você é um homem ou uma barata?"
- Scully! – chamou em voz tão baixa que ele próprio mal se
ouviu.
A ruiva com a boca cheia de espuma não esboçou o mínimo
movimento.
– Scully! – repetiu mais alto.
Nada. O ruído da torneira totalmente aberta devia estar
encobrindo o som de sua voz. Uma verdadeira cascata, como
aquela que jorrava na pia, encobriria até mesmo o ruído da
turbina de um Boeing 777. Que desperdício de recursos
hídricos, senhora-politicamente-correta-e-defensora-ferrenha-
da-natureza-agente-Scully...
Engatinhou para dentro do banheiro, postando-se diante da
parede, exatamente atrás da parceira. Imaginava poder, com
algum apoio como o oferecido por aquela providencial parede,
conseguir driblar seu centro de gravidade intinerante e
colocar-se de pé. Dito e feito! Com uma boa dose de esforço e
perseverança, conseguiu, literalmente, rastejar parede acima
e pôr-se de pé. Virou-se para Scully e o espelho.
Surpresa! Refletidos no pequeno espelho retangular do
banheiro estavam Dana Scully, alguns respingos de pasta de
dentes e a parede de azulejos brancos atrás dela. Nem sombra
de Fox Mulder. Nem um pálido reflexo de um homem de quase
dois metros de altura. Como?
Aquilo não podia estar acontecendo!
Teria ele morrido de algum modo e seu espectro havia sido
condenado a vagar, ou melhor, rastejar sem rumo por toda a
eternidade? Quem sabe havia sido vítima de uma maldição de
invisibilidade atribuída por algum espírito maligno ou por um
gênio mal humorado como naquele caso estranho que haviam
investigado em Missouri? Ou talvez houvesse sido submetido a
uma espécie qualquer de alteração molecular que fizera com
que os átomos de seu corpo se movessem em velocidades
inferiores ao espectro visível...
Formulava um sem número de teorias, umas malucas, outras nem
tanto, que faziam com que seu cérebro trabalhasse como um
alucinado, quando se deu conta de um fato que lhe havia
passado desapercebido na imagem refletida no espelho. Uma
barata! Cascuda, das grandes, solene e impávida, imóvel,
sobre a parede branca. No exato lugar onde ele próprio
deveria estar...
Recordava-se claramente, não havia barata alguma quando
rastejara parede acima, instantes atrás. Incrédulo, atônito,
fez a única coisa que lhe ocorreu para tirar a dúvida: deu um
tímido tchauzinho com a mão esquerda para o espelho. A
barata, refletida no espelho, simultaneamente, ergueu uma das
patinhas do lado esquerdo de seu corpo no ar, como se
acenasse de volta para ele!
Inconcebível! Impossível! Inacreditável!
Ele? Fox Mulder? Uma barata?
Mulder tinha toda sua atenção concentrada na imagem da barata
(sua própria imagem?) no espelho, quando Scully, que passara
os últimos minutos metodicamente ensaboando cada centímetro
quadrado da pele de seu rosto como se houvesse a
possibilidade de estar contaminada por um vírus alienígena,
finalmente abriu os olhos. Ela estudou longamente seu próprio
reflexo no espelho, vasculhando a imagem em busca de um ponto
qualquer esquecido pelo sabão, quando seu olhar se deteve em
algo. A parede branca de azulejos atrás dela. O pequeno
borrão marrom sobre ela. Voltou-se, caminhando devagar e
cautelosa até a parede. A cara coberta de espuma parou a uns
cinqüenta centímetros de distância do alvo, apertando os
olhos para ver melhor.
Na seqüência, Mulder leu no semblante da mulher o
reconhecimento, a surpresa, o nojo. Até que um risinho sádico
retorceu os cantos de sua boca.
- Scully! Sou eu! Mulder. – ele dizia assustado. – Seu
parceiro, Scully! – o medo começava a transformar-se em
pânico. - Não sou essa barata nojenta que você está vendo,
Scully! – o pânico cedia lugar ao terror. - Por favor... por
favor... – suplicava, os olhos fixos no chinelo que erguia-se
no ar. – S-s-scully, não! Não! Nãããããooooo...
Estaria Fox Mulder, agente especial, FBI, expert em traçar
perfis de assassinos seriais, intrépido caçador de
alienígenas e conspirações governamentais, condenado a
perecer como uma barata nojenta sob o chinelo de frufrus cor-
de-rosa de Dana Scully? Seria aquele o triste destino que a
estória havia reservado ao nosso herói?
PARTE II – Uma Janela para o Céu
A sola lisa e dura do chinelo de Scully se agigantava diante
dos olhos de um aterrorizado Fox Mulder, misteriosamente
convertido em barata. Dezoito precisos centímetros os
separavam. Ele gritava o nome da parceira, em pânico. Mas
ela, aparentemente, não o ouvia. Dez centímetros... Mulder
tentava desesperado chamar Scully à razão. Mas que razão, se,
para todos os efeitos, o que Dana Scully tinha diante dos
olhos era uma barata repulsiva? Cinco centímetros e
aproximando-se... O filme de sua vida começava a passar em
ultra-fast-motion diante dos olhos de Mulder, ao mesmo tempo
em que ele se despedia do mundo cruel. Dois míseros
centímetros apenas...
"Triiiim! Triiiim! Triiiim!" soou estridente a campainha,
acompanhada por vigorosas batidas na porta da frente.
O chinelo ameaçador paralisou-se no ar. Depois, desceu até o
chão e de volta ao pé da ruiva. Quem antes batia com força,
agora, verdadeiramente, esmurrava a porta da frente do
apartamento de Scully.
- Já vai! Já vai! – gritou ela, irritada, enquanto se virava,
limpando a espuma do rosto com uma toalha, e seguia para a
porta. Não sem antes dirigir uma última e fuzilante olhadela
para a barata na parede. Se olhares matassem...
Assim que Scully deixou o banheiro, Mulder suspirou aliviado.
Já havia visto a morte de perto muitas vezes antes. Havia até
mesmo, acreditava, estado quase que do outro lado, em algum
lugar além da vida. Mas nunca antes sentira-se tão indefeso
diante de uma situação de perigo como daquela vez. Por um
triz havia escapado de uma morte tão indigna como a de inseto
asqueroso, esmagado por um sapato contra a parede. Morto e
esmagado por sua parceira, por Scully, a quem seria capaz de
confiar sua própria vida sem pestanejar!
Ainda tremia, quando, em meio ao turbilhão de pensamentos que
o assaltava, percebeu que não poderia permanecer ali, parado
onde estava, como um óbvio alvo marrom na imensidão de
azulejos brancos. Sempre pelejando contra seu implacável
centro de gravidade, rastejou parede abaixo, olhando em
volta, à procura de um lugar para se esconder. Aquele
banheiro, tão imaculadamente branco, não lhe parecia seguro o
bastante. Era óbvio demais. Seria, com certeza, o primeiro
lugar onde ela o procuraria.
Mulder corria pelo chão em direção à porta, distante um
milhão de quilômetros de onde ele estava. Suas muitas
perninhas curtas, cujo movimento ele não conseguia ainda
controlar com precisão, moviam-se alucinadas, arrastando seu
corpo ovalado e desproporcional pelo chão escorregadio,
vencendo o comprimento de cada ladrilho como se percorressem
a distância de uma maratona. Subitamente, a consciência de
seu tamanho, tão diminuto diante da imensidão do mundo, o
atingiu. Assim como a percepção da fragilidade da carapaça
translúcida que revestia seu corpo. E o fato de estar nu e
desarmado.
Poderia deixar-se abater por tudo isso ou por ser tão
minúsculo e frágil ou por estar tão cansado e a maldita porta
tão distante, mas não havia tempo para isso. Ouvia passos
abafados pelo carpete aproximando-se, provavelmente os de
Scully. Uns poucos centímetros o separavam do corredor.
Poucos centímetros para um humano, quilômetros para um
pequenino inseto. Vislumbrou um possível esconderijo e, num
esforço desesperado, desapareceu no espaço entre o batente e
a porta, exatamente ao mesmo tempo em que a parceira entrava
de volta no banheiro, empurrando a porta atrás de si para
fechá-la.
Um roupão dependurado atrás da porta (sim, a ordeira Scully
também deixava roupas penduradas atrás da porta do banheiro!)
esvoaçou com o movimento brusco da porta e interpôs-se entre
a fechadura e o batente, impedindo seu fechamento completo.
Com isso, milímetros separaram a pobre barata Mulder de uma
cruel morte por esmagamento. Salvo pelo gongo outra vez. Ufa!
Trêmulo como estava, Mulder não ousava mover-se. Contentava-
se em ouvir os passos de Scully para lá e para cá, os saltos
do chinelinho cor-de-rosa ecoando em pancadas nervosas no
assoalho, como se procurassem pela atrevida barata que ousava
macular a irretocável limpeza de seu banheiro branco. Enfim,
ela pareceu desistir. Abriu a porta e saiu do banheiro como
um furacão. Mas conhecendo Scully como conhecia, Mulder tinha
certeza de que a ruiva não havia desistido. O mais rápido que
pôde, ele tratou de deixar seu esconderijo na porta do
banheiro e correu para o quarto, enfiando-se no escuro vão
entre a cômoda e a parede.
Instantes mais tarde, ouviu seus passos retornando ao
banheiro e, segundos depois, o "tchiiii" característico do
aerossol, um inseticida sendo borrifado generosamente por
todo o cômodo. Implorou aos céus e aos deuses das baratas que
a parceira restringisse seus ímpetos inseticidas ao banheiro,
visto que não poderia afirmar seguramente que a química do
produto não o afetaria, agora que era um híbrido humano-
inseto ou inseto-alienígena. Ou talvez fosse apenas um
inseto. Sim, talvez SEMPRE tivesse sido apenas um inseto.
Os deuses das baratas pareciam estar a seu favor, já que
Scully, depois de espalhar copiosas doses de inseticida pelo
banheiro, guardou o spray no armário sob a pia, lavou as mãos
e seguiu para o quarto. Mulder manteve-se tão encolhido e
imóvel, que poderia ser confundido com um nó da madeira do
fundo da cômoda do quarto.
Somente ousou respirar novamente no momento em que ouviu
Scully batendo a porta do apartamento atrás de si. E respirou
fundo, cerrando os olhos, tentando pôr em ordem os
pensamentos, tentando lembrar de algo, qualquer coisa que
pudesse lhe dar uma pista do que diabos estava acontecendo a
ele. Esforçava-se ao máximo, buscando, no fundo da memória,
técnicas de relaxamento aprendidas na faculdade e havia muito
esquecidas, as quais costumavam operar milagres nas
demonstrações que assistira nos bancos escolares. Tentou
recorrer à auto-hipnose que já havia utilizado em ocasiões
anteriores com relativo sucesso. Revisou mentalmente
tratados, compêndios e artigos diversos sobre psicologia,
psiquiatria, paranormalidade, ocultismo, vodu, macumba. Mas
em nada, absolutamente nada, encontrou a mínima pista ou
obteve qualquer resultado prático que lançasse alguma luz
sobre sua presente situação. Inútil, tudo inútil. Todos os
anos de estudos, pesquisas e observações não lhe serviam de
nada naquelas condições.
Fox Mulder havia se transformado em barata e ponto final!
Suas esperanças resumiam-se ao fato de que alguém iria dar
por sua falta... Scully TINHA que dar por sua falta! E,
então, iria procurá-lo. Ele só precisava esperar e arrumar um
jeito de fazê-la perceber no que ele havia se transformado.
Precisava pensar melhor sobre como fazê-lo. Até lá, restava-
lhe aceitar aquela situação e adaptar-se à sua nova condição
para tentar conviver com ela da melhor maneira e, se
possível, tirar algum proveito do atual estado das coisas.
Decidiu, então, que a primeira providência prática a tomar
seria percorrer o apartamento, mapeando locais seguros que
poderiam vir a lhe servir de esconderijo. E foi isso o que
fez, rastejando metodicamente, ao menos para os próprios
padrões, pelo quarto, a sala e a cozinha, arrastando consigo
seu estorvante centro de gravidade. Percorria os cantos
escuros, penetrava nos armários e nas gavetas mal fechadas,
examinando, tomando notas mentais de cada detalhe obscuro do
apartamento de Scully.
Sentiu-se vagamente envergonhado ao examinar-lhe o closet com
seus muitos trajes de corte elegante pendendo dos cabides. Um
tanto quanto voyeur ao percorrer a gaveta da mesinha de
cabeceira (um vidro de tranqüilizantes suaves...
preservativos, Scully?). Quase um tarado ao vasculhar-lhe a
gaveta da cômoda repleta de lingerie acetinada.
Outra vez na cozinha, onde tudo havia começado, Mulder olhou
as horas no mostrador do microondas. 2:32 PM. Por um
instante, imaginou como, mais cedo, julgara ver as horas em
seu relógio de pulso e as comparara com aquelas no mostrador
do microondas. Como, se não havia relógio e muito menos pulso
ou braços? Melhor não se ater a detalhes inexplicáveis, por
enquanto, e concentrar-se no que era mais premente. 2:33 PM.
Era perfeitamente justificável a fome que agora sentia.
Observou a geladeira fechada, uma possível fonte de alimento
completamente inatingível para ele. Vagou a esmo pelo chão
frio e limpo, sem nada encontrar. Quando já perdia as
esperanças, porém, eis que, para sua surpresa, cuidadosamente
escondida num cantinho sob um armário, estava uma azeitona,
outra provável fugitiva de uma das pizzas da vida. Emboras
ligeiramente ressecada e um tanto rançosa, Mulder a saboreou
como a um banquete real, surpreendendo-se com a força e a
destreza de suas mandíbulas, bem como com sua rápida
adaptação ao paladar de sua nova forma.
Findo o festim, voltou pesadamente para a segurança do
quarto, onde julgava que Scully não o encontraria. Abrigou-se
embaixo da mesinha de cabeceira que, além de um perfeito
esconderijo, oferecia-lhe uma ampla visão do quarto e de
parte do corredor até a porta do banheiro. E esperou,
esperou, esperou, até que acabou por adormecer. Dormiu um
sono leve e sem sonhos, como convém a uma barata.
Foi despertado pelo clique da chave sendo girada na porta da
frente. Já era noite, mas Scully não acendeu a luz do quarto.
Apenas entrou e, no escuro mesmo, pegou o pijama debaixo do
travesseiro e roupa de baixo limpa na gaveta da cômoda e
seguiu para o banheiro. Encolhido sob a mesa de cabeceira,
Mulder a ouviu abrir o chuveiro, que permaneceu aberto por um
longo tempo, e depois fechá-lo. Mais alguns ruídos indicaram
que remexia no armário da pia, mais um pouco de água
corrente, possivelmente a torneira agora, um pouquinho do
"tchii-tchii" do inseticida (Scully não desistia fácil!),
outra vez a torneira. Então, a luz do banheiro se apagou e
ele observou os pés pequeninos da parceira aproximando-se da
cama, na penumbra, e depois desaparecendo sobre ela.
Com seus novos ouvidos super sensíveis, Mulder escutava na
escuridão a parceira revirando-se de um lado para o outro nos
lençóis. Tinha dificuldades em dormir. De repente, ela
levantou-se de um pulo e correu até o banheiro. Outra vez, a
audição privilegiada de Mulder detectou que, pobre mulher,
vomitava. Isso o fez lembrar-se vagamente de que ela não
vinha se sentindo muito bem ultimamente. Scully voltou a
deitar-se outra vez e ainda revirou-se na cama por um longo
tempo. Uma eternidade depois, Mulder pode ouvi-la ressonando
suavemente.
Finalmente, ele pôde aventurar-se a sair de seu esconderijo e
subiu pela cabeceira da cama até um ponto em que tinha uma
visão completa da mulher adormecida. Via-lhe os cabelos
vermelhos espalhados sobre o travesseiro, acentuando a
palidez do rosto. Via as linhas em volta de sua boca, mais
marcadas do que podia se lembrar, as sombras escuras sob os
olhos. Percebeu, apreensivo, que ela emagrecera nos últimos
tempos. Estaria doente outra vez? Tomara que não...
Não cessava de surpreender-se com os superpoderes com que sua
nova forma o havia dotado. Embora não houvesse luz alguma no
quarto, mesmo a persiana da janela estava cerrada, ele
enxergava tudo como se fosse dia claro. Lembrou-se de ter
visto em algum documentário, Discovery Channel, talvez, que,
enquanto os olhos humanos possuem uma lente, o cristalino, os
olhos da baratas têm duas mil, o que explicava sua recém
adquirida "visão de raio X". Ele, que desde sempre, precisara
de óculos! Imaginou vagamente que poderia encontrar vantagens
em sua nova condição. Mas isso não vinha ao caso naquele
momento. Precisava aproveitar-se da escuridão e vasculhar
mais uma vez a casa, para tentar encontrar um meio de avisar
à parceira sobre si próprio.
Sua incursão noturna não teve outro resultado prático que não
empanturrar-se com mais um bocado daquela azeitona fugitiva
que encontrara durante a tarde. O dia começava a clarear
quando Mulder voltou ao abrigo sob a mesa de cabeceira. E lá
se manteve até que Scully saísse para trabalhar.
Outra vez percorreu o apartamento, aposento por aposento,
desta vez, tentando imaginar um modo de informar à parceira
sobre seu paradeiro. Inútil! O notebook, sobre a mesa, estava
fechado e ele era pequeno demais para segurar um lápis ou
caneta. Impossível, também, deixar uma mensagem gravada, uma
vez que, após o episódio do banheiro, percebera que sua
comunicação oral era inexistente. Parecia, por enquanto,
condenado a passar o restante de seus dias como uma barata
entediada, vivendo sorrateiramente no apartamento de Scully.
Se ao menos ela não trancasse o controle remoto da TV numa
gaveta...
Rastejou até uma das janelas da sala, de onde podia ver a
vida passando lá fora. Havia, no máximo, ao que se lembrava,
um dia que estava preso ali e já sentia falta do vento, da
fumaça dos carros, da agitação da vida humana. Tinha
saudades, até mesmo, do ligeiro odor de umidade e mofo que
era peculiar ao seu escritório no porão do FBI.
Por outro lado, o ambiente onde estava era completamente
impregnado pelo cheiro de Scully, o aroma de seus cabelos, o
suave perfume de sua água de colônia... Era essa, talvez, sua
única ligação com sua condição humana original, a razão pela
qual não se sentia tão solitário e que o impedia de
enlouquecer. Apesar dos pesares, estava junto de Scully!
A fome constante, porém, não o deixava esquecer que era agora
um inseto rastejante. E deixou de lado as divagações e saiu
bamboleando seu centro de gravidade pelo apartamento em busca
de comida. Então, novamente era noite e a mulher voltou para
casa e dormiu e acordou e tomou banho e vomitou e vestiu-se e
saiu...
E assim se passavam os dias para Mulder, numa rotina sem fim
de ver Scully chegar em casa, jantar, dormir, acordar, tomar
banho, vomitar, vestir-se e sair, dia após dia. Se, por um
lado, ela parecia ter esquecido a barata que ousara esconder-
se em seu apartamento, por outro, para desespero de Mulder,
parecia ter, também, esquecido o parceiro de carne e osso. O
que lançava dúvidas atrozes à mente daquele Mulder barata que
vivia escondido sob a mesinha de cabeceira.
Seria ele, realmente, uma barata híbrida mutante transgênica
que por alguma razão tivera implantadas as memórias de Fox
Mulder? Nesse caso, o Mulder humano devia estar por aí, o que
justificava o fato de Scully não ter dado por sua falta. Mas,
se era assim, por que razão ele ainda não havia dado as caras
no apartamento da parceira como costumava fazer de vez em
quando? E mais: como suas memórias tinham ido parar numa
barata?
Ou, talvez, ele fosse o verdadeiro Fox Mulder transformado em
barata sabe-se lá por que tipo de experimentos em cujos
realizadores era melhor nem se pensar. Se fosse assim,
possivelmente um clone teria sido colocado em seu lugar, de
modo que ninguém lhe notasse a ausência. Ainda pior era essa
hipótese, pois tornava-se virtualmente impossível convencer
alguém de que o outro não seria ele... Ou então, talvez... As
possibilidades eram de enlouquecer!
Se ele ao menos conseguisse lembrar-se de algo, qualquer
coisa que pudesse lhe dar uma pista... Mas nada. A não ser
lembranças muito antigas, sua infância ou uma determinada
manhã de março de 1992, não havia nada recente de que
conseguisse recordar. Logo, melhor não ficar se preocupando
com essas coisas ou acabaria por enlouquecer. Já era bastante
ruim ser uma barata. Pior seria tornar-se uma barata louca...
E assim, ele optava por levar a vida da maneira mais branda
possível, sem muitos questionamentos, além de "o que iria
comer no dia seguinte". E o tempo passava.
Uma bela noite, Mulder percebeu extasiado que a parceira
esquecera, sobre a escrivaninha na sala, o notebook aberto e
LIGADO! Uma oportunidade ímpar se oferecia a ele. Escalou a
mesa na maior carreira; espantosamente, seu centro de
gravidade perverso não lhe ofereceu nenhum transtorno. Pulou,
praticamente, voou sobre o teclado, letra por letra, saltando
com força sobre cada tecla, para deixar sua mensagem:
"SOCORRO, SCULLY. ASS. MULDER".
Mas, surpresa! Seu peso era insuficiente para comprimir as
teclas o suficiente para registrar os toques. Pulou ainda com
mais força, mas nada acontecia. Maldição! Os deuses das
baratas pareciam estar contra ele desta vez. De nada
adiantaram sua dança frenética, os saltos gigantescos,
corrupios e carambolas que executou sobre o teclado. Ao fim
de tudo, exausto e sem fôlego, a tela continuava tão limpa e
branquinha quanto no momento em que começara sua desesperada
ginástica.
- Boooossstaaaa! – gritou a plenos pulmões, furioso, diante
da inutilidade de seus esforços.
Tão irritado estava que mal teve tempo de pular no tampo da
escrivaninha e esconder-se por trás da tela do notebook,
quando Scully apareceu na sala, de arma em punho e vasculhou
a escuridão ao redor com o olhar. Mulder poderia jurar que,
num dado momento, os olhos azuis da parceira encontraram os
seus e que assim permaneceram, olhos nos olhos, por um breve
instante. E ele teve a impressão de ler neles tanta tristeza
que todos os temores que o afligiam acerca de seu
desaparecimento e clones e implantes de memória fizeram-se
mínimos diante da urgência em confortar o sofrimento de
Scully. E teve, também, a ilusão de neles perceber um fugaz
lampejo de reconhecimento ao fitá-lo.
Teria ela escutado seu berro de desabafo? Seria ele capaz de
alguma forma de comunicação com ela? A ilusão desfez-se
quando, da porta da frente, veio o som de uma chave sendo
retirada da fechadura, seguido por um sonoro palavrão e
passos trôpegos pelo corredor do edifício. A ruiva
encaminhou-se para porta e espiou pelo olho mágico por um
momento.
- Droga de bêbado! – rosnou baixinho por entre os dentes,
enquanto caminhava de volta ao quarto, deixando para trás
Mulder e a enorme frustração que dele se apoderara. Ainda não
fora daquela vez...
PARTE III – Pé Na Estrada
E assim passavam-se os dias, que se convertiam em semanas e
as semanas, em meses. A saudade do ar fresco, do vento, do
movimento da rua ia ficando cada vez mais forte em Mulder à
medida em que a sensação de confinamento aumentava. Cada vez
mais ele sentia-se prisioneiro de sua nova forma e do
apartamento de Scully. Passava horas grudado ao vidro da
janela, olhando a vida que passava na rua, sonhando com a
liberdade e esperando pelo dia em que Scully finalmente o
esmagaria sob a sola de um sapato qualquer. Como um condenado
no corredor da morte.
Mesmo como barata, Mulder sentia-se estranhamente
constrangido quando a parceira trocava de roupa no quarto
diante dele. Nessas ocasiões, enfiava-se no canto mais escuro
que pudesse encontrar e voltava as costas para ela até que
estivesse completamente vestida. Ele era (ou fora...) um
homem e apreciava mulheres nuas, claro! Porém, espreitar
Scully sem roupas de um canto de seu próprio apartamento, era
mais que voyeurismo, era quase um crime!
Mas, naquele dia, foi diferente. Ficou desafiadoramente
observando de um posto avançado na parede, por trás da
cabeceira da cama, enquanto a ruiva andava de um lado para o
outro pelo quarto, arrumando sua pequena bolsa de viagem. Viu
quando ela tirou do armário um blazer escuro, com calças
combinando, e uma blusa verde-oliva (Scully andava cismada
com aquela cor, ultimamente!) e os colocou sobre a cama.
Depois, remexeu na gaveta de lingerie e saiu em direção ao
banheiro. Quando o barulho da água do chuveiro soou, Mulder
tomou uma decisão desesperada. Correu como um louco e enfiou-
se dentro da sacola de viagem aberta sobre a cama. Daquela
vez, era tudo ou nada! Ia sair para ver o mundo outra vez.
Encolheu-se em um cantinho, sob as dobras de uma camiseta, e
esperou.
Depois do que pareceu um século, ela voltou ao quarto,
vestiu-se, meteu uns frascos de remédio na sacola e fechou o
zíper. Outros cem milhões de anos se passaram para o ansioso
Mulder, sem que nada acontecesse ou a bolsa se movesse do
lugar onde estava. E se, na pressa, Scully tivesse esquecido
de levar a sacola? E se ela houvesse resolvido levar a mala
maior que guardava no canto do armário, em lugar daquela
bolsinha minúscula? O pânico que o tomava fazia o espaço
parecer-lhe cada vez menor e mais claustrofóbico.
Finalmente, no entanto, a sacola se mexeu e continuou se
movimentando, balançando sem parar, para cima e para baixo e
para os lados. Mulder apurava os ouvidos e deliciava-se com
cada som que ouvia. O clique da chave na fechadura, o "toc-
toc" dos saltos de Scully nas escadas, o rangido agudo da
porta do prédio, as buzinas dos carros na rua, o ronronar
grave do motor de um automóvel, parado muito perto.
- Aeroporto, por favor! – ordenou a voz da parceira.
Estavam em um táxi! Ela iria viajar! Mulder sentiu-se tirando
a sorte grande. Não sabia para onde estavam indo, mas não
fazia diferença. Tudo o que importava é que viajavam juntos
outra vez, como nos velhos tempos! Ainda assim, tentou
descobrir para qual destino seguiriam, mas a voz no auto-
falante do aeroporto anunciava milhares de vôos ao mesmo
tempo. E havia o ruído ambiente e as turbinas dos aviões que
decolavam... Barulho demais para seus ouvidos super
sensíveis. Quando chegassem lá, onde quer que estivessem
indo, ele descobriria.
Repentinamente, foi assaltado pelo temor de que Scully
resolvesse despachar a sacola onde ele estava. Compartimentos
de bagagem não são pressurizados! A falta de oxigênio,
certamente, o mataria! Já ia, uma vez mais, invocar os deuses
das baratas (andava estranhamente religioso nos últimos
tempos...) quando recordou-se que a parceira nunca, em sete
anos de trabalho e viagens juntos, despachara sua bagagem.
Alegava já ter perdido objetos de valor inestimável em malas
extraviadas durante viagens aéreas. Por mais pesada que
estivesse a mala ou a sacola, a ruiva sempre a carregava
consigo onde quer que fosse.
O polido, mas apático, "bom dia, senhora" em voz e entonação
típicas de comissárias de bordo e meia dúzia de solavancos e
apertões na sacola confirmaram suas suspeitas. Estava a salvo
dentro do avião.
O ar condicionado gélido da cabine o lançou em um estado de
entorpecimento dentro da bolsa. Somente conseguiu libertar-se
do torpor e coordenar pensamentos e ações novamente muito
tempo depois, quando a temperatura já havia subido
consideráveis vinte graus. Estava quente, muito quente.
Abafado mesmo, dentro da sacola.
Apurou novamente os ouvidos e conseguiu determinar que estava
em um carro em movimento. Numa rodovia, podia quase jurar.
Podia ouvir o "plac-plac" regular das junções do pavimento
sob as rodas do automóvel. Aguçou ainda mais a audição e
percebeu que havia o ruído de apenas uma respiração, uma que
ele poderia reconhecer em qualquer lugar. Scully viajava
sozinha.
Sufocado como estava, Mulder ousou enfiar a cabeça para fora
da bolsa por um pequeno vão aberto no zíper. Scully dirigia,
concentrada na estrada. A sacola de viagem de onde ele saíra
jazia largada no banco de trás. Destemido e curioso, ele
arriscou um passeio pelo encosto do banco até o vidro
traseiro. Tinha sede de paisagens. Quilômetros e quilômetros
de um deserto avermelhado estendiam-se dos dois lados da
estrada. Uma imensidão vazia, plana e árida esparramava-se
pelo horizonte até onde a vista podia alcançar.
- Boa dia, condado de Juab! São 11:00 da manhã, Utah! –
berrou o locutor no rádio, emendando sua saudação com uma
balada country melosa numa voz arrastada e nasalada de
mulher.
"Utah!", admirou-se Mulder. "O que Scully estará fazendo
sozinha no meio do deserto de Utah?", ele não pôde deixar de
imaginar. Mas ela já diminuía a marcha do veículo e não havia
muito tempo para divagações. Mulder desceu o encosto com um
pulo e meteu-se dentro de um dos bolsos do blazer da
parceira, largado no banco ao lado da sacola, o abrigo mais
próximo que conseguiu alcançar. Estava quente demais para que
ela vestisse o casaco. Aquele era um bom esconderijo. Para
seu desespero, no entanto, sentiu que o blazer se movia e que
a mulher o vestia. Encolheu-se o mais que pôde no fundo do
bolso e esperou pelo pior.
Mas nada aconteceu.
Ela parecia andar de um lado para o outro, abaixar-se e
levantar-se como se procurasse algo no chão. E era apenas
isso. Nada de mãos nos bolsos ou algo semelhante. O que ela
tanto fazia ali parada no meio do deserto? Impaciente,
Mulder, ousou esticar a cabeça para fora do esconderijo, no
exato momento em que a mão de Scully enfiava um saquinho de
evidências justo no bolso onde ele estava! Ele mal teve tempo
de atirar-se ao fundo do bolso e encolher-se. Os dedos da
parceira, segurando o plástico, roçaram suas anteninhas de
barata.
"Agora estou morto!", ele sentenciou, gelando. Em sua
imaginação, ouvia-lhe o grito agudo quando ela tirasse a mão
do bolso trazendo uma barata suspensa pelas antenas entre os
dedos. Scully o atiraria longe, enojada, e, a seguir, o
reduziria a mingau com o salto da bota que estava usando. E
seria adeus, Fox Mulder, ex-agente do FBI, encerrando seus
dias nesse mundo como barata esmigalhada no deserto de
Utah...
Mas ela não pareceu ter percebido o intruso em seu bolso, já
que retirou a mão de lá e continuou sua investigação. O
terror da morte quase certa não demorou a abandonar Mulder.
Estava começando a ficar acostumado aos constantes
sobressaltos de sua vida como inseto. Mais calmo, ele
examinou o conteúdo do saco plástico. Areia empapada em
alguma substância gosmenta. O que o fez lembrar que estava
com fome. "Hora e lugar inadequados, Mulder!", pensou. Então,
voltou a espiar para fora do esconderijo. Estavam em um ponto
perdido no meio do nada, onde os únicos sinais de que a
civilização havia um dia passado por ali eram uma rodovia
deserta e uma cabine telefônica.
Scully caminhou até a cabine telefônica e discou. "Por que
ela não usa o celular?", Mulder se indagou. Obviamente, a
meio caminho entre nada e lugar nenhum, não havia sinal de
celular que chegasse. Afinal, para quê? O Coiote e o Papa-
léguas não se falam mesmo!
- Olá, é Scully! Bom dia! – ela disse. E acrescentou, um
pouco depois, - Estou fora da cidade, em Utah!
Mulder imaginou com quem ela poderia estar falando. Havia um
quê de intimidade em seu tom de voz que não era comum a
Scully. Além disso, era alguém que lhe cobrava explicações.
