Capítulo I - Saudade

Os raios solares, dignos do Verão Mediterrânico, entraram pela sala de reuniões do famoso escritório de advogados.

Albafica van der Waals viu-se forçado a semicerrar os olhos e a voltar ligeiramente o rosto na direcção do chefe de departamento e novo patrão. Sentiu a dualidade paradoxal da expansão eufórica da sua alma, que batalhou com os limites físicos do seu corpo, e a sensação nauseabunda e angustiante de um aperto da boca do seu estômago.

Saudade

O holandês controlou-se para não expressar a forte comoção que o sol grego lhe despertara e, segundos após o confronto nostálgico com Apolo, veio a revolução dos sons: anteriormente abafados pela forte e bela emotividade do momento, as palavras inglesas, mal articuladas e pronunciadas do chefe de departamento ressoaram pela sala, cheias de vitalidade.

Albafica, cujo grego se encontrava já enferrujado, teve de se esforçar para esmiuçar o discurso do advogado mais velho. A tarefa não era fácil, pois, apesar de dominar o inglês e ser fluente no grego, a mixórdia das duas línguas, tão divergentes, acompanhada pelo sotaque forte, criava a peculiaridade de uma nova linguagem, que, apesar de ter alguma graça, tornava a situação incómoda e, até, desesperante – uma vez que tudo o que ali era dito era de extrema importância.

Tornar a já dificultosa situação numa autêntica Odisseia do Entendimento, foi a função das várias folhas de papel que serviram de leques improvisados aos coitados que não aguentaram os insustentáveis 39ºC. (Tornar desoladora a situação para o advogado, deve ter sido a constatação que, chegado à pouco de Amesterdão, tinha mais resistência a temperaturas extremas que muitos que viviam ali à anos).

Albafica permaneceu atento, até que uma nova onda de nostalgia o atacou, quando a suave e doce música dos regates encheu a sala, suprimindo qualquer outro som.

As reminiscências enganadoras de um passado obscurecido invadiram-lhe o espírito e o homem viu na janela aberta por onde, outrora, entraram os raios nostálgicos e, naquele momento, entrava a música saudosista a mesma promessa que a Grécia lhe fizera num passado não muito distante.

As vozes dos vendedores foram caladas por um outro advogado que fechara a janela, desagradando tanto Albafica como os infelizes que se contorciam de calor.

O chefe de departamento continuou no seu greco-inglês mal articulado. E o holandês continuou na sua Odisseia do Entendimento.

Estavam no Verão de 1985. A Economia grega, em oposição ao que se verificaria algumas décadas depois, sofria as vantajosas consequências do grande crescimento que ocorrera entre os anos 50 e os meados dos anos 70. Várias empresas estrangeiras investiram no país, daí a necessidade do inglês (mesmo em empresas gregas de advocacia).

Não fora, no entanto, a Economia que atraíra Albafica van der Waals, de novo, ao âmago da Civilização Ocidental, assim como não fora a Economia o que o afastara, três anos antes. O motivo de Albafica era muito mais nobre, muito mais clássico, e era-o de tal forma que nem o próprio o sabia.

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" A nossa vida quotidiana está sempre a ser bombardeada pelos acasos, mais exactamente por encontros fortuitos entre as pessoas e os acontecimentos, ou seja, aquilo a que costuma chamar-se coincidência. (…) Na sua maioria, este tipo de coincidência passa totalmente despercebido (…) Mas o amor a nascer aguçou-lhe o sentido da beleza e, por isso, nunca mais esquecerá essa música." (*)

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O reencontro com o passado é, no seu valor metafórico, um acaso, no qual o "encontro fortuito entre as pessoas e os acontecimentos" é um encontro entre já conhecidos. Este reencontro ocasional, "por coincidência", desperta, muitas vezes, nos seus protagonistas a sensação de nostalgia, de saudade, cria, naquele momento, uma esfera mágica que os transporta, enganadoramente, a um tempo já perdido.

Albafica não se reencontrara, no entanto, com o passado. Albafica fora, pelo contrário, interpelado pelo passado: o passado, travestido de raios de sol grego, chamara-o, convidando-o à recordação, à saudade, amarrando-o, assim, à cadeira e impedindo-o, por este meio, de fugir; o passado, astuto, dissimulara-se das vozes do regate, aturdindo-lhe a razão.

Era isto que Albafica constatava quando o passado o interpelou novamente, desta vez com uma voz grossa e um suave sotaque nórdico.

– Poder-se-á não lembrar de mim, Albafica van der Waals, mas já fomos apresentados.

A mão forte que, ocasionalmente, segurara o seu ombro, fazendo-o estancar, soltou-o.

– Minos de Griffon.– O norueguês continuou. – Frequentámos a mesma universidade, biblioteca e cama. Não se lembra?

O arrepio que subiu pela sua espinha, obrigou o holandês, mesmo já sabendo que não havia ali mais ninguém, a olhar em seu redor. Só depois respondeu, ainda de costas voltadas para o outro, no mesmo tom prepotente:

– Não sei se o diz para me ofender ou se apenas constata a sua óbvia e essencial insignificância perante mim, Minos.

Toda a formalidade, exagerada, era propositada e ponderada, servia como uma saudação, uma saudação a um passado não muito longínquo.

Quando o jovem advogado se voltou para o insolente, relativamente mais velho, encontrou duas íris douradas que em nada expressavam a sua habitual arrogância.

O esnobismo e frieza usuais em Griffon perdiam a força, sendo substituídos pela gentileza espirituosa e profunda admiração quando perante van der Waals. E, impressionantemente, a solidão melancólica, normal em van der Waals, depressa desaparecia na presença de Griffon.

Quando o louro de olhos azuis-escuros se voltou para o louro de olhos cor de mel; quando os seus olhares, finalmente, se contemplaram ao fim de três anos, não foi remorso ou rancor o que sentiram, apenas júbilo, um profundo e genuíno júbilo por se reencontrarem.

E foi com esse júbilo, com essa total ausência de mágoas ou culpas, que ambos saíram, calmamente, do novo edifício da velha Atenas, tão moderna, tão longe da era clássica.

(O passado é rabino, e para os sensatos que de si se afastam, o passado tem sempre manhosas artimanhas no bolso).

Notas finais do capítulo:

(*) Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser