"Take a bow, the night is over

This masquerade is getting older"

- "É estranho demais voltar pra casa depois de tanto tempo... A minha verdadeira casa." – divagava o capricorniano andando pelas ruas pacatas de Toledo.

Ele ainda estava em dúvida, não tinha certeza se aquilo seria bom ou ruim. Como sua família reagiria perante sua volta? Não que ele tivesse fracassado no que foi fazer, mas o fato de ter ido contra a vontade deles tornavam as coisas um pouco mais complicadas. Não tinha a mínima idéia de como ia ser seu retorno, afinal, tinha deixado a família e sua tradição para servir Athena. Não que ele se arrependesse, mas hoje ele se perguntava até que ponto isso valeu a pena.

Entre suposições e devaneios, tocou o interfone da grande mansão na qual os pais ainda habitavam. Não sabia a resposta, mas a tentativa valia a pena. E a resposta veio logo em seguida.

- Casa dos Salomón. – responderam do outro lado.

- Por favor, gostaria de falar com o senhor Salomón.

- E quem gostaria?

- O filho dele, Shura.

A pessoa do outro lado ficou muda. Shura não soube distinguir se foi pela surpresa, ou se foi do próprio equipamento. Seu coração saltava tanto, e o estômago parecia uma grande montanha russa... A ansiedade era tamanha, que nem ele sabia explicar e pela primeira vez ficou com medo da rejeição, em não ser aceito de volta. Medo... Uma palavra que há muito ele não sabia qual era o significado.

Ele já se preparava para receber uma resposta negativa, quando avistou alguém cruzando os jardins. Pensou se tratar de um dos seguranças, que certamente tinha duvidado se tratar dele mesmo, mas qual foi a surpresa ao ver que o próprio pai atravessava por aquele caminho esbaforido. Um largo sorriso se formou no sorriso do capricorniano, aquela ida já valeu a pena só por ver o seu tão amado pai,que instantes depois se aproximou do portão, onde o dourado permanecia recostado, emocionado.

- Shura, é você mesmo, meu filho?

- Sim, sou eu mesmo, papai.

Um comando do velho homem fez com que os grandes portões de ferro se abrissem e os dois se entregaram num abraço emocionado. Cinco, dez anos? Shura preferiu não contar a quanto tempo ficou longe de casa. Isso só traria dolorosas lembranças que não seriam bem vindas durante sua vida como protetor de Athena. Além disso, temeu pela vida deles. Definitivamente fez bem em tentar esquecê-los... Pelo menos estavam todos bem.

"Lights are low, the curtains are down

There's no one here

(There's no one here, there's no one in the crowd)"

Tudo depois foi como num filme. Shura jamais pensou ser tão festejado quando voltasse, a família ainda o amava! Era tudo que ele precisava... Viu a irmã, Paloma, tão linda, tão adulta... E ele ainda pensava que ela era uma criança! Ah, doce ilusão. A mãe continuava linda, alegre e divertida como sempre foi. Tudo parecia continuar igual, embora ele tivesse perdido importantes acontecimentos ao lado de quem amava. Mas estava feliz por voltar. E a família também.

O pai de Shura era o atual patriarca da família Salomón, tradicional família espanhola. Um toureiro, agora aposentado, que tinha um papel muito importante na sociedade de Toledo. Todos sabiam que o filho tinha abandonado a carreira que um dia fora do pai para servir a um ideal. Alguns apoiaram, outros criticaram, ainda mais quando eles sofreram um baque muito grande com a ausência do filho mais velho. Mas agora que ele voltou, tudo era motivo de festa. E uma festa seria dada na noite seguinte em sua casa para celebrar a sua volta.

"Say your lines but do you feel them

Do you mean what you say

When there's no one around (no one around)"

A casa estava cheia. Amigos de infância do rapaz, pessoas que ele não conhecia ou não reconhecia, gente importante da alta sociedade... Todos felizes pela volta do sucessor de José Salomón. As amigas de Paloma jogavam olhares intencionalmente maliciosos para o capricorniano, que parecia não responder de outra forma que não fosse sorrindo. Também, pudera! Estava incrivelmente atraente e bonito. Aquele terno cinza parecia evidenciar ainda mais seu porte atlético e a expressão de uma criança que esqueceu de crescer ainda era reluzente em seu rosto. Ele estava ainda mais lindo...