Skinner? Não, não soava como Scully falando com o diretor
assistente. Era outra pessoa. Esquisito...
Scully continuou falando sobre um mochileiro desaparecido
encontrado morto com sinais de envelhecimento exagerado nos
ossos. Talvez fosse alguém do Laboratório do FBI, ele a ouviu
mencionar glicoproteínas... A gosma no saquinho de
evidências, provavelmente. Ela continuou dizendo algo sobre
os arquivos X, sobre pesquisar velhos casos e outras coisas
mais, mas a atenção de Mulder já havia sido desviada por um
ônibus que passava pela estrada. De onde para onde poderia
estar indo aquele ônibus? Aquela estrada não parecia ser do
tipo onde houvesse muitos passageiros... Scully também
pareceu interessar-se pelo veículo, pois desligou o telefone
e entrou no carro.
- Lá vamos nós outra vez! – comemorou Mulder alegremente,
enquanto a parceira arrancava com o automóvel.
Ele enfiou-se novamente dentro do bolso. O risco de ser
encontrado por ela ali, dentro carro, era grande. Por
garantia, Mulder decidiu que, embora fosse um posto de
observação, sua localização naquele bolso não era das mais
seguras. Precisava de um abrigo melhor. Com suas mandíbulas
fortes e afiadas, conseguiu rapidamente cortar uma minúscula
fenda no tecido que separava o bolso do forro do casaco.
Embora, aparentemente, pequeno demais para seu corpo largo e
ovalado, Mulder se fez prevalecer das vantagens de ter um
exo-esqueleto flexível e dobrou-se e contorceu-se até
atravessar o buraquinho com facilidade sem alargá-lo um
milímetro que fosse.
Queria perguntar a Scully do que tratava aquela investigação.
Ouvira tão pouco do que ela falara ao telefone... Sentia
falta de conversar sobre os casos com ela... Ok! Geralmente,
acabavam discutindo. Mas Mulder sabia que ela, tanto quanto
ele, considerava aquelas argumentações estimulantes e, em
geral, ambos divertiam-se bastante com aqueles seus joguinhos
de palavras.
Rodaram por um tempo até que ela finalmente parou e saltou do
automóvel. Pela conversa que entreouviu entre a parceira e um
homem desconhecido, Mulder concluiu que deviam estar em um
posto de gasolina fajuto no meio daquele imenso nada. Não
arriscava sair de seu esconderijo para confirmar suas
suspeitas. Além disso, a fome imensa que sentia o deixava
enfraquecido. Seu estômago vazio roncava tanto e tão alto que
ele não ouviu o restante da conversa entre Scully e o
atendente do posto nem o momento em que ela ligou outra vez o
carro e recomeçou a rodar. Somente o "cof-cof-cof-puf..." do
motor engasgando e apagando conseguiu arrancá-lo de seu
transe de fome. Scully ainda insistiu, girando a chave na
ignição uma, duas, três vezes, mas o motor não dava sinais de
vida.
Mulder sentiu quando ela desembarcou do automóvel e começou a
andar. Nesse instante, agradeceu aos deuses das baratas pela
fato de ter-se escondido no blazer. Não tivesse se atrevido a
deixar a segurança da sacola, iria com certeza perder a ação.
A ruiva andou por um bom tempo, até que decidiu tirar o
casaco e jogá-lo sobre os ombros. Isso deu a Mulder a
oportunidade de esticar a cabeça para fora do bolso e espiar
a paisagem desértica cortada por uma estradinha de terra
batida. O sol a pino estava abrasador. Nenhum sinal de
civilização a não ser os postes telefônicos perfilados nas
margens da estrada. Aos poucos, foram surgindo uma dúzia de
casas agrupadas numa pequena comunidade com cara de fim de
mundo. Não havia ninguém do lado de fora, a não ser ele,
Scully e o atendente idiota do posto de gasolina. Ela bufava
quando dirigiu-se ao homem.
- Ei! Você colocou algo em meu tanque que fez o motor pifar!
– sua voz soava furiosamente controlada.
- Como? - fez o homem, obviamente fingindo.
- Onde está aquele latão de gasolina? Eu gostaria de vê-lo,
por favor. – ela rosnou, enquanto saía caminhando. O
atendente nervoso a seguia de perto. Mulder achou por bem
voltar ao seu esconderijo. – Água! – ele a ouviu gritar. –
Não tem nem cheiro de gasolina aqui... – ela continuou
furiosa.
- Isso, Scully! – comemorou Mulder, aplaudindo com suas
anteninhas. – Coma o fígado desse safado! – incentivou
enquanto ela andava, batendo os pés com força na terra e
esbravejando com o homem.
- Vou usar seu telefone. – ordenou a ruiva.
- Eu não tenho telefone... – gaguejou o homem. – Mas há um na
casa do Sr. Milsap, ali adiante...
Sem mais uma palavra, Scully virou as costas ao idiota e
subiu a rua. Pelo barulho de seus passos na areia e a maneira
brusca como expirava, Mulder podia afirmar com segurança que
ela estava para lá de furiosa. Ele sabia bem o quanto ela
podia ser perigosa naquele estado de espírito. Encolheu-se
bem no fundo do forro onde se escondia, imaginando que
trágico destino seria o seu se fosse encontrado por uma
Scully zangada como aquela.
A súbita amenizada na temperatura e na claridade e o "tac-
tac" característico dos saltos dos sapatos de Scully num piso
de madeira denunciaram que ela havia chegado à tal casa onde
havia o telefone.
- Olá? – chamou. – Sr. Milsap?
- Posso ajudá-la? – soou uma voz masculina, cujo tom, apesar
de gentil, fez acender uma luz de alerta na cabeça de Mulder.
- Espero que sim... Meu carro enguiçou e eu... pensei que
talvez pudesse usar seu telefone. – disse Scully, um pouco
mais calma.
- Claro! Aqui está! – respondeu o homem numa voz que era só
sorrisos. E dissimulação, para os ouvidos desconfiados de
Mulder. Talvez o tal Milsap fosse um bom velhinho como sua
voz inicialmente queria fazê-lo parecer. Talvez fosse a fome
impressionante que fizesse Mulder ouvir fingimento e
dissimulação por toda parte. Talvez estivesse virando uma
barata paranóica...
- Está mudo... – Scully soava desapontada.
- A maldita companhia telefônica está modernizando as linhas.
Deve estar sendo consertado logo.
- Quando? – bufou, irritada, a ruiva.
- Dez minutos... Duas horas... Quem sabe? Mas seja bem vinda
a esperar aqui. – dizia a voz sempre simpática do homem. -
Posso dar-lhe um quarto, se quiser... Minha casa é uma
pensão. – aos ouvidos de Mulder, a interpretação do velhinho
gentil e bonzinho fazia jus a um Oscar.
- Qual é, Scully? – sussurrou a barata para sua parceira. –
Você vai se deixar enganar por este farsante?
- O que diabos está acontecendo aqui? – a ruiva estava
novamente furiosa. – Tenho a nítida impressão de que alguém
não quer que eu vá embora!
- Isso, Scully! Arrase com ele! – incentivava Mulder de seu
esconderijo, enquanto ela saía da casa outra vez.
O calor era tão forte que obrigou Mulder a encolher-se mais
ainda. Um calafrio percorreu o corpo de Scully.
- São dezoito milhas até a rodovia e mais vinte até
Sugarville... – gritou o homem, enquanto Scully caminhava
decidida pela estradinha de terra. – Você não vai querer
andar tudo isso...
O calor era intenso demais. O chão de terra batida irradiava
ondas de calor que davam a impressão de que tudo até um metro
de altura do solo estava distorcido. O forro do casaco
parecia um forno.
- É... O homem deve ter razão, Scully. – disse Mulder, como
se ela o ouvisse. – É muito longe... e está tão quente aqui
fora... – a fome, que o enfraquecia, fazia com que seus
ouvidos zumbissem e a cabeça rodasse.
- Por favor, senhora... – a voz de Scully soava cada vez mais
distante. – Preciso de ajuda...
- Eu também... – falou Mulder antes de perder a consciência.
PARTE IV – O Prisioneiro de Zenda
"Ooohmmmm..." Um zunzum de vozes baixo e constante invadiu os
ouvidos de Mulder. Sua audição super sensível distinguia umas
poucas palavras aqui e ali naquele canto ou ladainha. Falavam
de Deus e de anjos e do Escolhido.
Ok! Ele havia morrido e fora para o paraíso das baratas. Sim,
porque, enquanto barata, nada fizera para merecer menos que o
paraíso. Além de tudo, morrera de fome, ainda sentia os ecos
da inanição em seu estômago. Entretanto, não queria abrir os
olhos. Não gostava da idéia de estar morto, com Scully
precisando tanto dele lá na Terra...
O simples pensamento em Scully provocou uma completa explosão
sensorial em Mulder. O aroma de seus cabelos tomou conta de
seu olfato, o som de sua respiração e mesmo das batidas
compassadas de seu coração chegou forte a seus ouvidos. Ele
apertava os olhos com força e choramingava, "Não quero
morrer, não quero morrer..." E, então, o paraíso foi sacudido
por um terremoto.
- Ei! Não há terremotos no paraíso, eu acho... – disse a si
mesmo, forçando-se a abrir os olhos.
E lá estava ele, no forro do casaco de Scully, de onde não
havia saído o dia inteiro. Que bom! Estava vivo! E novamente
seu estômago roncava alto, implorando por comida. Que droga!
Ainda tinha fome! Precisava achar algo para comer rápido,
antes que toda aquela estória sobre morte e paraíso se
tornasse realidade.
Concentrou-se. A respiração de Scully era calma e pausada.
Ela dormia. Mulder ousou, então, sair do abrigo. O blazer
estava jogado sobre uma velha cama de ferro aos pés de Scully
que cochilava recostada em sua cabeceira, a arma na mão.
Mulder concluiu que estavam na casa de Milsap e que o
telefone não havia sido consertado. Mesmo adormecida, Scully
tinha um ar triste e cansado. O que não era de surpreender,
dado o tanto que ela havia sido obrigada a andar sob o sol
escaldante naquele dia.
Cuidadosamente, Mulder desceu da cama e foi à caça. Estava
tão zonzo de fome que seu centro de gravidade móvel botava a
perder toda a prática adquirida com o tempo passado naquela
nova forma e lhe pregava peças, deslocando-se em ziguezague
pelo corpo ovalado. O quarto não era mesmo nenhum exemplo de
limpeza, o que levava a crer que não deveria ser difícil
haver algo comestível perdido em algum canto. Dito e feito.
Não muito distante do ponto onde alcançou o chão, sob a
cabeceira da cama, havia generosos restos de batatas fritas e
biscoitos amanteigados. Um banquete como qual Mulder matou a
fome de séculos de restos light do apartamento da parceira.
Saciado, decidiu investigar um pouco. Tratava-se, de fato, de
algum tipo de pensão, sobre isto Milsap não estava mentindo.
Havia restos os mais variados pelos cantos e sob os móveis.
Biscoitos, lenços Kleenex sujos, camisinhas usadas...
Provavelmente a pior espelunca onde ele e Scully já haviam
passado a noite. E eles eram exímios conhecedores de
espeluncas por todo o interior do país...
As frestas do assoalho de madeira dificultavam um pouco sua
caminhada. Por uma delas, tão larga que Mulder quase caiu,
pôde observar de onde vinha a ladainha que o despertara. No
quarto, logo abaixo do que estavam, havia duas dúzias de
pessoas, com velas e candeeiros nas mãos, ajoelhadas em torno
de uma cama, rezando. Sobre a cama, jazia um rapaz forte, mas
com aspecto doentio. Tinha os cabelos grudados de suor e as
feições muito pálidas e contraídas como se sofresse grande
dor. Da cabeceira, um compenetrado Milsap parecia coordenar
as orações, quase que em transe. Muito estranho!
Um ranger de molas causou um sobressalto em Mulder. Scully
acordara e olhava fixamente para o exato ponto onde ele
estava. Apesar de estar bastante escuro naquele canto, ele
teve a certeza de que ela o enxergava nitidamente. Quis
correr, mas algo o impedia, uma moleza nas perninhas
minúsculas. Não conseguia fazer nada a não ser fitar os
grandes olhos azuis e esperar pela chinelada fatal. Tampouco
Scully fazia outra coisa que não fosse simplesmente fitá-lo
nos olhos. E, outra vez mais, ele teve a impressão de ler no
azul do olhar da parceira um flash de reconhecimento e
compaixão. E depois tristeza, uma enorme tristeza dominou
todo seu semblante. O coração de Mulder batia forte e
descompassado e não era de medo. Tinha as pernas bambas e
seus olhos pareciam presos aos dela.
- Sou eu, Scully! Mulder! – ele queria gritar. Mas ela não
entenderia.
Mulder teve a impressão de ver o brilho furtivo de uma
lágrima no canto do olho dela. Queria aproximar-se da cama,
envolvê-la nos braços, confortá-la. Mas não tinha ilusões.
Era somente um inseto repulsivo e o máximo que conseguiria
arrancar de Scully seria um grito ou um pisão.
Um momento depois, a mágica pareceu desfazer-se. Scully olhou
em direção à janela e fungou e deu de ombros levemente.
Então, ajeitou o travesseiro onde estava recostada e apertou
a arma entre os dedos e esperou. Não muito tempo depois,
havia adormecido outra vez.
Mulder sentiu-se tão vazio, tão sem esperanças que se deixou
ficar onde estava, imóvel, largado. Não queria voltar ao
forro do casaco. Não tinha o direito de ficar perto de
Scully. Estava resolvido a terminar sua existência como uma
barata solitária. Havia desperdiçado todas as oportunidades
que a vida lhe oferecera para dizer às pessoas que realmente
importavam o quanto significavam para ele e agora estava
claro que não haveria mais outras chances. Merecia ser
borrifado com todo o inseticida do mundo. Merecia ser
esmagado contra as tábuas do chão até ser reduzido a uma
massa abjeta. Na verdade, o desejava, naquele exato momento.
Porém, por alguma razão que apenas os deuses das baratas
poderiam explicar, viu-se compelido a rastejar de volta à
cama, arrastando pesadamente atrás de si seu centro de
gravidade. Bamboleava e tombava para um lado e para o outro,
como se as forças faltassem às suas pernas. Mas seguia
adiante, mesmo sem saber porquê. Um século depois, o dia
clareava do lado de fora, conseguiu chegar ao topo da cama.
Num rasgo de insanidade, Mulder escalou a sola das botas de
Scully, postando-se na ponta de um de seus pés. Ela dormia,
ainda recostada na cabeceira da cama, as mãos pousadas na
arma em seu colo. Ele a observou por alguns instantes, a boca
entreaberta, a cabeça ligeiramente tombada para frente, um
raio alaranjado do sol nascente emprestando reflexos
incandescentes aos cabelos ruivos. Era tão raro vê-la assim
relaxada, tranqüila, a guarda abaixada, despida da máscara de
impassibilidade. Era bela, tão bela...
Mulder sentia que precisava dizer a ela tudo o que trazia
entalado no peito por oito longos anos. Já não havia muito o
que perder, portanto resolveu arriscar tudo o que ainda
possuía, sua própria vida. Atreveu-se a descer das botinas e
percorrer todo o caminho desde a ponta de seus pés até seu
ombro direito, atravessando toda extensão das pernas
estendidas sobre a cama, subindo pelo abdômen e pelo peito
que moviam-se lentamente no compasso de sua respiração, até
alcançar seu destino. Durante todo o percurso, sabia-se um
alvo fácil, tinha plena consciência do horrendo destino que
sua ousadia podia lhe custar. Mas não hesitou, vencendo
bravamente as rugas do tecido, as curvas e inclinações do
corpo adormecido. Talvez, em seu subconsciente, ansiasse por
aquele desfecho, que Scully acordasse e tornasse real o
pesadelo constante de um fim indigno que o assombrava. Talvez
fosse exatamente isso o que buscava.
Mas não foi o que obteve. Ela continuou adormecida e ele
galgou seu ombro corajosamente. Daquele ângulo, sentiu-se
como já havia se sentido diversas vezes antes, pequenino e
insignificante diante dela. Mas o que antes era uma impressão
causada pela postura da parceira, naquele instante era uma
dura realidade. Ele era um minúsculo inseto e ela, uma
gigante adormecida com o poder de esmagá-lo até a morte com
apenas um dedo. Mas nada disso vinha ao caso, não naquele
instante. Precisava dizer o que sentia. Mesmo que ela não
compreendesse.
- Olha, Scully... tenho tanto a dizer... – começou. - Como eu
gostaria que você pudesse entender o que digo... - Escolher
as palavras certas nunca fora sua especialidade. - Em todo
esse tempo em que estamos juntos... e mesmo antes... nunca
houve alguém que... que significasse tanto para mim quanto
você... – gaguejava, suspirava, falava por metáforas. Era tão
difícil... – Você foi, com certeza, a primeira... e a única
pessoa em quem tive completa confiança. Não desde o primeiro
momento, é verdade... mas, naquela noite, no Oregon... quando
você entrou no meu quarto no meio da noite... apavorada por
causa de umas picadas de mosquito... - a lembrança o fez
sorrir consigo mesmo. - Foi diferente... Não se pode deixar
de confiar em alguém que se apavora com mosquitos...
Em meio ao sono, Scully sorriu, também. Como se entendesse.
Aquilo encheu Mulder de coragem para prosseguir. Ela estava
ouvindo! E compreendia!
- Se algumas vezes escondi coisas de você... quero que saiba
que não foi por falta de confiança... mas para poupá-la do
sofrimento... Me destrói por dentro vê-la sofrer, Scully. E
já causei tanto sofrimento a você... Sua abdução...
Melissa... o câncer... Emily... a impossibilidade de ser
mãe... – se baratas tivessem canais lacrimais, Mulder estaria
com os olhos rasos d'água naquele instante. – Queria que você
me perdoasse, Scully... Por tudo o que fiz e disse... e não
fiz e não disse... - um nó se formara em sua garganta,
dificultando ainda mais o fluxo das palavras. - Preciso de
seu perdão... de sua amizade... Preciso tanto de você,
Scully...
O semblante adormecido da ruiva adquiriu uma expressão terna
e suave, quase tristonha.
– Porque... tem uma coisa que preciso dizer a tempos... mas
não sei muito bem como...
No sono, a sobrancelha da mulher arqueou-se inquisitiva,
compelindo Mulder a prosseguir.
– É tão difícil quando a gente cala um sentimento desses por
tanto tempo... É como se as palavras enferrujassem na
garganta... – ele respirou fundo, tomando coragem para
continuar. – É que eu... eu.. eu amo você! – disse de súbito,
no exato momento em que fortes pancadas sacudiram a porta.
Scully despertou assustada, erguendo a arma e a apontando
para a porta. Mulder, sacudido pelo despertar agitado da
parceira, teve que segurar-se com toda força de suas patinhas
no tecido da camisa para não cair. Estava definitivamente
frito agora! Milhas e milhas o separavam da segurança de seu
abrigo no bolso do casaco. "Bem feito, Mulder! Agora vai se
dar mal.", disse a si mesmo com ironia. Mas uma idéia louca
acudiu sua cabeça quando a parceira caminhou para a porta.
Como uma flecha, ele enfiou-se por trás da gola da camisa
verde oliva que ela vestia, desaparecendo de vista.
- Doutora, é uma emergência. – a voz de Milsap soava
assustada. – Há um homem lá embaixo que precisa de ajuda.
Mulder precisava agarrar-se com toda força para manter-se
firme em seu novo esconderijo. Cada movimento da ruiva
resultava num desafio para que mantivesse o controle sobre
seu traiçoeiro centro de gravidade. Ele mal conseguia prestar
atenção à conversa entre Scully e os outros.
- Precisamos levá-lo a um hospital. – ela dizia,
provavelmente referindo-se ao rapaz doente que Mulder vira na
noite anterior. – Acredito que o telefone ainda não esteja
funcionando... E ninguém por aqui tem um carro?
- Não. – respondeu uma voz feminina desconhecida.
- Podemos mandar alguém a pé até a rodovia para pedir ajuda.
– sugeriu Milsap.
- Enquanto isso, por favor, ajude-o. - acrescentou a mulher
estranha.
Ao examinar o doente, porém, Scully começou a mover-se um
pouco demais para o precário equilíbrio do parceiro. Foram
tantos os abaixa-e-levanta a sacudirem a camisa que, num dado
momento, ele deixou escorregarem por entre as patas as
minúsculas dobras de tecido onde se firmava e acabou por cair
esparramado no chão, atrás da ruiva. Por sorte, sua queda não
foi percebida nem por Scully nem pela mulher gorda com cara
de má que zanzava em volta da cama. Por ainda mais sorte, não
foi esmagado por uma das solas de sapato desavisadas que
perambulavam pelo quarto. A proteção que os deuses das
baratas lhe conferiram espontaneamente durante todo o tempo
em que esteve desamparado naquele chão foi enorme. Quando,
enfim, conseguiu recuperar o controle dos movimentos, tratou
de correr o mais rápido que pôde para o abrigo oferecido pela
cama. Somente então pôde voltar a dedicar sua atenção ao que
acontecia naquele quarto. A gorda havia deixado o cômodo e o
doente recobrara a consciência.
- A ferida em suas costas, - dizia Scully, - parece ser o
ponto de entrada de algum tipo de parasita que se alojou ao
longo de sua espinha...
- Quer dizer que estou morrendo? – indagou o doente em voz
débil.
- Vai morrer... se não o tratarmos adequadamente. – Scully
soava fria como uma maldita médica. Por que os médicos tinham
de ser tão insensíveis? Por que insistiam em tratar seus
pacientes como se não passassem de baratas? – E essa gente
parece não querer deixá-lo partir. Acho mesmo que eles
colocaram essa coisa em você.
Nenhuma palavra deixou os lábios do rapaz após uma afirmação
tão grave como aquela. Aquilo parecia estranho demais a
Mulder, fazia acender uma porção de luzes de alerta em sua
cabeça. Mas Scully continuava falando, alheia aos sinais de
perigo.
- Não tenho idéia do porquê eles o fizeram, se fazem parte de
alguma seita religiosa bizarra... – ela dizia. – O fato é que
mataram a última pessoa que estava nas mesmas condições que
você e temo que irão matá-lo também. – acrescentou.
- Isso não é maneira de se falar com uma possível futura
vítima de assassinato, Scully! – espinhou-se Mulder. – Não
foi assim que ensinaram na academia... Cadê sua psicologia? –
protestava.
Mas a tal possível vítima reagiu de modo ainda mais
inadequado, se isso lá era possível.
- O que você está dizendo é difícil de engolir. – foi a
resposta do rapaz, agora com uma voz bem mais forte que em
sua fala anterior. Nenhum sinal de desespero. Nada de gritos
ou lágrimas. Era como se ele já soubesse de tudo
antecipadamente e aceitasse as possibilidades como certezas.
Um milhão de luzes vermelhas e sirenes de perigo pipocaram na
mente de Mulder.
- É um engodo, Scully! Cuidado! – Mulder gritava, tentando
alertar a parceira. - Eles estão todos juntos nisso. Milsap,
a gorda, esse cara aí na cama...
- O que você vai fazer? – perguntou o farsante doente.
- Vou tentar nos tirar daqui... – ela respondeu. – Deve haver
algum meio de transporte escondido por aí...
- Scully, cuidado! Preste atenção! É a você que eles querem,
não percebe? Eu sei... eu sinto... – em seu desespero, Mulder
chegou a sair de baixo da cama e parar a um centímetro das
pontas dos sapatos da ruiva, gritando nervosamente. Mas ela
não o ouvia.
Scully andou até a janela e a abriu. Em seguida, pareceu
lembrar-se de algo e voltou até a cama.
- Você sabe usar uma arma? – ela perguntou ao rapaz, tirando
sua pistola do coldre e a entregando a ele.
- Você está louca, Scully? – Mulder protestava. Não podia
crer no que ouvia. – Não faça isso. Ele não é confiável. – em
seu desespero, ele escalou o peito do sapato de Scully e
agarrou-se com força à barra de sua calça, como se não
quisesse deixá-la prosseguir. – Não posso deixá-la ir
sozinha... Vou com você!
- Volto já! – disse a ruiva, enquanto pulava a janela.
Mulder, agarrado à barra de sua calça, não resistiu, porém, à
série de sacolejos bruscos da perna da parceira durante esse
movimento e acabou por ser atirado longe, de volta ao quarto.
Um momento depois, uma batida foi ouvida na porta e Milsap e
a mulher gorda estavam de volta.
- Onde ela foi? – indagou a mulher.
- Ela disse que estou morrendo. – respondeu o rapaz em voz
firme.
Milsap e a gorda entreolharam-se significativamente.
– Precisamos de outra troca. – acrescentou o doente, ao ser
ajudado a erguer-se da cama pela dupla.
Sentindo-se o mais impotente dos insetos, Mulder deixou-se
ficar onde havia caído, enquanto os três saíam do quarto. O
fosse lá o que fosse que o rapaz carregava em seu corpo
precisava de um novo hospedeiro e aqueles loucos haviam
escolhido Scully! Pior do que saber o que estava para
acontecer, era a sensação de não poder fazer absolutamente
nada para impedi-los. Mulder queria poder transformar-se num
daqueles gigantescos e ameaçadores insetos dos filmes de sci-
fi e avançar sobre aqueles lunáticos agitando as patas e
brandindo as mandíbulas até fazê-los correr aterrorizados.
Mas qual nada! Era apenas uma baratinha insignificante e
Scully, sua Scully, estava lá fora, desarmada, indefesa,
completamente à mercê daquele bando de fanáticos religiosos.
PARTE V – No Calor da Noite
Um milhão de anos se passaram para um Mulder consumido pelo
desespero e escondido no chão sujo e poeirento sob a cama de
um quarto de uma pensão decadente em um lugarejo perdido
entre nada e lugar nenhum no meio do deserto de Utah. Ele
apurava os ouvidos, tentava se fazer valer de seus
superpoderes de barata, de sua audição ultra aguçada para
captar algum sinal de Scully. Mas tudo o que conseguia ouvir
eram as marteladas surdas de seu próprio coração, batendo
como um louco, em agonia. Fora isso, apenas o silêncio da
noite que caía.
Quando, por fim, algo aconteceu para quebrar a inquietante
monotonia da espera, a porta escancarou-se e ele viu Milsap e
o atendente do posto trazendo Scully, sustentada pelos
braços, para o quarto. Mulder não pôde ver-lhe rosto. A
cabeça estava tombada sobre o peito, os cabelos ruivos
cobriam-lhe a face. Os pés não se moviam, arrastados atrás do
corpo inerte. Desacordada. Talvez morta.
Os homens a colocaram sobre a cama e ela gemeu alto. Mulder
respirou, aliviado. Andaram em torno da cama por algum tempo
e, depois, afastaram-se. Milsap e os outros olhava para a
mulher estendida na cama como que em adoração, as mãos postas
em oração.
- Malditos! – bradava Mulder debaixo da cama, agitando as
patinhas como se quisesse bater neles.
Sobre a cama, Scully gemia e ofegava, como se fosse presa de
grande dor. Cada gemido gutural que ela emitia doía em Mulder
como uma facada.
- O que vocês colocaram, em mim? – ela gritava,
dolorosamente. – Vou pegá-los a todos, seus bastardos... –
ameaçava impotente.
- Não. Você vai nos amar. – replicava Milsap, as mãos sempre
postas em oração. – Vai nos proteger, nos ensinar a não ter
inveja... Mas eu a invejo tanto... Em breve, vai ser uma só
com Ele... – dizia com êxtase nas palavras.
- Ele? - grunhia a ruiva. – Essa coisa em minhas costas é um
Ele? – ela gritou dolorosamente, remexendo-se e fazendo
rangerem as molas da cama.
- Por favor! É uma coisa maravilhosa para você... –
contemporizava suavemente Milsap. – O último homem não era um
tabernáculo adequado...
Uma raiva surda dominava Mulder. Tabernáculo? Queria acabar
com aquele Milsap e seus amaldiçoados seguidores. Delirava em
ser um gigante e esmagá-los a todos, em ter uma arma
carregada de balas para tão somente descarregá-la sobre
aqueles lunáticos. E em poder levar Scully dali para algum
lugar onde ela pudesse ser tratada adequadamente.
- Socorro! Socorro! – gritou Scully, quando os faróis de um
automóvel iluminaram a janela.
Mas a gorda, de alguma forma, a fez calar. E saiu do quarto
acompanhada por Milsap. Cego de angústia, Mulder deixou seu
esconderijo e escalou o pé da cama até o colchão, sem
perceber que o atendente idiota do posto de gasolina
permanecera no quarto, vigiando Scully.
- Malditos, malditos, malditos! – gritou a plenos pulmões ao
ver Scully deitada, braços e pernas abertos e atados aos
ferros da cama, a barriga de encontro ao colchão.
Havia uma ferida circular na base de sua espinha e algo
movia-se ao longo dela, por sob a pele. Todo seu corpo,
coberto por uma fina camada de suor, refletia o brilho
amarelado dos lampiões. Um lenço enfiado em sua boca a
impedia de gritar. Ela começou a espernear como uma louca,
quase esmagando Mulder que caminhava sobre o colchão, até que
conseguiu atingir com um dos pés um lampião colocado numa
mesa baixa ao pé da cama.
O homem, que espiava pela janela o que quer que estivesse se
passando na rua, teve de lutar rapidamente para impedir que
as chamas se alastrassem. Enfim, o atendente obteve sucesso
e, embora Mulder não o tivesse notado, tinha agora o olhar
fixo naquela atrevida barata parada a poucos centímetros de
onde repousava o "tabernáculo d'Ele". Pura heresia! Talvez
por causa de sua tão grande preocupação com a baratinha
herética, ele não tivesse notado a entrada do homem de
cabelos louros no quarto.
- Ei... – soou a voz do estranho, atraindo a atenção tanto de
Mulder quanto do atendente pateta que se voltou para receber
um fortíssimo soco do outro e cair inconsciente. – O que
diabos...? Agente Scully!
O estranho conhecia Scully! Com uma expressão entre
preocupada e carinhosa, ele retirou o lenço que tampava a
boca da ruiva.
- Agente Doggett! Me tire daqui!
E Scully o conhecia! Doggett? Mulder não se lembrava de
conhecer ninguém com esse nome no Bureau. Quem seria aquele
Doggett?
- Você pode andar? – perguntou o homem, enquanto desatava os
nós que prendiam Scully.
Antes que Doggett alcançasse os pés de Scully, Mulder tratou
de agarrar-se às calças dela com toda a força de suas
patinhas e mais o quanto pôde aplicar da força de suas
mandíbulas sem rasgar o tecido.
- Não sei... - respondeu a ruiva entre gemidos.
Prontamente, Doggett a tomou nos braços, erguendo-a com
facilidade da cama. Mulder não conseguia ver muito do que se
passava, concentrado que estava em manter-se firme em seu
posto. Tudo o que podia afirmar era que haviam deixado a casa
de Milsap e caminhavam pelas sombras de uma noite escura,
seguindo instruções esparsas de Scully. Ela parecia sentir
muita dor, emitindo grunhidos sofridos de vez em quando. Às
vezes, de relance, Mulder podia entrever as feições de
Doggett e sua expressão era atenta e gentil. Seus olhos
tinham um brilho diferente quando olhava para Scully, um
brilho que não agradava Mulder em absoluto. A barata
paranóica voltava à cena...
Entraram em uma espécie de celeiro, onde, surpresa, estava o
ônibus que haviam visto na estrada no dia anterior. Uma vez
em seu interior, Doggett instalou Scully em um dos bancos da
frente e agachou-se sob a barra de direção, manipulando um
aglomerado de fios.
