I must be cruel only to be kind;

Thus bad begins, and worse remains behind.

Hamlet, William Shakespeare.


CAPÍTULO UM

"Nasci no lado errado dos trilhos" era a frase habitual que Maudi Suárez utilizava quando se expunha a desconhecidos. Apresentava-se com o sobrenome maternal, que, ao longo dos anos, havia sido esquecido pela maioria, e, em razão disso, ela ficaria ignota, algo que desejava havia muito tempo.

Observou, deslumbrada pela imponência e pela opulência, o casarão em frente do qual o carro havia estacionado e, então, reparou na figura austera que a aguardava e supôs que fosse a governanta da mansão.

Desceu do carro, carregando a única mala que tinha, na qual guardava suas poucas e puídas roupas, e um livro amarelado, Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Caminhou até a mulher e esta, com o olhar intransigente inerente a governantas que tinham passado tempo suficiente em casas alheias e testemunhado muitas coisas, estudou a garota, percorrendo aquele corpo que, mesmo sob insípidas indumentárias, indubitavelmente atraía olhares masculinos. Arqueou a sobrancelha e apertou os lábios, descontente com o que tinha visto.

Maudi não era o que tinha em mente, quando havia solicitado uma nova empregada. A garota, que devia contar 20 anos, tinha a tez amendoada, cabelos encarapinhados e longos, e olhos muito negros, como se fossem de um corvo. Parecia uma princesa asteca, olvidada pelos livros de fantasia. Era lindíssima e, naquela casa, isto poderia ser muito perigoso. No entanto, era tarde demais para manda-la embora: o carro já havia partido e, principalmente, a primeira parcela do salário já havia sido paga. Como era notório, Thomas Shelby, o senhor daquela casa, não jogava dinheiro fora.

"Meu nome é Mary", apresentou-se a mulher, sobrancelha arqueada e postura ereta. "Mas você deve me chamar de sra. Reed".

A garota assentiu com a cabeça, proferiu o próprio nome e seguiu a mulher, que a apresentou a estonteante casa: a sala de jantar, na qual, sobre a cabeceira da mesa, repousava a pintura extravagante de um cavalo branco; o salão de festas, em que se perfilavam, nas paredes, pinturas dos senhores da casa; o maior quarto, que pertencia, indubitavelmente, ao belo casal que figurava as pinturas com as quais Maudi tinha se deparado durante o trajeto, e o menor quarto, no qual estavam enfileirados inúmeros brinquedos e livrinhos infantis, pertencentes a uma criança, filha do casal. Chegaram, finalmente, à cozinha, onde a sra. Reed apontou quais seriam as incumbências de Maudi.

Ocultada pelas paredes das cozinhas, havia a avenida em que se encontravam os quartos dos empregados. Em uma extremidade, o dormitório feminino; na outra, o masculino. Entre as duas, um corredor exíguo que levava à estrebaria e, mais adiante, a uma clareira, de onde podia se observar a floresta que circundava o terreno.

Ajeitada no quarto onde repousaria durante a noite, Maudi colocou sobre a cama a mala e, cuidadosamente, pendurou sobre a cabeceira o uniforme que a sra. Reed havia a entregado. Suspirou, desabotoando o vestido que trajava, para que pudesse adotar as novas indumentárias.

Depois de muitos anos, Maudi, finalmente, sentia-se protegida.