COMING HOME
by stonexparker
Londres
O avião da companhia aérea British Airlines pousou sem problemas ou qualquer tipo de dificuldade em solo britânico pontualmente – sem surpresas quanto à isso – às 9 horas da noite. O Heathrow Airport, principal aeroporto de Londres, estava costumeiramente lotado. Naquela em especial, no entanto, podia se ver um público particularmente específico. Não havia mais do que cem pessoas, em sua maioria meninas a partir de 15 anos, esperando ansiosamente no portão de desembarque internacional. Os seguranças do aeroporto, já sabendo do que se tratava, davam uma atenção especial àquela área. Não que fosse haver algum tipo de alvoroço envolvendo gritos de adolescentes, mas o tumulto seria inevitável de qualquer forma.
Todos vestiam preto e usavam camisetas da banda "Praise Satan", e era exatamente por isso que estavam lá: os músicos da não tão famosa banda de heavy metal estavam no vôo que acabara de chegar. A verdade é que bandas de heavy metal, especialmente as dedicadas às músicas mais pesadas do gênero black e death metal, não eram muito populares na América, mas faziam um sucesso significativo no Reino Unido e no norte da Europa.
As garotas esperavam ansiosas pelo vocalista, Damien Thorn, o preferido de 9 entre 10 garotas. Adorado pelos rapazes também, tanto pelo talento vocal quanto pela atitude. Era de longe um dos caras mais sombrios que o mundo da música já havia visto. O que chamava a atenção era justamente o fato disso ser algo natural dele, ele não se forçava para parecer nada e nem fazia questão de estar na mídia o tempo todo cercado de excentricidades. Ele era daquele jeito mesmo, o dia todo, era ele mesmo 100% do tempo. Os fãs o adoravam por isso.
Assim que liberada a saída do avião, ele seguiu com o resto da banda para as esteiras a fim de pegarem suas malas. Os olhares curiosos já não o incomodavam mais. Ele tinha os cabelos negros compridos, abaixo da altura do ombro, lisos e usava cavanhaque. Estava com 25 anos e tinha a banda desde adolescente. Idas e vindas de membros, mas mantinha desde a formação inicial o mesmo baixista e o mesmo baterista. Segundo ele, guitarristas são difíceis, pois são sempre muito arrogantes.
Respirou fundo ao ver a multidão formada esperando por eles, sua mala foi uma das primeiras, era pequena, nunca viajava com muita bagagem porque estava sempre na estrada, sempre em hotéis e, agora especificamente, estava em sua terra natal. Ele não tinha muita paciência para lidar com os fãs, isso era verdade, mas sabia que eles eram a razão de estar onde estava e do dinheiro que estava ganhando. Tinha que apreciar quem ouvia sua música, mas não tinha nada muito além disso para oferecer.
John Stinson, ou Johnny Thunder, como gostava de ser chamado, tinha o baixo nas costas e seguiu Damien até a saída das esteiras. Acompanhados por dois seguranças, um produtor e o empresário, eles atravessaram a porta e imediatamente foram cercados por fãs que estavam ávidos com seus celulares tirando fotos, fazendo vídeos e muitos tinham canetas em mãos, queriam autógrafos obviamente. Alguns traziam o último CD da banda em mãos para que fosse autografado por eles, alguns pediram os autógrafos no corpo – inclusive uma das meninas pediu para que Damien assinasse do lado esquerdo do peito dela, que na verdade estava mais para seio esquerdo. O moreno algo, magro, de cabelos compridos sorriu de canto um pouco constrangido porque não havia dúvidas que aquela garota era menor de idade.
Bratt Adams, o baterista da Praise Satan apareceu minutos depois, era o mais atencioso e ficou um pouco mais de tempo batendo papo com os fãs. Damien foi o primeiro a se livrar do tumulto, entrou no táxi e rumou para a casa em South Kensington. Estava tão cansado que, mesmo sabendo que teria fãs na portaria de um dos prédios mais luxuosos do bairro, ele não iria atender ninguém, pelo menos não aquele dia.