De onde estava, Mulder podia observá-lo mexendo nos muitos
fios com intimidade e confiança. Era um homem cujas linhas de
expressão muito marcadas sugeriam estar na segunda metade dos
quarenta. Os cabelos louros cortados rentes à cabeça
ressaltavam um par de orelhas avantajadas. Sua expressão era
o que normalmente poderia ser enquadrado como "típico tira de
Nova York", rígida e sem emoções, do gênero prendo-e-
arrebento. Exceto quando olhava para Scully. Nessas horas, as
feições se suavizavam, as rugas tornavam-se menos profundas,
parecia quase humano, completa transformação. Quem poderia
ser aquele agente Doggett, surgido em meio ao nada, qual um
cavaleiro de armadura cintilante para resgatar a princesa
Scully em apuros? Não, Mulder não gostava do homem.
- Pode fazer uma ligação direta? - soou a voz sofrida de
Scully.
- Posso fazer ligação direta? - Doggett ironizou confiante. -
Em sessenta segundos.
Quem diabos poderia ser aquele cara? Sua atitude, sua
arrogância e auto-suficiência, seu jeito incômodo de olhar
Scully... Tudo nele desagradava Mulder profundamente. Tinha
ciúmes! Mas ciúmes de quê? Em seu relacionamento com Scully,
não havia espaço para ciúmes. "Que relacionamento, Mulder? E,
por acaso, o que você tem com Scully pode ser chamado de
relacionamento? Caia na real, bolas!" Suas divagações
sentimentalóides foram interrompidas por um gemido alto da
parceira.
- Agente Scully... Fale comigo! - Doggett falou assustado.
- Você tem que tirar isso fora. Corte! - a mulher tinha a
respiração entrecortada. Sua voz estava surpreendentemente
aguda. - Oooh! Está indo para o meu cérebro...
Mulder precisava ver o que estava acontecendo. Sem pensar,
escalou a perna da calça da parceira e depois a parede ao
lado do banco. E a visão que teve o surpreendeu e desesperou.
A criatura movia-se debaixo da pele de Scully em direção a
sua cabeça. Em agonia, ela tentava impedir-lhe o avanço,
apertando o pescoço com as mãos. Doggett, parado ao lado do
banco, olhava atônito os movimentos da coisa pelas costas da
mulher.
- Tire essa coisa de mim... Agora! - gritou a ruiva.
Mas Doggett continuava paralisado, o canivete aberto na mão.
As mãos de Scully apertavam com força as ferragens do ônibus,
os nós dos dedos claramente desenhados contra a pele
retesada.
- Droga, Doggett! Faça o que ela está pedindo! - berrou
Mulder para o homem.
Milsap e seus seguidores já haviam invadido o celeiro e
tentavam entrar no ônibus, quando Doggett, finalmente, fez
uma incisão na pele na base do pescoço da mulher e de lá
retirou um verme esbranquiçado. Era comprido e repulsivo e
contorcia-se tentando escapulir das mãos do agente. Os
fanáticos já haviam quebrado os vidros das janelas e entravam
no coletivo, ameaçadores, portando facões e ancinhos e...
armas de fogo.
- Mate esta coisa, seu idiota! - gritou Mulder. - Só assim
eles vão parar.
Como que atendendo ao comando de Mulder, Doggett atirou a
criatura no fundo do ônibus e sobre ela descarregou três
tiros, apontando, a seguir, a arma para Milsap. Mas o outro
já não era mais combativo, devastado que estava diante do
corpo sem vida d'Ele...
Mulder voltou o olhar para Scully que parecia prestes a
desmaiar, extremamente pálida, a pele perolada por um suor
frio.
- Ela precisa de cuidados! – gritou para Doggett. – Faça
alguma coisa!
O agente, depois de guardar a pistola no coldre, envolveu
Scully em seu paletó e a ergueu nos braços, atravessando o
bando de fanáticos, agora silenciosos e resignados. Mulder
mal teve tempo de se atirar de onde estava, agarrando-se à
manga do paletó de Doggett, para não ser deixado ali. Com
sacrifício, conseguiu escalar o tecido até atingir uma
posição de onde podia ver o rosto exangue da parceira e a
expressão apreensiva de Doggett.
As luzes dos carros de polícia rapidamente iluminaram a névoa
baixa que envolvia a estradinha. Doggett dirigiu-se a um dos
automóveis parados, depositando Scully gentilmente no banco
traseiro, onde acomodou-se também.
- Para o hospital, rápido! – ordenou ao policial.
Mulder, que aproveitara a distração do agente para esconder-
se em um dos bolsos de seu paletó, observava a mulher
desacordada, a cabeça pendendo mole sobre o encosto do banco.
Uma mecha dos cabelos ruivos deslizava de um lado para o
outro sobre sua face de acordo com o balanço do automóvel.
- Tire suas mãos imundas dela, seu orelhudo! – ralhou Mulder
furioso, quando Doggett delicadamente ajeitou a mecha de
cabelos vermelhos para o lado. – E esses olhos compridos,
também. Senão parto sua cara ao meio... – ele definitivamente
não gostava daquele camarada.
O que se seguiu, depois que chegaram ao hospital, foi confuso
demais para um Mulder que não podia atrever-se a colocar a
cabeça para fora do bolso onde estava. A fome imensa de um
dia inteiro sem comer o deixava meio zonzo. Tudo o que
conseguiu saber com certeza foi que Scully estava bem e fora
de perigo.
Em algum momento, em sua confusão, percebeu que os sacolejos
e trambolhões pelos quais o paletó vinha passando haviam
cessado. Podia ouvir o ronco do motor de um automóvel. Ousou
espiar o lado de fora e percebeu que estava outra vez mais no
banco traseiro de um carro e que, ao lado, também sobre o
banco, estava a sacola de viagem de Scully. Com um
agradecimento silencioso aos deuses das baratas, voltou à
segurança da bolsa pela mesma fresta no zíper pela qual havia
saído dois dias antes. Encontrou um abrigo confiável em um
canto da sacola e lá se deixou ficar, faminto, apático,
enfraquecido, à espera da morte, mais uma vez. Porém, para
sua surpresa, e decepção talvez, foi despertado, não fazia a
mínima idéia de quanto tempo depois, pelos movimentos das
mãos de Scully desfazendo a mala. Encolheu-se, esgueirou-se,
escondeu-se e, quando ela, enfim, guardou a sacola no
armário, Mulder pôde voltar ao seu abrigo sob a mesinha de
cabeceira e à sua velha rotina de baratinha doméstica.
PARTE VI – Sonata de Outono
Durante os dias que se seguiram, Fox Mulder dedicou-se com
afinco a empanturrar-se de tudo o quanto pudesse comer. Nas
horas vagas entre as refeições, usava de suas habilidades de
barata para grudar-se ao vidro da janela, observando a vida
que passava lá fora. Olhava o céu azul sem nuvens e as folhas
que amarelavam e caíam das árvores. Imaginava o sopro frio da
brisa em seu rosto e os cheiros do outono em suas narinas e o
canto dos pássaros em seus ouvidos.
Sempre gostara da melancolia característica do outono,
daquela certeza de que, após o inverno tristonho e sombrio,
aguardava a radiante primavera. Mas os últimos tempos para
Mulder, estavam sendo como um longo tenebroso inverno e não
havia perspectiva de que a primavera jamais ocorreria
novamente. Sentia-se um condenado no corredor da morte, uma
vítima de doença terminal, aguardando a derradeira crise.
Outra atividade que consumia boa parte de seus dias era
passar horas tentando descobrir quem diabos poderia ser o tal
Doggett e qual seu relacionamento com Scully. Havia até mesmo
mandado às favas os escrúpulos. Bisbilhotava abertamente a
correspondência da parceira e ficava à espreita ouvindo-lhe
os telefonemas. Mas pouco conseguira descobrir a não ser que
ele próprio, Fox Mulder, clone ou não, parecia ter sumido do
mapa. Não havia mais telefonemas no meio da madrugada ou
visitas fora de hora. A vida de Scully tornara-se um tédio!
Ao menos, ela parecia ter melhorado do que quer que a fizera
passar mal e vomitar nas primeiras semanas em que Mulder fora
morar em seu apartamento. Embora continuasse pálida e
nitidamente angustiada, ganhara algum peso e seu rosto
apresentava bochechas salientes, novamente, coisa que não
acontecia desde antes de sua abdução. Aquilo, de certa forma,
tranqüilizava Mulder que chegara a temer pela volta de seu
câncer.
Quando já se sentia novamente recuperado e forte o
suficiente, ele voltou a infiltrar-se num dos bolsos da ruiva
e, com ela, saiu para o mundo exterior.
Sua primeira saída o conduziu direto até os porões do
edifício J. Edgar Hoover, o escritório dos arquivos X. "Meu
escritório", ia dizendo saudoso, quando viu, sentado em uma
das mesas, com intimidade e naturalidade, o tal Doggett.
- Bom dia, Agente Scully! – disse o outro com um sorriso.
- Bom dia, Agente Doggett! – ela respondeu.
Num segundo, o já tumultuado mundo de Mulder precipitou-se em
um profundo caos. Havia perdido seu posto nos arquivos X! E o
orelhudo o havia assumido em seu lugar.
- Não pode ser verdade. Isso não está acontecendo! –
choramingou Mulder, amargo.
Mas Scully sentou-se na outra mesa, como se aquilo tudo já
fosse um hábito, e começou a tediosa tarefa de preencher
papelada. Do fundo do bolso, entre um soluço e outro, Mulder
ouvia cada ruído provocado por Doggett. O ranger de sua
cadeira, o arranhar do lápis sobre o papel, o som de sua
respiração, tudo o que ele fazia chegava amplificado um
milhão de vezes aos ouvidos super sensíveis da baratinha e
incrementava sua irritação.
Scully continuava ali, sentada, "clique-clique-clique" nas
teclas do computador, completamente alheia aos sons
enervantes produzidos pelo homem. "Como é que ela consegue?",
Mulder imaginava. "Aquele verme nojento deve ter destruído
alguns de seus neurônios...", ironizava, embora, ao mesmo
tempo, não deixasse de preocupar-se.
Mal sabia Mulder que o pior ainda estava por vir. A gota
d'água, a afronta final. O barulho de Doggett abrindo as
gavetas de seus sacrossantos arquivos X!
Heresia! Profanação! Danação e fogo do inferno! Morte aos
infiéis!
- Tire suas patas sujas dos meus arquivos, seu orelhudo de
uma figa! - gritou Mulder com toda força, dando vazão a sua
ira.
- Como? - Doggett perguntou intrigado a Scully.
A ruiva levantou a cabeça ligeiramente.
- Ahn? - fez sem entender.
- O que você disse, agente Scully? - indagou Doggett,
desconcertado.
- Eu? - respondeu, olhando para ele espantada. - Eu não disse
nada...
A expressão de Doggett era de incredulidade.
- Podia jurar que ouvi alguém me dizendo para tirar as mãos
dos arquivos... - disse ele confuso. Depois, deu de ombros. -
Devo estar imaginando coisas...
Scully sacudiu a cabeça com um sutil ar de desdém e voltou a
mergulhar em sua papelada. Mulder, a baratinha, no fundo do
bolso, não sabia se chorava ou se ria da situação que havia
criado. Ao menos, o outro parecia tê-lo ouvido, já que fechou
rapidamente as gavetas e saiu da sala. Havia vencido a
batalha.
Mulder, no entanto, tinha consciência de que aquela era
apenas uma batalha em uma guerra perdida. Apesar do choque
inicial de ter um estranho remexendo no que considerava os
seus arquivos, ele rapidamente percebeu o absurdo que
representavam seus ciúmes. Ele, Fox Mulder, como o mundo o
conhecera, não mais existia, era história. O que havia agora
era John Doggett, o novo parceiro de Scully, a cargo de
ajudá-la, ao que tudo indicava, com os arquivos X. Não havia
o que discutir ou contra quem se revoltar. Era uma questão de
aceitar as coisas como estavam ou aceitar as coisas como
estavam. Ponto final.
Fox Mulder, ex-agente do FBI, expert em traçar perfis de
assassinos seriais, destemido caçador de alienígenas e
conspirações governamentais, atual integrante da família dos
Blatídeos, passara à categoria de observador mudo e passivo
das ações de Dana Scully e John Doggett. Embora, talvez
pudesse dar um palpite ou outro, de vez em quando.
Foi nessas condições que os acompanhou durante aquele caso
dos irmãos exterminadores, no qual o estranho Randall Cooper
podia ver através das paredes. E assim também na investigação
que os conduziu ao ferro-velho, em Indiana, que servia como
depósito de resíduos tóxicos. Mulder postava-se como um mero
espectador, assistindo a tudo de sua privilegiada posição no
bolso de Scully. Emitindo, vez por outra, palpites e
opiniões, quase sempre solenemente ignorados pelos agentes.
Mas, às vezes, muito mais escassas vezes do que ele gostaria,
Scully parecia ouvi-lo, repetindo as coisas que ele mesmo
teria dito. E, nessas raras ocasiões, eram uma dupla
novamente.
De resto, seguia a vida. Mulder encarava Doggett como um mal
necessário e procurava aproveitar ao máximo suas incursões ao
mundo exterior, tentando divertir-se ao acompanhar a ruiva
nas investigações.
Mas nem sempre saía com ela. Em ocasiões demais, os dedos da
parceira esbarravam em suas anteninhas de barata. E, em mais
vezes do que ele gostaria de lembrar, quase havia ficado para
trás quando atrevera-se a deixar a segurança de seus bolsos.
Por isso, ele achava por bem nem sempre acompanhá-la. Não era
conveniente arriscar-se em excesso. Outras vezes, não a
acompanhava simplesmente porque uma vozinha em sua cabeça,
quem sabe sua consciência ou seu anjo da guarda ou a voz da
razão, lhe dizia para não ir. E ele ficava em casa, vendo a
vida passando lá fora pela janela e remoendo as mágoas do
pouco de que podia se recordar de sua vida.
Numa dessas ocasiões em que ficara em casa, descobriu
satisfeito o desavisado controle remoto da TV esquecido sobre
o sofá. Nem pensou duas vezes antes de pular sobre o botão de
"Liga". Surpreendentemente, o aparelho ligou-se e Mulder
matou as saudades dos tempos em que passava as tardes
zapeando pelos canais. Embora fosse um tanto cansativo ficar
pulando de um lado para o outro sobre os botões do controle,
teve uma das tardes mais agradáveis desde que assumira sua
nova condição de inseto. Quando calculava faltar cerca de
meia hora para o retorno de Scully, ele cuidadosamente
desligou a TV e voltou ao seu esconderijo oficial sob o
criado mudo.
O dia seguinte amanheceu tão frio e chuvoso que pareceu a
Mulder que ficar no aconchego do lar seria o melhor a fazer.
Melhor ainda se o controle remoto fosse novamente esquecido
no sofá. E, para seu deleite, lá estava ele, outra vez ao seu
dispor. Mais zapping e diversão garantida. E assim era quase
sempre que ele não saía com a parceira.
Scully andava estranhamente esquecida. Além do controle
remoto, freqüentemente deixado no sofá ou na mesinha, volta e
meia a ruiva largava objetos fora de seus lugares ou esquecia
algo em casa, retornando no meio do dia para buscar e
provocando sustos homéricos na pobre baratinha.
Um belo dia, Mulder assistia completamente entretido a um de
seus filmes favoritos na TV, quando a porta abriu-se de
repente e Scully entrou na sala como um furacão. Mulder mal
conseguiu esconder-se atrás de uma das almofadas do sofá. Nem
ao menos teve tempo de pensar em desligar a televisão. Mas
ela pareceu não perceber o aparelho ligado, quando passou
como uma flecha em direção ao quarto, batendo os pés com
força no chão. Tampouco deu mostras de notá-lo, enquanto saía
e puxava a porta atrás de si.
Subitamente, porém, estacou, a chave suspensa no ar a meio
caminho da fechadura. E franziu o cenho e entrou em casa
outra vez, a passos lentos, quase hesitantes. Parou em frente
à TV e ficou olhando para a tela. Muda. Perplexa.
- Plan 9 From Outer Space... - murmurou finalmente, enquanto
se sentava no sofá.
E assim ficou.
- Sabe, é uma coisa interessante quando se considera que as
pessoas na Terra que podem pensar estão tão temerosas
daquelas que não podem morrer... - os lábios murmuravam
baixinho os diálogos do filme.
Os olhos fixos na TV foram pouco a pouco ficando rasos
d'água. As mãos pousadas sobre o colo amassavam os cantos de
um envelope onde havia o logotipo do Parenti Medical Group.
Quando uma lágrima, enfim, escapou de seus olhos azuis e
rolou solitária face abaixo, ela cerrou os olhos com força e
respirou profundamente. Depois, secou o rosto com as costas
da mão, levantou-se e saiu, fechando vagarosamente a porta
atrás de si com um longo suspiro, deixando para trás a TV
ligada e um Mulder atônito, escondido atrás da almofada do
sofá.
Scully andava cada vez mais estranha.
Algumas manhãs depois, numa daquelas em que o comportamento
da ruiva estava especialmente bizarro, Mulder a acompanhou
até um quarto de hotel onde um homem havia sido encontrado
morto, pouco depois de chegar da Índia. Uma morte suja, todo
seu sangue havia sido drenado do corpo. Não havia, no
entanto, indícios de febres hemorrágicas em seu sistema ou
sinais de arrombamento no quarto.
- Então? O que você acha que foi, agente Scully? Hotel mal
assombrado? Ataque de alienígenas? Vampiros? - provocava
Doggett.
Mas Scully não aceitava as provocações.
- Melhor manter a mente aberta. - foi tudo o que respondeu a
agente.
No necrotério, Scully fazia a autópsia da vítima, Hugh
Potocki. O odor forte de sangue e entranhas impregnava o ar.
Mulder, enjoado com o cheiro nauseabundo, imaginava como a
ruiva conseguia suportar todas aquelas autópsias nojentas e
seu desagradável cheiro de morte e todo aquele sangue que
respingava e se grudava nos óculos, nas luvas, nas roupas e a
visão apocalíptica de vísceras e mais vísceras, fétidas e
sanguinolentas... E pensar que fora ele, Fox Mulder, que
recebera a alcunha de Estranho em Quantico...
A necrópsia revelou grande destruição dos tecidos da cavidade
abdominal. Revelou também que a hora aproximada da morte
parecia, inacreditavelmente, ser anterior ao embarque do
senhor Potocki no avião de Bombaim para Washington!
- Quer dizer que um homem morto embarcou num avião na Índia,
fez conexão em Paris, tomou um táxi em Dulles, depois
registrou-se num hotel no centro da cidade e deu gorjeta ao
camareiro? Com base em minha experiência, posso dizer que
homens mortos não dão gorjetas, agente Scully... - ironizou
Doggett.
Do fundo do bolso onde estava, Mulder teve vontade de socar a
cara de Doggett pelo tom jocoso. Scully, em situação normal,
faria o mesmo. Mas, estranhamente, tudo o que a mulher
respondeu foi:
- Eu disse para manter a mente aberta, agente Doggett.
"Tão improvavelmente Scully...", a baratinha não pôde deixar
de pensar.
Um caso intrigante, na opinião de Mulder. Principalmente pelo
comportamento incomum que vinha demonstrando a parceira.
Tantas possibilidades se afiguravam na mente ágil da
baratinha, tantas hipóteses polêmicas que ele gostaria de
debater com Scully... Mas tudo o que lhe restava era a
frustração de não poder fazê-lo, de não ser ouvido ou
compreendido por ela.
Na manhã seguinte, foi com Scully até uma casa no subúrbio,
onde um menino havia encontrado seu pai morto na sala. Antes,
porém, o garoto, Quinton, alegava ter visto um estranho
homenzinho sem pernas dentro de seu quarto.
- Mas é o pai que me interessa. - explicou Scully a Doggett.
- Ele não apresentava nenhum dos sinais de hemorragia que
encontramos na outra vítima. Pelo relatório inicial do
legista, sofreu algo como um aneurisma cerebral. O único
detalhe dissonante no exame foram os olhos... cujos vasos
sangüíneos estavam rompidos, como em Potocki. - completou
ela, pensativa.
- A não ser que esse seja apenas o primeiro estágio... -
murmurou Mulder do bolso.
- A não ser que esse seja apenas o primeiro estágio... -
repetiu Scully, voltando as costas e deixando para trás um
boquiaberto Doggett.
E, um pouco depois, estavam Scully e Mulder, escondido no
fundo do bolso de seu avental cirúrgico, outra vez no
necrotério. "Mais cheiro de sangue e entranhas...", pensava
Mulder desanimado e já enjoado, enquanto Scully fazia as
incisões de praxe no abdômen intumescido do cadáver.
Inesperadamente, algo começou a mover-se na barriga da
vítima. Espantada, Scully tropeçou no carrinho de
instrumentos atrás dela e foi ao chão com ele.
- O que é... ? - interrompeu-se Mulder, assustado ao ver uma
pequena mão projetando-se para fora do corpo sobre a mesa de
autópsia.
Mas Scully movimentava-se para trás, em busca de sua arma
caída em algum lugar, e ele não pôde ver a quem ou o que
pertencia aquela mão. Quando, enfim, a parceira encontrou a
pistola, a coisa já havia sumido, deixando atrás de si um
rastro de sangue e marcas de mãos pelo chão. De arma em
punho, Scully escancarou a porta fechada atrás da qual o
rastro desaparecia.
- Cuidado, Scully! - alertou Mulder cauteloso.
Mas, dentro do cômodo, não havia nada além de altas
prateleiras lotadas de produtos químicos e outros suprimentos
do necrotério. Um depósito. Nenhum sinal do dono daquela
misteriosa mãozinha... Era como se tivesse desaparecido no
ar.
O cérebro de Mulder trabalhava freneticamente, dissecando
possibilidades, formulando e refutando hipóteses. Era tão
mais fácil quando havia o ceticismo de Scully para servir de
contraponto às suas teorias malucas... Agora, Mulder tinha de
tentar, ele mesmo, raciocinar como a parceira e apresentar
contraprovas que desbancassem suas idéias mais alucinadas.
Era tão difícil... Ia de encontro a todos os seus princípios.
Mas aqueles eram dias estranhos. "Mantenha a mente
aberta...", ressoava a voz de Scully em seus pensamentos.
De súbito, em meio a todas aquelas loucas teorias que vinha
examinando e reexaminando durante toda a manhã, uma pareceu a
Mulder suficientemente absurda e, ao mesmo tempo, factível o
bastante. Místicos indianos... Potocki havia vindo da
Índia... Mestres ascéticos e seus incríveis poderes.
- Chuck Burks, Scully! Converse com Chuck Burks! - sugeriu
Mulder, suplicando aos deuses das baratas para que a parceira
o ouvisse.
Ela, no entanto, continuou sentada em sua cadeira, batucando
nas teclas de seu computador, rabiscando anotações em uma
folha de papel. Frustração foi o que ele sentiu. Uma
avassaladora frustração por ser uma reles barata.
Cerca de meia hora depois, porém, a porta do escritório
rangeu ao se abrir.
- Boa tarde! - soou uma hesitante voz masculina que pareceu
vagamente conhecida a Mulder.
- Chuck! Seja bem vindo. - respondeu a ruiva, erguendo-se da
cadeira.
- Chuck Burks... - murmurou Mulder para si mesmo, agradecendo
intimamente aos deuses das baratas por mais aquela graça.
- Recebi seu email e trouxe um material que gostaria de lhe
mostrar. - continuou o homem.
E falou a uma interessada Scully e a um cético Doggett sobre
faquires indianos e seus poderes extraordinários. E sobre
mestres Sidhi e sua habilidade de controlar a mente para
manipular a realidade. Mas Doggett não acreditava e,
consequentemente, não compreendia.
Scully, no entanto, para total surpresa de Mulder, ouvia
atentamente tudo o que Burks tinha a dizer, conduzindo a
conversação com perguntas que o próprio Mulder faria.
Definitivamente bizarro o comportamento da ruiva, como se ela
tentasse ver os fatos pelos olhos do parceiro, compreendê-los
através de sua lógica particular, agir como ele próprio
agiria.
Na final da tarde do dia seguinte, outra pessoa apareceu
morta. A mãe de Trevor, colega de escola de Quinton, o outro
garoto. Afogada na piscina, nos fundos de sua casa. Até aí,
nada ligava sua morte aos crimes anteriores. Seus olhos,
porém, apresentavam os mesmos sinais de hemorragia observados
nas outras vítimas.
- Eu vi os olhos. Mas sou capaz de apostar que nada rastejou
para dentro do corpo dessa mulher. - ironizava Doggett. - Não
sei como dizer... mas acredito que você esteja vendo apenas
aquilo que quer ver, agente Scully.
- Você está questionando minha integridade? - perguntou
Scully visivelmente contrariada.
Como o tal John Doggett ousava questionar a integridade de
Scully?
- Acabe com ele, Scully. - incentivava a baratinha do fundo
do bolso.
- Não. O que estou questionando é toda essa droga de caso.
Seu dito expert, as evidências que você prefere ignorar. O
fato do rumo de sua investigação não estar nos conduzindo a
nenhum padrão ou motivação e de estarmos tão longe de pegar
um assassino quanto estávamos quando começamos... - seu tom
misturava raiva e desânimo. A profunda ruga em sua testa
atestava sua frustração.
Scully suspirou e deu de ombros. Seu olhar era o mesmo que
Mulder já havia dirigido a ela em ocasiões semelhantes
inúmeras vezes em seus anos de trabalho juntos.
- Eu pedi que você mantivesse a mente aberta. - ela respondeu
simplesmente.
Aquele comportamento da ruiva era tudo por que Mulder ansiara
durante os muitos anos de sua parceria. Sempre desejara que
ela acreditasse, que fosse capaz de ver as possibilidades
cientificamente inexplicáveis dos fatos. Agora, no entanto, o
modo como ela agia o apavorava. Porque contrariava a natureza
cética e puramente racional de Scully. Porque ele nada
poderia fazer para protegê-la das possíveis conseqüências de
sua súbita mudança de paradigma. "Cuidado com que você
deseja", havia, um dia, lhe prevenido um certo gênio. "Porque
pode se tornar realidade..."
Um ruído no fundo do quintal atraiu a atenção dos agentes.
Era Trevor.
- Ele esteve aqui. O-o homenzinho... eu o vi. - gaguejava
assustado. - Ele me seguiu... E estava na escola, também...
e, depois, não era mais ele, mas o zelador. Não sei explicar.
Tive medo.
As palavras do menino fizeram algum sentido para Mulder.
- As crianças são capazes de ver as coisas com olhos muito
distintos dos adultos. Acredite no garoto, Scully. - sugeriu
em voz alta.
O que se sucedeu, a partir de então, foi muito rápido e
confuso demais, mesmo para a mente veloz de Mulder. Scully
conseguiu um mandado de prisão para Burrard, o zelador. No
entanto, gastou horas em uma sala vazia na delegacia de
polícia, falando sozinha como se tentasse interrogar alguém.
Mas não havia ninguém lá! Ao menos para os olhos de Mulder.
Depois, desistiu do interrogatório, dizendo a Doggett que não
fazia sentido tentar interrogar um homem mudo e saiu. De que
homem ela falava? Em seguida, lá estava ela na casa de
Trevor, querendo falar-lhe. E, no momento seguinte, estava na
escola. Corria de uma lado para o outro como uma louca.
Mulder temia por sua sanidade. Tentava dizer-lhe para ser
simplesmente Scully outra vez, para deixar de lado sua
tentativa de ver o que não via e agir como outra pessoa e ser
quem não era.
Mas foi o que ocorreu depois que surpreendeu Mulder mais
profundamente. Scully encontrou Trevor, em uma sala da
escola. Avançando ameaçador na direção do menino, estava um
homem pequeno de traços vagamente orientais. Havia algo de
assustador em sua aparência e não era o fato de não ter
pernas e deslocar-se, impulsionado pelas mãos, sobre uma
pequena plataforma com rodinhas. Tampouco era seu aspecto
sujo e andrajoso como o de um mendigo.
- Graças a Deus! - exclamou Scully, estranhamente aliviada
diante da cena.
O homem sem pernas voltou-se e retomou o movimento, dessa vez
na direção de Scully.
- Faça alguma coisa! - o tom de Quinton era desesperado. - É
ele! É o homenzinho! - gritava, acenando na direção dele
freneticamente.
Os olhos do homenzinho! Era isso. Em seus olhos, Mulder viu
raiva, sede de vingança, tanta maldade que foi capaz de gelar
o sangue da baratinha.
- Quem? Trevor? - Scully indagou atônita.
E Mulder compreendeu o que a parceira tinha diante dos olhos.
Para ela, aquele que avançava em sua direção era o garoto
Trevor. Era essa a realidade que o homenzinho queria que
Scully enxergasse. Seus truques paranormais, no entanto, não
eram capazes de afetar Mulder. Ou porque ele fosse uma
barata. Ou porque tivesse a mente aberta por natureza. Ao
contrário de Scully, que tentava ser quem não era.
- Não se deixe enganar pelo que vê, Scully. Acredite no
garoto! - disse-lhe Mulder.
Ainda que não visse o homenzinho, a ruiva apontou sua arma na
direção dele. O místico ainda seguia em direção à mulher.
- Detenha-o! Atire nele! - gritou o garoto apavorado.
- Não posso... - respondeu ela, trêmula.
O homenzinho continuava avançando sobre Scully como a própria
personificação do mal.
- Atire nele, Scully! Atire! Pelo amor de Deus. - berrou
Mulder desesperado, odiando-se por nada poder fazer face à
situação.
Talvez Scully o houvesse escutado, talvez tivesse visto a
centelha de ódio que faiscou nos olhos do faquir. O fato é
que disparou sua arma contra ele. E depois, ficou olhando o
corpo estendido no chão, trêmula, incapaz de impedir o fluxo
das lágrimas.
- Matei um garotinho... Eu matei uma criança... - repetia
insistentemente para si mesma, as lágrimas correndo
abundantes por sua face, despertando em Mulder um louco
desejo de poder confortá-la.
- A boa notícia é que você está errada. - Doggett tentou
tranqüilizá-la.
- Mas foi o que eu vi. Você imagina como é não poder confiar
em seus próprios olhos? - havia angústia em sua voz.
- Por que atirou, então? - indagou. Uma ruga profunda franziu
a testa do agente.
Ela se calou por um longo instante. Fechou os olhos como se
buscasse a resposta no fundo de sua alma. Quando os abriu
novamente, havia neles uma profunda tristeza, uma
incontestável frustração consigo mesma. Soltou um longo
suspiro. E Mulder entendeu que sabia a resposta, antes mesmo
que ela a transformasse em palavras.
- Porque percebi que era isso o que Mulder faria. - respondeu
num murmúrio. - Porque era assim que ele encarava as
coisas... sem julgamento e sem preconceito... com uma
largueza mental da qual simplesmente não sou capaz...
Cada uma de suas palavras, cada lágrima que corria de seus
olhos cravava-se como uma punhalada no peito da baratinha, o
fazia sentir-se imensamente culpado por suas insistentes
tentativas de mudar a parceira, de querer fazer dela um
reflexo dele próprio.
- Seja você mesma, Scully. - ele suspirou, enfim. - Seja o
que você tem de melhor, o que me encanta em você.
Simplesmente você.
PARTE VII – O Inverno de Nossa Desesperança
Mulder ia apenas levando a vida, um dia depois do outro, num
desânimo sem fim. Por vezes, considerava seriamente entrar
sorrateiro em um dos bolsos de Scully outra vez e sair
clandestino com ela. Mas a sensação de impotência que o
tomara durante aquele malfadado caso no Utah ou diante do
homenzinho sem pernas o fazia reconsiderar e optar por ficar
quieto em casa. "Atenha-se a sua insignificância,
baratinha.", dizia a si mesmo desconsolado sempre que ouvia a
porta fechar-se atrás da ruiva que saía para mais um dia de
trabalho. "O que os olhos não vêem, o coração não sente...",
considerava em tom de sermão, quando imaginava Scully
perseguindo e sendo perseguida por lunáticos, conspiradores e
outros espíritos do mal.
E, de repente, era inverno lá fora. O vento frio soprava
brancos flocos que se ajuntavam numa camada de neve suja e
acinzentada nas calçadas. Os poucos loucos que se aventuravam
a caminhar pela rua passavam apressados, a cabeça baixa
contra o peito para enfrentar o vento, as mãos enterradas nos
bolsos dos pesados casacos. De sua janela, Mulder os
observava desolado, tentando se lembrar como era ter um nariz
congelando ao vento frio e mãos para enfiar nos bolsos.