- Não fala mais com os amigos, é? Ou já fez outros que o fez esquecer do que ficou na Espanha?

Riu ao reconhecer aquela voz divertida. E tinha como esquecer seu melhor amigo? Que Máscara da Morte não o ouvisse, mas ninguém jamais substituiria Juan Pablo Estéban. Olhou para trás e o avistou, e então trocaram um forte abraço, típico entre grandes amigos.

- Fala a verdade, seu safado, você foi atrás de algum rabo de saia, né?

- Claro que não, Juan! – rebateu rindo. – Fui atrás do dever.

- Se você queria fugir da Espanha, era só ter dito!

- Se você soubesse por onde me meti...

- É bom te ter de volta, cara! – deu-lhe dois tapinhas nas costas.

- É bom estar de volta, seu fracote.

Riram como dois adolescentes, quando foram interrompidos pelo anfitrião que anunciou a apresentação de flamenco de duas moças de uma outra tradicional família de Toledo, amiga dos Salomón há muito. Dirigiram-se para o centro do salão, onde os músicos e o espaço para as garotas estavam devidamente preparados, assim como as luzes e os artistas principais.

Shura ficou encantando durante a apresentação. Não só pelo espetáculo, mas pela graça dos movimentos de uma das dançarinas. Buscou em sua memória pelo nome dela, se perguntou se era amiga da irmã caçula, mas não teve nenhuma resposta. E como sentia ódio daquilo! Ficou boquiaberto a cada momento que ela fazia, que parecia estar sendo feito para ele. Como aquela dança era encantadora e como ele amava o flamenco!

Ao final de aproximadamente quinze minutos, todos aplaudiram e ovacionaram os artistas. Flamenco era uma arte muito apreciada pelos espanhóis, assim como a tourada. E, sem dúvida, aquelas eram duas das mais bonitas mulheres da alta sociedade de Toledo.

- Lindo, não, Shura? Aposto que onde você foi não tinha.

Juan olhou para o lado, procurando pela resposta de Shura, que não veio. Ele não estava mais ali; saiu sem que o amigo pudesse notar. E com um só objetivo.

"Watching you, watching me

One lonely star

(One lonely star you don't know who you are)"

- Com licença, senhorita!

- Sim? – respondeu olhando o rapaz.

- Parabéns pela apresentação. Um espetáculo.

- Obrigada.

Ela riu, sem graça. Shura não era tão bom com as palavras quando estava nervoso. Queria continuar a conversa, mas não sabia o que dizer, nem como prosseguir. Começou a suar frio.

- Aceita uma bebida?

Foi a primeira coisa que veio a sua mente. Ela riu, envergonhada com aquilo tudo, mas ainda sim gostando, Não havia dúvidas de que estava atraída por aquele homem tão... lindo.

- Não bebo, obrigada.

Aquilo foi como um balde de água fria por cima dele. Aquela era a desculpa mais clichê, mas que sempre funcionava. E ela respondeu convicta de que não se interessava. Mas ele não podia desistir! Não dela...

- Então aceita dar uma volta comigo? – disparou sem pensar muito.

- Muito ousado pra quem voltou agora. – riu

Shura pensou que aquele seria o primeiro fora tomado em casa, depois daqueles anos e por um segundo pensou em desanimar. Mas o riso se desfez num sorriso mágico que o trouxe de volta a si.

- Eu adoraria, Shura.

Ele sorriu e ofereceu o braço, que ela aceitou. Por um isntante ele se perguntou como ela saberia seu nome, e então se lembrou que a cidade inteira só falava nele. E então caminharam rumo à uma noite inesquecível para ambos. Shura não fez questão nenhuma de esconder seu interesse na garota, que se fez de difícil e não demonstrou o mesmo. Mas tinha como não sentir nada por ele? Impossível...

