O mestre da ilha de Andrômeda

Daidaros não estava gostando daquilo. Cada vez que vinha um informe do Santuário, ficava mais e mais desconfiado do Grande Mestre. Nada questionaria se aquele fosse o desejo de Athena, mas tudo indicava que havia algo podre por trás das ações do líder religioso. As crescentes missões não garantiam a paz na Terra, apenas tomavam partido de um ou outro líder político. O Santuário estava ficando cada vez mais distante de seu objetivo inicial.

Alheios a isso, seus discípulos prosseguiam o treino. June estava indo medianamente, mas Shun ainda se recusava a lutar. De todos os garotos que treinara, esse com certeza era o mais problemático, apesar de ser extremamente obediente e disciplinado. Não queria atacá-lo, nem se movimentava direito, nem estava pronto para conquistar uma armadura. Além disso, ainda não tinha sequer despertado o cosmos.

Inúmeras vezes Daidaros pensou em abandoná-lo, pois acreditava ser uma perda de tempo treinar um garoto que não fazia absolutamente nenhum progresso. Mas sempre voltava atrás na decisão por pena, pois Shun treinava sem descanso antes mesmo de o sol nascer e muito depois de o frio da noite cobri-lo. Só queria que ele compreendesse os próprios limites. Nunca seria um cavaleiro, por mais que se esforçasse.

Por outro lado, sentia-se deslocado de sua própria existência. Ele estava treinando jovens aspirantes a cavaleiros que trabalhariam para um Santuário que a cada dia ficava mais corrupto. Não conseguia ensinar com tranquilidade daquele jeito. Queria ensinar aos discípulos a ética dos cavaleiros, uma ética que estava em decadência. Suspirou.

Leves batidas interromperam-no. Daidados levantou o olhar da carta que tinha recebido naquele mesmo dia.

"Entre. Está aberta."

"Com licença, mestre", balbuciou Shun, tímido. "O senhor me chamou?"

"Sim. Entre, vamos. Preciso ter uma conversa com você."

Era hora de acabar com aquele sonho, por mais doloroso que fosse. Shun era um bom garoto, por isso não queria enganá-lo. Ele tinha acabado de treinar. Estava coberto de sujeira e ferimentos, como sempre. Esforçava-se mais do que os outros discípulos, sem reclamar, jamais. Fez com que ele se sentasse à mesa, no lado oposto.

"Como foi o treino hoje?"

"Foi bem, mestre. Acho que estou ficando um pouco mais rápido."

"Hum..."

A velocidade era o ponto forte de Shun. O mestre achava uma pena ele não ser bom nos outros requisitos, inclusive no cosmos.

"Ah... Mestre, vai partir em missão?"

Shun se referia à carta do Santuário em cima da mesa. Era uma missão de fato, mas Daidaros não tinha vontade de cumpri-la. Talvez foi o medo de deserdá-lo que o impediu de mudar de assunto. Ou tavez foi sua revolta.

"Não se preocupe. Eu recebi uma missão do Santuário, mas decidi que não vou cumprir."

"E pode fazer isso, mestre?"

"Na verdade não. Mas eu não quero cumpri-la. Você não quer cumpri-la para mim?"

"Está... pedindo de verdade, mestre?"

Daidaros riu. Esse garoto sempre levava tudo a sério.

"É claro que não. Você nem está preparado. Mas se está interessado, pode ler o conteúdo da carta. É bom para o discípulo saber o que terá de enfrentar depois de conseguir uma armadura."

"Com licença", disse ele, pegando a carta. Aquilo era interessante. Qual seria a reação de um garoto tão inocente quanto o Shun ao ler aquele papel? Esperou curioso.

"Mestre", comentou ele, "suprimir uma revolta implica machucar inocentes?"

"Sim. E tomar um partido também. Na verdade, o partido da aristocracia. Esse povo não está querendo nada além dos direitos, mas é isso aí. Nessa missão, o Santuário deliberadamente tomou o partido do mais forte para conter os mais fracos."

"Mas... isso não é certo, é?"

O mestre já imaginava que ele diria aquilo.

"Não... É por isso que decidi não fazer. Mais vale eu ficar aqui treinando. Não sou a favor dessa decisão do Santuário, apesar de eu ter de servi-lo. Pode ser que eu seja castigado por isso, não? Seria um problema. Mas eu já decidi que não irei."

"Não vai...? Então eu posso ir no seu lugar, mestre?"

Levou um susto. O Shun ir em seu lugar? Por que ele decidiria algo assim?"