Nostalgias de barata...
Scully parecia terrivelmente abatida naquela manhã. Aliás,
estava terrivelmente abatida desde quando chegara, na noite
anterior. Tivera uma noite difícil, Mulder a ouvira remexer-
se na cama vezes sem conta, soluçara e murmurara coisas
ininteligíveis durante o sono agitado.
E, quando o dia amanhecera, gélido e sombrio, as olheiras
eram profundas sob seus olhos e a palidez de suas faces mais
evidente do que nunca. Por algum motivo oculto, o traje negro
que ela escolhera naquele dia pareceu a Mulder tão
imensamente triste... Preto era a cor padrão dos trajes de
trabalho de Scully, Mulder não conseguia saber porque. Apesar
de tudo, caía-lhe sempre muito bem, fazendo-a parecer mais
alta e esguia. Mas, naquela manhã, havia algo diferente com
relação àquele traje negro. Talvez a maneira hesitante como
ela escolhia cada peça e depois a depositava sobre a cama...
E, então, a maneira deliberadamente lenta com que ela vestia
cada uma delas... Como se não quisesse realmente vesti-las...
Como se quisesse fugir ao que elas representavam...
Foi mais forte que ele, um impulso incontrolável, uma
tentação irresistível. E lá estava Mulder, uma vez mais,
escondido no fundo do bolso do sobretudo da parceira, indo
com ela para onde ela parecia não querer ir.
O frio era tão intenso na rua que mesmo o grosso sobretudo de
lã que Scully vestia era insuficiente para aquecer a pobre
baratinha enregelada. E o entorpecimento ameaçava dominá-lo,
quando o eco distante de uma voz o trouxe de volta à vida.
- Cinzas às cinzas, pó ao pó.
Um funeral! Scully fora a um funeral. Daí todo seu
abatimento, toda sua hesitação! A velha curiosidade o obrigou
a espiar o lado de fora. "A curiosidade matou o gato,
Mulder..."
Nada mais esquisito que o grupo que se reunia em torno
daquela tumba. Kersh, Doggett, duas ou três caras conhecidas
do Bureau... Skinner... Frohike, Byers e Langley? ...
Margareth Scully? ...
Frio na espinha... Foi difícil concentrar-se o suficiente
para ler o que estava escrito na lápide. Era como se, de
repente, sua visão ultra aguçada não mais funcionasse. As
letras ganhavam vida própria e dançavam diante de seus
olhos... Uma a uma foram, enfim, vagarosamente, se acalmando
e parando e formando as palavras que ele tanto temia ver
escritas ali:
"Fox Mulder, 1961 – 2000".
Era o SEU funeral... Estava assistindo a seu próprio
funeral...
- "Eu sou a ressurreição e a vida", disse o Senhor. "E aquele
que crê em mim, embora esteja morto, ainda assim viverá, e
todo aquele que vive e crê em mim, nunca há de perecer." -
ecoavam distantes as palavras do pastor.
De um momento para o outro, nada mais fazia sentido. As
palavras não faziam sentido. As pessoas não faziam sentido. A
vida não fazia sentido. Estava morto.
Morto! Seu corpo sem vida descia ao túmulo dentro do caixão
de madeira. Para ser sepultado na terra enregelada pelo frio
do inverno. Morto!
- Não posso realmente acreditar que estou aqui... - falou a
voz entrecortada de Scully.
"Eu também não...", disse Mulder consigo mesmo, recusando-se
a crer naquilo por que estava passando. Se era seu o corpo no
fundo do túmulo, o que estaria sua consciência fazendo num
inseto? Triste piada de mau gosto? Uma forma deturpada de
justiça poética? Uma macabra vingança dos deuses?
Enlouquecera! Era isso. Andara por tanto tempo tentando
penetrar em mentes insanas, passeara tão despreocupadamente à
margem da loucura, que enfim fora por ela dominado.
Enlouquecera, não havia outra explicação. Cerrou os olhos com
força, tentando acreditar que, quando os abrisse, tudo seria
como antes. Que, na pior das hipóteses, estaria trancafiado
numa cela acolchoada, atado a uma camisa de força. Mas, não.
Ainda sentia o vento gélido do inverno e ouvia as palavras do
ministro. "E aquele que crê em mim, embora esteja morto,
ainda assim viverá..." Morto era o que estava.
Percebeu quando Scully ajoelhou-se à beira da cova e lançou
um punhado de terra dentro dela. Sentiu como se cada um dos
grãos daquela terra caísse sobre ele mesmo, o cobrindo, o
sepultando. Subitamente, lhe ocorreu que, se era seu o corpo
sem vida no fundo do túmulo, não havia razão para que sua
consciência continuasse vivendo. Assim pensando, Mulder
tentou arremessar-se para fora do bolso de Scully e para
dentro da cova.
Mas a ruiva levantou-se repentinamente, fazendo com que a
baratinha escorregasse para o fundo do bolso. Um momento
depois, sua super sensível audição de barata captou os sons
do pranto manso de sua parceira. E os instintos suicidas de
Mulder foram temporariamente paralisados. Ela ainda precisava
dele.
Simultaneamente, porém, seu aguçado olfato captou um perfume
conhecido. Próximo, muito próximo. O perfume de Skinner.
Scully tinha alguém. E não havia nada que um inseto pudesse
fazer por ela. Mulder quis, mais uma vez, saltar do bolso
para a neve fria que cobria o chão, para o esquecimento
final, para a morte. Mas os inclementes deuses das baratas
uma vez mais pregaram-lhe uma peça, sugando toda a força de
suas perninhas. Fazendo seu cruel centro de gravidade, mais
pesado do que nunca, imobilizá-lo na segurança do bolso.
E a barata Mulder continuou vivendo.
A partir de então, abandonou totalmente o perfil de barata
paranóica que havia ostentado durante todo o tempo anterior e
tornou-se simplesmente uma barata depressiva com tendências
suicidas.
Quis aplicar em si mesmo uma dose letal de inseticida, mas
não era capaz de tirar a tampa do aerossol.
Ficava rondando os pés de Scully quando ela andava pela casa,
na esperança de ser pisoteado. Mas ou ela não o via ou fingia
não vê-lo. Ou, quem sabe, apenas houvesse se acostumado de
tal forma a sua presença que pensava naquela baratinha como
um animalzinho de estimação.
Mulder fazia greve de fome. Passava dias e dias a fio sem se
alimentar. Mas simplesmente não morria de inanição. E acabava
por se entupir de qualquer porcaria que encontrasse somente
para parar de ouvir a ronqueira de seu estômago.
Os deuses das baratas definitivamente haviam se voltado
contra ele. Talvez apenas o tivessem esquecido...
Mulder perdia horas inteiras imaginando por quanto tempo
viveria uma barata. Já havia perdido as contas do tempo em
que estava daquele jeito, mas calculava que alguns meses
haviam se passado desde que acordara no chão da cozinha de
Scully.
Scully... Mulder andava tão preocupado em dar cabo de sua
vida ultimamente que havia, de certa forma, negligenciado a
parceira. Quando deu-se conta disso, sentiu-se tão
imensamente culpado que deixou de lado outra vez suas idéias
suicidas.
Scully... Ela não mais acordava sobressaltada no meio da
noite, como fazia antes do corpo de Mulder ser encontrado.
Tampouco derramava lágrimas solitárias e escondidas, como
fizera por muito tempo depois de seu sepultamento.
Sua expressão era agora triste, porém conformada. Como se
tudo o que restasse a ser feito fosse continuar a viver.
Scully e sua imensa fé, que lhe dava forças para prosseguir.
A fé num Deus que lhe permitia tanto sofrimento...
Tudo em que Mulder se permitira ter fé fora seu trabalho e
Scully. O primeiro não mais existia, sepultado num caixão de
madeira junto com seu corpo humano. Restava-lhe somente
Scully, alguém em quem acreditar, alguém por quem viver.
Mulder a observava, andando pesadamente de um lado para o
outro pelo quarto, colocando sobre a cama as roupas que
vestiria em mais um dia de trabalho. E, como se tivesse
acabado de chegar, ele se deu conta do quanto ela engordara,
perdendo estranhamente as formas. De fato, mesmo em seu
transe suicida, ele percebera como a freqüência das visitas
do entregador de pizza aumentara naquela casa. Talvez Scully
houvesse, finalmente, abandonado suas intermináveis dietas.
Scully estava melhor daquele jeito, considerava a baratinha.
Havia algo de diferente nela, um brilho, uma vibração, que a
tornava ainda mais bela e que nem mesmo a eterna tristeza de
sua expressão conseguia apagar.
Uma vez mais, Mulder sentiu-se tentado a sair com ela. Ao
mesmo tempo, hesitava ao recordar todos os percalços e
angústias por que passara em ocasiões anteriores. Debatia-se
entre os ditames impulsivos de seu coração que o impeliam a
acompanhá-la e os prudentes conselhos de seu cérebro que o
induziam a ficar.
Ainda debelava-se no duelo entre razão e emoção, quando o
telefone tocou e ela deixou o quarto para atendê-lo.
Entretanto, ao observar as feições transtornadas de Scully em
seu retorno ao quarto, todas as dúvidas se dissiparam
imediatamente e a emoção venceu a batalha.
Num descuido de Scully, que nervosa tentava atabalhoadamente
terminar de se vestir, a baratinha saltou decidida para o
interior de um de seus bolsos. Uma vozinha em sua cabeça lhe
dizia que aquela era a coisa certa a ser feita.
PARTE VII – O Despertar da Primavera
Do lado de fora, os primeiros aromas da primavera indicaram a
Mulder que o inverno acabara.
- Talvez para a Natureza... - sussurrou consigo mesmo,
amargo. - Certamente, não para mim.
De qualquer forma, embebedava-se de seus aromas tanto quanto
do cheiro de Scully. Ambos tinham sobre ele o mesmo efeito
lenitivo, como se fossem capazes de curar as feridas que com
que a vida crivava seu peito.
Scully caminhava rápido, sua pulsação acelerada. Colocava e
retirava as mãos dos bolsos num ritmo frenético. Algo a
afligia.
Então, os suaves perfumes da primavera cederam lugar ao
cheiro de éter e desinfetantes e doença e morte. Estavam em
um hospital.
- É verdade? - indagou a ruiva nervosa.
- Acalme-se. - respondeu Skinner conciliador.
- Não, eu preciso vê-lo, droga! - ela insistiu, exasperada.
- Scully... Você não pode. - atalhou o Diretor Assistente com
decisão.
Quem precisava ser visto? Quem não poderia ela ver?
Por um breve momento e pelo tom da conversa, Mulder sonhou
que pudesse ser a ele próprio, seu corpo humano. Que aquele
que ficara lá no túmulo, sob a terra, era outro, um sósia, um
clone, um engano... Um tênue lampejo de esperança que ele
cuidou rapidamente de extinguir. Para evitar desilusões. Para
minimizar o sofrimento.
- O que eles disseram? - à beira das lágrimas, a voz de
Scully falhava. - Eu PRECISO vê-lo.
- Eu sei... - respondeu Doggett, tristemente. - Mas desejava
que não o fizesse.
Havia algo de muito grave se passando ali. A tensão de
Scully, a firmeza de Skinner, o comedimento de Doggett...
Outra vez a esperança reacendeu no coração de Mulder.
O "bip-bip-bip" ritmado dos aparelhos de monitoração cardíaca
ressoou agudo em seus ouvidos, o atraindo para fora do bolso.
Ele tentava preparar-se psicologicamente para uma visão ainda
mais apocalíptica que aquela de seu nome escrito numa lápide
de pedra no cemitério, seu esquife descendo lentamente ao
túmulo. Mas o que viu... Não saberia classificar...
Sobre a cama, ligado por um sem número de tubos aos muitos
aparelhos ao redor, estava ele. Seu corpo humano. Inerte,
coberto de cicatrizes. Mas vivo. Vivo?!
Mulder deixou-se arrastar por seu centro de gravidade de
volta ao fundo do bolso e chorou. Chorou de alegria e de
tristeza. Chorou de alívio e de desespero. Chorou porque
simplesmente não conseguia imaginar outra coisa a ser feita
além de chorar. Scully, abraçada ao corpo sobre a cama, fazia
o mesmo.
Mais tarde, naquele mesmo dia, quando Scully, sentada ao lado
da cama, estava suficientemente absorta na observação do
homem nela deitado, Mulder atreveu-se a deixar seu bolso.
Cuidadosamente, desceu até o chão e atravessou o cômodo até
desaparecer por trás de um móvel, na parede oposta à cama.
Sabia que, em se tratando de um quarto de hospital, se fosse
encontrado ali, ele, uma barata, teria um trágico fim. Mas
precisava arriscar.
De onde estava, conseguia uma visão privilegiada da cama e
seu ocupante e da mulher sentada a seu lado.
Era ele mesmo, não restavam dúvidas. Mas o que diabos haviam
feito com ele? Seu rosto, seus braços e mãos estava repletos
de cicatrizes e marcas. Sua vida dependia inteiramente dos
inúmeros fios e tubos que o conectavam à parafernália
eletrônica em volta da cama. Cada batida de seu coração era
devida a um impulso de algum aparelho. Cada lento subir e
descer de seu peito, ao bombear de outro. Um morto-vivo. Uma
de suas mãos repousava entre as de Scully que a acariciava
suavemente, olhos e ouvidos atentos a cada bip dos aparelhos,
a expressão tranqüila, mas concentrada. Havia esperança
reluzindo em seus olhos azuis.
- Você não pode fazer isso a si mesma... - disse Doggett,
penalizado ao entrar no quarto.
- Com que direito esse orelhudo de um figa ousa tentar
afastá-la de mim? - rosnou Mulder da parede.
- Você me pediu para não entrar aqui, agente Doggett. -
Scully respondeu controlada. - Espero que não esteja me
pedindo para sair...
- Ele não se atreveria, Scully... - replicou a baratinha.
- Minha preocupação é com seu bem estar, agente Scully. -
acrescentou Doggett, gentilmente, ante à reação da ruiva. -
Com o efeito que isso possa ter sobre você.
- Você quer dizer... achar Mulder vivo? - ela perguntou
irritada.
Por mais que acreditasse na veracidade do interesse de John
Doggett por aquilo tudo, por mais que acreditasse ler sincera
preocupação em seus olhos, Mulder não pôde conter a
irritação. O outro não tinha o direito de tentar intervir.
Não sobre o que se passava entre Mulder e a parceira. Não
sobre uma amizade de sete anos. Aquela, ali no quarto, não
era simplesmente Dana Scully, agente especial do FBI. Aquela
era SUA Scully. Parceira e amiga, causa e efeito.
- Deixe-a em paz, Doggett. - gritou, quando já se preparava
para tomar alguma atitude mais drástica. - Cuide de sua
própria vida!
Mas uma enfermeira interrompeu a cena, ao abrir subitamente a
porta dizendo algo sem nexo sobre um tal Billy Miles. E os
agentes saíram do quarto, deixando o Mulder humano e o Mulder
inseto sozinhos um com o outro.
Da parede, o inseto contemplava seu corpo humano tão
maltratado. Havia evidentes sinais de tortura aqui e ali
espalhados por todo lado. As cicatrizes em meia lua nas faces
e nos pulsos, a pele pálida e levemente arroxeada... Não era
definitivamente uma visão agradável de si mesmo. Que monstros
seriam aqueles capazes de submeter um ser humano a tamanho
sofrimento? Talvez não fossem humanos...
Billy Miles... Lembrava-se do nome. Um rapaz que se dizia
vítima de abdução, num caso que investigara anos antes no
Oregon. Seu primeiro trabalho junto com Scully. Bons
tempos... Mas o que estaria fazendo Billy ali, não sabia ao
certo quanto tempo depois? Teve a impressão de que Miles
poderia ser uma peça chave no mistério de seu
desaparecimento, de sua estrambótica transformação. Mas tudo
não passava de uma vaga sensação. Não havia lembrança alguma
que pudesse corroborar aquela impressão. Maldita amnésia!
E deixou-se ficar contemplando seu corpo inerte, em busca de
respostas. Não havia, porém, recordação alguma. Apenas um
homem torturado e semi-morto e um inseto amargurado e sem
memória.
Uma enfermeira entrou no quarto. Checou as leituras dos
aparelhos, tomando notas em sua prancheta, com ar frio e
distante. Depois, por um momento, a expressão profissional de
seu rosto cedeu lugar à incredulidade.
- Espantoso... - murmurou, baixinho, tocando de leve a pele
arroxeada do paciente. - Disseram que o homem estava morto a
três meses...
Observou o corpo por mais um instante, recolocou a prancheta
em seu lugar e deixou o quarto, diminuindo as luzes ao sair.
Três meses? Fazia tanto tempo assim que Mulder fora ao seu
próprio funeral? Havia realmente perdido a noção do tempo.
Mas, se seu corpo humano estivera morto e enterrado por três
meses, como se explicava que não estivesse em franca
decomposição? Como se poderia possivelmente explicar os
fracos sinais vitais que eram registrados pela aparelhagem de
monitoração?
Uma infinidade de hipóteses e teorias e idéias bizarras
ocupou a mente de Mulder, absorvendo por inteiro sua atenção.
Não percebeu quando a porta do quarto se abriu e um homem
entrou, postando-se no canto mais sombrio do aposento,
observando silenciosamente o corpo sobre o leito. Tampouco
notou a entrada de um segundo homem, atraído pela porta
aberta, pelo bip hipnótico dos aparelhos.
- É difícil de acreditar, não é? ... - aquela voz... - Que
Mulder possa um dia sair dessa cama...
Aquela voz... Poderia reconhecê-la em qualquer lugar. Como
reconheceria os estreitos olhos castanhos mesmo nos confins
do inferno de onde nunca deveriam ter saído.
- Krycek, seu rato imundo! - rosnou Mulder baixinho.
- Preciso da vacina, Alex. - Walter Skinner soava inseguro. -
O que devo fazer?
- Ah, é simples. - respondeu Krycek com ironia. - Apenas
garanta que Scully não chegue ao fim da gravidez.
Skinner parecia chocado, os olhos esgazeados parecendo ainda
maiores por trás das lentes dos óculos.
- Você está louco! - foi tudo o que conseguiu articular.
- Ela não pode ter este bebê. - arrematou o outro com
simplicidade.
Que bebê? Do que eles estavam falando? Scully ia ter um bebê?
Como? Mulder acreditou que enlouquecia.
- Todos temos uma vida em nossas mãos. Eu tenho a sua... -
dizia Alex Krycek sarcástico. - Você tem a de Mulder...
Scully tem a dessa criança por nascer... É uma questão de
quem vale a pena ser sacrificado. - completou, saindo do
quarto.
A cabeça da pobre baratinha dava voltas e mais voltas sem
sair do lugar. Um bebê? Scully ia ter um bebê? Mulder ainda
parecia vê-la diante de si, um certo dia, num elevador do
Bureau, seu olhar carregado de tristeza, confessando-lhe o
quanto a fazia infeliz o fato de nunca poder vir a ter
filhos. Se ele possuía um coração, coisa da qual
freqüentemente duvidava, com certeza seu coração se partira
em um milhão de pedaços, naquele dia.
Walter Skinner não se movera do lugar desde a saída de
Krycek. Parecia pregado ao chão, os braços pendendo ao longo
do corpo como se as mãos pesassem toneladas, os lábios
contraídos, os olhos saltando dos aparelhos para o corpo no
leito e de volta aos monitores.
Num supetão, Mulder compreendeu a cena que acabara de
presenciar. A tal vacina a que se referia o Diretor
Assistente serviria para salvá-lo! Sua vida em troca da do
filho de Scully!
"É uma questão de quem vale a pena ser sacrificado..." ecoava
o cortante sarcasmo de Alex Krycek em seus ouvidos. "... ser
sacrificado..." O sonho, o milagre de Scully. Ou seu corpo
semi-decomposto. Não havia escolha a ser feita.
- Mate-me! - berrou com toda a força de seus pulmões. - Mate
Fox Mulder. Sacrifique-o!
Numa atitude desesperada, Mulder atirou-se de onde estava na
direção da cama. Não pensou sobre o que fazia. Não levou em
conta seu traiçoeiro centro de gravidade. Não considerou nem
mesmo os efeitos da própria gravidade. Apenas arremessou-se
na direção de seu corpo morto-vivo e de Skinner.
E voou! Voou literalmente. Alçou vôo pelo ar. E a sensação
era absolutamente indescritível. Sentia-se tão leve, tão
livre como nunca em sua vida... Flutuava no vazio pelo
quarto. Aquilo era muitíssimo melhor que nos sonhos.
Experimentou o controle sobre a direção de sua trajetória e,
finalmente, compreendeu a razão da enorme mobilidade de seu
centro de gravidade. Era ele que, deslocando-se rapidamente
por seu corpo oblongo, lhe permitia manobrar com precisão e
desviar o rumo de seu vôo a poucos centímetros dos
obstáculos.
De um lado para o outro, ia Mulder pelo cômodo, desfrutando
da maravilhosa sensação do vento envolvendo seu corpo
ovalado, empurrando para trás suas antenas. Ah, se tivesse
descoberto antes que era uma barata voadora...
Voava esquecido do porquê havia começado a fazê-lo.
Não viu quando Skinner, como um alucinado, começou a arrancar
os tubos e desligar os aparelhos que mantinham seu corpo
vivo. Não viu quando Doggett arrombou a porta do aposento e
atracou-se com o Diretor Assistente tentando impedi-lo. Não
viu quando um batalhão de médicos e enfermeiras invadiu o
cômodo e levou seu corpo dali.
Apenas voava, para lá e para cá, para cima e para baixo,
dando rasantes sobre os móveis, desviando a poucos
centímetros das paredes, como se nada mais importasse.
Depois, muito depois, pousou em qualquer lugar, exausto, sem
fôlego, satisfeito. Completamente esquecido dos problemas e
dramas do cotidiano, de sua condição de consciência viva
separada de um corpo semi-morto. Arrastou-se até algum
esconderijo macio e seguro e adormeceu. Feliz.
E, pela primeira vez, desde sua incomum transformação em
inseto, sonhou. Sonhou que era humano outra vez. Que ia, aos
poucos, retomando a consciência de seu próprio corpo. Sentiu
seu coração batendo forte e compassado no peito. Sentiu o
sangue fluindo por suas veias, irrigando suas pernas, seus
pés. Fluindo por seu pescoço e fazendo pulsar sua jugular.
Sentiu seu queixo, sua boca e bochechas, seus olhos de
pálpebras cerradas. Sentiu seu nariz e os cabelos crescendo
em sua cabeça. Sentiu o peito subindo e descendo lentamente
ao ritmo de sua respiração. E seus braços e mãos e cada um de
seus dedos movendo-se. Sentiu o ar quente saindo por suas
narinas e o suave murmúrio de Scully, chamando seu nome,
arrepiando sua pele.
Sonhou que abria os olhos vagarosamente e que, diante dele,
ao lado do leito onde estava deitado, estava a parceira. Viu
seus grandes olhos azuis marejados de lágrimas e seus lábios
rosados contraídos como que para evitar o pranto. E ela
parecia a um só tempo feliz e surpresa. E sorria e chorava. E
sonhou que ela tocava seus cabelos gentilmente e repousava a
cabeça cansada em seu ombro e o umedecia com as lágrimas que
não mais podia conter.
Sonhou que aspirava o doce perfume de seus cabelos vermelhos
e que a alegre primavera havia mais uma vez vencido o sombrio
inverno em sua vida.
E teve a certeza que tudo poderia dar certo.
EPÍLOGO
Fox Mulder renasceu milagrosamente dos mortos, graças à
tentativa mal sucedida de Walter Skinner de matá-lo e às
cavalares doses de antibióticos administradas pela equipe
médica e por Scully. Não trazia consigo lembrança alguma do
período compreendido entre sua abdução e sua ressurreição. Às
vezes, acordava no meio da noite de um sonho recorrente no
qual ficava voando e voando por um imenso cômodo de paredes
brancas. Por alguma razão inexplicável, nunca mais, pelo
resto de sua vida, foi capaz de matar uma barata.
De volta em casa, após deixar Mulder recuperando-se no
hospital, Dana Scully encontrou o exo-esqueleto ressequido de
uma barata no interior de um dos bolsos do blazer que vestia.
Não sentiu nojo ou assustou-se com o achado. Tampouco seria
capaz de explicar muito bem o porquê não considerou sua
descoberta nem um pouco estranha. Ao contrário, ao observar
de perto a baratinha seca, foi invadida por um misto de
saudade e alívio. Pareceu reconhecer naquele pobre inseto
morto um velho e querido amigo. Chegou mesmo a derramar uma
furtiva lágrima em sua memória. Também ela nunca mais foi
capaz de matar uma barata em sua vida.
F I M
NOTAS FINAIS:
1. Quando comecei a escrevê-la, essa fic iria ter duas ou
três páginas, no máximo, e acabaria tragicamente sob a
sola de um chinelinho de frufrus cor-de-rosa. Mas, mal do
século, me empolguei e virou isso tudo que você, que
chegou até aqui, acabou de ler.
2. A idéia (ou a culpa por ela) veio de uma frase da Modell
sobre a crueldade dos autores de fanfiction: "Nós nem
transformamos o Mulder em barata... ainda!" Mas a
responsabilidade e a conseqüente e irrevogável culpa por
essa triste peça de má literatura é inteiramente minha.
Registre-se nos autos que, quanto a este particular,
Claudia Modell é inocente.
3. Como e por que Fox Mulder transformou-se em barata? Como
se explica a dualidade entre seu corpo humano e sua
consciência de inseto? Quanto tempo vive uma barata? Esses
são mistérios insolúveis comparáveis à questão "Serão as
incríveis facas Ginsu capazes de cortar as indestrutíveis
meias Vivarina?"
4. Essa estória pretende marcar a aposentadoria de minha
caneta literária. Você gostou dessa fic? Mande um e-mail
gentil para mim dizendo que sim. Você odiou essa fic?
Então, me mande um e-mail bomba. Mas mande feedback, por
favor. Meu endereço é bellefleur_x@hotmail.com Eu
agradeço.
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====
O Ministério da Saúde adverte:
mandar feedback não causa cáries e não engorda.
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FAN FICTION
ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)
DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores.
CATEGORIA: Quem viver verá!
CLASSIFICAÇÃO: Livre.
SPOILER: Todos e mais alguns que eu inventei agora.
SINOPSE: Me recuso a fazê-la. É para ser lida como se assiste
um daqueles filmes que nem os créditos mostram no início.
Assista e, se não gostar, saia no meio da sessão! Leia e, se
achar que está uma droga, rasgue, remova de seu diretório!
Mas mande feedback xingando a autora.
Essa fic é dedicada à grande escritora Claudia Modell.
Centro de Gravidade
"And when man faces destiny, destiny ends
and man comes into his own."
(André Malraux, The Voices of Silence)
PARTE I - Tempo de Despertar
Despertar dificilmente é um ato agradável para quem quer que
seja. Por pior que seja o sonho ou pesadelo, a transição do
sono para a dura realidade é sempre difícil. Em especial,
para alguém como Fox Mulder que raramente poderia afirmar que
dormira "o sono dos justos", como apregoa o dito popular.
Tornara-se um hábito para ele simplesmente desmaiar de
exaustão, à noite, nos lugares mais inusitados. Embora, em
geral, amanhecesse no desconfortável sofá da sala, já houvera
ocasiões em que despertara esparramado na banheira vazia ou
tombado sobre a mesa do escritório.
Mas não podia recordar-se de jamais ter acordado, como
daquela vez, no chão da cozinha, de qualquer cozinha. Sim,
porque aquela certamente não era a SUA cozinha. Não que
freqüentasse a cozinha de seu apartamento o suficiente para
ter dela recordações muito precisas. No máximo, abria a porta
da geladeira em busca de água ou preparava um pacote de
pipocas no microondas.
Porém, definitivamente, não reconhecia naquela cozinha a de
seu apartamento. Era arrumada demais, limpa demais para ser
sua. O teto era impecável e branco, nem uma teia de aranha ou
um traço de poeira, e, pasme, as DUAS lâmpadas frias da
luminária nele instalada funcionavam. AO MESMO TEMPO!
No chão, não havia décadas de pó ou farelos de pão ou aquela
azeitona que saltara da pizza no Natal passado, se alojara ao
lado do fogão e que ele ficara com tanta preguiça de catar.
Bem, não era mesmo a sua cozinha...
Tentou levantar-se, devagar. Sentia-se estranho,
desequilibrado. A cabeça pesada, como se seu centro de
gravidade houvesse mudado de lugar. Era difícil equilibrar-
se. A cabeça insistindo em puxar todo seu corpo para trás.
O maldito centro de gravidade, deslocando-se para lá e para
cá. Como se estivesse de ressaca...
Estranho... Não se lembrava de ter bebido na noite anterior.
A bem da verdade, não se lembrava de nada sobre a noite
anterior... Exceto, talvez, que ele era Fox William Mulder,
agente especial do FBI? ... Era?
Lutava para ficar de pé, mas aquela se revelava, cada vez
mais, uma tarefa impossível. O centro de gravidade passara da
cabeça para a barriga, que ficara muito, muito pesada. Se
tentasse ficar de pé, com certeza cairia para frente, puxado
pelas toneladas recém instaladas em sua barriga.
Melhor ficar de quatro. Isso mesmo... Sucesso total! Talvez
ajoelhar-se, para enxergar mais alto... Difícil com aquele
centro de gravidade móvel, mas não impossível.
Conseguiu, enfim, pôr-se de joelhos. Olhou a pia. Não havia
um único copo ou prato sujo, dentro ou sobre ela. A esponja,
limpa e seca e nova em folha, estava colocada no recipiente
adequado a exatos três centímetros do vidro de detergente.
Cheio! O pano de louça, branco como a neve, jazia
perfeitamente dobrado em dois e dependurado na respectiva
argola na parede.
Em última análise, um brinco. Não era mesmo, sua cozinha.
Jamais o seria.
Só havia um modo de saber a quem pertencia aquela cozinha e
Mulder não hesitou. Destemido, abriu a geladeira como
invadiria um recinto repleto de terroristas internacionais
armados até os dentes. De peito aberto. Que vengam los toros!
Iogurte, frutas, legumes, gelatina. Tudo fresquinho, dentro
do prazo de validade, cheiroso e brilhante.
Scully! Era a cozinha de Scully! Agora ele tinha certeza.
Mas a dúvida permanecia. O que diabos estava fazendo
adormecido no chão da cozinha de Scully? Não podia recordar-
se de modo algum de como teria ido parar ali, no apartamento
da parceira. Seria amnésia? Num impulso, conferiu o horário
em seu relógio de pulso com o do mostrador do microondas.
Idênticos. Logo, não havia tido um contato imediato ou algo
assim, acreditava.
Bem, só havia um jeito de saber... E que Deus o ajudasse.
Perguntar a Scully!
O apartamento estava mergulhado num profundo silêncio. Era
muito cedo e ela, provavelmente, dormia. De gatinhas,
brigando sempre contra seu centro de gravidade traiçoeiro que
teimava em jogá-lo para um lado e para o outro, Mulder
começou a mover-se pela casa. Tinha plena consciência do
ridículo de sua posição. Rastejava, como um inseto imundo,
pelo chão do apartamento de Dana Scully. Irritava-se só em
pensar nas dezenas de explicações que teria de dar a ela por
aquela situação. Mas que explicações daria se não as tinha?
Se não fazia a mínima idéia do que poderia estar lhe
acontecendo para vir parar ali. Bolas! Estava frito e sabia
disso...