Estava em turnê pela Europa e tinha acabado de voltar da Noruega, onde fizeram dois shows em Oslo. Era época de Natal e ele sabia o que isso significaria: ver a família e ter que aguentar todos os julgamentos de como parecia, como se vestia, sobre o que cantava e toda aquela ladainha que ouvia há dez anos. Seus pais eram separados desde que Damien era criança, mas seu pai casou-se novamente na época em que passaram a infância de Damien nos Estados Unidos – mais precisamente em South Park, no Colorado.
Apesar de ter estudado lá apenas até acabar o Ensino Fundamental, foi tempo suficiente para que seu pai começasse o inferno que havia se tornado a vida de Damien: ele havia se casado com ninguém mais ninguém menos do que a mãe adotiva de Pip Pirrup, uma inglesa viúva que também passou alguns anos morando na América.
Apesar de não ver Pip com frequência, as comparações eram sempre bastante ressaltadas pelas tias de Pip, irmãs de sua mãe, e até mesmo pelo próprio pai de Damien, que havia se tornado um legítimo lorde inglês, apesar de ser do norte do Texas. Todo final de ano, tinha que escutar que Pip tinha feito isso, tinha feito aquilo, estudado não sei o que, falava não sei quantos idiomas e aqueles blá blá blás que ele já estava tão acostumado a ouvir que, só de pensar a respeito, já estava cansado. Acabou criando uma certa implicância com o próprio Pip, apesar dele não ter culpa nenhuma do que seus parentes falavam.
O fato é que nos últimos anos ele não via Pip, pois o loiro não aparecia para o Natal. Se não estava totalmente enganado, fazia por volta de 5 anos que não o via. Não tinha certeza do motivo, mas sempre tinha a ver com trabalho. O loiro alto era um famoso e bem sucedido artista plástico e fotógrafo. Morava em Paris mas viaja o mundo durante o ano todo, tinha galerias de arte nas mais variadas capitais europeias.
Mas naquele momento ele estava sem cabeça para pensar em como lidaria com sua família durante a próxima semana natalina que se aproximava. Apesar de odiar estar ali, vinha do mesmo jeito. Não que ele fosse admitir, mas sempre procurava a aprovação de seu pai e todo ano tinha uma certa esperança que aquilo acontecesse.
- Pois é, a inauguração da galeria foi linda. - A mãe de Pip, Aurelia Pirrup, falava orgulhosa do filho para suas duas irmãs que pareciam interessadíssimas no assunto. - Estivemos em Helsinki para a festa de inauguração. Cidade linda, pessoas muito discretas... Sabe como são os finlandeses. - Damien ouviu o comentário e sorriu de canto para si mesmo da varanda. Sabia muito bem como eram os finlandeses sim, estivera lá na capital do país naquele ano e fora um dos melhores shows da banda... E uma das melhores noites de sexo que já teve.
- E finalmente poderemos vê-lo presente no natal esse ano. - O pai de Damien se aproximou da esposa com a informação. Damien, que antes estava ouvindo a conversa meio que sem querer e com pouquíssimo interesse, agora passou virou-se para a porta aberta da sala e franziu o cenho.
- Dessa vez ele conseguiu vir? Mas que notícia maravilhosa! - A irmã mais velha de Aurelia dizia com genuína alegria. Elizabeth gostava muito de seu sobrinho.
- Ouviu isso, Damien? - Ele ouviu a voz de seu pai agora olhando pra ele, percebendo que ele prestava atenção na conversa. O moreno alto que tinha os cabelos esvoaçando na varanda pelo vento frio não respondeu. - Finalmente vai poder ver seu irmão.
- Ele não é meu irmão. - A resposta foi quase um cuspe. - Que nojo, pai. - Ele realmente não conseguia se imaginar naquela posição com Phillip. Percebeu a cara feia de seu pai e simplesmente lhe deu as costas, dando mais um trago no cigarro, o último antes de voltar pra dentro de casa fechando a porta da varanda.
- Ele sempre pergunta muito de você, Damien. - Aurelia foi quem disse quando o músico com delineador preto jogou-se no sofá. - Quando foi a última vez que o viu?
- Não faço ideia. - Ele respondeu naturalmente, mas pareceu mal criado meio que sem qerer. - Estou sempre muito ocupado, sabe. - Ele ironizou. - Tenho shows ao redor do mundo, estou sempre em turnê, estou sempre compondo e gravando... Sabe, eu trabalho tanto quanto ele.