"É claro que não! Por que quer ir para lá, Shun?"

"É que eu não acho certo o senhor fazer o que o Santuário manda. Também não acho certo não fazer nada. Há um conflito nesse lugar, e pessoas podem morrer. Crianças podem perder os pais. Eu queria ir para impedir o conflito... Não posso mesmo?"

"Shun... Ir para lá e fazer o oposto do que eles querem é considerado um traição. Eu não tenho a intenção de fazer o que não acho ser certo, mas também não estou interessado em revoltar-me contra o Santuário dessa forma. E você, como o meu discípulo, não deve se envolver nesses problemas."

'Pelo menos não enquanto eu estiver treinando os meninos', pensou o cavaleiro. 'Eles enviariam assassinos atrás de mim, bem enquanto Shun e June estão sob a minha proteção. Até que eles completem o treinamento e se tornem independentes...'

"Desculpe, mestre."

"Escute, eu o chamei por outro motivo. Quero conversar sobre o seu treino, Shun."

"Há algo de errado com ele, mestre?"

"Não é com o seu esforço, entenda bem. Você é, talvez, o mais esforçado dos meus discípulos. Mas Shun, você já está aqui há cinco anos e não fez quase nenhum progresso. Não consigo ver o progresso do seu cosmos, não o enxergo como um guerreiro que sobreviverá no mundo dos cavaleiros. Você sabe que muitos de nós morrem quando finalmente conquistam o sonho de tornarem-se cavaleiros porque não estão suficientemente preparados. E para um mestre, isso é frustrante. Nós dedicamos anos de muito trabalho para prepará-los com outra intenção. Estou preocupado com o seu futuro, se continuar neste caminho."

"Mas o senhor me ensinou tudo direito, mestre. Acha que não sou capaz de conquistar uma armadura?"

"Talvez você seja capaz. Mas a certeza que cresce dentro de mim é a possibilidade de você não conseguir sobreviver por muito tempo como um cavaleiro. Entre arriscar ou escolher o caminho mais seguro, penso que é melhor você largar o treino e voltar para o Japão."

"Mas... Não posso fazer isso. Prometi ao meu irmão que voltaria como um cavaleiro..."

"Eu tenho certeza de que ele vai entender se você explicar Shun. É muito melhor que volte sem uma armadura, mas vivo, do que como um cavaleiro incapaz de viver em nosso meio."

"Mestre..."

"Pense bem, Shun. Pense no seu progresso até agora. Não precisa responder agora, mas eu acho que você devia considerar o que eu disse com seriedade. Tire o dia de amanhã para descansar."

"Desculpe... eu não vou mudar de opinião, mestre."

"Apenas faça o que eu digo. É uma ordem."

"Sim... Está bem."

Shun jamais o desobedecia, mas Daidaros sentia que não tinha tido sucesso naquela conversa. Shun parecia determinado demais a continuar o treino, mesmo que isso o levasse à morte.


Todas as manhãs, antes do treino, Daidaros ia até à vila ver se estava tudo bem. Passava pelas principais ruas, tomava um lanche na casa de uma boa senhora e logo ia para o campo de treino. No meio do caminho cruzava uma região mais deserta da ilha, mais montanhosa e traiçoeira.

Para a sua surpresa, viu Shun entre as rochas. O discípulo socava o ar com velocidade, sem causar qualquer impacto nas pedras.

'Não adianta treinar mais', pensou. 'Você treinou tudo o que podia por aqui, Shun... Não foi sua culpa. Alguns estão destinados a nunca conhecer o cosmos...'

June estranhou quando soube que Shun não treinaria com ela naquele dia e ficou ainda mais inquieta quando Shun fugiu de qualquer conversa com ela à noite. Dizia que ainda não estava pronto para falar sobre o assunto e passou longas horas acordado na cama antes de dormir.

No dia seguinte, ele também não foi ao treino. E, para a surpresa de June, o mestre não se importou.

"Ele está treinando sozinho no pé da montanha desde ontem. Deixe-o em paz, June. Shun precisa de tempo para pensar, por isso não vamos incomodá-lo."

"Mas... pensando sobre o quê?"

"Sobre ser um cavaleiro ou não. Fui eu que pedi para que ele pensasse bem e decidisse. Deixe-o sozinho por enquanto, porque essa é uma decisão que apenas ele pode tomar."

"Mas se ele continuar, mestre... Não sei se Shun sobreviverá..."

"Eu já o alertei sobre isso, June. Shun sabe muito bem das consequências de sua decisão."