Engatinhava pela sala e imaginava o olhar de reprovação de
Scully. Não havia nada pior no mundo do que aquele maldito
olhar de reprovação de Scully e seu silêncio torturante, que
faziam-no sentir como um moleque qualquer, pego em flagrante
em plena travessura. Era uma lenta agonia ser vítima daquele
olhar. Já havia passado por aquilo antes e conhecia bem os
efeitos devastadores que aqueles olhos azuis, furiosos e
acusadores, podiam exercer sobre ele. Penetrantes, pareciam
rasgar-lhe a carne como punhais. Cortavam-no em fatias finas,
quase translúcidas, e depois o serviam com azeite, alcaparras
e limão. Carpaccio de Fox Mulder... Às vezes, passavam
semanas daquela forma. Outras, abrandavam-se num dia, apenas
para reaparecem realimentados, poderosos e vitaminados, no
dia seguinte. Droga! Antes ela o condenasse a limpar todos os
banheiros do Bureau com sua escova de dentes. Ele o faria com
prazer só para não ter que enfrentar-lhe o olhar. Lamberia as
botas do Kersh... Não, pensando bem, isso não. Mulder podia
ser muitas coisas desprezíveis, mas jamais seria um lambe-
botas!
E lá se ia Fox Mulder, engatinhando, bamboleando (droga de
centro de gravidade!) pelo piso. Sorte Scully ter aquela
mania paranóica de organização e limpeza. Não havia
obstáculos pelo percurso. Imaginava aquela mesma cena se
passando em seu apartamento. Já teria atropelado uns tantos
sapatos, algumas outras azeitonas fugitivas e sementes de
girassol. Talvez encontrasse até aquela sua camisa azul da
qual tanto gostava e que julgava abduzida por alienígenas
loucos por Armani. Mas aquele era o chão de Scully e ali não
havia nem um grão de poeira, quanto mais roupa suja ou outros
trastes.
Ôoops!
Seu joelho aterrissou sobre uma superfície irregular e o
maldito centro de gravidade aproveitou a deixa para mudar de
lugar mais uma vez e... Pum! Lá estava outra vez Fox Mulder
esparramado no chão, a cara enfiada no carpete. Bosta!
Mas o que provocara sua queda? Tsc, tsc, tsc... Um escarpin
negro com um salto tão alto quanto um arranha-céu? Jogado no
meio da sala? Muito feio, Dana Scully!
Mulder se deixou ficar, por uns instantes, caído no chão,
esperando que a parceira aparecesse na porta da sala, com
cara amassada e pijamas, os cabelos desgrenhados, a arma em
punho, à procura do invasor. Ele! Visualizava claramente o
modo como sua expressão se transformaria, da ferocidade
assustada pelo despertar tumultuado até o desprezo e a
desaprovação quando identificasse nele o causador do
distúrbio. Em câmera lenta, como numa dessas cenas de efeitos
especiais dos filmes... Aterrador!
Estatelado no chão, Fox Mulder rezava, sim, rezava e
implorava a todas as divindades conhecidas e desconhecidas
para que Scully não acordasse. Muitos segundos, talvez
minutos transcorreram. Em seu senso de tempo distorcido pelo
pânico, dias e meses se passaram, ele aguardando o fim com os
olhos estreitados e os lábios contraídos em antecipação.
Mas ela não apareceu. Aleluia!
Ainda outra vez, colocou-se de gatinhas, com dificuldade, o
centro de gravidade passeando do alto de sua cabeça até os
quadris com a maior sem-cerimônia, recusando-se a parar onde
quer que fosse, dançando chá-chá-chá com sua paciência... E
seguiu Mulder, risivelmente, arrastando-se pelo chão,
balançando para lá e para cá, em direção ao quarto.
Era estranho Scully não ter acordado com o barulho de sua
queda. Normalmente a parceira tinha um sono muito leve. Não
que já tivesse dormido com ela da maneira como gostaria, mas
já haviam dormido lado a lado de muitos modos estranhos e em
muitas ocasiões diferentes antes. Talvez ela não estivesse em
casa... Mas, nesse caso, o que diabos ele estaria fazendo em
seu apartamento? Talvez fosse exatamente isso! Ela havia sido
seqüestrada por algum membro do Sindicato ou um bandido
qualquer dos tantos que ambos normalmente investigavam e
perseguiam e Mulder, buscando a parceira, havia sido
envenenado, drogado ou sabe-se lá o quê... Isso explicava sua
incapacidade em ficar de pé, sua confusão mental, sua total
ausência de lembranças...
Mas não explicava o barulho de água, uma torneira sendo
aberta, que vinha agora do banheiro. Quis tatear a cintura à
procura de sua arma, porém a mera idéia de tirar uma das mãos
do chão para tanto já fez com que seu centro de gravidade
saísse para passear novamente, correndo a passos largos na
direção de seu nariz. Mulder precisou usar de todo o seu
treinamento em Quantico e dos muitos anos de experiência em
atividades de campo para não tombar novamente de cara no
chão. Com muito esforço e oração, conseguiu reequilibrar-se e
evitar mais uma queda miserável.
Sentia-se nu e desprotegido, sem sua arma na mão. E se fosse
o seqüestrador lavando as mãos sujas de sangue no banheiro de
Scully? Como poderia Mulder proteger-se e à parceira, quem
sabe, desarmado como estava? Era um alvo fácil daquele modo.
Um único tiro e seria mais uma vítima indefesa...
Pior! E se fosse a própria Scully, escovando os dentes,
lavando o sono da cara na água fria da pia? Como justificar
sua presença ali, naquelas condições humilhantes? Começava a
imaginar se não seria melhor topar com um bandido sanguinário
no banheiro do que com Dana Scully, agente especial, FBI,
desarmada e perigosa, cruel e desalmada em sua perfeição e
superioridade.
O que não tem remédio, remediado está, diz o dito popular.
Nunca fora homem de refugar diante de uma briga. Não iria
começar daquela vez.
Decidido, rastejou silenciosamente até a origem do ruído que
infernizava sua imaginação. Espreitou a porta aberta.
Chinelos de frufrus cor-de-rosa. Bandidos sanguinários não
usam chinelos de frufrus cor-de-rosa... Logo, tinha de ser
Scully. A ruiva escovava os dentes meticulosamente, o olhar
fixo no espelho. Alívio foi sua primeira sensação. Pânico foi
a segunda. "Coragem, Mulder! Você é um homem ou uma barata?"
- Scully! – chamou em voz tão baixa que ele próprio mal se
ouviu.
A ruiva com a boca cheia de espuma não esboçou o mínimo
movimento.
– Scully! – repetiu mais alto.
Nada. O ruído da torneira totalmente aberta devia estar
encobrindo o som de sua voz. Uma verdadeira cascata, como
aquela que jorrava na pia, encobriria até mesmo o ruído da
turbina de um Boeing 777. Que desperdício de recursos
hídricos, senhora-politicamente-correta-e-defensora-ferrenha-
da-natureza-agente-Scully...
Engatinhou para dentro do banheiro, postando-se diante da
parede, exatamente atrás da parceira. Imaginava poder, com
algum apoio como o oferecido por aquela providencial parede,
conseguir driblar seu centro de gravidade intinerante e
colocar-se de pé. Dito e feito! Com uma boa dose de esforço e
perseverança, conseguiu, literalmente, rastejar parede acima
e pôr-se de pé. Virou-se para Scully e o espelho.
Surpresa! Refletidos no pequeno espelho retangular do
banheiro estavam Dana Scully, alguns respingos de pasta de
dentes e a parede de azulejos brancos atrás dela. Nem sombra
de Fox Mulder. Nem um pálido reflexo de um homem de quase
dois metros de altura. Como?
Aquilo não podia estar acontecendo!
Teria ele morrido de algum modo e seu espectro havia sido
condenado a vagar, ou melhor, rastejar sem rumo por toda a
eternidade? Quem sabe havia sido vítima de uma maldição de
invisibilidade atribuída por algum espírito maligno ou por um
gênio mal humorado como naquele caso estranho que haviam
investigado em Missouri? Ou talvez houvesse sido submetido a
uma espécie qualquer de alteração molecular que fizera com
que os átomos de seu corpo se movessem em velocidades
inferiores ao espectro visível...
Formulava um sem número de teorias, umas malucas, outras nem
tanto, que faziam com que seu cérebro trabalhasse como um
alucinado, quando se deu conta de um fato que lhe havia
passado desapercebido na imagem refletida no espelho. Uma
barata! Cascuda, das grandes, solene e impávida, imóvel,
sobre a parede branca. No exato lugar onde ele próprio
deveria estar...
Recordava-se claramente, não havia barata alguma quando
rastejara parede acima, instantes atrás. Incrédulo, atônito,
fez a única coisa que lhe ocorreu para tirar a dúvida: deu um
tímido tchauzinho com a mão esquerda para o espelho. A
barata, refletida no espelho, simultaneamente, ergueu uma das
patinhas do lado esquerdo de seu corpo no ar, como se
acenasse de volta para ele!
Inconcebível! Impossível! Inacreditável!
Ele? Fox Mulder? Uma barata?
Mulder tinha toda sua atenção concentrada na imagem da barata
(sua própria imagem?) no espelho, quando Scully, que passara
os últimos minutos metodicamente ensaboando cada centímetro
quadrado da pele de seu rosto como se houvesse a
possibilidade de estar contaminada por um vírus alienígena,
finalmente abriu os olhos. Ela estudou longamente seu próprio
reflexo no espelho, vasculhando a imagem em busca de um ponto
qualquer esquecido pelo sabão, quando seu olhar se deteve em
algo. A parede branca de azulejos atrás dela. O pequeno
borrão marrom sobre ela. Voltou-se, caminhando devagar e
cautelosa até a parede. A cara coberta de espuma parou a uns
cinqüenta centímetros de distância do alvo, apertando os
olhos para ver melhor.
Na seqüência, Mulder leu no semblante da mulher o
reconhecimento, a surpresa, o nojo. Até que um risinho sádico
retorceu os cantos de sua boca.
- Scully! Sou eu! Mulder. – ele dizia assustado. – Seu
parceiro, Scully! – o medo começava a transformar-se em
pânico. - Não sou essa barata nojenta que você está vendo,
Scully! – o pânico cedia lugar ao terror. - Por favor... por
favor... – suplicava, os olhos fixos no chinelo que erguia-se
no ar. – S-s-scully, não! Não! Nãããããooooo...
Estaria Fox Mulder, agente especial, FBI, expert em traçar
perfis de assassinos seriais, intrépido caçador de
alienígenas e conspirações governamentais, condenado a
perecer como uma barata nojenta sob o chinelo de frufrus cor-
de-rosa de Dana Scully? Seria aquele o triste destino que a
estória havia reservado ao nosso herói?
PARTE II – Uma Janela para o Céu
A sola lisa e dura do chinelo de Scully se agigantava diante
dos olhos de um aterrorizado Fox Mulder, misteriosamente
convertido em barata. Dezoito precisos centímetros os
separavam. Ele gritava o nome da parceira, em pânico. Mas
ela, aparentemente, não o ouvia. Dez centímetros... Mulder
tentava desesperado chamar Scully à razão. Mas que razão, se,
para todos os efeitos, o que Dana Scully tinha diante dos
olhos era uma barata repulsiva? Cinco centímetros e
aproximando-se... O filme de sua vida começava a passar em
ultra-fast-motion diante dos olhos de Mulder, ao mesmo tempo
em que ele se despedia do mundo cruel. Dois míseros
centímetros apenas...
"Triiiim! Triiiim! Triiiim!" soou estridente a campainha,
acompanhada por vigorosas batidas na porta da frente.
O chinelo ameaçador paralisou-se no ar. Depois, desceu até o
chão e de volta ao pé da ruiva. Quem antes batia com força,
agora, verdadeiramente, esmurrava a porta da frente do
apartamento de Scully.
- Já vai! Já vai! – gritou ela, irritada, enquanto se virava,
limpando a espuma do rosto com uma toalha, e seguia para a
porta. Não sem antes dirigir uma última e fuzilante olhadela
para a barata na parede. Se olhares matassem...
Assim que Scully deixou o banheiro, Mulder suspirou aliviado.
Já havia visto a morte de perto muitas vezes antes. Havia até
mesmo, acreditava, estado quase que do outro lado, em algum
lugar além da vida. Mas nunca antes sentira-se tão indefeso
diante de uma situação de perigo como daquela vez. Por um
triz havia escapado de uma morte tão indigna como a de inseto
asqueroso, esmagado por um sapato contra a parede. Morto e
esmagado por sua parceira, por Scully, a quem seria capaz de
confiar sua própria vida sem pestanejar!
Ainda tremia, quando, em meio ao turbilhão de pensamentos que
o assaltava, percebeu que não poderia permanecer ali, parado
onde estava, como um óbvio alvo marrom na imensidão de
azulejos brancos. Sempre pelejando contra seu implacável
centro de gravidade, rastejou parede abaixo, olhando em
volta, à procura de um lugar para se esconder. Aquele
banheiro, tão imaculadamente branco, não lhe parecia seguro o
bastante. Era óbvio demais. Seria, com certeza, o primeiro
lugar onde ela o procuraria.
Mulder corria pelo chão em direção à porta, distante um
milhão de quilômetros de onde ele estava. Suas muitas
perninhas curtas, cujo movimento ele não conseguia ainda
controlar com precisão, moviam-se alucinadas, arrastando seu
corpo ovalado e desproporcional pelo chão escorregadio,
vencendo o comprimento de cada ladrilho como se percorressem
a distância de uma maratona. Subitamente, a consciência de
seu tamanho, tão diminuto diante da imensidão do mundo, o
atingiu. Assim como a percepção da fragilidade da carapaça
translúcida que revestia seu corpo. E o fato de estar nu e
desarmado.
Poderia deixar-se abater por tudo isso ou por ser tão
minúsculo e frágil ou por estar tão cansado e a maldita porta
tão distante, mas não havia tempo para isso. Ouvia passos
abafados pelo carpete aproximando-se, provavelmente os de
Scully. Uns poucos centímetros o separavam do corredor.
Poucos centímetros para um humano, quilômetros para um
pequenino inseto. Vislumbrou um possível esconderijo e, num
esforço desesperado, desapareceu no espaço entre o batente e
a porta, exatamente ao mesmo tempo em que a parceira entrava
de volta no banheiro, empurrando a porta atrás de si para
fechá-la.
Um roupão dependurado atrás da porta (sim, a ordeira Scully
também deixava roupas penduradas atrás da porta do banheiro!)
esvoaçou com o movimento brusco da porta e interpôs-se entre
a fechadura e o batente, impedindo seu fechamento completo.
Com isso, milímetros separaram a pobre barata Mulder de uma
cruel morte por esmagamento. Salvo pelo gongo outra vez. Ufa!
Trêmulo como estava, Mulder não ousava mover-se. Contentava-
se em ouvir os passos de Scully para lá e para cá, os saltos
do chinelinho cor-de-rosa ecoando em pancadas nervosas no
assoalho, como se procurassem pela atrevida barata que ousava
macular a irretocável limpeza de seu banheiro branco. Enfim,
ela pareceu desistir. Abriu a porta e saiu do banheiro como
um furacão. Mas conhecendo Scully como conhecia, Mulder tinha
certeza de que a ruiva não havia desistido. O mais rápido que
pôde, ele tratou de deixar seu esconderijo na porta do
banheiro e correu para o quarto, enfiando-se no escuro vão
entre a cômoda e a parede.
Instantes mais tarde, ouviu seus passos retornando ao
banheiro e, segundos depois, o "tchiiii" característico do
aerossol, um inseticida sendo borrifado generosamente por
todo o cômodo. Implorou aos céus e aos deuses das baratas que
a parceira restringisse seus ímpetos inseticidas ao banheiro,
visto que não poderia afirmar seguramente que a química do
produto não o afetaria, agora que era um híbrido humano-
inseto ou inseto-alienígena. Ou talvez fosse apenas um
inseto. Sim, talvez SEMPRE tivesse sido apenas um inseto.
Os deuses das baratas pareciam estar a seu favor, já que
Scully, depois de espalhar copiosas doses de inseticida pelo
banheiro, guardou o spray no armário sob a pia, lavou as mãos
e seguiu para o quarto. Mulder manteve-se tão encolhido e
imóvel, que poderia ser confundido com um nó da madeira do
fundo da cômoda do quarto.
Somente ousou respirar novamente no momento em que ouviu
Scully batendo a porta do apartamento atrás de si. E respirou
fundo, cerrando os olhos, tentando pôr em ordem os
pensamentos, tentando lembrar de algo, qualquer coisa que
pudesse lhe dar uma pista do que diabos estava acontecendo a
ele. Esforçava-se ao máximo, buscando, no fundo da memória,
técnicas de relaxamento aprendidas na faculdade e havia muito
esquecidas, as quais costumavam operar milagres nas
demonstrações que assistira nos bancos escolares. Tentou
recorrer à auto-hipnose que já havia utilizado em ocasiões
anteriores com relativo sucesso. Revisou mentalmente
tratados, compêndios e artigos diversos sobre psicologia,
psiquiatria, paranormalidade, ocultismo, vodu, macumba. Mas
em nada, absolutamente nada, encontrou a mínima pista ou
obteve qualquer resultado prático que lançasse alguma luz
sobre sua presente situação. Inútil, tudo inútil. Todos os
anos de estudos, pesquisas e observações não lhe serviam de
nada naquelas condições.
Fox Mulder havia se transformado em barata e ponto final!
Suas esperanças resumiam-se ao fato de que alguém iria dar
por sua falta... Scully TINHA que dar por sua falta! E,
então, iria procurá-lo. Ele só precisava esperar e arrumar um
jeito de fazê-la perceber no que ele havia se transformado.
Precisava pensar melhor sobre como fazê-lo. Até lá, restava-
lhe aceitar aquela situação e adaptar-se à sua nova condição
para tentar conviver com ela da melhor maneira e, se
possível, tirar algum proveito do atual estado das coisas.
Decidiu, então, que a primeira providência prática a tomar
seria percorrer o apartamento, mapeando locais seguros que
poderiam vir a lhe servir de esconderijo. E foi isso o que
fez, rastejando metodicamente, ao menos para os próprios
padrões, pelo quarto, a sala e a cozinha, arrastando consigo
seu estorvante centro de gravidade. Percorria os cantos
escuros, penetrava nos armários e nas gavetas mal fechadas,
examinando, tomando notas mentais de cada detalhe obscuro do
apartamento de Scully.
Sentiu-se vagamente envergonhado ao examinar-lhe o closet com
seus muitos trajes de corte elegante pendendo dos cabides. Um
tanto quanto voyeur ao percorrer a gaveta da mesinha de
cabeceira (um vidro de tranqüilizantes suaves...
preservativos, Scully?). Quase um tarado ao vasculhar-lhe a
gaveta da cômoda repleta de lingerie acetinada.
Outra vez na cozinha, onde tudo havia começado, Mulder olhou
as horas no mostrador do microondas. 2:32 PM. Por um
instante, imaginou como, mais cedo, julgara ver as horas em
seu relógio de pulso e as comparara com aquelas no mostrador
do microondas. Como, se não havia relógio e muito menos pulso
ou braços? Melhor não se ater a detalhes inexplicáveis, por
enquanto, e concentrar-se no que era mais premente. 2:33 PM.
Era perfeitamente justificável a fome que agora sentia.
Observou a geladeira fechada, uma possível fonte de alimento
completamente inatingível para ele. Vagou a esmo pelo chão
frio e limpo, sem nada encontrar. Quando já perdia as
esperanças, porém, eis que, para sua surpresa, cuidadosamente
escondida num cantinho sob um armário, estava uma azeitona,
outra provável fugitiva de uma das pizzas da vida. Emboras
ligeiramente ressecada e um tanto rançosa, Mulder a saboreou
como a um banquete real, surpreendendo-se com a força e a
destreza de suas mandíbulas, bem como com sua rápida
adaptação ao paladar de sua nova forma.
Findo o festim, voltou pesadamente para a segurança do
quarto, onde julgava que Scully não o encontraria. Abrigou-se
embaixo da mesinha de cabeceira que, além de um perfeito
esconderijo, oferecia-lhe uma ampla visão do quarto e de
parte do corredor até a porta do banheiro. E esperou,
esperou, esperou, até que acabou por adormecer. Dormiu um
sono leve e sem sonhos, como convém a uma barata.
Foi despertado pelo clique da chave sendo girada na porta da
frente. Já era noite, mas Scully não acendeu a luz do quarto.
Apenas entrou e, no escuro mesmo, pegou o pijama debaixo do
travesseiro e roupa de baixo limpa na gaveta da cômoda e
seguiu para o banheiro. Encolhido sob a mesa de cabeceira,
Mulder a ouviu abrir o chuveiro, que permaneceu aberto por um
longo tempo, e depois fechá-lo. Mais alguns ruídos indicaram
que remexia no armário da pia, mais um pouco de água
corrente, possivelmente a torneira agora, um pouquinho do
"tchii-tchii" do inseticida (Scully não desistia fácil!),
outra vez a torneira. Então, a luz do banheiro se apagou e
ele observou os pés pequeninos da parceira aproximando-se da
cama, na penumbra, e depois desaparecendo sobre ela.
Com seus novos ouvidos super sensíveis, Mulder escutava na
escuridão a parceira revirando-se de um lado para o outro nos
lençóis. Tinha dificuldades em dormir. De repente, ela
levantou-se de um pulo e correu até o banheiro. Outra vez, a
audição privilegiada de Mulder detectou que, pobre mulher,
vomitava. Isso o fez lembrar-se vagamente de que ela não
vinha se sentindo muito bem ultimamente. Scully voltou a
deitar-se outra vez e ainda revirou-se na cama por um longo
tempo. Uma eternidade depois, Mulder pode ouvi-la ressonando
suavemente.
Finalmente, ele pôde aventurar-se a sair de seu esconderijo e
subiu pela cabeceira da cama até um ponto em que tinha uma
visão completa da mulher adormecida. Via-lhe os cabelos
vermelhos espalhados sobre o travesseiro, acentuando a
palidez do rosto. Via as linhas em volta de sua boca, mais
marcadas do que podia se lembrar, as sombras escuras sob os
olhos. Percebeu, apreensivo, que ela emagrecera nos últimos
tempos. Estaria doente outra vez? Tomara que não...
Não cessava de surpreender-se com os superpoderes com que sua
nova forma o havia dotado. Embora não houvesse luz alguma no
quarto, mesmo a persiana da janela estava cerrada, ele
enxergava tudo como se fosse dia claro. Lembrou-se de ter
visto em algum documentário, Discovery Channel, talvez, que,
enquanto os olhos humanos possuem uma lente, o cristalino, os
olhos da baratas têm duas mil, o que explicava sua recém
adquirida "visão de raio X". Ele, que desde sempre, precisara
de óculos! Imaginou vagamente que poderia encontrar vantagens
em sua nova condição. Mas isso não vinha ao caso naquele
momento. Precisava aproveitar-se da escuridão e vasculhar
mais uma vez a casa, para tentar encontrar um meio de avisar
à parceira sobre si próprio.
Sua incursão noturna não teve outro resultado prático que não
empanturrar-se com mais um bocado daquela azeitona fugitiva
que encontrara durante a tarde. O dia começava a clarear
quando Mulder voltou ao abrigo sob a mesa de cabeceira. E lá
se manteve até que Scully saísse para trabalhar.
Outra vez percorreu o apartamento, aposento por aposento,
desta vez, tentando imaginar um modo de informar à parceira
sobre seu paradeiro. Inútil! O notebook, sobre a mesa, estava
fechado e ele era pequeno demais para segurar um lápis ou
caneta. Impossível, também, deixar uma mensagem gravada, uma
vez que, após o episódio do banheiro, percebera que sua
comunicação oral era inexistente. Parecia, por enquanto,
condenado a passar o restante de seus dias como uma barata
entediada, vivendo sorrateiramente no apartamento de Scully.
Se ao menos ela não trancasse o controle remoto da TV numa
gaveta...
Rastejou até uma das janelas da sala, de onde podia ver a
vida passando lá fora. Havia, no máximo, ao que se lembrava,
um dia que estava preso ali e já sentia falta do vento, da
fumaça dos carros, da agitação da vida humana. Tinha
saudades, até mesmo, do ligeiro odor de umidade e mofo que
era peculiar ao seu escritório no porão do FBI.
Por outro lado, o ambiente onde estava era completamente
impregnado pelo cheiro de Scully, o aroma de seus cabelos, o
suave perfume de sua água de colônia... Era essa, talvez, sua
única ligação com sua condição humana original, a razão pela
qual não se sentia tão solitário e que o impedia de
enlouquecer. Apesar dos pesares, estava junto de Scully!
A fome constante, porém, não o deixava esquecer que era agora
um inseto rastejante. E deixou de lado as divagações e saiu
bamboleando seu centro de gravidade pelo apartamento em busca
de comida. Então, novamente era noite e a mulher voltou para
casa e dormiu e acordou e tomou banho e vomitou e vestiu-se e
saiu...
E assim se passavam os dias para Mulder, numa rotina sem fim
de ver Scully chegar em casa, jantar, dormir, acordar, tomar
banho, vomitar, vestir-se e sair, dia após dia. Se, por um
lado, ela parecia ter esquecido a barata que ousara esconder-
se em seu apartamento, por outro, para desespero de Mulder,
parecia ter, também, esquecido o parceiro de carne e osso. O
que lançava dúvidas atrozes à mente daquele Mulder barata que
vivia escondido sob a mesinha de cabeceira.
Seria ele, realmente, uma barata híbrida mutante transgênica
que por alguma razão tivera implantadas as memórias de Fox
Mulder? Nesse caso, o Mulder humano devia estar por aí, o que
justificava o fato de Scully não ter dado por sua falta. Mas,
se era assim, por que razão ele ainda não havia dado as caras
no apartamento da parceira como costumava fazer de vez em
quando? E mais: como suas memórias tinham ido parar numa
barata?
Ou, talvez, ele fosse o verdadeiro Fox Mulder transformado em
barata sabe-se lá por que tipo de experimentos em cujos
realizadores era melhor nem se pensar. Se fosse assim,
possivelmente um clone teria sido colocado em seu lugar, de
modo que ninguém lhe notasse a ausência. Ainda pior era essa
hipótese, pois tornava-se virtualmente impossível convencer
alguém de que o outro não seria ele... Ou então, talvez... As
possibilidades eram de enlouquecer!
Se ele ao menos conseguisse lembrar-se de algo, qualquer
coisa que pudesse lhe dar uma pista... Mas nada. A não ser
lembranças muito antigas, sua infância ou uma determinada
manhã de março de 1992, não havia nada recente de que
conseguisse recordar. Logo, melhor não ficar se preocupando
com essas coisas ou acabaria por enlouquecer. Já era bastante
ruim ser uma barata. Pior seria tornar-se uma barata louca...
E assim, ele optava por levar a vida da maneira mais branda
possível, sem muitos questionamentos, além de "o que iria
comer no dia seguinte". E o tempo passava.
Uma bela noite, Mulder percebeu extasiado que a parceira
esquecera, sobre a escrivaninha na sala, o notebook aberto e
LIGADO! Uma oportunidade ímpar se oferecia a ele. Escalou a
mesa na maior carreira; espantosamente, seu centro de
gravidade perverso não lhe ofereceu nenhum transtorno. Pulou,
praticamente, voou sobre o teclado, letra por letra, saltando
com força sobre cada tecla, para deixar sua mensagem:
"SOCORRO, SCULLY. ASS. MULDER".
Mas, surpresa! Seu peso era insuficiente para comprimir as
teclas o suficiente para registrar os toques. Pulou ainda com
mais força, mas nada acontecia. Maldição! Os deuses das
baratas pareciam estar contra ele desta vez. De nada
adiantaram sua dança frenética, os saltos gigantescos,
corrupios e carambolas que executou sobre o teclado. Ao fim
de tudo, exausto e sem fôlego, a tela continuava tão limpa e
branquinha quanto no momento em que começara sua desesperada
ginástica.
- Boooossstaaaa! – gritou a plenos pulmões, furioso, diante
da inutilidade de seus esforços.
Tão irritado estava que mal teve tempo de pular no tampo da
escrivaninha e esconder-se por trás da tela do notebook,
quando Scully apareceu na sala, de arma em punho e vasculhou
a escuridão ao redor com o olhar. Mulder poderia jurar que,
num dado momento, os olhos azuis da parceira encontraram os
seus e que assim permaneceram, olhos nos olhos, por um breve
instante. E ele teve a impressão de ler neles tanta tristeza
que todos os temores que o afligiam acerca de seu
desaparecimento e clones e implantes de memória fizeram-se
mínimos diante da urgência em confortar o sofrimento de
Scully. E teve, também, a ilusão de neles perceber um fugaz
lampejo de reconhecimento ao fitá-lo.
Teria ela escutado seu berro de desabafo? Seria ele capaz de
alguma forma de comunicação com ela? A ilusão desfez-se
quando, da porta da frente, veio o som de uma chave sendo
retirada da fechadura, seguido por um sonoro palavrão e
passos trôpegos pelo corredor do edifício. A ruiva
encaminhou-se para porta e espiou pelo olho mágico por um
momento.
- Droga de bêbado! – rosnou baixinho por entre os dentes,
enquanto caminhava de volta ao quarto, deixando para trás
Mulder e a enorme frustração que dele se apoderara. Ainda não
fora daquela vez...
PARTE III – Pé Na Estrada
E assim passavam-se os dias, que se convertiam em semanas e
as semanas, em meses. A saudade do ar fresco, do vento, do
movimento da rua ia ficando cada vez mais forte em Mulder à
medida em que a sensação de confinamento aumentava. Cada vez
mais ele sentia-se prisioneiro de sua nova forma e do
apartamento de Scully. Passava horas grudado ao vidro da
janela, olhando a vida que passava na rua, sonhando com a
liberdade e esperando pelo dia em que Scully finalmente o
esmagaria sob a sola de um sapato qualquer. Como um condenado
no corredor da morte.
Mesmo como barata, Mulder sentia-se estranhamente
constrangido quando a parceira trocava de roupa no quarto
diante dele. Nessas ocasiões, enfiava-se no canto mais escuro
que pudesse encontrar e voltava as costas para ela até que
estivesse completamente vestida. Ele era (ou fora...) um
homem e apreciava mulheres nuas, claro! Porém, espreitar
Scully sem roupas de um canto de seu próprio apartamento, era
mais que voyeurismo, era quase um crime!
Mas, naquele dia, foi diferente. Ficou desafiadoramente
observando de um posto avançado na parede, por trás da
cabeceira da cama, enquanto a ruiva andava de um lado para o
outro pelo quarto, arrumando sua pequena bolsa de viagem. Viu
quando ela tirou do armário um blazer escuro, com calças
combinando, e uma blusa verde-oliva (Scully andava cismada
com aquela cor, ultimamente!) e os colocou sobre a cama.
Depois, remexeu na gaveta de lingerie e saiu em direção ao
banheiro. Quando o barulho da água do chuveiro soou, Mulder
tomou uma decisão desesperada. Correu como um louco e enfiou-
se dentro da sacola de viagem aberta sobre a cama. Daquela
vez, era tudo ou nada! Ia sair para ver o mundo outra vez.
Encolheu-se em um cantinho, sob as dobras de uma camiseta, e
esperou.
Depois do que pareceu um século, ela voltou ao quarto,
vestiu-se, meteu uns frascos de remédio na sacola e fechou o
zíper. Outros cem milhões de anos se passaram para o ansioso
Mulder, sem que nada acontecesse ou a bolsa se movesse do
lugar onde estava. E se, na pressa, Scully tivesse esquecido
de levar a sacola? E se ela houvesse resolvido levar a mala
maior que guardava no canto do armário, em lugar daquela
bolsinha minúscula? O pânico que o tomava fazia o espaço
parecer-lhe cada vez menor e mais claustrofóbico.
Finalmente, no entanto, a sacola se mexeu e continuou se
movimentando, balançando sem parar, para cima e para baixo e
para os lados. Mulder apurava os ouvidos e deliciava-se com
cada som que ouvia. O clique da chave na fechadura, o "toc-
toc" dos saltos de Scully nas escadas, o rangido agudo da
porta do prédio, as buzinas dos carros na rua, o ronronar
grave do motor de um automóvel, parado muito perto.
- Aeroporto, por favor! – ordenou a voz da parceira.