- Mas claro, aquela música agressiva e odiosa. - Foi a vez da irmã do meio de Aurelia se manisfestar, Clarice.
- Se tivesse escutado a música, saberia que não é disso que se trata. - Damien poderia ficar ofendido, mas já estava tão acostumado com aquela família inglesa pomposa criticando sua arte, que sequer se dava ao trabalho de ficar incomodado.
- Escutar? Aquela barulheira? - Ela respondeu sem cerimônias, bufou revirando os olhos. Damien olhou com severa desaprovação, mas entrava ano e saia ano, as conversas não mudavam. E a última coisa que ele iria fazer era se preocupar com a opinião de três velhas ricas que só sabiam falar de opera e novela.
- Damien. - Seu pai deixou as mulheres conversando e veio perto do filho, sentando-se ao lado dele, numa poltrona de veludo verde musgo. - Você poderia ao menos usar roupas adequadas para a ocasião. - Seu pai tentou não parecer muito agressivo, mas seus olhos julgadores pouco conseguiram esconder. Damien vestia um jeans surrado que já fora escuro um dia não fosse o fato de estar incrivelmente desbotado. A camiseta preta era de gola rolê, de lã, também preta e a jaqueta de couro estava aberta, coberta por alguns zípers prateados.
- Na verdade, acho que você quis dizer "Damien, por que não usa as mesmas roupas engomadinhas que 'seu irmão'?" - Ele disse a última frase com asco na voz. - Pai, esse é meu jeito de vestir e não sou mais criança ou adolescente pra você ter que me passar sermão sobre isso.
- Exatamente, você é um adulto, com barba na cara. - Jason Thorn mostrou-se agora frustrado com o filho. - Precisa se livrar dessa fase adolescente com músicas pesadas, cabelos compridos... Pelo amor de Deus, Damien. Todo ano temos essa mesma conversa, é cansativo.
- Acredite, pai... - Ele começou em resposta, jogando os cabelos para trás e ajeitando-se no sofá. - Também estou ficando muito cansado disso. - Seu olhar era fixo nos olhos do pai.
Ficaram em silêncio por alguns breves segundos e, naquele meio tempo, Damien praticamente pensou em simplesmente levantar-se dali e ir embora. Ao mesmo tempo que saberia que sua noite dali em diante, naquela véspera de Natal, seria ainda pior no momento em que Phillip colocasse os pés naquela casa. Eles todos praticamente o cercariam, ele seria o assunto da noite, o centro das atenções. Lembrava-se bem daqueles cabelos loiros claros, cobertos sempre por uma boina. O garoto andava muito bem vestido, desde criança quando se conheceram. Ele tinha aquele sorriso simpático, que fazia você querer conversar com ele. Os lábios rosados contrastando com as bochechas quando estava frio, o vento ás vezes agredia sua pele branca.
Mas antes de levantar-se do sofá para pegar uma dose de uísque, tentou tirar aqueles pensamentos da mente. Mas, como diziam por aí, o cérebro era uma vadia sem escrúpulos. Ficou um pouco apreensivo de saber que veria Phillip naquela noite, depois de tantos anos.
Serviu-se da bebida sem gelo mesmo, tomou uma dose de uma vez e sentiu a bebida esquentar seu peito e sua garganta. Era como se aquele calor do álcool o acalmasse por um momento.
- Damien. - Aurelia se aproximou de seu enteado com o celular em mãos, parecia que tinha acabado de falar com alguém. - O que acha de ir buscar Philip do aeroporto? - Ela sorria animada, parecia que esperava que Damien dissesse algo como "sim, por favor, não vejo a hora de encontrá-lo!", mas óbvio que aquilo sequer lhe passou pela cabeça. Ele continuou inexpressivo quanto àquele pedido.
- Posso pedir a um dos meus seguranças para fazer isso. - Ele respondeu como se aquilo fosse óbvio, afinal, ele já estava ligeiramente acostumado a ter pessoas fazendo coisas pra ele.
- Claro que não, Damien! - Ela cutucou o ombro dele, como se falasse com uma criança birrenta. - É véspera de Natal! Ao menos tenha a decência de deixar seus seguranças com suas famílias, que tipo de pessoa é você? - Ela franzia o cenho realmente revoltada com a situação. Damien tinha que admitir que ela estava certa. - Além do mais, vocês eram tão próximos quando criança, acho que ele vai gostar da surpresa de ver que é você quem o está esperando.