E nos dias conseguintes, Daidaros consentiu a ausência do discípulo, sem se preocupar com o tempo perdido. Passou-se mais de uma semana, e nada.


Tudo mudou quando Daidaros passava pelo caminho de sempre para o campo de treino. Ouviu vozes de Shun e de mais alguma criança em desespero. Correu para a praia, na direção das rochas onde tradicionalmente era feito o sacrifício de Andrômeda e viu Shun nadando no mar com um garoto agarrado ao seu pescoço. Vinham ondas violentas na direção de seu discípulo, mas Daidaros não o ajudou. Seria bom o rapaz sentir como um cavaleiro devia lidar com as situações.

A onda jogou-o forte contra as rochas. Shun gritou de dor quando bateu as costas na pedra e logo em seguida foi atingido por outra onda. Foi quando Daidaros sentiu. Era mínimo, quase nada, mas não havia dúvidas. Era uma pequena manifestação de cosmos. Shun conseguiu tirar o menino a salvo da água, e o garoto agradeceu com pressa, antes de sair correndo em direção à vila. Exausto, o rapaz ficou sentado na areia, descansando.

"Machucou muito?", perguntou Daidaros, sem estar realmente preocupado. Só queria ter uma nova conversa depois de mais de uma semana.

"Eu estou bem", respondeu Shun. "Logo melhoro. Eu estava treinando quando o garoto foi pego pela corrente. Foi uma sorte eu ter visto."

"Sim. Mas Shun, eu notei algo enquanto você o salvava."

"Eu também, mestre. O meu cosmos. Não sei como, mas senti o cosmos... o meu cosmos. Eu fiquei tão surpreso na hora. Quando penos percebi, consegui a força para sair de baixo daquelas ondas. Nem sei como, só que... eu só pensava na segurança do menino."

"Foi a necessidade e o treino de anos que o levou a isto."

"Necessidade...?"

Shun calou-se por uns segundos, introspectivo, mas logo fitou o mestre sem hesitação.

"Mestre Daidados."

"O que foi?"

"Eu quero ser submetido ao Sacrifício de Andrômeda."

"Você sabe que eu não posso permitir. Você mal descobriu o seu cosmos. Se tentar o ritual agora, com certeza morrerá."

"Eu sei que posso morrer e que as chances estão contra mim, mestre. Mas eu já decidi. O senhor me mandou refletir sobre abandonar o treino. Mas acontece que eu não posso. Não posso ir contra a promessa que fiz ao meu irmão, porque ele jamais quebrou uma promessa comigo, mestre. Por isso, eu decidi provar ao senhor que posso ser um cavaleiro, desafiando e superando o Sacrifício de Andrômeda."

Daidaros encarou o discípulo com calma, sem desviar o olhar. O rapaz não hesitava, não demonstrava qualquer sinal de dúvida. Aquela era uma certeza genuína. Era sinal de que Shun não era mais um garoto.

"Quando quer fazer o ritual?", perguntou, friamente.

"Amanhã. No horário mais difícil."

"Entendido. Arranjarei o ritual para você. Liberarei June mais cedo e faremos antes do entardecer. Se conseguir superar o ritual, concederei a você a armadura de bronze de Andrômeda."

"Obrigado mestre. E por favor, não conte a June sobre isso. Eu sei que ela tentará me impedir a qualquer custo."

"Não se preocupe. Ela não saberá de nada até a hora chegar. Até lá, descanse e trate os seus ferimentos. Estou falando sério."


June não percebeu a tensão que surgiu na própria casa. Shun estava concentrado demais para conversar sobre ser ou não ser um cavaleiro. Preparava-se mentalmente para o que viria. Sabia que podia morrer no dia seguinte; sabia que as chances estavam contra ele. Fora apenas um pequeno instante de cosmos. Não significava que conseguiria fazer na hora. Ele vinha tendo aqueles momentos de expansão do próprio espírito, que eram tão breves quanto intensos. Mas algo ainda o bloqueava.

"Shun, onde se machucou assim?"

Ela se referia às costas batidas na rocha: na pele clara do rapaz havia uma extensa mancha roxa.

"Ah, isto... foi quando eu tava nadando... Acabei sendo descuidado, sabe? Mas não se preocupe. É feio, mas não está doendo muito. Uma noite de descanso e estarei como novo amanhã."

A aprendiz de cavaleiro não se convenceu apenas com aquela resposta. Mas como o mestre lhe pedira para não importunar o Shun, o máximo que podia fazer por ele era preocupar-se. Sentou-se ao seu lado na cama e tocou-lhe o braço de leve.