Estavam em um táxi! Ela iria viajar! Mulder sentiu-se tirando
a sorte grande. Não sabia para onde estavam indo, mas não
fazia diferença. Tudo o que importava é que viajavam juntos
outra vez, como nos velhos tempos! Ainda assim, tentou
descobrir para qual destino seguiriam, mas a voz no auto-
falante do aeroporto anunciava milhares de vôos ao mesmo
tempo. E havia o ruído ambiente e as turbinas dos aviões que
decolavam... Barulho demais para seus ouvidos super
sensíveis. Quando chegassem lá, onde quer que estivessem
indo, ele descobriria.
Repentinamente, foi assaltado pelo temor de que Scully
resolvesse despachar a sacola onde ele estava. Compartimentos
de bagagem não são pressurizados! A falta de oxigênio,
certamente, o mataria! Já ia, uma vez mais, invocar os deuses
das baratas (andava estranhamente religioso nos últimos
tempos...) quando recordou-se que a parceira nunca, em sete
anos de trabalho e viagens juntos, despachara sua bagagem.
Alegava já ter perdido objetos de valor inestimável em malas
extraviadas durante viagens aéreas. Por mais pesada que
estivesse a mala ou a sacola, a ruiva sempre a carregava
consigo onde quer que fosse.
O polido, mas apático, "bom dia, senhora" em voz e entonação
típicas de comissárias de bordo e meia dúzia de solavancos e
apertões na sacola confirmaram suas suspeitas. Estava a salvo
dentro do avião.
O ar condicionado gélido da cabine o lançou em um estado de
entorpecimento dentro da bolsa. Somente conseguiu libertar-se
do torpor e coordenar pensamentos e ações novamente muito
tempo depois, quando a temperatura já havia subido
consideráveis vinte graus. Estava quente, muito quente.
Abafado mesmo, dentro da sacola.
Apurou novamente os ouvidos e conseguiu determinar que estava
em um carro em movimento. Numa rodovia, podia quase jurar.
Podia ouvir o "plac-plac" regular das junções do pavimento
sob as rodas do automóvel. Aguçou ainda mais a audição e
percebeu que havia o ruído de apenas uma respiração, uma que
ele poderia reconhecer em qualquer lugar. Scully viajava
sozinha.
Sufocado como estava, Mulder ousou enfiar a cabeça para fora
da bolsa por um pequeno vão aberto no zíper. Scully dirigia,
concentrada na estrada. A sacola de viagem de onde ele saíra
jazia largada no banco de trás. Destemido e curioso, ele
arriscou um passeio pelo encosto do banco até o vidro
traseiro. Tinha sede de paisagens. Quilômetros e quilômetros
de um deserto avermelhado estendiam-se dos dois lados da
estrada. Uma imensidão vazia, plana e árida esparramava-se
pelo horizonte até onde a vista podia alcançar.
- Boa dia, condado de Juab! São 11:00 da manhã, Utah! –
berrou o locutor no rádio, emendando sua saudação com uma
balada country melosa numa voz arrastada e nasalada de
mulher.
"Utah!", admirou-se Mulder. "O que Scully estará fazendo
sozinha no meio do deserto de Utah?", ele não pôde deixar de
imaginar. Mas ela já diminuía a marcha do veículo e não havia
muito tempo para divagações. Mulder desceu o encosto com um
pulo e meteu-se dentro de um dos bolsos do blazer da
parceira, largado no banco ao lado da sacola, o abrigo mais
próximo que conseguiu alcançar. Estava quente demais para que
ela vestisse o casaco. Aquele era um bom esconderijo. Para
seu desespero, no entanto, sentiu que o blazer se movia e que
a mulher o vestia. Encolheu-se o mais que pôde no fundo do
bolso e esperou pelo pior.
Mas nada aconteceu.
Ela parecia andar de um lado para o outro, abaixar-se e
levantar-se como se procurasse algo no chão. E era apenas
isso. Nada de mãos nos bolsos ou algo semelhante. O que ela
tanto fazia ali parada no meio do deserto? Impaciente,
Mulder, ousou esticar a cabeça para fora do esconderijo, no
exato momento em que a mão de Scully enfiava um saquinho de
evidências justo no bolso onde ele estava! Ele mal teve tempo
de atirar-se ao fundo do bolso e encolher-se. Os dedos da
parceira, segurando o plástico, roçaram suas anteninhas de
barata.
"Agora estou morto!", ele sentenciou, gelando. Em sua
imaginação, ouvia-lhe o grito agudo quando ela tirasse a mão
do bolso trazendo uma barata suspensa pelas antenas entre os
dedos. Scully o atiraria longe, enojada, e, a seguir, o
reduziria a mingau com o salto da bota que estava usando. E
seria adeus, Fox Mulder, ex-agente do FBI, encerrando seus
dias nesse mundo como barata esmigalhada no deserto de
Utah...
Mas ela não pareceu ter percebido o intruso em seu bolso, já
que retirou a mão de lá e continuou sua investigação. O
terror da morte quase certa não demorou a abandonar Mulder.
Estava começando a ficar acostumado aos constantes
sobressaltos de sua vida como inseto. Mais calmo, ele
examinou o conteúdo do saco plástico. Areia empapada em
alguma substância gosmenta. O que o fez lembrar que estava
com fome. "Hora e lugar inadequados, Mulder!", pensou. Então,
voltou a espiar para fora do esconderijo. Estavam em um ponto
perdido no meio do nada, onde os únicos sinais de que a
civilização havia um dia passado por ali eram uma rodovia
deserta e uma cabine telefônica.
Scully caminhou até a cabine telefônica e discou. "Por que
ela não usa o celular?", Mulder se indagou. Obviamente, a
meio caminho entre nada e lugar nenhum, não havia sinal de
celular que chegasse. Afinal, para quê? O Coiote e o Papa-
léguas não se falam mesmo!
- Olá, é Scully! Bom dia! – ela disse. E acrescentou, um
pouco depois, - Estou fora da cidade, em Utah!
Mulder imaginou com quem ela poderia estar falando. Havia um
quê de intimidade em seu tom de voz que não era comum a
Scully. Além disso, era alguém que lhe cobrava explicações.
Skinner? Não, não soava como Scully falando com o diretor
assistente. Era outra pessoa. Esquisito...
Scully continuou falando sobre um mochileiro desaparecido
encontrado morto com sinais de envelhecimento exagerado nos
ossos. Talvez fosse alguém do Laboratório do FBI, ele a ouviu
mencionar glicoproteínas... A gosma no saquinho de
evidências, provavelmente. Ela continuou dizendo algo sobre
os arquivos X, sobre pesquisar velhos casos e outras coisas
mais, mas a atenção de Mulder já havia sido desviada por um
ônibus que passava pela estrada. De onde para onde poderia
estar indo aquele ônibus? Aquela estrada não parecia ser do
tipo onde houvesse muitos passageiros... Scully também
pareceu interessar-se pelo veículo, pois desligou o telefone
e entrou no carro.
- Lá vamos nós outra vez! – comemorou Mulder alegremente,
enquanto a parceira arrancava com o automóvel.
Ele enfiou-se novamente dentro do bolso. O risco de ser
encontrado por ela ali, dentro carro, era grande. Por
garantia, Mulder decidiu que, embora fosse um posto de
observação, sua localização naquele bolso não era das mais
seguras. Precisava de um abrigo melhor. Com suas mandíbulas
fortes e afiadas, conseguiu rapidamente cortar uma minúscula
fenda no tecido que separava o bolso do forro do casaco.
Embora, aparentemente, pequeno demais para seu corpo largo e
ovalado, Mulder se fez prevalecer das vantagens de ter um
exo-esqueleto flexível e dobrou-se e contorceu-se até
atravessar o buraquinho com facilidade sem alargá-lo um
milímetro que fosse.
Queria perguntar a Scully do que tratava aquela investigação.
Ouvira tão pouco do que ela falara ao telefone... Sentia
falta de conversar sobre os casos com ela... Ok! Geralmente,
acabavam discutindo. Mas Mulder sabia que ela, tanto quanto
ele, considerava aquelas argumentações estimulantes e, em
geral, ambos divertiam-se bastante com aqueles seus joguinhos
de palavras.
Rodaram por um tempo até que ela finalmente parou e saltou do
automóvel. Pela conversa que entreouviu entre a parceira e um
homem desconhecido, Mulder concluiu que deviam estar em um
posto de gasolina fajuto no meio daquele imenso nada. Não
arriscava sair de seu esconderijo para confirmar suas
suspeitas. Além disso, a fome imensa que sentia o deixava
enfraquecido. Seu estômago vazio roncava tanto e tão alto que
ele não ouviu o restante da conversa entre Scully e o
atendente do posto nem o momento em que ela ligou outra vez o
carro e recomeçou a rodar. Somente o "cof-cof-cof-puf..." do
motor engasgando e apagando conseguiu arrancá-lo de seu
transe de fome. Scully ainda insistiu, girando a chave na
ignição uma, duas, três vezes, mas o motor não dava sinais de
vida.
Mulder sentiu quando ela desembarcou do automóvel e começou a
andar. Nesse instante, agradeceu aos deuses das baratas pela
fato de ter-se escondido no blazer. Não tivesse se atrevido a
deixar a segurança da sacola, iria com certeza perder a ação.
A ruiva andou por um bom tempo, até que decidiu tirar o
casaco e jogá-lo sobre os ombros. Isso deu a Mulder a
oportunidade de esticar a cabeça para fora do bolso e espiar
a paisagem desértica cortada por uma estradinha de terra
batida. O sol a pino estava abrasador. Nenhum sinal de
civilização a não ser os postes telefônicos perfilados nas
margens da estrada. Aos poucos, foram surgindo uma dúzia de
casas agrupadas numa pequena comunidade com cara de fim de
mundo. Não havia ninguém do lado de fora, a não ser ele,
Scully e o atendente idiota do posto de gasolina. Ela bufava
quando dirigiu-se ao homem.
- Ei! Você colocou algo em meu tanque que fez o motor pifar!
– sua voz soava furiosamente controlada.
- Como? - fez o homem, obviamente fingindo.
- Onde está aquele latão de gasolina? Eu gostaria de vê-lo,
por favor. – ela rosnou, enquanto saía caminhando. O
atendente nervoso a seguia de perto. Mulder achou por bem
voltar ao seu esconderijo. – Água! – ele a ouviu gritar. –
Não tem nem cheiro de gasolina aqui... – ela continuou
furiosa.
- Isso, Scully! – comemorou Mulder, aplaudindo com suas
anteninhas. – Coma o fígado desse safado! – incentivou
enquanto ela andava, batendo os pés com força na terra e
esbravejando com o homem.
- Vou usar seu telefone. – ordenou a ruiva.
- Eu não tenho telefone... – gaguejou o homem. – Mas há um na
casa do Sr. Milsap, ali adiante...
Sem mais uma palavra, Scully virou as costas ao idiota e
subiu a rua. Pelo barulho de seus passos na areia e a maneira
brusca como expirava, Mulder podia afirmar com segurança que
ela estava para lá de furiosa. Ele sabia bem o quanto ela
podia ser perigosa naquele estado de espírito. Encolheu-se
bem no fundo do forro onde se escondia, imaginando que
trágico destino seria o seu se fosse encontrado por uma
Scully zangada como aquela.
A súbita amenizada na temperatura e na claridade e o "tac-
tac" característico dos saltos dos sapatos de Scully num piso
de madeira denunciaram que ela havia chegado à tal casa onde
havia o telefone.
- Olá? – chamou. – Sr. Milsap?
- Posso ajudá-la? – soou uma voz masculina, cujo tom, apesar
de gentil, fez acender uma luz de alerta na cabeça de Mulder.
- Espero que sim... Meu carro enguiçou e eu... pensei que
talvez pudesse usar seu telefone. – disse Scully, um pouco
mais calma.
- Claro! Aqui está! – respondeu o homem numa voz que era só
sorrisos. E dissimulação, para os ouvidos desconfiados de
Mulder. Talvez o tal Milsap fosse um bom velhinho como sua
voz inicialmente queria fazê-lo parecer. Talvez fosse a fome
impressionante que fizesse Mulder ouvir fingimento e
dissimulação por toda parte. Talvez estivesse virando uma
barata paranóica...
- Está mudo... – Scully soava desapontada.
- A maldita companhia telefônica está modernizando as linhas.
Deve estar sendo consertado logo.
- Quando? – bufou, irritada, a ruiva.
- Dez minutos... Duas horas... Quem sabe? Mas seja bem vinda
a esperar aqui. – dizia a voz sempre simpática do homem. -
Posso dar-lhe um quarto, se quiser... Minha casa é uma
pensão. – aos ouvidos de Mulder, a interpretação do velhinho
gentil e bonzinho fazia jus a um Oscar.
- Qual é, Scully? – sussurrou a barata para sua parceira. –
Você vai se deixar enganar por este farsante?
- O que diabos está acontecendo aqui? – a ruiva estava
novamente furiosa. – Tenho a nítida impressão de que alguém
não quer que eu vá embora!
- Isso, Scully! Arrase com ele! – incentivava Mulder de seu
esconderijo, enquanto ela saía da casa outra vez.
O calor era tão forte que obrigou Mulder a encolher-se mais
ainda. Um calafrio percorreu o corpo de Scully.
- São dezoito milhas até a rodovia e mais vinte até
Sugarville... – gritou o homem, enquanto Scully caminhava
decidida pela estradinha de terra. – Você não vai querer
andar tudo isso...
O calor era intenso demais. O chão de terra batida irradiava
ondas de calor que davam a impressão de que tudo até um metro
de altura do solo estava distorcido. O forro do casaco
parecia um forno.
- É... O homem deve ter razão, Scully. – disse Mulder, como
se ela o ouvisse. – É muito longe... e está tão quente aqui
fora... – a fome, que o enfraquecia, fazia com que seus
ouvidos zumbissem e a cabeça rodasse.
- Por favor, senhora... – a voz de Scully soava cada vez mais
distante. – Preciso de ajuda...
- Eu também... – falou Mulder antes de perder a consciência.
PARTE IV – O Prisioneiro de Zenda
"Ooohmmmm..." Um zunzum de vozes baixo e constante invadiu os
ouvidos de Mulder. Sua audição super sensível distinguia umas
poucas palavras aqui e ali naquele canto ou ladainha. Falavam
de Deus e de anjos e do Escolhido.
Ok! Ele havia morrido e fora para o paraíso das baratas. Sim,
porque, enquanto barata, nada fizera para merecer menos que o
paraíso. Além de tudo, morrera de fome, ainda sentia os ecos
da inanição em seu estômago. Entretanto, não queria abrir os
olhos. Não gostava da idéia de estar morto, com Scully
precisando tanto dele lá na Terra...
O simples pensamento em Scully provocou uma completa explosão
sensorial em Mulder. O aroma de seus cabelos tomou conta de
seu olfato, o som de sua respiração e mesmo das batidas
compassadas de seu coração chegou forte a seus ouvidos. Ele
apertava os olhos com força e choramingava, "Não quero
morrer, não quero morrer..." E, então, o paraíso foi sacudido
por um terremoto.
- Ei! Não há terremotos no paraíso, eu acho... – disse a si
mesmo, forçando-se a abrir os olhos.
E lá estava ele, no forro do casaco de Scully, de onde não
havia saído o dia inteiro. Que bom! Estava vivo! E novamente
seu estômago roncava alto, implorando por comida. Que droga!
Ainda tinha fome! Precisava achar algo para comer rápido,
antes que toda aquela estória sobre morte e paraíso se
tornasse realidade.
Concentrou-se. A respiração de Scully era calma e pausada.
Ela dormia. Mulder ousou, então, sair do abrigo. O blazer
estava jogado sobre uma velha cama de ferro aos pés de Scully
que cochilava recostada em sua cabeceira, a arma na mão.
Mulder concluiu que estavam na casa de Milsap e que o
telefone não havia sido consertado. Mesmo adormecida, Scully
tinha um ar triste e cansado. O que não era de surpreender,
dado o tanto que ela havia sido obrigada a andar sob o sol
escaldante naquele dia.
Cuidadosamente, Mulder desceu da cama e foi à caça. Estava
tão zonzo de fome que seu centro de gravidade móvel botava a
perder toda a prática adquirida com o tempo passado naquela
nova forma e lhe pregava peças, deslocando-se em ziguezague
pelo corpo ovalado. O quarto não era mesmo nenhum exemplo de
limpeza, o que levava a crer que não deveria ser difícil
haver algo comestível perdido em algum canto. Dito e feito.
Não muito distante do ponto onde alcançou o chão, sob a
cabeceira da cama, havia generosos restos de batatas fritas e
biscoitos amanteigados. Um banquete como qual Mulder matou a
fome de séculos de restos light do apartamento da parceira.
Saciado, decidiu investigar um pouco. Tratava-se, de fato, de
algum tipo de pensão, sobre isto Milsap não estava mentindo.
Havia restos os mais variados pelos cantos e sob os móveis.
Biscoitos, lenços Kleenex sujos, camisinhas usadas...
Provavelmente a pior espelunca onde ele e Scully já haviam
passado a noite. E eles eram exímios conhecedores de
espeluncas por todo o interior do país...
As frestas do assoalho de madeira dificultavam um pouco sua
caminhada. Por uma delas, tão larga que Mulder quase caiu,
pôde observar de onde vinha a ladainha que o despertara. No
quarto, logo abaixo do que estavam, havia duas dúzias de
pessoas, com velas e candeeiros nas mãos, ajoelhadas em torno
de uma cama, rezando. Sobre a cama, jazia um rapaz forte, mas
com aspecto doentio. Tinha os cabelos grudados de suor e as
feições muito pálidas e contraídas como se sofresse grande
dor. Da cabeceira, um compenetrado Milsap parecia coordenar
as orações, quase que em transe. Muito estranho!
Um ranger de molas causou um sobressalto em Mulder. Scully
acordara e olhava fixamente para o exato ponto onde ele
estava. Apesar de estar bastante escuro naquele canto, ele
teve a certeza de que ela o enxergava nitidamente. Quis
correr, mas algo o impedia, uma moleza nas perninhas
minúsculas. Não conseguia fazer nada a não ser fitar os
grandes olhos azuis e esperar pela chinelada fatal. Tampouco
Scully fazia outra coisa que não fosse simplesmente fitá-lo
nos olhos. E, outra vez mais, ele teve a impressão de ler no
azul do olhar da parceira um flash de reconhecimento e
compaixão. E depois tristeza, uma enorme tristeza dominou
todo seu semblante. O coração de Mulder batia forte e
descompassado e não era de medo. Tinha as pernas bambas e
seus olhos pareciam presos aos dela.
- Sou eu, Scully! Mulder! – ele queria gritar. Mas ela não
entenderia.
Mulder teve a impressão de ver o brilho furtivo de uma
lágrima no canto do olho dela. Queria aproximar-se da cama,
envolvê-la nos braços, confortá-la. Mas não tinha ilusões.
Era somente um inseto repulsivo e o máximo que conseguiria
arrancar de Scully seria um grito ou um pisão.
Um momento depois, a mágica pareceu desfazer-se. Scully olhou
em direção à janela e fungou e deu de ombros levemente.
Então, ajeitou o travesseiro onde estava recostada e apertou
a arma entre os dedos e esperou. Não muito tempo depois,
havia adormecido outra vez.
Mulder sentiu-se tão vazio, tão sem esperanças que se deixou
ficar onde estava, imóvel, largado. Não queria voltar ao
forro do casaco. Não tinha o direito de ficar perto de
Scully. Estava resolvido a terminar sua existência como uma
barata solitária. Havia desperdiçado todas as oportunidades
que a vida lhe oferecera para dizer às pessoas que realmente
importavam o quanto significavam para ele e agora estava
claro que não haveria mais outras chances. Merecia ser
borrifado com todo o inseticida do mundo. Merecia ser
esmagado contra as tábuas do chão até ser reduzido a uma
massa abjeta. Na verdade, o desejava, naquele exato momento.
Porém, por alguma razão que apenas os deuses das baratas
poderiam explicar, viu-se compelido a rastejar de volta à
cama, arrastando pesadamente atrás de si seu centro de
gravidade. Bamboleava e tombava para um lado e para o outro,
como se as forças faltassem às suas pernas. Mas seguia
adiante, mesmo sem saber porquê. Um século depois, o dia
clareava do lado de fora, conseguiu chegar ao topo da cama.
Num rasgo de insanidade, Mulder escalou a sola das botas de
Scully, postando-se na ponta de um de seus pés. Ela dormia,
ainda recostada na cabeceira da cama, as mãos pousadas na
arma em seu colo. Ele a observou por alguns instantes, a boca
entreaberta, a cabeça ligeiramente tombada para frente, um
raio alaranjado do sol nascente emprestando reflexos
incandescentes aos cabelos ruivos. Era tão raro vê-la assim
relaxada, tranqüila, a guarda abaixada, despida da máscara de
impassibilidade. Era bela, tão bela...
Mulder sentia que precisava dizer a ela tudo o que trazia
entalado no peito por oito longos anos. Já não havia muito o
que perder, portanto resolveu arriscar tudo o que ainda
possuía, sua própria vida. Atreveu-se a descer das botinas e
percorrer todo o caminho desde a ponta de seus pés até seu
ombro direito, atravessando toda extensão das pernas
estendidas sobre a cama, subindo pelo abdômen e pelo peito
que moviam-se lentamente no compasso de sua respiração, até
alcançar seu destino. Durante todo o percurso, sabia-se um
alvo fácil, tinha plena consciência do horrendo destino que
sua ousadia podia lhe custar. Mas não hesitou, vencendo
bravamente as rugas do tecido, as curvas e inclinações do
corpo adormecido. Talvez, em seu subconsciente, ansiasse por
aquele desfecho, que Scully acordasse e tornasse real o
pesadelo constante de um fim indigno que o assombrava. Talvez
fosse exatamente isso o que buscava.
Mas não foi o que obteve. Ela continuou adormecida e ele
galgou seu ombro corajosamente. Daquele ângulo, sentiu-se
como já havia se sentido diversas vezes antes, pequenino e
insignificante diante dela. Mas o que antes era uma impressão
causada pela postura da parceira, naquele instante era uma
dura realidade. Ele era um minúsculo inseto e ela, uma
gigante adormecida com o poder de esmagá-lo até a morte com
apenas um dedo. Mas nada disso vinha ao caso, não naquele
instante. Precisava dizer o que sentia. Mesmo que ela não
compreendesse.
- Olha, Scully... tenho tanto a dizer... – começou. - Como eu
gostaria que você pudesse entender o que digo... - Escolher
as palavras certas nunca fora sua especialidade. - Em todo
esse tempo em que estamos juntos... e mesmo antes... nunca
houve alguém que... que significasse tanto para mim quanto
você... – gaguejava, suspirava, falava por metáforas. Era tão
difícil... – Você foi, com certeza, a primeira... e a única
pessoa em quem tive completa confiança. Não desde o primeiro
momento, é verdade... mas, naquela noite, no Oregon... quando
você entrou no meu quarto no meio da noite... apavorada por
causa de umas picadas de mosquito... - a lembrança o fez
sorrir consigo mesmo. - Foi diferente... Não se pode deixar
de confiar em alguém que se apavora com mosquitos...
Em meio ao sono, Scully sorriu, também. Como se entendesse.
Aquilo encheu Mulder de coragem para prosseguir. Ela estava
ouvindo! E compreendia!
- Se algumas vezes escondi coisas de você... quero que saiba
que não foi por falta de confiança... mas para poupá-la do
sofrimento... Me destrói por dentro vê-la sofrer, Scully. E
já causei tanto sofrimento a você... Sua abdução...
Melissa... o câncer... Emily... a impossibilidade de ser
mãe... – se baratas tivessem canais lacrimais, Mulder estaria
com os olhos rasos d'água naquele instante. – Queria que você
me perdoasse, Scully... Por tudo o que fiz e disse... e não
fiz e não disse... - um nó se formara em sua garganta,
dificultando ainda mais o fluxo das palavras. - Preciso de
seu perdão... de sua amizade... Preciso tanto de você,
Scully...
O semblante adormecido da ruiva adquiriu uma expressão terna
e suave, quase tristonha.
– Porque... tem uma coisa que preciso dizer a tempos... mas
não sei muito bem como...
No sono, a sobrancelha da mulher arqueou-se inquisitiva,
compelindo Mulder a prosseguir.
– É tão difícil quando a gente cala um sentimento desses por
tanto tempo... É como se as palavras enferrujassem na
garganta... – ele respirou fundo, tomando coragem para
continuar. – É que eu... eu.. eu amo você! – disse de súbito,
no exato momento em que fortes pancadas sacudiram a porta.
Scully despertou assustada, erguendo a arma e a apontando
para a porta. Mulder, sacudido pelo despertar agitado da
parceira, teve que segurar-se com toda força de suas patinhas
no tecido da camisa para não cair. Estava definitivamente
frito agora! Milhas e milhas o separavam da segurança de seu
abrigo no bolso do casaco. "Bem feito, Mulder! Agora vai se
dar mal.", disse a si mesmo com ironia. Mas uma idéia louca
acudiu sua cabeça quando a parceira caminhou para a porta.
Como uma flecha, ele enfiou-se por trás da gola da camisa
verde oliva que ela vestia, desaparecendo de vista.
- Doutora, é uma emergência. – a voz de Milsap soava
assustada. – Há um homem lá embaixo que precisa de ajuda.
Mulder precisava agarrar-se com toda força para manter-se
firme em seu novo esconderijo. Cada movimento da ruiva
resultava num desafio para que mantivesse o controle sobre
seu traiçoeiro centro de gravidade. Ele mal conseguia prestar
atenção à conversa entre Scully e os outros.
- Precisamos levá-lo a um hospital. – ela dizia,
provavelmente referindo-se ao rapaz doente que Mulder vira na
noite anterior. – Acredito que o telefone ainda não esteja
funcionando... E ninguém por aqui tem um carro?
- Não. – respondeu uma voz feminina desconhecida.
- Podemos mandar alguém a pé até a rodovia para pedir ajuda.
– sugeriu Milsap.
- Enquanto isso, por favor, ajude-o. - acrescentou a mulher
estranha.
Ao examinar o doente, porém, Scully começou a mover-se um
pouco demais para o precário equilíbrio do parceiro. Foram
tantos os abaixa-e-levanta a sacudirem a camisa que, num dado
momento, ele deixou escorregarem por entre as patas as
minúsculas dobras de tecido onde se firmava e acabou por cair
esparramado no chão, atrás da ruiva. Por sorte, sua queda não
foi percebida nem por Scully nem pela mulher gorda com cara
de má que zanzava em volta da cama. Por ainda mais sorte, não
foi esmagado por uma das solas de sapato desavisadas que
perambulavam pelo quarto. A proteção que os deuses das
baratas lhe conferiram espontaneamente durante todo o tempo
em que esteve desamparado naquele chão foi enorme. Quando,
enfim, conseguiu recuperar o controle dos movimentos, tratou
de correr o mais rápido que pôde para o abrigo oferecido pela
cama. Somente então pôde voltar a dedicar sua atenção ao que
acontecia naquele quarto. A gorda havia deixado o cômodo e o
doente recobrara a consciência.
- A ferida em suas costas, - dizia Scully, - parece ser o
ponto de entrada de algum tipo de parasita que se alojou ao
longo de sua espinha...
- Quer dizer que estou morrendo? – indagou o doente em voz
débil.
- Vai morrer... se não o tratarmos adequadamente. – Scully
soava fria como uma maldita médica. Por que os médicos tinham
de ser tão insensíveis? Por que insistiam em tratar seus
pacientes como se não passassem de baratas? – E essa gente
parece não querer deixá-lo partir. Acho mesmo que eles
colocaram essa coisa em você.
Nenhuma palavra deixou os lábios do rapaz após uma afirmação
tão grave como aquela. Aquilo parecia estranho demais a
Mulder, fazia acender uma porção de luzes de alerta em sua
cabeça. Mas Scully continuava falando, alheia aos sinais de
perigo.
- Não tenho idéia do porquê eles o fizeram, se fazem parte de
alguma seita religiosa bizarra... – ela dizia. – O fato é que
mataram a última pessoa que estava nas mesmas condições que
você e temo que irão matá-lo também. – acrescentou.
- Isso não é maneira de se falar com uma possível futura
vítima de assassinato, Scully! – espinhou-se Mulder. – Não
foi assim que ensinaram na academia... Cadê sua psicologia? –
protestava.
Mas a tal possível vítima reagiu de modo ainda mais
inadequado, se isso lá era possível.
- O que você está dizendo é difícil de engolir. – foi a
resposta do rapaz, agora com uma voz bem mais forte que em
sua fala anterior. Nenhum sinal de desespero. Nada de gritos
ou lágrimas. Era como se ele já soubesse de tudo
antecipadamente e aceitasse as possibilidades como certezas.
Um milhão de luzes vermelhas e sirenes de perigo pipocaram na
mente de Mulder.
- É um engodo, Scully! Cuidado! – Mulder gritava, tentando
alertar a parceira. - Eles estão todos juntos nisso. Milsap,
a gorda, esse cara aí na cama...
- O que você vai fazer? – perguntou o farsante doente.
- Vou tentar nos tirar daqui... – ela respondeu. – Deve haver
algum meio de transporte escondido por aí...
- Scully, cuidado! Preste atenção! É a você que eles querem,
não percebe? Eu sei... eu sinto... – em seu desespero, Mulder
chegou a sair de baixo da cama e parar a um centímetro das
pontas dos sapatos da ruiva, gritando nervosamente. Mas ela
não o ouvia.
Scully andou até a janela e a abriu. Em seguida, pareceu
lembrar-se de algo e voltou até a cama.
- Você sabe usar uma arma? – ela perguntou ao rapaz, tirando
sua pistola do coldre e a entregando a ele.
- Você está louca, Scully? – Mulder protestava. Não podia
crer no que ouvia. – Não faça isso. Ele não é confiável. – em
seu desespero, ele escalou o peito do sapato de Scully e
agarrou-se com força à barra de sua calça, como se não
quisesse deixá-la prosseguir. – Não posso deixá-la ir
sozinha... Vou com você!
- Volto já! – disse a ruiva, enquanto pulava a janela.
Mulder, agarrado à barra de sua calça, não resistiu, porém, à
série de sacolejos bruscos da perna da parceira durante esse
movimento e acabou por ser atirado longe, de volta ao quarto.
Um momento depois, uma batida foi ouvida na porta e Milsap e
a mulher gorda estavam de volta.
- Onde ela foi? – indagou a mulher.
- Ela disse que estou morrendo. – respondeu o rapaz em voz
firme.
Milsap e a gorda entreolharam-se significativamente.
– Precisamos de outra troca. – acrescentou o doente, ao ser
ajudado a erguer-se da cama pela dupla.
Sentindo-se o mais impotente dos insetos, Mulder deixou-se
ficar onde havia caído, enquanto os três saíam do quarto. O
fosse lá o que fosse que o rapaz carregava em seu corpo
precisava de um novo hospedeiro e aqueles loucos haviam
escolhido Scully! Pior do que saber o que estava para
acontecer, era a sensação de não poder fazer absolutamente
nada para impedi-los. Mulder queria poder transformar-se num
daqueles gigantescos e ameaçadores insetos dos filmes de sci-
fi e avançar sobre aqueles lunáticos agitando as patas e
brandindo as mandíbulas até fazê-los correr aterrorizados.
Mas qual nada! Era apenas uma baratinha insignificante e
Scully, sua Scully, estava lá fora, desarmada, indefesa,
completamente à mercê daquele bando de fanáticos religiosos.
PARTE V – No Calor da Noite
Um milhão de anos se passaram para um Mulder consumido pelo
desespero e escondido no chão sujo e poeirento sob a cama de
um quarto de uma pensão decadente em um lugarejo perdido
entre nada e lugar nenhum no meio do deserto de Utah. Ele
apurava os ouvidos, tentava se fazer valer de seus
superpoderes de barata, de sua audição ultra aguçada para
captar algum sinal de Scully. Mas tudo o que conseguia ouvir
eram as marteladas surdas de seu próprio coração, batendo
como um louco, em agonia. Fora isso, apenas o silêncio da
noite que caía.
