Prologo
Sempre me pergunto porque as pessoas gostam tanto do natal. Será que é porque passam ele junto com suas famílias, será que é porque ganham presentes, será que comemoram mesmo o nascimento de Jesus ?
Eu costumava gostar até que me transformei, ou melhor fui transformado, no início foi horrivel, mas até que agora eu me acostumei. Eu não tenho com quem passar o dia 24 e 25, ou pelo menos não tinha, até que aconteceu.
Tudo foi muito rápido mal tive tempo de pensar. Num momento estava dirigindo na estrada a noite e no outro tudo já estava um caos.
Era uma noite fria, e era natal, todos estavam em suas respectivas casas, com suas respectivas famílias. Não sabia muito bem o que estava fazendo, só que precisava fazer. Eu peguei o carro, liguei, e comecei a dirigir por Icaraí, não havia nada de bom pra fazer, só estar ali, e assim fui andando durante toda a Moreira Cezar e virei na Lopes Trovão. Continuei seguindo reto e as luzes cintilantes do natal refletindo nos vidros e espelhos do carro.
Taí, uma coisa que eu gosto no natal, as decorações, acho que deve ser como uma competição entre vizinhos para a casa mais bonita, mas os resultados são impressionante, parece que cada dia é diferente. Infinidades de lusinhas em janelas, postes, árvores, varandas, e todos os lugares imagináveis. Acho que passaria uma eternidade vendo essas lusinhas. É bem provável.
Virei na Tavares de Macedo, depois na Presidente Backer, eu gostava disso, é como se eu dançasse entre as ruas, as vezes o transito ficava lento, as vezes simplesmente sumia e eu ia contornando as esquinas. Virei novamente na Gavião Peixoto e então escutei as sirenes, tudo era um caos.
Tinham dois carros amassados lá na frente um aparentemente capotado e o outro todo torto na rua. Os carros de bombeiro e policia passavam zunindo do meu lado e paravam no acidente, em frente ao campo de São Bento, a batida foi muito feia a julgar pela quantidade de viaturas.
Outro carro passou zunindo do meu lado, mais veloz que a policia, e foi costurando os carros que andavam tranqüilamente, o carro do meu lado, um Picasso foi freiando devagar até que parou, e eu fiz a mesma coisa, em sincronia.
E ai tudo começou, outro carro, um Civic verde, vinha correndo, acho que estava apostando corrida com aquele que passara a pouco, e esse vinha correndo muito, acho que não viu que o transito havia parado.
Eu comecei a buzinar em pânico para que a motorista do carro ao meu lado movesse o carro, mas ela estava prestando atenção nos carros batidos, mas já era tarde, o Civic freiou, e começou a derrapar fazendo o carro rodar como se a rua estivesse toda ensaboada, e então bateu no Picasso, empurrando o para a frente e o fazendo girar. Os dois foram rodando até o local do acidente.
Primeiro o Picasso bateu no carro que estava capotado, depois o Civic bateu no Picasso que empurrou o capotado que rodou e bateu no que estava torto na pista, Como um dominó gigante e perigoso. Alguma coisa começou a pegar fogo no carro capotado.
Eu sei que não devia fazer certas coisas em publico para não mostrar ao mundo o que sou de verdade, mas não podia deixar que tudo explodisse, muitas pessoas inocentes iam morrer e eu podia salvar algumas delas.
Abri a porta do carro e corri como nunca, em dois segundos eu já estava do lado do Picasso, nenhuma pessoa normal faria isso, mas acredite, eu não sou normal. Eu conseguia escutar a multidão gritando, os policiais e bombeiros lutando para acalmar todos e apagar o fogo. Arranquei a porta do carro e a joguei longe como se fosse uma bola de papel, uma mulher estava no volante, ela me olhou com os olhos cheios de pavor e envoltos em lágrimas, o sangue se juntava em suas roupas e o cheiro me atraia freneticamente, mas tinha que me concentrar, estava ali para a salvá-la não matá-la. Ela havia batido com a cabeça no volante e uma gota de seu sangue vermelho vivo escorria no rosto, exalando um perfume irresistível.
