DELICATE
Miss Bluebird

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We might kiss when we are alone
When nobody's watching we might take it home
We might make out when nobody's there
It's not that we're scared, it's just that it's delicate

Não era amor. O amor possui uma espécie de fragilidade sublime, inquebrável. O que havia entre eles não era frágil nem sublime, muito menos inquebrável. De fato, ela era em si um brinquedo quebrado, cujos pedaços ele se divertia em juntar, cuidadosamente, para logo em seguida poder despedaçá-la novamente. Era um jogo tão divertido quanto era perigoso, mas ele sempre gostara de brincar com fogo, e sua parte favorita era quando se queimava – e ela era toda feita de fogo. Desde os cabelos que lhe caíam ombro abaixo feito cascatas de sangue até os olhos feitos de sépia, fervendo olhares que ela parecia guardar exclusivamente para os olhos dele.

Talvez aquilo fosse o inferno, talvez ele já estivesse no inferno desde sempre, deixando-se queimar lentamente até que nada restasse além de cinzas. Afinal, ele era inteiro feito de cinza, e talvez fosse exatamente nesse ponto que se completavam: ela era fogo, ele era cinza – mais cedo ou mais tarde o fogo se apagaria e ela se tornaria cinza, assim como ele. Ela vinha com seu vermelho contagiante, viva feito o sangue que pulsava quente dentro de suas veias e artérias, mas ele a envolvia com seu cinzento gélido, porque seu melhor prazer era apagá-la, transformá-la em cinzas – assim como ele. Seu prazer era aprisioná-la em seu mundo sem cores.

Talvez fosse ele o inferno. Talvez fosse o próprio demônio. Divagações inúteis, porque dadas as circunstâncias da época era difícil saber qual o papel que cada um interpretava, e ele não perdia tempo pensando naquelas perguntas todas, afinal, quem se importava? Em tempos como aqueles ninguém poderia se permitir o luxo de esperar qualquer coisa, de entender qualquer coisa, de se envolver com qualquer coisa: não era amor. Era libido, asco, vergonha. Uma espécie de aliança silenciosa – dois corpos numa união formada por e envolta em penumbra.

Planejavam encontros escorregadios em motéis baratos, protegidos pelo sigilo das madrugadas frias, no sangue correndo a eletricidade proporcionada pela surdina, aquilo tudo era deliciosamente proibido, imoral, repugnante. Dormir com o inimigo era uma ideia absolutamente desafiadora, e ele nutria um desejo secreto por desafios. Não sabia o que se passava dentro da cabeça dela e na realidade não precisava saber, e costumava dizer a si mesmo que não precisava de nada daquilo, afinal, ele sempre estivera no controle da situação, mas ela era como um vício. O cheiro doce que brotava da pele toda salpicada de sardas, o jeito como ela gemia e mordia o lábio inferior quando ele a jogava contra a parede num misto de desejo e violência, as unhas dela abrindo caminhos de sangue na carne de suas costas, tudo aquilo fazia dela uma posse. Ele era o gato, e ela um novelo de lã.

So why do you fill my sorrow with the words you've borrowed from the only place you've known?
And why do you sing Hallelujah if it means nothing to you?
Why do you sing with me at all?

Não se importava com ela, porque Malfoys não se importam com Weasleys na mesma medida em que Malfoys na realidade não se importam com ninguém, e não tinha muita paciência com sentimentalismos. Nunca tivera, desde pequeno. Talvez fosse por esse motivo que quando Voldemort finalmente caiu, levando consigo o glorioso Harry Potter, ele fingiu não perceber que ela estava mais pálida que o normal, e não hesitou em dizer a ela que todos os heróis eram feitos de areia – inclusive Harry Potter. Rasgou todos os jornais que falavam sobre ele, e rasgou muitos jornais, porque não suportava vê-la chorando por aquele par de óculos idiotas por cima daqueles olhos idiotas ilustrando matérias sensacionalistas sobre heroísmos idiotas. Não suportava suas lágrimas, nem sua culpa, nem seu desespero. Não suportava vê-la finalmente apagada. Não suportava vê-la tão entregue a ele, apesar de todos os esforços que fizera para que ela fosse sua.

E então veio o silêncio. Depois de alguns dias ela deixou de se encontrar com ele, sem quaisquer explicações, e ele não se importou, porque era isso o que ele sabia fazer com perfeição – não se importar. Não se importava com ela, nem com sua família de ruivos bufantes, nem com o mundo mágico, nem com seus pais, nem com um herói babaca, nem com um velho lunático que queria viver para sempre, nem com nada. Ele era muito bom em não se importar, porque nada importava, no final das contas.