Conversaram a noite inteira, passeando por entre jardins até que finalmente pararam em frente à fonte, onde se sentaram no banco. Estavam se conhecendo, se encontrando, se entrosando...

Despediram-se um pouco antes do sol amanhecer, quando Shura a deixou em um de seus carros com seu paletó e a promessa de reencontro. Por ele, ela não teria ido embora e viveriam aquele momento para sempre. Mas ele tinha que esperar uma resposta do lado dela. Saber se era correspondido. E ele esperaria.

"I've always been in love with you

I guess you've always known it's true

You took my love for granted"

- Mas isso são horas de estar dormindo, garoto?

Se fosse um dia normal, Shura estaria incrivelmente irritado com tal atitude. Odiava ser acordado de tal forma e seu mal-humor duraria no mínimo pela manhã inteira. E quem o fez sabia disso, tanto que riu depois.

- Anda, levanta! Sabe que horas são?

Shura tampou os olhos, como que estivesse se recusando a vislumbrar o sol que batia na grande janela de seu quarto. Sentou-se na cama, ainda atordoado, mas sem dizer uma palavra. Nem que fosse de revolta. Avistou então Juan Pablo e sua vontade era matá-lo. Não por tê-lo acordado, mas sim por tê-lo despertado de seu sonho. Seu doce sonho espanhol.

- Que horas são?

- Quase duas da tarde. A festa foi boa, hein? – sorriu malicioso.

- Poderia ter sido melhor. – sorriu se lembrando dela.

- Pois é, acordou sozinho... – riu o amigo. – Isso é de se estranhar.

Ele não se deu ao trabalho de responder. Queria sim, ter dormido acompanhado, mas não de qualquer uma. Queria aquela que embalou a sua noite e seus sonhos ao forte som de castanholas... Levantou-se, com a cara toda amassada e olhou-se no espelho.

- Que foi, que você levantou todo bobo?

- Tinha me esquecido de como é boa uma festa espanhola...

- Uma festa espanhola ou uma mulher espanhola? – riu instigando-o. – Pode falar, Shura, quem foi a sua vítima?

- Vítima? – indagou surpreso. – Não houve nenhuma.

O sorriso do capricorniano entregou que era algo mais puro e mais bonito que uma noite de sexo, algo que nunca experimentou antes e que lhe invadia a alma de uma forma tão única que parecia de mentira...

- Acho que estou apaixonado, Juan.

O amigo engasgou, embasbacado com a notícia. Shura, apaixonado? Essa era demais para ele. Contou ao amigo tudo que tinha vivido na noite anterior, e que com certeza estava longe de acabar.

"Why oh why

The show is over say good-bye

say good-bye, say good-bye"

Na casa dos Herrera…

- Claro, seria ideal para que nossas famílias se mantivessem unidas.

A resposta veio do patriarca dos Herrera para o amigo, patriarca dos Velásquez, que tinha ido logo depois do almoço a casa da família, com uma proposta um tanto quanto indecorosa.

- Então vejo que, para ambos, seria um bom negócio casar nossos filhos mais velhos, e então unir ainda mais nossos laços de amizade, não concorda?

- Não creio que um casamento seja um negócio, e nem estou disposto a vender minha filha, Diogo.

O outro pigarreou.

- Não foi isso que quis dizer, Pedro, mas encaremos os fatos. Nossos filhos já estão ficando velhos demais. Pense bem, para um homem não importa a idade, mas para uma mulher...

- Bom, concordo...

- Nossos filhos se conhecem praticamente desde que nasceram, Pedro, seria burrice casá-los com um desconhecido só por casar.

- E quando anunciamos o casamento?

- Para eles, imediatamente. – sorriu Velásquez. – Para a sociedade, sexta feira que vem está bom pra você?

- Perfeito. – Sorriu em retribuição.

- Bem vindo à família, Pedro!