Damien suspirou. Gostava daquela mulher mais do que de seu próprio pai. Ela se esforçava demais, mas tinha um bom coração, prova disso era a adoção de Pip, que sempre cuidou e o educou como se tivesse mesmo saído de dentro dela. Não queria fazer aquilo, sentia-se incomodado, intimidado, mas jamais admitiria isso. Todos aqueles anos longe do garoto loiro meio que o fizera pensar nele como uma pessoa distante, uma pessoa que não conhecia mais.
- Certo, eu vou. - Ele respondeu desconfortável, não queria ir, mas não tinha uma boa desculpa para negar aquele pedido. Além do mais, tinha que admitir que estava um pouco curioso para ver Phillip.
- Ótimo, Damien! - Ela sorriu aberto em resposta e lhe deu um abraço um pouco desajeitado, visto que ele era muito mais alto que ela. De longe viu que seu pai sorria discretamente também.
- Que horas ele chega? - Ele perguntou sem muita emoção, tateando as chaves do carro no bolso do jeans. - É véspera de Natal, o trânsito deve estar um pouco caótico essa hora. E não quero nem pensar no aeroporto. - Ele dizia meio que resmungando, dando-se conta de que seria mais estressante do que ele pensava.
- Acho melhor sair agora. - Clarice foi quem disse, animada também, mal podia esperar para ver seu sobrinho. - Até que você chegue lá, será um longo caminho.
- O voo dele está previsto para pousar em uma hora. - Aurelia respondeu. - Acho também que é uma boa ideia que você vá agora.
- Certo. - Damien segurava as chaves da BMW preta em mãos e, um pouco nervoso, alisava o chaveiro da marca. - Pode me mandar uma mensagem com o número do portão que ele vai desembarcar, qual o número do voo também caso haja imprevistos. - Ele checou o celular pra ver a hora e se teria bateria o suficiente. Nem lembrava quando tinha sido a última vez que carregou o aparelho. Mas tudo parecia em ordem.
- Pode deixar, dirija com segurança. - Ela disse num tom materno quando Damien atravessou a sala rumo à saída. - Tome cuidado, Damien. - Ela reforçou ouvindo um "tá bom, tá" mal criado do enteado.
Ela não via o filho há quase seis meses, embora sempre se falassem por Skype e pelo telefone. Estava tão feliz que iria vê-lo naquela noite que sabia que nada poderia estragar sua alegria. Gostava muito de Damien, embora soubesse que ele era um pouco difícil, temperamental e totalmente imprevisível. Por determinados momentos quando criança, ele era muito próximo de Pip e isso a deixava um tanto quanto aliviada. Era uma mãe um pouco superprotetora e sabia que seu filho sofria na escola por ser "o garoto estrangeiro" e não tinha amigos, apesar de se esforçar para criar laços com os colegas. Damien foi seu único amigo por todo o Ensino Fundamental. E, igualmente para Damien, Pip foi seu único amigo. Ele também não era aceito por seus colegas e Aurelia sabia que ele sentia-se sozinho por ter perdido a mãe cedo e seu pai não sabia muito bem como lidar com tudo. Eram dois seres humanos completamente diferentes, Pip e Damien, que tinham apenas o sentimento de rejeição em comum e, por um tempo, isso foi a cola, o elo que os manteve unidos.
Quando chegaram no Ensino Médio, Aurelia tomou uma decisão que talvez marcou Pip para sempre quando o afastou de Damien: colocou Phillip para estudar num colégio interno na Suíça, onde o ensino era de qualidade superior a qualquer escola americana. No início, Pip não queria ir, queria ficar perto de seu melhor amigo, mas não queria contrariar a mãe, que estava mais preocupada com seu futuro. Por um lado, ela fez a coisa certa, hoje Phillip era dono de uma carga intelectual de dar inveja a qualquer um. O que facilitou sua decisão foi justamente se envolver com o pai de Damien que, pelo fato dos garotos estarem sempre juntos, facilitou a aproximação. Passou a ver o assunto como "família", sabia que isso ainda seria capaz de mantê-los unidos, se fizessem parte do mesmo grupo familiar.
