"Demons are like obedient dogs; they come when they are called."

― Remy de Gourmont

Água. Derek avançava num lago gelado, cada vez mais fundo, e em breve deixaria de ter pé. Quando finalmente aconteceu, ele impulsionou o corpo para a frente com os braços esticados e mergulhou na escuridão. Continuou a nadar sem descanso, tentando alcançar o fundo do lago que parecia demasiado longe de si. Ia desistir quanto finalmente as suas mãos tocaram na areia e, às apalpadelas, ele agarrou nalguma coisa que repousava ali. Deslizou os dedos pela pele, subia até ao ombro desconhecido, mas então o braço vibrou num impulso violento e uma mão agarrou em Derek com força. Laura.

Acordou alagado em suor. A sua respiração estava completamente descompassada e custava-lhe deixar entrar o ar nos pulmões, arranhava-lhe a garganta e não parecia suficiente para satisfazer o seu sufoco. Ligou o candeeiro e procurou por Cora que, do outro lado do quarto, o fitava em silêncio.

Derek ergueu-se, sacudiu o cabelo e aproximou-se da irmã. Ela estava de braços cruzados ao peito, um semblante sério, sentada no cadeirão velho de madeira.

- Também sentes? - perguntou Cora.

- Cada vez mais forte. - respondeu ele.

Desde há muito tempo que duas sombras o acompanhavam para todo o lado. Tinha ganho a sombra extra há uns tempos, mas ultimamente ela parecia maior e mais negra, engolindo a sua sombra natural e envolvendo-o de corpo e mente. Cora também possuía a sua.

Na verdade, era como um chamamento. Quanto mais se afastavam, mais forte era a voz nas suas cabeças, o ímpeto de correr para os bosques de Beacon Hills. No entanto, ambos sabiam que não eram os únicos a sentir-se atraídos pelo local. Beacon Hills era agora um porto aberto para espíritos, demónios e criaturas. Não era seguro lá.

Porém, era inútil continuarem a lutar quando sabiam que, no final, acabariam por ceder. Portanto, Derek e Cora colocaram-se novamente na estrada, desta vez, para regressar.

Nenhum deles fazia tensão de voltar. Tinham as suas péssimas memórias do local gravadas a ferro e não havia motivo para retornarem, especialmente agora que havia um verdadeiro alpha para proteger as redondezas. O certo é que Derek ainda se sentia, de certa forma, responsável por Scott, talvez pelo facto de ele se parecer tanto com o seu antigo eu e Cora tinha as suas razões para querer rever Beacon Hills.

Foram discretos e sorrateiros como de costume, sabendo que agora teriam de evitar atrair também a atenção de todas as possíveis novas espécies que tivessem chegado à cidade. Um nevoeiro carregado dançava em torno das árvores e envolvia a floresta num manto que dificultava a visão e baralhava os sentidos. Ambos contavam com as suas qualidades de lobo para continuarem a avançar, mas o nevoeiro parecia tornar-se mais espesso a cada segundo que passava.

Ouviam-se pequenos estalidos nas folhas do chão que indicavam a presença de outros seres. Poderiam ser animais selvagens, mas os Hale pressentiam outro tipo de animais à sua volta. A realidade é que os pássaros nocturnos estavam mudos, deixando antever que a presença dos novos seres afugentara os habitantes naturais do bosque.

Eles andavam por perto, à espreita, mas não havia perigo eminente e, se houvesse, Derek e Cora teriam de lidar com ele quando aparecesse. Parar não resolveria a situação, por isso continuaram a embrenhar-se no mato. De qualquer forma, estavam a ficar mais próximos da saída.

Como da primeira vez, saiu de entre as árvores com um casaco de cabedal e um ar carrancudo. Ninguém os esperava do outro lado, já que não tinham contactado ninguém para ir recebê-los. Era até mau sinal se aparecesse uma só alma para dar-lhes as boas-vindas.

Dormiram no armazém. Não acordaram a meio da noite com vontade de partir, mas o sentimento anterior metamorfoseara-se noutro, mais extenso. A sombra era agora uma atmosfera. Sentiam-se no centro do acontecimento, no fogo, mas isso não equivalia à paz. Já estavam lá, mas tal não era suficiente, já que os dois pareciam não ter poder para manter-se quietos. Não bastava.

No dia seguinte, Derek decidiu que era altura de procurar Scott e actualizar-se no estado das coisas (que, segundo lhe parecia, não era particularmente risonho). Cora recusou-se a acompanhá-lo, alegando que tinha o que fazer e que seria mais útil se fosse vaguear pela cidade e ver o panorama com os seus próprios olhos.

Tocou à campainha dos McCall. Por sua vontade, não se encontraria com ele ali e não entraria certamente pela porta da frente, mas, primeiro, tentara encontrá-lo perto da escola sem sucesso e, depois, Scott não estava à sua espera. Era melhor esperar ser recebido e convidado para entrar.

Quem abriu a porta foi Stiles e Derek demorou uns segundos até conseguir desviar o olhar das duas meias luas negras e fundas que se exibiam mesmo abaixo dos olhos do rapaz. Honestamente, estava com um aspecto horrível.

- Derek?

Stiles não parecia menos surpreso do que ele. De certa maneira, convencera-se de que ele não voltaria ali, não tão cedo. E ele também tinha olheiras e notava-se que estava cansado, a diferença é que Stiles alcançara o ponto da exaustão e Derek ainda tinha controlo sobre si mesmo.

- O Scott está?

- Sim, lá em cima. Entra... - afastou-se meio atrapalhado, sem estar totalmente certo do que fazer. - Então, voltaste?

- Parece bastante óbvio. - respondeu, embora de forma condescendente.

Não trocaram mais nenhuma palavra até chegar ao quarto. Scott estava sentado no parapeito da janela a ler um livro de capa velha e cantos estragados; quando viu o outro, saltou do seu lugar com um sorriso no rosto e abraçou-o rapidamente.

- Como estás? - perguntou o mais velho.

Scott soltou um suspiro e foi sentar-se à beira da cama, antes de responder:

- Não sei. - depois, o seu olhar recaiu sobre Stiles e ele tomou outra expressão. - Mas vai ficar tudo bem. - garantiu.

Pediu-lhe os pormenores da situação e Scott explicou-lhe o que acontecera durante a sua ausência, tendo sempre o cuidado de desvalorizar certos pontos, pois Stiles continuava no quarto, a fixá-lo de maneira molenga. O jovem parecia bastante cansado e, de quando em vez, perdia-se a olhar pela janela como se conseguisse ver algo que eles não viam.

A certa altura, o Alpha saiu do quarto uns instantes, deixando os outros a sós. Assim que Scott saiu, o seu melhor amigo que até ali parecera distraído, voltou a atenção repentinamente para Derek.

- Estou a ficar louco, não estou? - interrogou, esperando que Hale lhe desse uma resposta verdadeira.

- Não. - retorquiu firmemente.

Stiles demonstrou-se surpreendido. Estava farto de que toda a gente lhe colocasse paninhos quentes na testa e, por uma vez que fosse, queria que não tentassem suavizar a realidade para ele. Não culpava ninguém e sabia que Scott era brando consigo porque o amava como a um irmão, mas a sensação de estar a perder a cabeça era demasiado forte para ele ainda acreditar que voltaria ao normal.

Hale trocou de lugar para junto de Stiles.

- Abriste uma porta e há coisas a tentar entrar. Vamos dar um jeito de tirá-las daí e tu vais ficar bem.

O rapaz denotava no mais velho uma certa brandura nova. Tinham todos sofrido e o sofrimento partilhava vários ensinamentos, então talvez fosse por isso.

Derek regressou ao armazém, mas Cora não estava. Esperou por ela o dia todo e sondou a floresta circundante, sem encontrar vestígios da sua irmã. Começava a pensar em tomar medidas sérias quando a porta do armazém se abriu ruidosamente. Voltou a cabeça das janelas envidraçadas e largas para fitar as duas figuras turvas pela escuridão. Uma delas era Cora e, apoiada a si, outra figura movia-se com dificuldade, indicando que estaria ferida.

- Preciso de ajuda. - pediu Cora com um toque de desespero no seu tom de voz.