"Make them laugh, it comes so easy

When you get to the part"

Os encontros entre Shura e sua dançarina de flamenco estavam cada dia mais freqüentes e mais duradouros. E escorpiano se descobria cada dia mais encantado por aquela beleza única e aquele jeito marcante que o enlouquecia. Nunca ficou tão perto de uma garota por tanto tempo sem tocá-la, sem beijá-la... E como queria... Não havia dúvidas, ele estava perdidamente apaixonado.

Resolveu dedicar-se à família. Voltou com a profissão que o pai tivera tanto orgulho de ter e mais ainda de ver um filho que a seguia tão bem. E como ele era bom! Mexia a flâmula vermelha com um louvor que deixavam embasbacados todos os que viam, já que há anos não vestia aquele uniforme e não exercia aquela atividade. Talvez fosse porque estava mais forte. Talvez porque estava mais decidido. Nem ele saberia dizer. Talvez a alma de toureiro estivesse mesmo dentro dele, algo nato, de espírito. Preferiu acreditar nisso.

Ela observava o treino de hoje, na arena oficial de touradas de Toledo. Ele queria voltar a competir, era bom no que fazia. E isso exigia treino. Era bom tê-la ali, olhando para ele, admirando, dando incentivo. Sentou-se por um tempo, para descansar e ela veio com uma garrafa de água e um sorriso no rosto. Ele não precisava de mais nada.

- Obrigado. – sorriu agradecendo.

- Shura, eu tava pensando...

- Hum. – interessou-se

- E você pretende ir? – perguntou de súbito.

- Ir? – surpreendeu-se. – Ir pra onde?

- Embora. – perguntou angustiada. – Quero saber se você pretende ir embora.

A pergunta, feita de modo tão repentino, assustou-o. Será que ele entendeu isso? Por isso ela não queria se envolver? Era agora. Agora ele tinha que demonstrar sua coragem e sua confiança de toureiro. Se aproximou dela, no banco, e tocou sua mão. Ele suava. Não só de treinar, mas por estar vivendo tal momento com tamanha intensidade que parecia explodir. Tudo parecia correr em câmera lenta e seus lábios tocaram os dela, em uma sintonia perfeita. Se entregaram, como há muito queriam. Shura segurou o rosto de sua amada, como se quisesse segura-la ali para sempre, e ela apoiou as mãos em seu peitoral. Sentiam-se realizados por estarem um com outro.

"Where you're breaking my heart

Hide behind your smile"

O capricorniano sentiu seu rosto molhar. Eram lágrimas, não dele, mas de seu anjo. Ele não entendeu o motivo. Talvez ele fosse o motivo. Mas não seria certo parar aquele momento pelo qual ele tanto esperou, desde o primeiro dia que se viram. Sentiu as mãos dela apertar sua camisa e então cedeu. Ela parecia angustiada demais.

- O que aconteceu?

Suas lágrimas então cortaram seu rosto com maior intensidade. Ela não conseguia fitá-lo nos olhos, tinha vergonha. Como deixou-se levar assim? Não podia, não era certo... E por um momento se odiou.

- Isso é errado, Shura…

- Por quê? – perguntou surpreso. – Eu to gostando demais de você, Gisty. Eu quero ficar com você.

- Eu não posso! – afastou-o de si,

- E por que não?

- Porque estou noiva!

Ele estagnou. Demorou algum tempo até que pudesse assimilar. De fato, as palavras que saíram de sua boca, mais afiadas que uma espada. Seu rosto não pôde disfarçar seu embasbacamento. E então ele perdeu o chão.

- Noiva?

Ela confirmou com a cabeça um pouco antes de ajeitar os longos cabelos negros que insistiam em cair sobre seu rosto umedecido. Foi egoísta, desejou que ele fosse embora para então esquecer dele, de tudo que ele lhe causou, do que era aquele sentimento... Observou-o de canto de olho, ainda muito envergonhada, quando ele finalmente se levantou com uma outra expressão no rosto: a de raiva.

- Como assim noiva?

- Noiva, Shura. – respondeu com um aperto no coração.

- E quando você ia me contar? Se é que ia me contar!

- Claro que ia, estou contando agora! – respondeu magoada.

- E desde quando?