Depois da queda de Voldemort e do fim da guerra, o mundo mágico foi se ajeitando. Pouco a pouco, a política e a economia foram se reerguendo, e uma estátua do Potter foi construída bem no meio de um Ministério da Magia novinho em folha. Depois de tanto pavor, sangue e destruição as pessoas ainda acreditavam em milagres e ainda tinham esperança – mas ele continuava sem se importar. Poucos meses depois Lucius, que enfrentava agora diversos processos devido à sua aliança com o tão invencível Lorde das Trevas, enlouqueceu e esquartejou Narcissa, tirando a própria vida logo em seguida. Draco não foi ao enterro, e sabia perfeitamente bem que não enfrentaria problemas com a justiça, pois fora inteligente e estratégico o suficiente durante a guerra para se manter perfeitamente em cima do muro, pendendo sempre para o lado que estivesse em vantagem.

Mas apesar de tudo, apesar de estar livre de qualquer acusação, sentia-se vazio. Não se importava com Lucius nem com Narcissa, aprendera a não se importar com eles desde crianças, mas mesmo assim perdeu-se entre angústias que não sabia de onde vinham. Sua fortuna foi congelada pelo Ministro, que ainda buscava alguma forma de jogá-lo em Azakaban, mas até mesmo ele desistiu, depois de alguns meses sem provas concretas, e então todo mundo se esqueceu do menino Malfoy. Ele vendeu a mansão e passou a viver em hotéis. Não suportava as tapeçarias, as paredes, os candelabros, os móveis, os corredores. Aquele lugar estava cheio de fantasmas, e Draco Malfoy finalmente sucumbiu ao próprio desespero silencioso. "O declínio dos Malfoy", era como todo mundo o chamava agora. Ele não respondia, porque era verdade, mas continuava sem se importar. Foda-se, pensava, e voltava ao seu cigarro. Tragava uma, cinco, vinte vezes. Até que o cheiro daquela decadência toda se impregnasse em suas roupas, em seus dedos trêmulos e em seus olhos aguados, que agora passavam a maioria do tempo encarando a paisagem pela janela.

We might live like never before
When there's nothing to give, well, how can we ask for more
We might make love in some sacret place
The look on your face is delicate

E então ela o procurou. Veio sem anúncio, sem permissão, invadindo seu desespero cinzento e ofuscando tudo com aquele vermelho vibrante, e ele sentiu ódio. Por não conseguir apagá-la dessa vez, por não poder controlá-la. Sentiu ódio daquele vermelho, do sangue pulsando dentro dela, do sorriso feito de dentes brancos e retos, das sardas salpicadas pelas bochechas, feito gotas de bronze numa estátua de marfim. Sentiu ódio do quão frágil ela o fazia se sentir, e foi nesse momento que soube que jamais a veria novamente.

Agarrou-a pelos pulsos e beijou sua boca com fúria, somente para sentir seu gosto novamente, sua pele, seus lábios, seu corpo, talvez para conseguir guardar qualquer pedaço de lembrança, traçar seus traços em sua cabeça antes que ela desaparecesse de vez, e se entregaram a esse último capricho ali mesmo, no tapete empoeirado do quarto de um hotel cujo nome nenhum dos dois se lembraria depois.

E depois disso ela se foi. Simplesmente se foi. Ele sentiu ódio de si mesmo, de seu pai, e de sua mãe, dela, de Potter, daquela guerra idiota, sentiu ódio de tudo, quebrou móveis, quebrou quadros, rasgou fotografias, e então o ódio passou, e ele voltou ao seu cigarro. Afinal, depois de alguns anos tudo aquilo seria considerado nada além de libertinagens juvenis que lhe renderiam no máximo algumas artrites, e ele não pensaria nisso porque nunca fora importante de fato. Ela se casaria com algum homem que não seria ele e teria filhos que não seriam seus, três ou quatro ou mais, e ele não se importava, porque Weasleys se reproduzem como coelhos, e não era amor.

So why do you fill my sorrow with the words you've borrowed from the only place you've known?
And why do you sing Hallelujah if it means nothing to you?
Why do you sing with me at all?
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Não era amor.

Malfoys não sabiam amar.

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¹ A música é Delicate, do Damien Rice. Beijos!