"Olhe... Não sei o que anda fazendo esses dias, mas não quero que acabe ferido. Prometa que vai tomar mais cuidado."

"Eu vou tentar, June", respondeu o rapaz, sorrindo. "Vou dormir agora e descansar bem para amanhã. Você também precisa descansar. O treino do mestre é mais rigoroso quando está sozinho."

"Sim. Vamos dormir, então. Boa noite."

"Boa noite, June. Obrigado por preocupar-se."

De nada ela desconfiou. Saiu da cabana de Shun e foi na direção da própria casa, do outro lado do campo de treino. Viu Daidaros parado na praia, com uma urna de armadura no chão. Curiosa, aproximou-se. Era a armadura de Andrômeda.

"Mestre... a armadura..."

"Ah, sim... Às vezes trago a armadura de Andrômeda para esta praia. Para que ela veja as ondas da ilha."

"Ela pode enxergar as ondas?"

"Bem, não há olhos para isso. Mas sem dúvida alguma, ela sente. E as armaduras, como os seres humanos, também possuem sentimentos. Eu a trouxe para que sentisse a noite da ilha. Ela sempre fica parada em casa. Um pouco de distração é bom."

"O senhor acredita que elas possam ficar entediadas?"

"Não sei. As armaduras têm sentimentos, mas eu não consigo compreendê-los sempre. Eu tento ao menos."

"Isso é... estranho."

"Vai entender quando virar uma amazona. Agora vá dormir, June. O treino de amanhã será rigoroso."

"Sim. Boa noite, mestre."

Daidaros estava livre de June. Livre para conversar com a armadura de Andrômeda. Não queria sentir raiva dela caso Shun morresse no dia seguinte.


A corrente de Andrômeda não o eletrocutou quando a segurou. Já sabia do que se tratava. As águas já estavam violentas, mas ainda eram baixas. A maré subia. O cavaleiro de Cefeu deu algumas voltas com a corrente em torno da rocha para ficar bem presa. Pegou a corrente do outro braço e prendeu-a em outra pedra.

Shun entrou na água e aproximou-se em silêncio. Tinha o mesmo olhar determinado dia anterior, por isso Daidaros não perguntou se ele tinha certeza da decisão, por mais que desejasse. Sabia que o discípulo não mudaria de idéia naquele ponto. Pegou as pontas das correntes em silêncio e atou-as primeiro nos pulsos do discípulo, prendendo-o às rochas. Em seguida, amarrou as correntes em outras partes do corpo, de forma a imobilizá-lo completamente. A dificuldade do ritual era o desafiante soltar-se sem poder se mexer.

Daidaros saiu da água e ficou observando do alto, paciente e temeroso ao mesmo tempo, enquanto o nível da água subia a as violentas ondas castigavam o corpo de Shun. Podia-se ver o sangue escorrer dos braços do rapaz, nos lugares onde estava amarrada a corrente. O sal da água completava o martírio. Se Shun demorasse demais, morreria por falta de poder ou de resistência física.

Ouviu passos apressados. June acabara de descobrir. Daidaros ouviu as exclamações da discípula com calma. Desde a época de aprendiz, ouvira seu mestre dizer: se quer que os outros se acalmem, respire e acalme-se antes; o resto é consequência.

"June. Foi o Shun que quis submeter-se ao ritual, eu não o forcei. Ele tem plena consciência dos riscos e não vai desistir até conseguir ou morrer. Faça silêncio. Ele precisa se concentrar para conseguir."

Levou um tempo até que June conseguisse respirar com calma, mas sua aflição não diminuiu. Daidaros, por mais tenso que estivesse, mantinha-se frio. Tinha experiência o bastante para não desesperar, em nenhum momento da vida. Aprendera a ser assim no campo de batalha. Ironicamente, Shun, que era bem mais sensível que June, conseguia manter muito mais a calma do que a colega.

Ficaram lá por horas. June já tinha lhe pedido mais de dez vezes para interromper o ritual, mas Daidaros não o faria. Nem que Shun morresse. A água estava no nível do peito, o corpo de Shun já estava enfraquecido demais pela luta contra a corrente e as ondas. Muitos pensariam que aquele era o momento de desistir, mas Daidaros pensava de outra forma. Em breve chegaria o momento da verdadeira luta. A batalha de um cavaleiro de Athena começava quando ele sentia a própria vida pender por um fio. Era nesse momento que ele descobria se estava destinado a viver ou a morrer.