- Desde ontem.

Sentiu-se traído. Como ela pudera fazer isso, depois de tudo que estavam vivendo? Sentiu que fora um tolo, que tudo aquilo era mais importante para ele e que, talvez, para ela nunca tenha sido grande coisa. Ficou extremamente magoado. Nunca gostou de uma mulher a esse ponto e quando isso aconteceu, recebeu um duro golpe.

- Foi uma surpresa, Shura. – continuou ela. – Juro que não sabia!

- Eu imagino! – riu irônico. – Imagino seu namorado te fazendo o pedido e você aceitando emocionada! Que lindo!

- Eu não tenho namorado! – rebateu ofendida. – E nunca tive nos últimos anos.

- Não? E como uma pessoa fica noiva? Do nada? Mágica? Destino?

- Casamento arranjado?

- Casamento arranjado? – riu. – Ninguém tem mais casamento arranjado no século vinte, Gisty!

- Explique isso para meu pai! – rebateu magoada.

Silêncio... Os dois estavam tristes demais para responderem algo.

- Quer saber? – indagou já farto daquilo. – Esquece.

Saiu da arena de tourada, deixando-a sozinha, aos prantos. Naquele momento ele não era o toureiro, mas sim o touro que tinha levado um duro golpe de espada, que ele sabia ser apenas o primeiro de muitos. Estava bravo e nervoso, claro, mas estava ferido acima de tudo. E essa dor não teria uma cura – pelo menos não tão cedo.

All the world loves a clown

(Just make 'em smile the whole world loves a clown)

- Ai, Juan, pára com isso. – riu maliciosa.

- Por que, se você gosta?

Ela riu. Não tinha como resistir àquela tentação espanhola. Moreno, olhos verdes, rico, forte e que sabia como agradar a uma mulher... E em todos os sentidos! Não foi tão difícil conquistar a jovem Guilhermina Herrera. Verdade dos fatos, eles formavam um belo casal e daria gosto às duas famílias uní-los, embora Juan sempre se esquivasse de assuntos que envolvessem comprometimento amoroso, assim como Guilhermina, que também gostou do fato de se ater a alguém por muito tempo. Mas a alta freqüência com que ela e Juan Pablo estavam se encontrando a fez mudar de idéia. Gostava de estar com ele.

- E você precisa dizer isso tão alto? – riu.

- Se você insistir tanto, a gente pode simplesmente não falar!

O espanhol puxou-a para si com uma força que ela jamais tinha visto em homem algum. Não houve tempo de reação: quando deu por si, estava no colo do rapaz, em um intenso beijo que ela não quis parar. As mãos dele passeavam pelas definidas pernas dela, resultado de anos dançando flamenco. Ah, se ele soubesse que estava apaixonado por ela desde a primeira vez que se viram, na festa de Shura...

Juan estava cheio de vontade. E Guilhermina era uma mulher fogosa! Ele mesmo já provara do que ela era capaz e o resultado lhe agradou muito. Ele era o tipo de homem que ficava com uma mulher até que a levasse para a cama, mas ela era a exceção à regra. Ele ficou tão satisfeito, que aquela noite da festa se repetia no mínimo, uma vez por semana. E quanta intensidade!

Estavam dentro do carro do rapaz, em um beco da cidade. Ninguém os veria ali, mas a situação não era a mais apropriada. Pelo menos não agradou a garota, que não queria deixar o "assunto" pendente, mas também não queria finalizá-lo agora.

- Juan, o que acha de irmos pra casa?

- Pra sua casa, é? – sorriu malicioso.- Será que você agüenta chegar até lá?

Ela riu, misteriosa. E como Juan amava aquele mistério! Ele tinha quase certeza que era aquilo que o deixava tão ligado à ela. Girou a chave do carro, dando partida, quando avistou um rosto conhecido com uma expressão nem tão familiar assim. Tinha certeza de quem era, mas não sabia o que tinha acontecido. Não hesitou: desligou o carro e desceu apressado, deixando a garota sem entender nada e então, correu. Ela, curiosa, veio logo atrás.