Mas ela estava errada. Muito errada. Quando Damien soube que Pip iria embora – e o timing não pdoeria ser pior, já que era a fase em que estavam entrando na adolescência – ele ficou arrasado. Ficou o primeiro ano do Ensino Médio completamente sozinho, não tinha amigos, por mais que às vezes tentasse uma aproximação com o grupo de garotos populares da escola – Stan, Kyle, Cartman e Kenny – mas sempre sem sucesso, especialmente por causa de Cartman, que sempre que tinha chance, o rechaçava e fazia algum tipo de piada com ele.
Isso mudou quando Damien começou a passar muito tempo em frente ao computador – funcionava mais como uma fuga mesmo. Conheceu bandas com a qual se identificou, pessoas que sentiam as mesmas coisas que ele e quando ficou totalmente paralisado a primeira vez que ouviu Bruce Dickinson cantar "Fear of the Dark". Decidiu que era aquilo que queria fazer, cantar. Começou a compôr quando tinha quinze anos, sentia-se aliviado pela primeira vez desde que tinha entrado no Ensino Médio, conseguia, através da música, se expressar, dizer o que sentia, o que pensava, como se sentia nas mais diversas situações e, então, montou sua primeira banda na escola com garotos mais velhos: Michael, Pete, Henrietta e Firkle, os garotos góticos de South Park.
Michael era o vocalista originalmente, mas quando saiu para fazer faculdade em outra cidade, Damien assumiu os vocais da banda. Faziam covers e tocavam músicas autorais. A banda ia bem, sempre arrumavam alguns lugares para tocar de graça no começo ou aceitavam lanche como pagamento. Henrietta era a tecladista, mas também deixou a banda para fazer faculdade, foi a segunda a sair. Seguida de Pete e, por último, Firkle.
Damien já tinha decidido fazer aquilo profissionalmente. Foi quando começou a entrar em contato com pessoas na internet, interessadas em formar uma banda. Seu pai, na época, pedia que ele esquece "aquela bobagem toda" - nas exatas palavras dele – e focasse nos estudos. Muitas vezes, Aurelia ofereceu a mesma oportunidade à Damien de se juntar a Pip na escola em Aiglon College, em Genebra, um conceituado internato com um rigor educacional que Damien jamais conseguiria lidar. No último ano, no entanto, para preparar sua entada na universidade, ela novamente ofereceu a Damien que se juntasse a Pip. Novamente, uma recusa, para a total decepção de seu pai.
Não dava pra dizer que Damien nunca tinha ido à faculdade, ele frequentou a Sputh Park College por cerca de dois anos, estudava Inglês e Literatura. Gostava da área, o ajudava a compôr e estudou um pouco de História também. Nunca se formou e largou os estudos no momento em que sua banda começou a decolar, sem nem pensar duas vezes.
Seu pai, obviamente, na época estava à beira de um colapso, pois Damien parecia não elvar nada a sério e só fazia o que bem entendia. Seu pai tentou de todas as formas pedir, implorar, chantagear para que ele não largasse os estudos, mas ele sequer cogitou qualquer possibilidade que fosse contra o que queria. Assinou contrato com uma gravadora pequena e sua banda começou a fazer shows de abertura para várias bandas famosas. Foi nessa época que teve a oportunidade de criar laços, fazer contatos e aprender cada vez mais sobre o mundo da música e um pouco sobre como o showbusiness funcionava. Era amigo íntimo de grandes figuras como James Hetfield, Gene Simmons, Danny Filth, Steve Harris e, seu grande ídolo, o vocalista da banda norueguesa Dimmu Borgir, Shagrath.
Apesar de todos os conflitos e todas as dificuldades, não havia sombra de dúvidas que o sucesso de Damien se dava por um único motivo: sua própria determinação. Não lembrava de ter recebido apoio de ninguém próximo, de ninguém da sua família. As pessoas poderiam até considerá-lo amargo, depressivo, arrogante e até mesmo reservado, que não deixava ninguém se aproximar, mas tinha motivos o suficiente para não confiar e não gostar de pessoas. Passou a infância toda sendo acusado de ser o "anti-cristo", de ser satanista, de ser "filho do demônio" que chegou ao ponto de acreditar naquilo. Não tinha religião, não gostava de conversar sobre suas emoções e quase sempre respondia conversas com sarcasmos e ironias profundas.