Quando, por fim, algo aconteceu para quebrar a inquietante
monotonia da espera, a porta escancarou-se e ele viu Milsap e
o atendente do posto trazendo Scully, sustentada pelos
braços, para o quarto. Mulder não pôde ver-lhe rosto. A
cabeça estava tombada sobre o peito, os cabelos ruivos
cobriam-lhe a face. Os pés não se moviam, arrastados atrás do
corpo inerte. Desacordada. Talvez morta.
Os homens a colocaram sobre a cama e ela gemeu alto. Mulder
respirou, aliviado. Andaram em torno da cama por algum tempo
e, depois, afastaram-se. Milsap e os outros olhava para a
mulher estendida na cama como que em adoração, as mãos postas
em oração.
- Malditos! – bradava Mulder debaixo da cama, agitando as
patinhas como se quisesse bater neles.
Sobre a cama, Scully gemia e ofegava, como se fosse presa de
grande dor. Cada gemido gutural que ela emitia doía em Mulder
como uma facada.
- O que vocês colocaram, em mim? – ela gritava,
dolorosamente. – Vou pegá-los a todos, seus bastardos... –
ameaçava impotente.
- Não. Você vai nos amar. – replicava Milsap, as mãos sempre
postas em oração. – Vai nos proteger, nos ensinar a não ter
inveja... Mas eu a invejo tanto... Em breve, vai ser uma só
com Ele... – dizia com êxtase nas palavras.
- Ele? - grunhia a ruiva. – Essa coisa em minhas costas é um
Ele? – ela gritou dolorosamente, remexendo-se e fazendo
rangerem as molas da cama.
- Por favor! É uma coisa maravilhosa para você... –
contemporizava suavemente Milsap. – O último homem não era um
tabernáculo adequado...
Uma raiva surda dominava Mulder. Tabernáculo? Queria acabar
com aquele Milsap e seus amaldiçoados seguidores. Delirava em
ser um gigante e esmagá-los a todos, em ter uma arma
carregada de balas para tão somente descarregá-la sobre
aqueles lunáticos. E em poder levar Scully dali para algum
lugar onde ela pudesse ser tratada adequadamente.
- Socorro! Socorro! – gritou Scully, quando os faróis de um
automóvel iluminaram a janela.
Mas a gorda, de alguma forma, a fez calar. E saiu do quarto
acompanhada por Milsap. Cego de angústia, Mulder deixou seu
esconderijo e escalou o pé da cama até o colchão, sem
perceber que o atendente idiota do posto de gasolina
permanecera no quarto, vigiando Scully.
- Malditos, malditos, malditos! – gritou a plenos pulmões ao
ver Scully deitada, braços e pernas abertos e atados aos
ferros da cama, a barriga de encontro ao colchão.
Havia uma ferida circular na base de sua espinha e algo
movia-se ao longo dela, por sob a pele. Todo seu corpo,
coberto por uma fina camada de suor, refletia o brilho
amarelado dos lampiões. Um lenço enfiado em sua boca a
impedia de gritar. Ela começou a espernear como uma louca,
quase esmagando Mulder que caminhava sobre o colchão, até que
conseguiu atingir com um dos pés um lampião colocado numa
mesa baixa ao pé da cama.
O homem, que espiava pela janela o que quer que estivesse se
passando na rua, teve de lutar rapidamente para impedir que
as chamas se alastrassem. Enfim, o atendente obteve sucesso
e, embora Mulder não o tivesse notado, tinha agora o olhar
fixo naquela atrevida barata parada a poucos centímetros de
onde repousava o "tabernáculo d'Ele". Pura heresia! Talvez
por causa de sua tão grande preocupação com a baratinha
herética, ele não tivesse notado a entrada do homem de
cabelos louros no quarto.
- Ei... – soou a voz do estranho, atraindo a atenção tanto de
Mulder quanto do atendente pateta que se voltou para receber
um fortíssimo soco do outro e cair inconsciente. – O que
diabos...? Agente Scully!
O estranho conhecia Scully! Com uma expressão entre
preocupada e carinhosa, ele retirou o lenço que tampava a
boca da ruiva.
- Agente Doggett! Me tire daqui!
E Scully o conhecia! Doggett? Mulder não se lembrava de
conhecer ninguém com esse nome no Bureau. Quem seria aquele
Doggett?
- Você pode andar? – perguntou o homem, enquanto desatava os
nós que prendiam Scully.
Antes que Doggett alcançasse os pés de Scully, Mulder tratou
de agarrar-se às calças dela com toda a força de suas
patinhas e mais o quanto pôde aplicar da força de suas
mandíbulas sem rasgar o tecido.
- Não sei... - respondeu a ruiva entre gemidos.
Prontamente, Doggett a tomou nos braços, erguendo-a com
facilidade da cama. Mulder não conseguia ver muito do que se
passava, concentrado que estava em manter-se firme em seu
posto. Tudo o que podia afirmar era que haviam deixado a casa
de Milsap e caminhavam pelas sombras de uma noite escura,
seguindo instruções esparsas de Scully. Ela parecia sentir
muita dor, emitindo grunhidos sofridos de vez em quando. Às
vezes, de relance, Mulder podia entrever as feições de
Doggett e sua expressão era atenta e gentil. Seus olhos
tinham um brilho diferente quando olhava para Scully, um
brilho que não agradava Mulder em absoluto. A barata
paranóica voltava à cena...
Entraram em uma espécie de celeiro, onde, surpresa, estava o
ônibus que haviam visto na estrada no dia anterior. Uma vez
em seu interior, Doggett instalou Scully em um dos bancos da
frente e agachou-se sob a barra de direção, manipulando um
aglomerado de fios.
De onde estava, Mulder podia observá-lo mexendo nos muitos
fios com intimidade e confiança. Era um homem cujas linhas de
expressão muito marcadas sugeriam estar na segunda metade dos
quarenta. Os cabelos louros cortados rentes à cabeça
ressaltavam um par de orelhas avantajadas. Sua expressão era
o que normalmente poderia ser enquadrado como "típico tira de
Nova York", rígida e sem emoções, do gênero prendo-e-
arrebento. Exceto quando olhava para Scully. Nessas horas, as
feições se suavizavam, as rugas tornavam-se menos profundas,
parecia quase humano, completa transformação. Quem poderia
ser aquele agente Doggett, surgido em meio ao nada, qual um
cavaleiro de armadura cintilante para resgatar a princesa
Scully em apuros? Não, Mulder não gostava do homem.
- Pode fazer uma ligação direta? - soou a voz sofrida de
Scully.
- Posso fazer ligação direta? - Doggett ironizou confiante. -
Em sessenta segundos.
Quem diabos poderia ser aquele cara? Sua atitude, sua
arrogância e auto-suficiência, seu jeito incômodo de olhar
Scully... Tudo nele desagradava Mulder profundamente. Tinha
ciúmes! Mas ciúmes de quê? Em seu relacionamento com Scully,
não havia espaço para ciúmes. "Que relacionamento, Mulder? E,
por acaso, o que você tem com Scully pode ser chamado de
relacionamento? Caia na real, bolas!" Suas divagações
sentimentalóides foram interrompidas por um gemido alto da
parceira.
- Agente Scully... Fale comigo! - Doggett falou assustado.
- Você tem que tirar isso fora. Corte! - a mulher tinha a
respiração entrecortada. Sua voz estava surpreendentemente
aguda. - Oooh! Está indo para o meu cérebro...
Mulder precisava ver o que estava acontecendo. Sem pensar,
escalou a perna da calça da parceira e depois a parede ao
lado do banco. E a visão que teve o surpreendeu e desesperou.
A criatura movia-se debaixo da pele de Scully em direção a
sua cabeça. Em agonia, ela tentava impedir-lhe o avanço,
apertando o pescoço com as mãos. Doggett, parado ao lado do
banco, olhava atônito os movimentos da coisa pelas costas da
mulher.
- Tire essa coisa de mim... Agora! - gritou a ruiva.
Mas Doggett continuava paralisado, o canivete aberto na mão.
As mãos de Scully apertavam com força as ferragens do ônibus,
os nós dos dedos claramente desenhados contra a pele
retesada.
- Droga, Doggett! Faça o que ela está pedindo! - berrou
Mulder para o homem.
Milsap e seus seguidores já haviam invadido o celeiro e
tentavam entrar no ônibus, quando Doggett, finalmente, fez
uma incisão na pele na base do pescoço da mulher e de lá
retirou um verme esbranquiçado. Era comprido e repulsivo e
contorcia-se tentando escapulir das mãos do agente. Os
fanáticos já haviam quebrado os vidros das janelas e entravam
no coletivo, ameaçadores, portando facões e ancinhos e...
armas de fogo.
- Mate esta coisa, seu idiota! - gritou Mulder. - Só assim
eles vão parar.
Como que atendendo ao comando de Mulder, Doggett atirou a
criatura no fundo do ônibus e sobre ela descarregou três
tiros, apontando, a seguir, a arma para Milsap. Mas o outro
já não era mais combativo, devastado que estava diante do
corpo sem vida d'Ele...
Mulder voltou o olhar para Scully que parecia prestes a
desmaiar, extremamente pálida, a pele perolada por um suor
frio.
- Ela precisa de cuidados! – gritou para Doggett. – Faça
alguma coisa!
O agente, depois de guardar a pistola no coldre, envolveu
Scully em seu paletó e a ergueu nos braços, atravessando o
bando de fanáticos, agora silenciosos e resignados. Mulder
mal teve tempo de se atirar de onde estava, agarrando-se à
manga do paletó de Doggett, para não ser deixado ali. Com
sacrifício, conseguiu escalar o tecido até atingir uma
posição de onde podia ver o rosto exangue da parceira e a
expressão apreensiva de Doggett.
As luzes dos carros de polícia rapidamente iluminaram a névoa
baixa que envolvia a estradinha. Doggett dirigiu-se a um dos
automóveis parados, depositando Scully gentilmente no banco
traseiro, onde acomodou-se também.
- Para o hospital, rápido! – ordenou ao policial.
Mulder, que aproveitara a distração do agente para esconder-
se em um dos bolsos de seu paletó, observava a mulher
desacordada, a cabeça pendendo mole sobre o encosto do banco.
Uma mecha dos cabelos ruivos deslizava de um lado para o
outro sobre sua face de acordo com o balanço do automóvel.
- Tire suas mãos imundas dela, seu orelhudo! – ralhou Mulder
furioso, quando Doggett delicadamente ajeitou a mecha de
cabelos vermelhos para o lado. – E esses olhos compridos,
também. Senão parto sua cara ao meio... – ele definitivamente
não gostava daquele camarada.
O que se seguiu, depois que chegaram ao hospital, foi confuso
demais para um Mulder que não podia atrever-se a colocar a
cabeça para fora do bolso onde estava. A fome imensa de um
dia inteiro sem comer o deixava meio zonzo. Tudo o que
conseguiu saber com certeza foi que Scully estava bem e fora
de perigo.
Em algum momento, em sua confusão, percebeu que os sacolejos
e trambolhões pelos quais o paletó vinha passando haviam
cessado. Podia ouvir o ronco do motor de um automóvel. Ousou
espiar o lado de fora e percebeu que estava outra vez mais no
banco traseiro de um carro e que, ao lado, também sobre o
banco, estava a sacola de viagem de Scully. Com um
agradecimento silencioso aos deuses das baratas, voltou à
segurança da bolsa pela mesma fresta no zíper pela qual havia
saído dois dias antes. Encontrou um abrigo confiável em um
canto da sacola e lá se deixou ficar, faminto, apático,
enfraquecido, à espera da morte, mais uma vez. Porém, para
sua surpresa, e decepção talvez, foi despertado, não fazia a
mínima idéia de quanto tempo depois, pelos movimentos das
mãos de Scully desfazendo a mala. Encolheu-se, esgueirou-se,
escondeu-se e, quando ela, enfim, guardou a sacola no
armário, Mulder pôde voltar ao seu abrigo sob a mesinha de
cabeceira e à sua velha rotina de baratinha doméstica.
PARTE VI – Sonata de Outono
Durante os dias que se seguiram, Fox Mulder dedicou-se com
afinco a empanturrar-se de tudo o quanto pudesse comer. Nas
horas vagas entre as refeições, usava de suas habilidades de
barata para grudar-se ao vidro da janela, observando a vida
que passava lá fora. Olhava o céu azul sem nuvens e as folhas
que amarelavam e caíam das árvores. Imaginava o sopro frio da
brisa em seu rosto e os cheiros do outono em suas narinas e o
canto dos pássaros em seus ouvidos.
Sempre gostara da melancolia característica do outono,
daquela certeza de que, após o inverno tristonho e sombrio,
aguardava a radiante primavera. Mas os últimos tempos para
Mulder, estavam sendo como um longo tenebroso inverno e não
havia perspectiva de que a primavera jamais ocorreria
novamente. Sentia-se um condenado no corredor da morte, uma
vítima de doença terminal, aguardando a derradeira crise.
Outra atividade que consumia boa parte de seus dias era
passar horas tentando descobrir quem diabos poderia ser o tal
Doggett e qual seu relacionamento com Scully. Havia até mesmo
mandado às favas os escrúpulos. Bisbilhotava abertamente a
correspondência da parceira e ficava à espreita ouvindo-lhe
os telefonemas. Mas pouco conseguira descobrir a não ser que
ele próprio, Fox Mulder, clone ou não, parecia ter sumido do
mapa. Não havia mais telefonemas no meio da madrugada ou
visitas fora de hora. A vida de Scully tornara-se um tédio!
Ao menos, ela parecia ter melhorado do que quer que a fizera
passar mal e vomitar nas primeiras semanas em que Mulder fora
morar em seu apartamento. Embora continuasse pálida e
nitidamente angustiada, ganhara algum peso e seu rosto
apresentava bochechas salientes, novamente, coisa que não
acontecia desde antes de sua abdução. Aquilo, de certa forma,
tranqüilizava Mulder que chegara a temer pela volta de seu
câncer.
Quando já se sentia novamente recuperado e forte o
suficiente, ele voltou a infiltrar-se num dos bolsos da ruiva
e, com ela, saiu para o mundo exterior.
Sua primeira saída o conduziu direto até os porões do
edifício J. Edgar Hoover, o escritório dos arquivos X. "Meu
escritório", ia dizendo saudoso, quando viu, sentado em uma
das mesas, com intimidade e naturalidade, o tal Doggett.
- Bom dia, Agente Scully! – disse o outro com um sorriso.
- Bom dia, Agente Doggett! – ela respondeu.
Num segundo, o já tumultuado mundo de Mulder precipitou-se em
um profundo caos. Havia perdido seu posto nos arquivos X! E o
orelhudo o havia assumido em seu lugar.
- Não pode ser verdade. Isso não está acontecendo! –
choramingou Mulder, amargo.
Mas Scully sentou-se na outra mesa, como se aquilo tudo já
fosse um hábito, e começou a tediosa tarefa de preencher
papelada. Do fundo do bolso, entre um soluço e outro, Mulder
ouvia cada ruído provocado por Doggett. O ranger de sua
cadeira, o arranhar do lápis sobre o papel, o som de sua
respiração, tudo o que ele fazia chegava amplificado um
milhão de vezes aos ouvidos super sensíveis da baratinha e
incrementava sua irritação.
Scully continuava ali, sentada, "clique-clique-clique" nas
teclas do computador, completamente alheia aos sons
enervantes produzidos pelo homem. "Como é que ela consegue?",
Mulder imaginava. "Aquele verme nojento deve ter destruído
alguns de seus neurônios...", ironizava, embora, ao mesmo
tempo, não deixasse de preocupar-se.
Mal sabia Mulder que o pior ainda estava por vir. A gota
d'água, a afronta final. O barulho de Doggett abrindo as
gavetas de seus sacrossantos arquivos X!
Heresia! Profanação! Danação e fogo do inferno! Morte aos
infiéis!
- Tire suas patas sujas dos meus arquivos, seu orelhudo de
uma figa! - gritou Mulder com toda força, dando vazão a sua
ira.
- Como? - Doggett perguntou intrigado a Scully.
A ruiva levantou a cabeça ligeiramente.
- Ahn? - fez sem entender.
- O que você disse, agente Scully? - indagou Doggett,
desconcertado.
- Eu? - respondeu, olhando para ele espantada. - Eu não disse
nada...
A expressão de Doggett era de incredulidade.
- Podia jurar que ouvi alguém me dizendo para tirar as mãos
dos arquivos... - disse ele confuso. Depois, deu de ombros. -
Devo estar imaginando coisas...
Scully sacudiu a cabeça com um sutil ar de desdém e voltou a
mergulhar em sua papelada. Mulder, a baratinha, no fundo do
bolso, não sabia se chorava ou se ria da situação que havia
criado. Ao menos, o outro parecia tê-lo ouvido, já que fechou
rapidamente as gavetas e saiu da sala. Havia vencido a
batalha.
Mulder, no entanto, tinha consciência de que aquela era
apenas uma batalha em uma guerra perdida. Apesar do choque
inicial de ter um estranho remexendo no que considerava os
seus arquivos, ele rapidamente percebeu o absurdo que
representavam seus ciúmes. Ele, Fox Mulder, como o mundo o
conhecera, não mais existia, era história. O que havia agora
era John Doggett, o novo parceiro de Scully, a cargo de
ajudá-la, ao que tudo indicava, com os arquivos X. Não havia
o que discutir ou contra quem se revoltar. Era uma questão de
aceitar as coisas como estavam ou aceitar as coisas como
estavam. Ponto final.
Fox Mulder, ex-agente do FBI, expert em traçar perfis de
assassinos seriais, destemido caçador de alienígenas e
conspirações governamentais, atual integrante da família dos
Blatídeos, passara à categoria de observador mudo e passivo
das ações de Dana Scully e John Doggett. Embora, talvez
pudesse dar um palpite ou outro, de vez em quando.
Foi nessas condições que os acompanhou durante aquele caso
dos irmãos exterminadores, no qual o estranho Randall Cooper
podia ver através das paredes. E assim também na investigação
que os conduziu ao ferro-velho, em Indiana, que servia como
depósito de resíduos tóxicos. Mulder postava-se como um mero
espectador, assistindo a tudo de sua privilegiada posição no
bolso de Scully. Emitindo, vez por outra, palpites e
opiniões, quase sempre solenemente ignorados pelos agentes.
Mas, às vezes, muito mais escassas vezes do que ele gostaria,
Scully parecia ouvi-lo, repetindo as coisas que ele mesmo
teria dito. E, nessas raras ocasiões, eram uma dupla
novamente.
De resto, seguia a vida. Mulder encarava Doggett como um mal
necessário e procurava aproveitar ao máximo suas incursões ao
mundo exterior, tentando divertir-se ao acompanhar a ruiva
nas investigações.
Mas nem sempre saía com ela. Em ocasiões demais, os dedos da
parceira esbarravam em suas anteninhas de barata. E, em mais
vezes do que ele gostaria de lembrar, quase havia ficado para
trás quando atrevera-se a deixar a segurança de seus bolsos.
Por isso, ele achava por bem nem sempre acompanhá-la. Não era
conveniente arriscar-se em excesso. Outras vezes, não a
acompanhava simplesmente porque uma vozinha em sua cabeça,
quem sabe sua consciência ou seu anjo da guarda ou a voz da
razão, lhe dizia para não ir. E ele ficava em casa, vendo a
vida passando lá fora pela janela e remoendo as mágoas do
pouco de que podia se recordar de sua vida.
Numa dessas ocasiões em que ficara em casa, descobriu
satisfeito o desavisado controle remoto da TV esquecido sobre
o sofá. Nem pensou duas vezes antes de pular sobre o botão de
"Liga". Surpreendentemente, o aparelho ligou-se e Mulder
matou as saudades dos tempos em que passava as tardes
zapeando pelos canais. Embora fosse um tanto cansativo ficar
pulando de um lado para o outro sobre os botões do controle,
teve uma das tardes mais agradáveis desde que assumira sua
nova condição de inseto. Quando calculava faltar cerca de
meia hora para o retorno de Scully, ele cuidadosamente
desligou a TV e voltou ao seu esconderijo oficial sob o
criado mudo.
O dia seguinte amanheceu tão frio e chuvoso que pareceu a
Mulder que ficar no aconchego do lar seria o melhor a fazer.
Melhor ainda se o controle remoto fosse novamente esquecido
no sofá. E, para seu deleite, lá estava ele, outra vez ao seu
dispor. Mais zapping e diversão garantida. E assim era quase
sempre que ele não saía com a parceira.
Scully andava estranhamente esquecida. Além do controle
remoto, freqüentemente deixado no sofá ou na mesinha, volta e
meia a ruiva largava objetos fora de seus lugares ou esquecia
algo em casa, retornando no meio do dia para buscar e
provocando sustos homéricos na pobre baratinha.
Um belo dia, Mulder assistia completamente entretido a um de
seus filmes favoritos na TV, quando a porta abriu-se de
repente e Scully entrou na sala como um furacão. Mulder mal
conseguiu esconder-se atrás de uma das almofadas do sofá. Nem
ao menos teve tempo de pensar em desligar a televisão. Mas
ela pareceu não perceber o aparelho ligado, quando passou
como uma flecha em direção ao quarto, batendo os pés com
força no chão. Tampouco deu mostras de notá-lo, enquanto saía
e puxava a porta atrás de si.
Subitamente, porém, estacou, a chave suspensa no ar a meio
caminho da fechadura. E franziu o cenho e entrou em casa
outra vez, a passos lentos, quase hesitantes. Parou em frente
à TV e ficou olhando para a tela. Muda. Perplexa.
- Plan 9 From Outer Space... - murmurou finalmente, enquanto
se sentava no sofá.
E assim ficou.
- Sabe, é uma coisa interessante quando se considera que as
pessoas na Terra que podem pensar estão tão temerosas
daquelas que não podem morrer... - os lábios murmuravam
baixinho os diálogos do filme.
Os olhos fixos na TV foram pouco a pouco ficando rasos
d'água. As mãos pousadas sobre o colo amassavam os cantos de
um envelope onde havia o logotipo do Parenti Medical Group.
Quando uma lágrima, enfim, escapou de seus olhos azuis e
rolou solitária face abaixo, ela cerrou os olhos com força e
respirou profundamente. Depois, secou o rosto com as costas
da mão, levantou-se e saiu, fechando vagarosamente a porta
atrás de si com um longo suspiro, deixando para trás a TV
ligada e um Mulder atônito, escondido atrás da almofada do
sofá.
Scully andava cada vez mais estranha.
Algumas manhãs depois, numa daquelas em que o comportamento
da ruiva estava especialmente bizarro, Mulder a acompanhou
até um quarto de hotel onde um homem havia sido encontrado
morto, pouco depois de chegar da Índia. Uma morte suja, todo
seu sangue havia sido drenado do corpo. Não havia, no
entanto, indícios de febres hemorrágicas em seu sistema ou
sinais de arrombamento no quarto.
- Então? O que você acha que foi, agente Scully? Hotel mal
assombrado? Ataque de alienígenas? Vampiros? - provocava
Doggett.
Mas Scully não aceitava as provocações.
- Melhor manter a mente aberta. - foi tudo o que respondeu a
agente.
No necrotério, Scully fazia a autópsia da vítima, Hugh
Potocki. O odor forte de sangue e entranhas impregnava o ar.
Mulder, enjoado com o cheiro nauseabundo, imaginava como a
ruiva conseguia suportar todas aquelas autópsias nojentas e
seu desagradável cheiro de morte e todo aquele sangue que
respingava e se grudava nos óculos, nas luvas, nas roupas e a
visão apocalíptica de vísceras e mais vísceras, fétidas e
sanguinolentas... E pensar que fora ele, Fox Mulder, que
recebera a alcunha de Estranho em Quantico...
A necrópsia revelou grande destruição dos tecidos da cavidade
abdominal. Revelou também que a hora aproximada da morte
parecia, inacreditavelmente, ser anterior ao embarque do
senhor Potocki no avião de Bombaim para Washington!
- Quer dizer que um homem morto embarcou num avião na Índia,
fez conexão em Paris, tomou um táxi em Dulles, depois
registrou-se num hotel no centro da cidade e deu gorjeta ao
camareiro? Com base em minha experiência, posso dizer que
homens mortos não dão gorjetas, agente Scully... - ironizou
Doggett.
Do fundo do bolso onde estava, Mulder teve vontade de socar a
cara de Doggett pelo tom jocoso. Scully, em situação normal,
faria o mesmo. Mas, estranhamente, tudo o que a mulher
respondeu foi:
- Eu disse para manter a mente aberta, agente Doggett.
"Tão improvavelmente Scully...", a baratinha não pôde deixar
de pensar.
Um caso intrigante, na opinião de Mulder. Principalmente pelo
comportamento incomum que vinha demonstrando a parceira.
Tantas possibilidades se afiguravam na mente ágil da
baratinha, tantas hipóteses polêmicas que ele gostaria de
debater com Scully... Mas tudo o que lhe restava era a
frustração de não poder fazê-lo, de não ser ouvido ou
compreendido por ela.
Na manhã seguinte, foi com Scully até uma casa no subúrbio,
onde um menino havia encontrado seu pai morto na sala. Antes,
porém, o garoto, Quinton, alegava ter visto um estranho
homenzinho sem pernas dentro de seu quarto.
- Mas é o pai que me interessa. - explicou Scully a Doggett.
- Ele não apresentava nenhum dos sinais de hemorragia que
encontramos na outra vítima. Pelo relatório inicial do
legista, sofreu algo como um aneurisma cerebral. O único
detalhe dissonante no exame foram os olhos... cujos vasos
sangüíneos estavam rompidos, como em Potocki. - completou
ela, pensativa.
- A não ser que esse seja apenas o primeiro estágio... -
murmurou Mulder do bolso.
- A não ser que esse seja apenas o primeiro estágio... -
repetiu Scully, voltando as costas e deixando para trás um
boquiaberto Doggett.
E, um pouco depois, estavam Scully e Mulder, escondido no
fundo do bolso de seu avental cirúrgico, outra vez no
necrotério. "Mais cheiro de sangue e entranhas...", pensava
Mulder desanimado e já enjoado, enquanto Scully fazia as
incisões de praxe no abdômen intumescido do cadáver.
Inesperadamente, algo começou a mover-se na barriga da
vítima. Espantada, Scully tropeçou no carrinho de
instrumentos atrás dela e foi ao chão com ele.
- O que é... ? - interrompeu-se Mulder, assustado ao ver uma
pequena mão projetando-se para fora do corpo sobre a mesa de
autópsia.
Mas Scully movimentava-se para trás, em busca de sua arma
caída em algum lugar, e ele não pôde ver a quem ou o que
pertencia aquela mão. Quando, enfim, a parceira encontrou a
pistola, a coisa já havia sumido, deixando atrás de si um
rastro de sangue e marcas de mãos pelo chão. De arma em
punho, Scully escancarou a porta fechada atrás da qual o
rastro desaparecia.
- Cuidado, Scully! - alertou Mulder cauteloso.
Mas, dentro do cômodo, não havia nada além de altas
prateleiras lotadas de produtos químicos e outros suprimentos
do necrotério. Um depósito. Nenhum sinal do dono daquela
misteriosa mãozinha... Era como se tivesse desaparecido no
ar.
O cérebro de Mulder trabalhava freneticamente, dissecando
possibilidades, formulando e refutando hipóteses. Era tão
mais fácil quando havia o ceticismo de Scully para servir de
contraponto às suas teorias malucas... Agora, Mulder tinha de
tentar, ele mesmo, raciocinar como a parceira e apresentar
contraprovas que desbancassem suas idéias mais alucinadas.
Era tão difícil... Ia de encontro a todos os seus princípios.
Mas aqueles eram dias estranhos. "Mantenha a mente
aberta...", ressoava a voz de Scully em seus pensamentos.
De súbito, em meio a todas aquelas loucas teorias que vinha
examinando e reexaminando durante toda a manhã, uma pareceu a
Mulder suficientemente absurda e, ao mesmo tempo, factível o
bastante. Místicos indianos... Potocki havia vindo da
Índia... Mestres ascéticos e seus incríveis poderes.
- Chuck Burks, Scully! Converse com Chuck Burks! - sugeriu
Mulder, suplicando aos deuses das baratas para que a parceira
o ouvisse.
Ela, no entanto, continuou sentada em sua cadeira, batucando
nas teclas de seu computador, rabiscando anotações em uma
folha de papel. Frustração foi o que ele sentiu. Uma
avassaladora frustração por ser uma reles barata.
Cerca de meia hora depois, porém, a porta do escritório
rangeu ao se abrir.
- Boa tarde! - soou uma hesitante voz masculina que pareceu
vagamente conhecida a Mulder.
- Chuck! Seja bem vindo. - respondeu a ruiva, erguendo-se da
cadeira.
- Chuck Burks... - murmurou Mulder para si mesmo, agradecendo
intimamente aos deuses das baratas por mais aquela graça.
- Recebi seu email e trouxe um material que gostaria de lhe
mostrar. - continuou o homem.
E falou a uma interessada Scully e a um cético Doggett sobre
faquires indianos e seus poderes extraordinários. E sobre
mestres Sidhi e sua habilidade de controlar a mente para
manipular a realidade. Mas Doggett não acreditava e,
consequentemente, não compreendia.
Scully, no entanto, para total surpresa de Mulder, ouvia
atentamente tudo o que Burks tinha a dizer, conduzindo a
conversação com perguntas que o próprio Mulder faria.
Definitivamente bizarro o comportamento da ruiva, como se ela
tentasse ver os fatos pelos olhos do parceiro, compreendê-los
através de sua lógica particular, agir como ele próprio
agiria.
Na final da tarde do dia seguinte, outra pessoa apareceu
morta. A mãe de Trevor, colega de escola de Quinton, o outro
garoto. Afogada na piscina, nos fundos de sua casa. Até aí,
nada ligava sua morte aos crimes anteriores. Seus olhos,
porém, apresentavam os mesmos sinais de hemorragia observados
nas outras vítimas.
- Eu vi os olhos. Mas sou capaz de apostar que nada rastejou
para dentro do corpo dessa mulher. - ironizava Doggett. - Não
sei como dizer... mas acredito que você esteja vendo apenas
aquilo que quer ver, agente Scully.
- Você está questionando minha integridade? - perguntou
Scully visivelmente contrariada.
Como o tal John Doggett ousava questionar a integridade de
Scully?
- Acabe com ele, Scully. - incentivava a baratinha do fundo
do bolso.
- Não. O que estou questionando é toda essa droga de caso.
Seu dito expert, as evidências que você prefere ignorar. O
fato do rumo de sua investigação não estar nos conduzindo a
nenhum padrão ou motivação e de estarmos tão longe de pegar
um assassino quanto estávamos quando começamos... - seu tom
misturava raiva e desânimo. A profunda ruga em sua testa
atestava sua frustração.
Scully suspirou e deu de ombros. Seu olhar era o mesmo que
Mulder já havia dirigido a ela em ocasiões semelhantes
inúmeras vezes em seus anos de trabalho juntos.
- Eu pedi que você mantivesse a mente aberta. - ela respondeu
simplesmente.
Aquele comportamento da ruiva era tudo por que Mulder ansiara
durante os muitos anos de sua parceria. Sempre desejara que
ela acreditasse, que fosse capaz de ver as possibilidades
cientificamente inexplicáveis dos fatos. Agora, no entanto, o
modo como ela agia o apavorava. Porque contrariava a natureza
cética e puramente racional de Scully. Porque ele nada
poderia fazer para protegê-la das possíveis conseqüências de
sua súbita mudança de paradigma. "Cuidado com que você
deseja", havia, um dia, lhe prevenido um certo gênio. "Porque
pode se tornar realidade..."
Um ruído no fundo do quintal atraiu a atenção dos agentes.
Era Trevor.
- Ele esteve aqui. O-o homenzinho... eu o vi. - gaguejava
assustado. - Ele me seguiu... E estava na escola, também...
e, depois, não era mais ele, mas o zelador. Não sei explicar.
Tive medo.
As palavras do menino fizeram algum sentido para Mulder.
- As crianças são capazes de ver as coisas com olhos muito
distintos dos adultos. Acredite no garoto, Scully. - sugeriu
em voz alta.