- Shura! – chamou o amigo tocando-lhe o ombro.

- Me deixa, Juan. – respondeu com cara de poucos amigos.

- Homem, o que aconteceu? – assustou-se observando sua expressão.

- Talvez você deva perguntar pra sua namoradinha.

Guilhermina chegou logo depois de Juan, a tempo de ouvir a insinuação de Salomón, que não a agradou em nada.

- Não entendi sua colocação. – interveio contrariada.

- Vai me dizer que não sabia também? – riu irônico. – Eu não sou palhaço!

Juan olhou para os dois, totalmente perdido. A garota também não entendia nada do que ele falou. Deu os ombros quando Juan perguntou o que tinha acontecido.

- Shura, o que aconteceu?

- Gisty está noiva. – respondeu amargo.

- Ela ta o que? – perguntou chocado.

- Noiva.

O rosto de espanto se formou na irmã mais nova da moça em questão. Juan olhou-a de forma inquisidora, querendo saber se era verdade o que ela mesma não tinha a menor idéia do que era.

- Só pode ser um engano! – rebateu a irmã. – Esse povo adora inventar boatos.

- Ela mesma quem me disse, agora.

Como aquilo doía! Claro que ele não estava nada confortável em dizer que sua amada iria se casar com outro, mas a surpresa parecia ser geral. A irmã mesmo não sabia o que dizer, estava chocada demais para falar.

- Gui, você sabia disso? – intimou, bravo pela situação.

- Não! – respondeu prontamente. – A Gi sequer namorava! Quer dizer, ela estava saindo com Shura e...

Ela pensou no rapaz e não conseguiu continuar. Pensou em como ele estaria se sentindo e ficou mal também. Parecia surreal demais, afinal a irmã não tinha lhe falado absolutamente nada. Ficou brava também.

- Já não me importa mais, nem me interessa. Passar bem.

- Shura, pra onde você vai? – perguntou a garota.

- Pra casa.

Lançou-lhes o último olhar e partiu. Juan Pablo coçou a cabeça, confuso e Guilhermina observou-o ir-se com um tom de compaixão. Aquilo com certeza desanimou os dois, especialmente o rapaz, que ficou triste vendo o amigo daquela forma.

- Você não quer ir falar com ele?

Sentiu a mão ser tocada por uma outra quente e delicada, que parecia lhe dar apoio para tomar uma decisão. Ele, ainda preocupado, segurou a mão da garota e virou-se para o outro lado.

- Não. Ele precisa ficar sozinho.

Caminharam de volta ao carro e de lá partiram. Precisavam mais da companhia um do outro que aquela vontade anterior. Guilhermina pensou em procurar pela irmã, mas logo desistiu da idéia. A situação estava tensa demais e forçá-la mais não iria ajudar em nada.

Wish you well, I cannot stay

You deserve an award

For the role that you played

Dedicaram-se então aos treinos dos esportes que amavam. Tentavam desesperadamente esquecer um do outro, mas era em vão. Shura, de longe, era o mais abalado. Ficou mais recluso e anti-social. Nem mesmo o seu melhor amigo conseguia tirá-lo de dentro de casa, que não fosse para a arena de tourada. E ninguém entendia o que se passava na cabeça do primogênito dos Salomón. Os pais, claro, ficaram consternados pelo que se passava com o filho, mas se ele não se pronunciasse, eles nada poderiam fazer.

Gisty fingia bem. Praticava com fervor a sua dança favorita e sorria com uma graça que poucos sequer sabiam que por dentro ela era um mar revolto. A irmã, a princípio, ficou brava com ela, por ter escondido tudo, mas logo depois de saber da verdade, ficou ao seu lado. Comprou briga com o pai, principalmente por não gostar do noivo. E as coisas ficaram levemente tensas na casa dos Herrera.

Era tarde da quinta-feira que antecedia o noivado. O suor escorria pelo rosto do capricorniano, demonstrando que há muito ele estava ali. Seus braços estavam dormentes, mas ele não sentia. Ou não queria sentir. Sua concentração foi interrompida pelos passos apressados de alguém que parecia vir em sua direção. Ficou irritado perante a idéia de ser interrompido, mas quando viu a expressão séria de Juan desarmou-se.