Damien não era uma pessoa má, não tinha sangue do capeta dentro de si: era pura e simplesmente uma pessoa triste, sentia-se deslocado e rejeitado. E o pior de tudo era saber que ele jamais se colocou nessa posição, foi sempre algo imposto pela sociedade em que vivia.
Passou a vida inteira buscando aceitação e, quando finalmente encontrou, sentiu escorrer-lhe pelos dedos quando foi parar em alguma escola idiota na porra da Suíça.
Antes de sair do carro quando o estacionou no aeroporto, ele colocou os cabelos dentro de uma touca preta, tanto para se proteger do frio, quanto para evitar que talvez alguém o reconhecesse. Enrolou o cachecol no pescoço cobrindo o queixo e parte da boca. Tentava esconder-se o máximo que conseguia, a última coisa que precisava era fãs e fotógrafos ao redor dele, causando tumulto dando trabalho à segurança do aeroporto em plena véspera de Natal. Queria apenas que Pip chegasse logo, entrasse no carro e ele poderia acabar logo com aquilo.
Quando chegou, obviamente atrasado pelo trânsito apressado nas ruas de Londres, ele percebeu que o voo de Phillip já havia pousado. Disse algum palavrão mentalmente, sabia o quanto aquele garoto poderia ser chato com pontualidade devido ao fato dele ter vindo de onde veio. O músico andava a passos largos em busca do número de portão de desembarque que havia checado na mensagem de sua madrasta. Ele respirou fundo enquanto centenas de pessoas andavam pra cima e pra baixo naquele lugar completamente lotado, odiava que tocassem muito nele, mas os esbarrões eram inevitáveis, especialmente porque estava andando de contra o fluxo de pessoas.
Olhava as placas com os números, tinha memorizado o número do voo mas não conseguia encontrar nada naquele lugar imenso. Odiava o Heathrow mais do que qualquer coisa, talvez odiasse tanto quando o JKF, em Nova York. Eram os aeroportos mais lotados e se tinha coisa que ele detestava era estar no meio de pessoas esbarrando nele.
Então, parou de repente. O Terminal 5 estava bem ali. A tela mostrava a hora que o avião havia saído de Berlim e aterrizado em Londres, já fazia cerca de meia hora que o avião estava em solo e, dessa vez, o palavrão que disse em sua cabeça apenas foi muito mais feio que o primeiro. Tinha andado tanto que sentia calor, estava a ponto de começar a suar e não teve escolha: tirou o cachecol e a touca. Seus olhos negros, ávidos como os de uma águia, procurava o artista plástico no meio de tantas pessoas com pressa, querendo desesperadamente deixar aquele lugar por motivos natalinos óbvios.
Foi então que o viu.
Phillip segurava sua mala preta de rodinhas num canto mais tranquilo do aeroporto. Ele estava simplesmente impecavelmente vestido, para total obviedade do planeta terra. Os cabelos loiros parcialmente escondidos por um chapéu preto discreto, Damien andava devagar em direção a ele, queria parecer casual. Percebeu que os cabelos dele estavam mais compridos, apesar do corte não ser rebelde, os fios estavam longos a ponto de cobrir suas orelhas. O loiro igualmente olhava por todos os lados como se procurasse por alguém, claramente tinha sido avisado que alguém o buscaria no aeroporto.
Pip vestia vestia calças pretas e sapatos alinhados na mesma cor. Damien não evitou de imaginar quanto aquele sapato deveria ter custado. Sentiu-se inevitavelmente constrangido ao lembrar-se que usava bostas bastas de combate, pesadas. Certamente um contraste absurdo poderia ser visto nos pés de ambos quando eles andassem lado a lado. Não soube dizer o que Pip vestia por baixo daquele sobretudo preto de botões duplos da mesma cor, mas conforme se aproximava, percebia que ele facilmente poderia ser escolhido como o homem mais bonito daquele aeroporto.