O que se sucedeu, a partir de então, foi muito rápido e
confuso demais, mesmo para a mente veloz de Mulder. Scully
conseguiu um mandado de prisão para Burrard, o zelador. No
entanto, gastou horas em uma sala vazia na delegacia de
polícia, falando sozinha como se tentasse interrogar alguém.
Mas não havia ninguém lá! Ao menos para os olhos de Mulder.
Depois, desistiu do interrogatório, dizendo a Doggett que não
fazia sentido tentar interrogar um homem mudo e saiu. De que
homem ela falava? Em seguida, lá estava ela na casa de
Trevor, querendo falar-lhe. E, no momento seguinte, estava na
escola. Corria de uma lado para o outro como uma louca.
Mulder temia por sua sanidade. Tentava dizer-lhe para ser
simplesmente Scully outra vez, para deixar de lado sua
tentativa de ver o que não via e agir como outra pessoa e ser
quem não era.
Mas foi o que ocorreu depois que surpreendeu Mulder mais
profundamente. Scully encontrou Trevor, em uma sala da
escola. Avançando ameaçador na direção do menino, estava um
homem pequeno de traços vagamente orientais. Havia algo de
assustador em sua aparência e não era o fato de não ter
pernas e deslocar-se, impulsionado pelas mãos, sobre uma
pequena plataforma com rodinhas. Tampouco era seu aspecto
sujo e andrajoso como o de um mendigo.
- Graças a Deus! - exclamou Scully, estranhamente aliviada
diante da cena.
O homem sem pernas voltou-se e retomou o movimento, dessa vez
na direção de Scully.
- Faça alguma coisa! - o tom de Quinton era desesperado. - É
ele! É o homenzinho! - gritava, acenando na direção dele
freneticamente.
Os olhos do homenzinho! Era isso. Em seus olhos, Mulder viu
raiva, sede de vingança, tanta maldade que foi capaz de gelar
o sangue da baratinha.
- Quem? Trevor? - Scully indagou atônita.
E Mulder compreendeu o que a parceira tinha diante dos olhos.
Para ela, aquele que avançava em sua direção era o garoto
Trevor. Era essa a realidade que o homenzinho queria que
Scully enxergasse. Seus truques paranormais, no entanto, não
eram capazes de afetar Mulder. Ou porque ele fosse uma
barata. Ou porque tivesse a mente aberta por natureza. Ao
contrário de Scully, que tentava ser quem não era.
- Não se deixe enganar pelo que vê, Scully. Acredite no
garoto! - disse-lhe Mulder.
Ainda que não visse o homenzinho, a ruiva apontou sua arma na
direção dele. O místico ainda seguia em direção à mulher.
- Detenha-o! Atire nele! - gritou o garoto apavorado.
- Não posso... - respondeu ela, trêmula.
O homenzinho continuava avançando sobre Scully como a própria
personificação do mal.
- Atire nele, Scully! Atire! Pelo amor de Deus. - berrou
Mulder desesperado, odiando-se por nada poder fazer face à
situação.
Talvez Scully o houvesse escutado, talvez tivesse visto a
centelha de ódio que faiscou nos olhos do faquir. O fato é
que disparou sua arma contra ele. E depois, ficou olhando o
corpo estendido no chão, trêmula, incapaz de impedir o fluxo
das lágrimas.
- Matei um garotinho... Eu matei uma criança... - repetia
insistentemente para si mesma, as lágrimas correndo
abundantes por sua face, despertando em Mulder um louco
desejo de poder confortá-la.
- A boa notícia é que você está errada. - Doggett tentou
tranqüilizá-la.
- Mas foi o que eu vi. Você imagina como é não poder confiar
em seus próprios olhos? - havia angústia em sua voz.
- Por que atirou, então? - indagou. Uma ruga profunda franziu
a testa do agente.
Ela se calou por um longo instante. Fechou os olhos como se
buscasse a resposta no fundo de sua alma. Quando os abriu
novamente, havia neles uma profunda tristeza, uma
incontestável frustração consigo mesma. Soltou um longo
suspiro. E Mulder entendeu que sabia a resposta, antes mesmo
que ela a transformasse em palavras.
- Porque percebi que era isso o que Mulder faria. - respondeu
num murmúrio. - Porque era assim que ele encarava as
coisas... sem julgamento e sem preconceito... com uma
largueza mental da qual simplesmente não sou capaz...
Cada uma de suas palavras, cada lágrima que corria de seus
olhos cravava-se como uma punhalada no peito da baratinha, o
fazia sentir-se imensamente culpado por suas insistentes
tentativas de mudar a parceira, de querer fazer dela um
reflexo dele próprio.
- Seja você mesma, Scully. - ele suspirou, enfim. - Seja o
que você tem de melhor, o que me encanta em você.
Simplesmente você.
PARTE VII – O Inverno de Nossa Desesperança
Mulder ia apenas levando a vida, um dia depois do outro, num
desânimo sem fim. Por vezes, considerava seriamente entrar
sorrateiro em um dos bolsos de Scully outra vez e sair
clandestino com ela. Mas a sensação de impotência que o
tomara durante aquele malfadado caso no Utah ou diante do
homenzinho sem pernas o fazia reconsiderar e optar por ficar
quieto em casa. "Atenha-se a sua insignificância,
baratinha.", dizia a si mesmo desconsolado sempre que ouvia a
porta fechar-se atrás da ruiva que saía para mais um dia de
trabalho. "O que os olhos não vêem, o coração não sente...",
considerava em tom de sermão, quando imaginava Scully
perseguindo e sendo perseguida por lunáticos, conspiradores e
outros espíritos do mal.
E, de repente, era inverno lá fora. O vento frio soprava
brancos flocos que se ajuntavam numa camada de neve suja e
acinzentada nas calçadas. Os poucos loucos que se aventuravam
a caminhar pela rua passavam apressados, a cabeça baixa
contra o peito para enfrentar o vento, as mãos enterradas nos
bolsos dos pesados casacos. De sua janela, Mulder os
observava desolado, tentando se lembrar como era ter um nariz
congelando ao vento frio e mãos para enfiar nos bolsos.
Nostalgias de barata...
Scully parecia terrivelmente abatida naquela manhã. Aliás,
estava terrivelmente abatida desde quando chegara, na noite
anterior. Tivera uma noite difícil, Mulder a ouvira remexer-
se na cama vezes sem conta, soluçara e murmurara coisas
ininteligíveis durante o sono agitado.
E, quando o dia amanhecera, gélido e sombrio, as olheiras
eram profundas sob seus olhos e a palidez de suas faces mais
evidente do que nunca. Por algum motivo oculto, o traje negro
que ela escolhera naquele dia pareceu a Mulder tão
imensamente triste... Preto era a cor padrão dos trajes de
trabalho de Scully, Mulder não conseguia saber porque. Apesar
de tudo, caía-lhe sempre muito bem, fazendo-a parecer mais
alta e esguia. Mas, naquela manhã, havia algo diferente com
relação àquele traje negro. Talvez a maneira hesitante como
ela escolhia cada peça e depois a depositava sobre a cama...
E, então, a maneira deliberadamente lenta com que ela vestia
cada uma delas... Como se não quisesse realmente vesti-las...
Como se quisesse fugir ao que elas representavam...
Foi mais forte que ele, um impulso incontrolável, uma
tentação irresistível. E lá estava Mulder, uma vez mais,
escondido no fundo do bolso do sobretudo da parceira, indo
com ela para onde ela parecia não querer ir.
O frio era tão intenso na rua que mesmo o grosso sobretudo de
lã que Scully vestia era insuficiente para aquecer a pobre
baratinha enregelada. E o entorpecimento ameaçava dominá-lo,
quando o eco distante de uma voz o trouxe de volta à vida.
- Cinzas às cinzas, pó ao pó.
Um funeral! Scully fora a um funeral. Daí todo seu
abatimento, toda sua hesitação! A velha curiosidade o obrigou
a espiar o lado de fora. "A curiosidade matou o gato,
Mulder..."
Nada mais esquisito que o grupo que se reunia em torno
daquela tumba. Kersh, Doggett, duas ou três caras conhecidas
do Bureau... Skinner... Frohike, Byers e Langley? ...
Margareth Scully? ...
Frio na espinha... Foi difícil concentrar-se o suficiente
para ler o que estava escrito na lápide. Era como se, de
repente, sua visão ultra aguçada não mais funcionasse. As
letras ganhavam vida própria e dançavam diante de seus
olhos... Uma a uma foram, enfim, vagarosamente, se acalmando
e parando e formando as palavras que ele tanto temia ver
escritas ali:
"Fox Mulder, 1961 – 2000".
Era o SEU funeral... Estava assistindo a seu próprio
funeral...
- "Eu sou a ressurreição e a vida", disse o Senhor. "E aquele
que crê em mim, embora esteja morto, ainda assim viverá, e
todo aquele que vive e crê em mim, nunca há de perecer." -
ecoavam distantes as palavras do pastor.
De um momento para o outro, nada mais fazia sentido. As
palavras não faziam sentido. As pessoas não faziam sentido. A
vida não fazia sentido. Estava morto.
Morto! Seu corpo sem vida descia ao túmulo dentro do caixão
de madeira. Para ser sepultado na terra enregelada pelo frio
do inverno. Morto!
- Não posso realmente acreditar que estou aqui... - falou a
voz entrecortada de Scully.
"Eu também não...", disse Mulder consigo mesmo, recusando-se
a crer naquilo por que estava passando. Se era seu o corpo no
fundo do túmulo, o que estaria sua consciência fazendo num
inseto? Triste piada de mau gosto? Uma forma deturpada de
justiça poética? Uma macabra vingança dos deuses?
Enlouquecera! Era isso. Andara por tanto tempo tentando
penetrar em mentes insanas, passeara tão despreocupadamente à
margem da loucura, que enfim fora por ela dominado.
Enlouquecera, não havia outra explicação. Cerrou os olhos com
força, tentando acreditar que, quando os abrisse, tudo seria
como antes. Que, na pior das hipóteses, estaria trancafiado
numa cela acolchoada, atado a uma camisa de força. Mas, não.
Ainda sentia o vento gélido do inverno e ouvia as palavras do
ministro. "E aquele que crê em mim, embora esteja morto,
ainda assim viverá..." Morto era o que estava.
Percebeu quando Scully ajoelhou-se à beira da cova e lançou
um punhado de terra dentro dela. Sentiu como se cada um dos
grãos daquela terra caísse sobre ele mesmo, o cobrindo, o
sepultando. Subitamente, lhe ocorreu que, se era seu o corpo
sem vida no fundo do túmulo, não havia razão para que sua
consciência continuasse vivendo. Assim pensando, Mulder
tentou arremessar-se para fora do bolso de Scully e para
dentro da cova.
Mas a ruiva levantou-se repentinamente, fazendo com que a
baratinha escorregasse para o fundo do bolso. Um momento
depois, sua super sensível audição de barata captou os sons
do pranto manso de sua parceira. E os instintos suicidas de
Mulder foram temporariamente paralisados. Ela ainda precisava
dele.
Simultaneamente, porém, seu aguçado olfato captou um perfume
conhecido. Próximo, muito próximo. O perfume de Skinner.
Scully tinha alguém. E não havia nada que um inseto pudesse
fazer por ela. Mulder quis, mais uma vez, saltar do bolso
para a neve fria que cobria o chão, para o esquecimento
final, para a morte. Mas os inclementes deuses das baratas
uma vez mais pregaram-lhe uma peça, sugando toda a força de
suas perninhas. Fazendo seu cruel centro de gravidade, mais
pesado do que nunca, imobilizá-lo na segurança do bolso.
E a barata Mulder continuou vivendo.
A partir de então, abandonou totalmente o perfil de barata
paranóica que havia ostentado durante todo o tempo anterior e
tornou-se simplesmente uma barata depressiva com tendências
suicidas.
Quis aplicar em si mesmo uma dose letal de inseticida, mas
não era capaz de tirar a tampa do aerossol.
Ficava rondando os pés de Scully quando ela andava pela casa,
na esperança de ser pisoteado. Mas ou ela não o via ou fingia
não vê-lo. Ou, quem sabe, apenas houvesse se acostumado de
tal forma a sua presença que pensava naquela baratinha como
um animalzinho de estimação.
Mulder fazia greve de fome. Passava dias e dias a fio sem se
alimentar. Mas simplesmente não morria de inanição. E acabava
por se entupir de qualquer porcaria que encontrasse somente
para parar de ouvir a ronqueira de seu estômago.
Os deuses das baratas definitivamente haviam se voltado
contra ele. Talvez apenas o tivessem esquecido...
Mulder perdia horas inteiras imaginando por quanto tempo
viveria uma barata. Já havia perdido as contas do tempo em
que estava daquele jeito, mas calculava que alguns meses
haviam se passado desde que acordara no chão da cozinha de
Scully.
Scully... Mulder andava tão preocupado em dar cabo de sua
vida ultimamente que havia, de certa forma, negligenciado a
parceira. Quando deu-se conta disso, sentiu-se tão
imensamente culpado que deixou de lado outra vez suas idéias
suicidas.
Scully... Ela não mais acordava sobressaltada no meio da
noite, como fazia antes do corpo de Mulder ser encontrado.
Tampouco derramava lágrimas solitárias e escondidas, como
fizera por muito tempo depois de seu sepultamento.
Sua expressão era agora triste, porém conformada. Como se
tudo o que restasse a ser feito fosse continuar a viver.
Scully e sua imensa fé, que lhe dava forças para prosseguir.
A fé num Deus que lhe permitia tanto sofrimento...
Tudo em que Mulder se permitira ter fé fora seu trabalho e
Scully. O primeiro não mais existia, sepultado num caixão de
madeira junto com seu corpo humano. Restava-lhe somente
Scully, alguém em quem acreditar, alguém por quem viver.
Mulder a observava, andando pesadamente de um lado para o
outro pelo quarto, colocando sobre a cama as roupas que
vestiria em mais um dia de trabalho. E, como se tivesse
acabado de chegar, ele se deu conta do quanto ela engordara,
perdendo estranhamente as formas. De fato, mesmo em seu
transe suicida, ele percebera como a freqüência das visitas
do entregador de pizza aumentara naquela casa. Talvez Scully
houvesse, finalmente, abandonado suas intermináveis dietas.
Scully estava melhor daquele jeito, considerava a baratinha.
Havia algo de diferente nela, um brilho, uma vibração, que a
tornava ainda mais bela e que nem mesmo a eterna tristeza de
sua expressão conseguia apagar.
Uma vez mais, Mulder sentiu-se tentado a sair com ela. Ao
mesmo tempo, hesitava ao recordar todos os percalços e
angústias por que passara em ocasiões anteriores. Debatia-se
entre os ditames impulsivos de seu coração que o impeliam a
acompanhá-la e os prudentes conselhos de seu cérebro que o
induziam a ficar.
Ainda debelava-se no duelo entre razão e emoção, quando o
telefone tocou e ela deixou o quarto para atendê-lo.
Entretanto, ao observar as feições transtornadas de Scully em
seu retorno ao quarto, todas as dúvidas se dissiparam
imediatamente e a emoção venceu a batalha.
Num descuido de Scully, que nervosa tentava atabalhoadamente
terminar de se vestir, a baratinha saltou decidida para o
interior de um de seus bolsos. Uma vozinha em sua cabeça lhe
dizia que aquela era a coisa certa a ser feita.
PARTE VII – O Despertar da Primavera
Do lado de fora, os primeiros aromas da primavera indicaram a
Mulder que o inverno acabara.
- Talvez para a Natureza... - sussurrou consigo mesmo,
amargo. - Certamente, não para mim.
De qualquer forma, embebedava-se de seus aromas tanto quanto
do cheiro de Scully. Ambos tinham sobre ele o mesmo efeito
lenitivo, como se fossem capazes de curar as feridas que com
que a vida crivava seu peito.
Scully caminhava rápido, sua pulsação acelerada. Colocava e
retirava as mãos dos bolsos num ritmo frenético. Algo a
afligia.
Então, os suaves perfumes da primavera cederam lugar ao
cheiro de éter e desinfetantes e doença e morte. Estavam em
um hospital.
- É verdade? - indagou a ruiva nervosa.
- Acalme-se. - respondeu Skinner conciliador.
- Não, eu preciso vê-lo, droga! - ela insistiu, exasperada.
- Scully... Você não pode. - atalhou o Diretor Assistente com
decisão.
Quem precisava ser visto? Quem não poderia ela ver?
Por um breve momento e pelo tom da conversa, Mulder sonhou
que pudesse ser a ele próprio, seu corpo humano. Que aquele
que ficara lá no túmulo, sob a terra, era outro, um sósia, um
clone, um engano... Um tênue lampejo de esperança que ele
cuidou rapidamente de extinguir. Para evitar desilusões. Para
minimizar o sofrimento.
- O que eles disseram? - à beira das lágrimas, a voz de
Scully falhava. - Eu PRECISO vê-lo.
- Eu sei... - respondeu Doggett, tristemente. - Mas desejava
que não o fizesse.
Havia algo de muito grave se passando ali. A tensão de
Scully, a firmeza de Skinner, o comedimento de Doggett...
Outra vez a esperança reacendeu no coração de Mulder.
O "bip-bip-bip" ritmado dos aparelhos de monitoração cardíaca
ressoou agudo em seus ouvidos, o atraindo para fora do bolso.
Ele tentava preparar-se psicologicamente para uma visão ainda
mais apocalíptica que aquela de seu nome escrito numa lápide
de pedra no cemitério, seu esquife descendo lentamente ao
túmulo. Mas o que viu... Não saberia classificar...
Sobre a cama, ligado por um sem número de tubos aos muitos
aparelhos ao redor, estava ele. Seu corpo humano. Inerte,
coberto de cicatrizes. Mas vivo. Vivo?!
Mulder deixou-se arrastar por seu centro de gravidade de
volta ao fundo do bolso e chorou. Chorou de alegria e de
tristeza. Chorou de alívio e de desespero. Chorou porque
simplesmente não conseguia imaginar outra coisa a ser feita
além de chorar. Scully, abraçada ao corpo sobre a cama, fazia
o mesmo.
Mais tarde, naquele mesmo dia, quando Scully, sentada ao lado
da cama, estava suficientemente absorta na observação do
homem nela deitado, Mulder atreveu-se a deixar seu bolso.
Cuidadosamente, desceu até o chão e atravessou o cômodo até
desaparecer por trás de um móvel, na parede oposta à cama.
Sabia que, em se tratando de um quarto de hospital, se fosse
encontrado ali, ele, uma barata, teria um trágico fim. Mas
precisava arriscar.
De onde estava, conseguia uma visão privilegiada da cama e
seu ocupante e da mulher sentada a seu lado.
Era ele mesmo, não restavam dúvidas. Mas o que diabos haviam
feito com ele? Seu rosto, seus braços e mãos estava repletos
de cicatrizes e marcas. Sua vida dependia inteiramente dos
inúmeros fios e tubos que o conectavam à parafernália
eletrônica em volta da cama. Cada batida de seu coração era
devida a um impulso de algum aparelho. Cada lento subir e
descer de seu peito, ao bombear de outro. Um morto-vivo. Uma
de suas mãos repousava entre as de Scully que a acariciava
suavemente, olhos e ouvidos atentos a cada bip dos aparelhos,
a expressão tranqüila, mas concentrada. Havia esperança
reluzindo em seus olhos azuis.
- Você não pode fazer isso a si mesma... - disse Doggett,
penalizado ao entrar no quarto.
- Com que direito esse orelhudo de um figa ousa tentar
afastá-la de mim? - rosnou Mulder da parede.
- Você me pediu para não entrar aqui, agente Doggett. -
Scully respondeu controlada. - Espero que não esteja me
pedindo para sair...
- Ele não se atreveria, Scully... - replicou a baratinha.
- Minha preocupação é com seu bem estar, agente Scully. -
acrescentou Doggett, gentilmente, ante à reação da ruiva. -
Com o efeito que isso possa ter sobre você.
- Você quer dizer... achar Mulder vivo? - ela perguntou
irritada.
Por mais que acreditasse na veracidade do interesse de John
Doggett por aquilo tudo, por mais que acreditasse ler sincera
preocupação em seus olhos, Mulder não pôde conter a
irritação. O outro não tinha o direito de tentar intervir.
Não sobre o que se passava entre Mulder e a parceira. Não
sobre uma amizade de sete anos. Aquela, ali no quarto, não
era simplesmente Dana Scully, agente especial do FBI. Aquela
era SUA Scully. Parceira e amiga, causa e efeito.
- Deixe-a em paz, Doggett. - gritou, quando já se preparava
para tomar alguma atitude mais drástica. - Cuide de sua
própria vida!
Mas uma enfermeira interrompeu a cena, ao abrir subitamente a
porta dizendo algo sem nexo sobre um tal Billy Miles. E os
agentes saíram do quarto, deixando o Mulder humano e o Mulder
inseto sozinhos um com o outro.
Da parede, o inseto contemplava seu corpo humano tão
maltratado. Havia evidentes sinais de tortura aqui e ali
espalhados por todo lado. As cicatrizes em meia lua nas faces
e nos pulsos, a pele pálida e levemente arroxeada... Não era
definitivamente uma visão agradável de si mesmo. Que monstros
seriam aqueles capazes de submeter um ser humano a tamanho
sofrimento? Talvez não fossem humanos...
Billy Miles... Lembrava-se do nome. Um rapaz que se dizia
vítima de abdução, num caso que investigara anos antes no
Oregon. Seu primeiro trabalho junto com Scully. Bons
tempos... Mas o que estaria fazendo Billy ali, não sabia ao
certo quanto tempo depois? Teve a impressão de que Miles
poderia ser uma peça chave no mistério de seu
desaparecimento, de sua estrambótica transformação. Mas tudo
não passava de uma vaga sensação. Não havia lembrança alguma
que pudesse corroborar aquela impressão. Maldita amnésia!
E deixou-se ficar contemplando seu corpo inerte, em busca de
respostas. Não havia, porém, recordação alguma. Apenas um
homem torturado e semi-morto e um inseto amargurado e sem
memória.
Uma enfermeira entrou no quarto. Checou as leituras dos
aparelhos, tomando notas em sua prancheta, com ar frio e
distante. Depois, por um momento, a expressão profissional de
seu rosto cedeu lugar à incredulidade.
- Espantoso... - murmurou, baixinho, tocando de leve a pele
arroxeada do paciente. - Disseram que o homem estava morto a
três meses...
Observou o corpo por mais um instante, recolocou a prancheta
em seu lugar e deixou o quarto, diminuindo as luzes ao sair.
Três meses? Fazia tanto tempo assim que Mulder fora ao seu
próprio funeral? Havia realmente perdido a noção do tempo.
Mas, se seu corpo humano estivera morto e enterrado por três
meses, como se explicava que não estivesse em franca
decomposição? Como se poderia possivelmente explicar os
fracos sinais vitais que eram registrados pela aparelhagem de
monitoração?
Uma infinidade de hipóteses e teorias e idéias bizarras
ocupou a mente de Mulder, absorvendo por inteiro sua atenção.
Não percebeu quando a porta do quarto se abriu e um homem
entrou, postando-se no canto mais sombrio do aposento,
observando silenciosamente o corpo sobre o leito. Tampouco
notou a entrada de um segundo homem, atraído pela porta
aberta, pelo bip hipnótico dos aparelhos.
- É difícil de acreditar, não é? ... - aquela voz... - Que
Mulder possa um dia sair dessa cama...
Aquela voz... Poderia reconhecê-la em qualquer lugar. Como
reconheceria os estreitos olhos castanhos mesmo nos confins
do inferno de onde nunca deveriam ter saído.
- Krycek, seu rato imundo! - rosnou Mulder baixinho.
- Preciso da vacina, Alex. - Walter Skinner soava inseguro. -
O que devo fazer?
- Ah, é simples. - respondeu Krycek com ironia. - Apenas
garanta que Scully não chegue ao fim da gravidez.
Skinner parecia chocado, os olhos esgazeados parecendo ainda
maiores por trás das lentes dos óculos.
- Você está louco! - foi tudo o que conseguiu articular.
- Ela não pode ter este bebê. - arrematou o outro com
simplicidade.
Que bebê? Do que eles estavam falando? Scully ia ter um bebê?
Como? Mulder acreditou que enlouquecia.
- Todos temos uma vida em nossas mãos. Eu tenho a sua... -
dizia Alex Krycek sarcástico. - Você tem a de Mulder...
Scully tem a dessa criança por nascer... É uma questão de
quem vale a pena ser sacrificado. - completou, saindo do
quarto.
A cabeça da pobre baratinha dava voltas e mais voltas sem
sair do lugar. Um bebê? Scully ia ter um bebê? Mulder ainda
parecia vê-la diante de si, um certo dia, num elevador do
Bureau, seu olhar carregado de tristeza, confessando-lhe o
quanto a fazia infeliz o fato de nunca poder vir a ter
filhos. Se ele possuía um coração, coisa da qual
freqüentemente duvidava, com certeza seu coração se partira
em um milhão de pedaços, naquele dia.
Walter Skinner não se movera do lugar desde a saída de
Krycek. Parecia pregado ao chão, os braços pendendo ao longo
do corpo como se as mãos pesassem toneladas, os lábios
contraídos, os olhos saltando dos aparelhos para o corpo no
leito e de volta aos monitores.
Num supetão, Mulder compreendeu a cena que acabara de
presenciar. A tal vacina a que se referia o Diretor
Assistente serviria para salvá-lo! Sua vida em troca da do
filho de Scully!
"É uma questão de quem vale a pena ser sacrificado..." ecoava
o cortante sarcasmo de Alex Krycek em seus ouvidos. "... ser
sacrificado..." O sonho, o milagre de Scully. Ou seu corpo
semi-decomposto. Não havia escolha a ser feita.
- Mate-me! - berrou com toda a força de seus pulmões. - Mate
Fox Mulder. Sacrifique-o!
Numa atitude desesperada, Mulder atirou-se de onde estava na
direção da cama. Não pensou sobre o que fazia. Não levou em
conta seu traiçoeiro centro de gravidade. Não considerou nem
mesmo os efeitos da própria gravidade. Apenas arremessou-se
na direção de seu corpo morto-vivo e de Skinner.
E voou! Voou literalmente. Alçou vôo pelo ar. E a sensação
era absolutamente indescritível. Sentia-se tão leve, tão
livre como nunca em sua vida... Flutuava no vazio pelo
quarto. Aquilo era muitíssimo melhor que nos sonhos.
Experimentou o controle sobre a direção de sua trajetória e,
finalmente, compreendeu a razão da enorme mobilidade de seu
centro de gravidade. Era ele que, deslocando-se rapidamente
por seu corpo oblongo, lhe permitia manobrar com precisão e
desviar o rumo de seu vôo a poucos centímetros dos
obstáculos.
De um lado para o outro, ia Mulder pelo cômodo, desfrutando
da maravilhosa sensação do vento envolvendo seu corpo
ovalado, empurrando para trás suas antenas. Ah, se tivesse
descoberto antes que era uma barata voadora...
Voava esquecido do porquê havia começado a fazê-lo.
Não viu quando Skinner, como um alucinado, começou a arrancar
os tubos e desligar os aparelhos que mantinham seu corpo
vivo. Não viu quando Doggett arrombou a porta do aposento e
atracou-se com o Diretor Assistente tentando impedi-lo. Não
viu quando um batalhão de médicos e enfermeiras invadiu o
cômodo e levou seu corpo dali.
Apenas voava, para lá e para cá, para cima e para baixo,
dando rasantes sobre os móveis, desviando a poucos
centímetros das paredes, como se nada mais importasse.
Depois, muito depois, pousou em qualquer lugar, exausto, sem
fôlego, satisfeito. Completamente esquecido dos problemas e
dramas do cotidiano, de sua condição de consciência viva
separada de um corpo semi-morto. Arrastou-se até algum
esconderijo macio e seguro e adormeceu. Feliz.
E, pela primeira vez, desde sua incomum transformação em
inseto, sonhou. Sonhou que era humano outra vez. Que ia, aos
poucos, retomando a consciência de seu próprio corpo. Sentiu
seu coração batendo forte e compassado no peito. Sentiu o
sangue fluindo por suas veias, irrigando suas pernas, seus
pés. Fluindo por seu pescoço e fazendo pulsar sua jugular.
Sentiu seu queixo, sua boca e bochechas, seus olhos de
pálpebras cerradas. Sentiu seu nariz e os cabelos crescendo
em sua cabeça. Sentiu o peito subindo e descendo lentamente
ao ritmo de sua respiração. E seus braços e mãos e cada um de
seus dedos movendo-se. Sentiu o ar quente saindo por suas
narinas e o suave murmúrio de Scully, chamando seu nome,
arrepiando sua pele.
Sonhou que abria os olhos vagarosamente e que, diante dele,
ao lado do leito onde estava deitado, estava a parceira. Viu
seus grandes olhos azuis marejados de lágrimas e seus lábios
rosados contraídos como que para evitar o pranto. E ela
parecia a um só tempo feliz e surpresa. E sorria e chorava. E
sonhou que ela tocava seus cabelos gentilmente e repousava a
cabeça cansada em seu ombro e o umedecia com as lágrimas que
não mais podia conter.
Sonhou que aspirava o doce perfume de seus cabelos vermelhos
e que a alegre primavera havia mais uma vez vencido o sombrio
inverno em sua vida.
E teve a certeza que tudo poderia dar certo.
EPÍLOGO
Fox Mulder renasceu milagrosamente dos mortos, graças à
tentativa mal sucedida de Walter Skinner de matá-lo e às
cavalares doses de antibióticos administradas pela equipe
médica e por Scully. Não trazia consigo lembrança alguma do
período compreendido entre sua abdução e sua ressurreição. Às
vezes, acordava no meio da noite de um sonho recorrente no
qual ficava voando e voando por um imenso cômodo de paredes
brancas. Por alguma razão inexplicável, nunca mais, pelo
resto de sua vida, foi capaz de matar uma barata.
De volta em casa, após deixar Mulder recuperando-se no
hospital, Dana Scully encontrou o exo-esqueleto ressequido de
uma barata no interior de um dos bolsos do blazer que vestia.
Não sentiu nojo ou assustou-se com o achado. Tampouco seria
capaz de explicar muito bem o porquê não considerou sua
descoberta nem um pouco estranha. Ao contrário, ao observar
de perto a baratinha seca, foi invadida por um misto de
saudade e alívio. Pareceu reconhecer naquele pobre inseto
morto um velho e querido amigo. Chegou mesmo a derramar uma
furtiva lágrima em sua memória. Também ela nunca mais foi
capaz de matar uma barata em sua vida.
F I M
NOTAS FINAIS:
1. Quando comecei a escrevê-la, essa fic iria ter duas ou
três páginas, no máximo, e acabaria tragicamente sob a
sola de um chinelinho de frufrus cor-de-rosa. Mas, mal do
século, me empolguei e virou isso tudo que você, que
chegou até aqui, acabou de ler.
2. A idéia (ou a culpa por ela) veio de uma frase da Modell
sobre a crueldade dos autores de fanfiction: "Nós nem
transformamos o Mulder em barata... ainda!" Mas a
responsabilidade e a conseqüente e irrevogável culpa por
essa triste peça de má literatura é inteiramente minha.
Registre-se nos autos que, quanto a este particular,
Claudia Modell é inocente.
3. Como e por que Fox Mulder transformou-se em barata? Como
se explica a dualidade entre seu corpo humano e sua
consciência de inseto? Quanto tempo vive uma barata? Esses
são mistérios insolúveis comparáveis à questão "Serão as
incríveis facas Ginsu capazes de cortar as indestrutíveis
meias Vivarina?"
4. Essa estória pretende marcar a aposentadoria de minha
caneta literária. Você gostou dessa fic? Mande um e-mail
gentil para mim dizendo que sim. Você odiou essa fic?
Então, me mande um e-mail bomba. Mas mande feedback, por
favor. Meu endereço é bellefleur_x@hotmail.com Eu
agradeço.
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O Ministério da Saúde adverte:
mandar feedback não causa cáries e não engorda.
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