-Socorro! Me ajuda! – a mulher gritou desesperada – Você é da policia ou algo assim?
- Acho que nós não temos tempo para isso. – eu disse intolerante.
- É acho que não. – Ela olhou pelo retrovisor, seu filho que aparentava ter dezoito, dezenove anos estava inconsciente meio pra fora e meio pra dentro do carro, na confusão ele deve ter batido no vidro fazendo com que se quebrasse, e quando o carro girou ele foi lançado pelo buraco, os olhos dela se arregalaram de pavor – Por favor, salve ele!
O filho estava muito machucado, o vidro havia cortado todo o seu dorso, e suas roupas estavam completamente encharcadas de sangue, ele tinha ferimentos faciais que estavam bem feios, o sangue pingava no chão, e o braço aparentava estar quebrado.
O cheiro estava me dominando, era ainda melhor que o da mãe, era doce de um jeito que nunca havia sentido, meus olhos escureceram a medida que os caninos começavam a querer crescer, mas tinha que me controlar, tinha que fazer a coisa certa.
Corri até o outro lado, e comecei a puxar o garoto pra fora, fiquei com medo de que alguém me visse, mas percebi que estava escondido entre o Palio capotado e o Civic. O cheiro dominava a minha mente, a vontade de mordê-lo se manifestava dentro de mim.
O alvoroço da multidão aumentou o volume e tudo ficou mais quente, acho que o fogo estava se alastrando.
- Por favor, salva meu menino. – A mãe suplicou, a dor estava começando a entorpecê-la, seus olhos se fechavam lentamente.
- Não se preocupe.
- Me promete que você vai salvar ele não importa o que aconteça, não deixe meu filho morrer,
- Isso não vai acontecer, ele não vai morrer.
- Me prometa!
- Eu prometo, ele está seguro. – estava no meu ombro, corri pra dentro do parque e o deixei encostado em uma arvore.
Me virei para salvar a mãe a tempo de ver uma imensa bola de fogo colorindo o céu, junto com um barulho ensurdecedor. Nessa hora os gritos estavam insuportáveis, as pessoas começavam a se desesperar, e então outra explosão, dessa vez foi o Civic. Corri até a porta do Picasso, mas fui jogado para o lado quando o carro também explodiu, eu ainda conseguia ouvir os gritos da mulher enquanto o fogo dominava o carro, e por um momento pude ver o seu rosto contorcido em uma careta de horror.
Fiquei um tempo sentado na rua olhando o carro queimar enquanto sentia uma dor no coração, e a expressão da mulher assombrava meus pensamentos repetidamente. Os bombeiros tentavam controlar o incêndio com bravura e determinação quando me levantei. Percebi que uma lagrima descia pelo meu rosto. Essa é uma coisa que eu não gosto em ser o que sou, minha lágrima é feita de sangue.
Enxuguei com a manga da camisa e entrei no parque onde havia deixado o garoto. Fui direto examinar, seu pulso estava baixo, e havia perdido muito sangue, seus ferimentos pareciam muito graves, e então percebi que seus olhos estavam abertos e ele olhava pra mim com curiosidade e desespero, seus olhos pediam ajuda.
- Você esta bem? – perguntei.
- O que você acha? – agora olhava irritado, sua voz estava fraca, e ele não mexia nenhum músculo. – Eu vou morrer?
Seus olhos começaram a se fechar, ele estava morrendo. Seu corpo começava a tombar, caindo no chão. Ele fazia de tudo para se manter vivo. Suas pálpebras pareciam pesar muito pelo seu esforço de mantê-las abertas. Só havia uma coisa a fazer, e eu tinha uma promessa a cumprir.
- Eu vou morrer? – Ele perguntou de novo.
De certa forma..., eu pensei.
Levantei já carregando ele e segundos depois estávamos dentro do carro a caminho da minha casa.