Damien estava agora há menos de cinco passos de onde o loiro estava. O vocalista sentia-se incrivelmente inseguro, nervoso. Nem quando sua banda abriu o show do Kiss em Amsterdã, quando sua banda ainda mal começava a ganhar fama, ele ficou tão nervoso quanto estava naquele momento. Já não sorria não sabia há quantos anos, mas quando seus olhos se encontraram e Phillip quase gargalhou de felicidade ao vê-lo, ele não aguentou. Abriu o maior sorriso que se era possível ver em Damien, seus dentes brancos e alinhados quase reluziram ao ver o mesmo sorriso aberto em Phillip, que colocou o celular no bolso de qualquer jeito e abraçou Damien numa felicidade que mal conseguia conter.
- Não acredito nisso. - Foram as primeiras palavras de Pip perto do ouvido do outro, que tentava abraçá-lo com naturalidade, mas como não fazia muito aquilo, parecia um pouco perdido sobre onde colocar os braços.
- Desculpe o atraso. - Damien respondeu quando o loiro desvencilhou-se dele. - Está uma loucura nas ruas e aqui também... Você sabe... - Ele tentava explicar o óbvio, mas Pip não parecia nenhum pouco incomodado com aquilo.
- Imagine, Damien. Não se preocupe com isso. - Pip ainda sorria tocando o ombro do moreno alto, tinham a mesma altura. - Como está? Não acredito que fizeram você vir. - Ele riu de imaginar sua mãe pedindo a ele que viesse buscá-lo e, no fundo, sabia que Damien certamente havia feito birra antes de vir. - Seu cabelo está enorme. - Ele riu acariciando discretamente os fios longos que caíam nos ombros do outro.
- Acho que quanto a isso posso dizer o mesmo. - Damien permitiu-se uma brincadeira mais suave. Enterrou as mãos nos bolsos, estava inquieto, não sabia direito como se comportar e, pela primeira vez em anos, parecia se importar muito com aquilo. Pip riu da brincadeira e os dois começaram a andar a fim de deixar o aeroporto o mais rápido possível.
Phillip realmente estava chocado – de maneira positiva – ao ver o outro ali. Pensou consigo que todo e qualquer esforço para estar ali no Natal tinha valido a pena. O que Damien não sabia era que ele era o real motivo de Pip estar ali.
Ele andava ao lado de Damien no aeroporto, por vezes atrás dele, já que as pessoas esbarravam e o empurravam, ele não tinha o mesmo porte de aço e a cara feia e sem paciência de Damien. Olhava de canto e percebia que algumas pessoas faziam questão de desviar dele, com um certo receio que ele fosse fazer alguma coisa. Pip sorriu ao pensar naquilo. Pensou em puxar conversa enquanto andavam, mas devido ao barulho de conversas, até mesmo aviões chegando e pessoas nos auto-falantes anunciando voos o impediam de tentar falar qualquer coisa.
Por um momento Damien achou que realmente estava com sorte, estavam andando há alguns minutos e ele já podia ver a saída do aeroporto, e ninguém o interrompeu com pedidos de autógrafos, fotos ou com perguntas do tipo "você é aquele cantor daquela banda?" Mas ele realmente falou cedo demais. Na saída mesmo, um dos valetes que estacionavam os carros o reconheceu imediatamente.
- Cara, eu sou muito seu fã! - Os olhos deles brilhavam ao ver Damien ali apenas pedindo numa prece silenciosa para um Deus no qual não acreditava, que ele falasse mais baixo e não atraísse atenção de mais ninguém. Em vão, claro.
- Muito obrigado. - Ele respondeu e Pip olhou de canto, relativamente orgulhoso do outro.
- Cara, posso tirar uma foto? - E no momento que o homem disse isso, sentiu todas as câmeras dos outros celulares de quem estava ao redor percebendo de quem se tratava. Aos poucos uma roda de pessoas os cercou. Damien queria dizer não, que não tinha tempo para aquilo, trocou olhares com Pip como quem pedia que fosse compreensivo, mas o loiro nem de longe parecia incomodado com a tietagem.
- Claro. - Damien respondeu automaticamente e posicionou-se ao lado do homem que sacou o celular e apontou a câmera para ambos. Damien simplesmente tinha aquela cara de paisagem, mas o fã estava muito empolgado, fez uma careta para a foto e não demorou mais que dois segundos para focar e apertar o botão.