A água cobriu-o totalmente. Daidaros concluía que o discípulo só resistiria mais cinco minutos. A luta começara. A preocupação de June era tanta que ela quase saiu para ajudar o amigo, mas foi detida pelo mestre. Shun sabia que teria somente uma chance. E se ele conseguisse passar do ritual, provaria que era capaz de sobreviver a um momento crítico de luta.

Daidaros sentiu o cosmos tímido de Shun. Ainda fraco demais para fazer qualquer coisa, não passaria de um conforto temporário se não fosse usado para a libertação.

'Ainda está fraco', pensou.

Mal tinha montado a frase na mente, sentiu o cosmos de Shun subitamente expandir por toda a região. Concentrou-se nas rochas e nas correntes. Seu poder era tanto que abriu um buraco na água e permitiu a Shun respirar; as ondas não mais o alcançavam. E como se obedecesse a um comando, a corrente de Andrômeda soltou-se sozinha das rochas e ficou pendendo nos braços do discípulo. Estava extremamente ferido, mas sorria.

"Consegui, mestre!"

Por alguns segundos, Daidaros não conseguiu acreditar na façanha. Estava contente por Shun, logicamente, mas o que acabara de ver era um absurdo. Nenhum cosmos cresceria tanto logo depois de ser despertado. Mas não havia nenhuma dúvida: Daidaros não tirou os olhos do pupilo nem por um segundo durante o teste. Ele tinha de fato superado o ritual. Sorriu, pois era assim que devia reagir à vitória de Shun. Um sorriso de educação.

"Aproxime-se, Shun."

O rapaz obedeceu. As correntes continuavam penduradas em seus braços, sinal de que a armadura o aceitara como dono.

"Eu sinceramente não acreditava que fosse conseguir. Mas não tenho dúvidas: você, com certeza, conquistou o direito de ser um de nós... Shun de Andrômeda. Meus parabéns. Aqui está a armadura. Cuide bem dela."

O rapaz fitou a forma feminina à sua frente, emanando uma enorme quantidade de cosmos. Sentiu o próprio poder entrar em harmonia com o de Andrômeda, e a sensação mais inexplicável atingiu-o. Da mesma forma que o azul e o amarelo uniam-se para formar o verde, os cosmos de Shun e da armadura misturaram-se e transformaram-se para formar um só poder. Sentir o próprio cosmos mudar elevou-o a um mundo completamente aparte do real, a um verdadeiro encontro com o universo. Todas as peças da armadura envolveram-no completamente, em perfeito encaixe, como se tivesse sido feita para o seu corpo. E depois daquele momento de transfiguração, sentiu-se uma nova pessoa, ligado àquela armadura como se fossem parentes.

Diante de seu silêncio, Daidaros explicou:

"Entre você e a armadura, um elo foi feito. E esse elo é indestrutível, mesmo depois da morte."

"Mesmo que eu morra?"

"As armaduras existem desde a época da mitologia, como você sabe. A sua armadura já pertenceu a muitos homens, protegeu muitas vidas... e também não conseguiu proteger outras. O amor que ela sente por seu dono e a tristeza de não conseguir protegê-lo é eterna, Shun. Mesmo daqui a milhares de anos a armadura de Andrômeda ainda se lembrará de você."

"Eu já sinto como o que disse é verdade, mestre", sorriu Shun. "Sinto no cosmos dela e no meu... É... incrível."

"Essa ligação vai ser importante nas batalhas. Você se lembra do que eu disse? Sobre o meu medo?"

"Sim. É claro que lembro."

"Eu entendo que queira voltar o quanto antes para o Japão, mas peço que não saia daqui assim, sem se preparar. Agora que tem a armadura, precisa acostumar-se a ela. Treine para adaptar-se ao poder dela e comandar as correntes como se fossem extensões dos seus braços. E também para estabilizar o seu próprio cosmos. Ele só apareceu no final do ritual. Não dá para você ter dificuldades no manejo do cosmos, Shun. Fique e treine até que esteja preparado de verdade. Não sou mais o seu professor, mas este é o último pedido que pretendo fazer a você."

"Entendido. Ficarei e treinarei até que meu cosmos esteja preparado para enfrentar tudo, mestre. Posso confiar no senhor para dar-me o consentimento? Só sairei com a sua permissão."

Ele sempre fora o mais disciplinado dos alunos. Daidaros se perguntava se Shun tinha a garra para ir contra alguém querido se fosse preciso, e esse era o seu maior medo. O maior ponto forte de Shun era também o seu tendão de Aquiles.