- Shura! – disse ofegante chegando perto do amigo.

- O que foi? – perguntou desanimado.

- Você não sabe o que descobri!

- Não, não sei. O que foi?

- Sobre o noivado! – respirou fundo.

- Não me interessa saber sobre esse assunto, já disse. – respondeu bravo.

- Nem saber quem é o noivo?

O coração de Shura pulsou mais forte. O noivado foi anunciado apenas sobre a filha mais velha dos Herrera, mas o noivo não foi divulgado. Claro que ele queria saber de quem se tratava, mas Guilhermina não dizia quem era e desde aquele dia na arena ele não mais falou com ela. Provavelmente a irmã mais nova tinha cedido e contado a Juan, mas isso era algo que ele só saberia se o escutasse.

- E como sabe?

- Eu tenho meus métodos. – riu de soslaio.

- E então...?

- Javier! – respondeu de supetão. – Javier Velásquez.

- O que? – perguntou surpreso. – Só pode estar brincando.

O amigo meneou a cabeça, dizendo que não era. Shura atirou a bandeira ao chão e levou as mãos à cabeça, andando em círculos. Agora sim ele estava desesperado. Sua grande paixão se casando com seu maior rival? Não, era cruel demais. Não bastava ser pisado daquela forma, ainda tinha que ser humilhado? Não, não podia...

- Shura, calma! – pediu o amigo perdido.

- Eu to calmo, Juan.

- Não, não tá. Se continuar assim, você vai surtar! Bota tudo logo pra fora, abre a boca, fala alguma coisa!

- Tem razão, eu vou falar. Pra quem merece ouvir.

Saiu disparado da arena de tourada, com Juan a sua cola. Ele sabia para onde ir, sabia onde ela estaria. E disparou até lá.

Academia de Dança Flamenca de Toledo. Somente os mais qualificados dançarinos treinavam por lá. A seleção não era fácil, mas era compensadora para quem alcançava o sucesso. As irmãs Herrera estavam por lá há mais de uma década, e eram as mais exímias dançarinas de toda a cidade e talvez da província. Mas ultimamente a mais velha não estava se dedicando com o devido afinco às aulas. Sua cabeça estava longe. E seu coração perdido.

- Errou de novo, Gisty! – repreendeu a treinadora. – Mais uma vez.

Ela passou as mãos pelo rosto. Não queria estar ali. Queria fugir, ainda mais com a data de sua sentença tão próxima. Tentou manter-se centrada, mas a cada minuto estava mais difícil. Queria sair correndo, dizer pra Shura que o amava e com ele que queria se casar, mas não podia. E isso doía tanto...

- Guilhermina, o que acontece com sua irmã?

A mais nova deu os ombros. Sabia exatamente o que acontecia sem que a irmã lhe dissesse uma palavra sequer, mas não podia explanar. Tentou guardar o segredo para si, mas explodiu contando para o namorado, Juan Pablo, o inferno que vivia. Angustiava-a ver a irmã tão triste daquela forma...

- Do começo!

Recomeçaram com as castanholas e os músicos. Ambas sorriam, graciosas, mas de um sorriso tão falso... Estavam no palco, dançando para uma platéia inexistente, encantando um público não-presente.

Shura abriu a porta e seu coração disparou. Observou aquela música, a batida das castanholas, o sorriso dela, seu encantamento... E o mundo pareceu parar. Sentiu-se como se fora a primeira vez que vivera aquilo, mas tanta coisa aconteceu. Tanta coisa ruim.

Observou pelo clarão que se formou no teatro a figura de um homem. Mas não um homem qualquer. Aquele que invadia seu sono e seus pensamentos. Sentiu seu coração pular a uma altura que não poderia pegá-lo novamente e no mesmo instante parou. A irmã fez o mesmo logo em seguida, surpresa, ainda sob os protestos da treinadora.

- Shura!

Continua...