- Obrigado mesmo, Damien! Você é um grande vocalista, sou fã do Praise Satan desde que vocês começaram! Eu ouvia as músicas na internet. - Ele dizia empolgado e Damien ouvia pacientemente enquanto colocava os cabelos de volta dentro da touca e arrumava o cachecol. Havia aprendido sua lição, não os tiraria mais mesmo que estivesse suando em bicas.
- Fico feliz em saber, obrigada pelo apoio. - Era a resposta automática dele quando os fãs começavam a falar o quanto eram fiéis e acompanhavam tudo "desde o começo". - Feliz Natal. - Ele encerrou o encontro ouvindo um "pra você também" do homem que ainda sorria em êxtase, certamente tinha sido seu presente na ocasião. Damien pensou no quanto ele deveria estar feliz por ter caído para trabalhar na noite de natal. Permitiu-se ficar um pouco feliz por fazer alguém feliz naquela noite. Nada que ele fosse, claro, demonstrar ou dizer. Essas coisas, ele só guardava para si.
Ele e Pip retomaram o ritmo da caminhada até o carro de Damien. O músico abriu o porta malas para que Pip colocasse sua bagagem.
- Aquilo foi muito legal da sua parte. - Pip disse ainda sorrindo feliz, ele estava com Damien afinal de contas depois de não-sei-quantos anos, era Natal e ele finalmente estava em casa.
- Ossos do ofício. - O moreno alto respondeu um pouco apático ao fechar o porta-malas e entrar no carro acompanhado do artista plástico.
- Toda essa atenção... Imagino como deve ser bom. - Pip disse e Damien não sabia nem por onde começar a dizer o quanto aquilo não era tão bom quanto parecia. Dez anos vivendo daquele jeito poderiam facilmente encher o saco de qualquer um que fosse louco pela fama.
- Tem suas vantagens e desvantagens. - Ele disse por fim quando ambos colocaram o cinto de segurança e seguiram para fora do estacionamento do aeroporto.
Pip olhou o homem ao seu lado por alguns segundos enquanto ele concentrava-se em não bater o carro em meio há tantos outros. Estava genuinamente feliz em vê-lo apesar de não tinha sombra de dúvidas que aquele homem tinha mudado muito com o tempo. Claro que aquela criança constantemente com raiva e com uma necessidade quase insana de ser aceita ainda estava ali. O que Phillip não conseguia entender era como ele conseguia ser tão intenso e ir de um extremo a outro, sem conseguir achar o equilíbrio.
Quando criança e adolescente, ele tinha seu jeito de pedir por atenção, geralmente sendo malvado na escola e malcriado com quem tentava colocar algum juízo naquela cabeça. Queria 'enfiar goela abaixo' do sistema toda aquela agressividade, aquela intensidade com que sentia tudo e maximizava geralmente o que era ruim. E, agora, anos depois, ele tinha toda a atenção do mundo – literalmente –, fazia o que queria e conseguia se expressar através de sua música e, principalmente mais do que isso, se fazia ouvido. Ele não simplesmente passava para o papel o que sentia, ele conseguia a façanha de atingir pessoas, encontrar seus pares e perceber que ele não estava sozinho naquela forma de pensar.
E ainda assim, ele parecia infeliz, insatisfeito.
Phillip não entendia e sentia-se mal por isso, afinal, por anos ele havia sido a única pessoa que Damien confiava e podia ser ele mesmo. Dizer o que pensava sabendo que seria apoiado, confortado e amado independente de estar certo ou não. Pip estava lá por ele e isso o acalmava, o tornava uma pessoa melhor.
Mas Pip não estava mais lá há um bom tempo. E o silencio no carro agora que seguiam para casa era a prova disso. Por um momento, sentia-se intruso se perguntasse qualquer coisa ao outro, como se não tivesse o direito de saber. Mais do que isso, saberia que Damien daria respostas ensaiadas a qualquer pergunta. Se perguntasse como ele estava, como estava a carreira, o que tinha feito, quais seus projetos, sabia que provavelmente o músico daria as mesmas respostas que daria a um repórter durante uma entrevista qualquer para revista ou para TV.
Resolveu não dizer nada. Especialmente porque agora Damien havia ligado o som do carro e, coincidentemente, Bruce Dickinson com seu Iron Maiden cantavam "Coming Home", talvez inconscientemente dando as boas vindas a Pip, já que a banda era de fato uma conterrânea.