"Então faremos assim. Mas não vou mais orientá-lo. Você passou anos treinando sob a minha orientação, agora precisa fazer o seu próprio treino, Shun."

"Estou ciente disso, mestre."

"Muito bem."

June aproximou-se. Shun sorriu-lhe, mas a amiga não lhe correspondia sob a máscara. Ergueu o punho com velocidade e aplicou um soco no rosto do colega com toda a força em silêncio. Foi embora a passos largos, enfurecida, como jamais ficara com ele.


Shun foi atrás de June para acalmá-la, Daidaros retornou para casa, espiritualmente exausto. Mantera a calma o dia inteiro, mas não se sentiria em paz até ver Shun a salvo. Preparou um pedaço de porco que mantivera guardado, assou-o com verduras vindas do continente. Era um verdadeiro banquete num local tão difícil quanto Andrômeda. Pegou cerveja para beber enquanto esperava sua comida ficar pronta. Queria que o álcool o libertasse das preocupações.

Relaxou na poltrona, mas não conseguia afastar os pensamentos do ritual de Andrômeda. Já vira alguns rituais de Andrômeda na época que era aprendiz a cavaleiro, todos falhos. Alguns dos candidatos eram mais fortes do que Shun. Mas o poder que seu discípulo emanara durante o teste fora superior ao de um cavaleiro de bronze. Chegava perto do nível prata. Aquilo o incomodava. Como aceitar tamanho absurdo? Ninguém, absolutamente ninguém, podia sair do estado de começar a despertar o cosmos e alcançar o poder de um cavaleiro de prata instantaneamente. Mesmo os cavaleiros de ouro não eram capazes disso. Então como Shun conseguira emanar um poder tão imenso?

Shun sempre fora um discípulo diferente dos outros. Não queria lutar desde o início. Por que um menino tão pacifista decidira meter-se com uma profissão tão violenta? Durante aqueles anos, Shun nunca o atacara de verdade. Por mais que tentasse explicar que os golpes de verdade do discípulo jamais o feririam e que seu desejo era fazê-lo lutar ao máximo, Shun se recusava a atacá-lo, sempre. Por isso, sempre acabava muito mais ferido que June nos treinos e se saía mal em todo tipo de combate.

Mesmo o seu mestre não tinha tido um discípulo tão complicado. E agora, mal podia acreditar que aquele garoto de fato conseguira uma armadura. Era quase impossível. Um menino tão educado e gentil não servia para matar.

Mas havia algo em Shun que Daidaros já considerara diversas vezes. Sempre que pensava em desistir do discípulo, mudava de idéia com aquele pensamento. Shun era puro e nobre. E era a pureza e a nobreza que caracterizava um cavaleiro de Athena ideal. E naquela época, com o Santuário cada mais esquisito, sentia que somente homens benevolentes poderiam manter o Santuário de Athena como um local do bem. Precisavam de novos cavaleiros, com os corações como o de Shun, que lutariam para lembrar aos guerreiros de Athena o verdadeiro desejo da deusa. Pensando assim, sempre prosseguiu com o treino do garoto.

'Talvez seja coisa do destino', pensou o cavaleiro, 'como o disco de Perseu que matou Acrísio, apesar de ser tecnicamente impossível. Mas isso significaria que Shun é protegido pelos deuses. Seria isso?'

Cansado de pensar, bebeu o resto da cerveja no copo, inclinou-se sobre a poltrona e suspirou, expulsando todo o ar do pulmão. Queria relaxar, mas não conseguia. Depois de alguns minutos, levantou-se, pegou a carta com a missão do Santuário e releu, já sob o efeito do álcool. Rasgou tudo e jogou os pedaços dentro do forno. Viu-os queimar, sem ter certeza de que era a coisa certa. Sentou-se à mesa, e começou a escrever uma carta. Uma mensagem explicando por que não faria a missão e pedindo desculpas pela decisão. Não queria se tornar um traidor tão cedo. Por enquanto, não ajudaria, nem trairia, só observaria. Mas depois de June sair da ilha, nem sequer hesitaria: planejava reunir cavaleiros revoltados como ele e lutaria contra a corrupção do Santuário.

Pegou vinho, que era mais caro. Não se importava. Tirou a comida do forno, serviu-se, ergueu o copo e olhou através da janela.

"Um brinde ao discípulo mais problemático", murmurou, "que ele viva mais do que eu."