Capítulo 01
A chuva batendo contra a janela começava a irritá-la agora. Ela se virou para o lado e olhou o relógio sobre a mesinha. 03:47. Provavelmente aquela era a décima vez que ela olhava a hora.
Cuddy colocou o travesseiro sobre o ouvido em uma tentativa de abafar o som da chuva, mas parecia que ela se tornava mais forte. Era a natureza, os deuses, ou o que quer que estivesse lá fora, dizendo que ela não dormiria esta noite. Mais uma noite.
O peso de aborrecimentos e preocupações pendia sobre seus ombros e as enormes olheiras sob seus olhos denunciavam inúmeras noites em claro. Orçamentos, investidores, reuniões, médicos, planejamentos e outras pendências do trabalham estavam deixando-a exausta.
Porém dentre todos os seus problemas apenas um a tomava por completo. Ela sabia que essa era a razão de todas as suas noites mal dormidas.
- Maldito seja, Gregory House. – Ela sussurrou para si enquanto levantava e vestia seu robe de cetim, seguindo para a cozinha.
Colocou um pouco de água para ferver e sentou-se na bancada que ficava no centro da cozinha. Apoiou os cotovelos sobre a madeira e a cabeça entre as mãos, massageando as têmporas.
"As coisas mudaram. Simplesmente..."Suspirou alto "...tudo mudou."
Um som alto e estridente assustou Cuddy tirando-a de seus pensamentos. Seu coração disparou ao perceber que alguém tocava a campainha. Ela se perguntou quem poderia ser a uma hora dessas.
Levantou e desligou o fogão. A água já havia secado. Andou devagar até a porta, tentando não fazer barulho. Sua mente logo imaginou que fosse ele. House costumava aparecer a sua porta de madrugada. Mas isso foi há anos atrás, então ela descartou essa possibilidade.
Aproximou-se da porta e olhou pelo olho mágico. Ao ver quem era ela suspirou aliviada.
- Você sabe que horas são? – Cuddy disse enquanto abria a porta.
- Na verdade, não.
- Tarde. O que você faz aqui?
- Vim buscar abrigo. – Ela sorriu cinicamente.
- De madrugada?
- Você vai me deixar aqui na porta a noite toda? Está frio e eu estou congelando!
Cuddy olhou para a menina que estava completamente molhada e notou pela primeira vez duas malas atrás dela. Deu um passo para trás, dando espaço para que ela entrasse.
- O que são essas malas? – Disse, fechando a porta.
- São as minhas coisas. As outras malas estão no carro. – Ela parou e olhou para Cuddy. – Posso ficar um tempo aqui?
- Claro que pode.
- Eu estava com saudades. – Ela foi abraçar Cuddy que deu um passo para trás.
- Você está toda molhada. Vai trocar de roupa enquanto eu faço um chá pra você.
- Argh... – Ela fez uma careta. – Chá não! Pode ser um chocolate quente.
- Ok! – Cuddy riu e segui para a cozinha. – Deixa as malas no quarto. Você ainda se lembra o caminho ou já esqueceu? – Ironizou.
- Eu tinha me esquecido como você é engraçada.
Alguns minutos depois e as duas estavam sentadas no balcão da cozinha, cada uma com as suas respectivas canecas.
- Por que você estava acordada até essa hora?
- Eu não estava. – Mentiu.
- Se você estivesse dormindo não teria atendido a porta tão rápido, seu cabelo estaria bagunçado, seu rosto estaria amassado e seus lençóis não estariam revirados.
- Como você é esperta...
- A não ser que você estivesse com alguém. – Ela olhou para Cuddy com um sorrisinho malicioso. – Um encontro casual e o cara foi embora depois. Explicaria a cama bagunçada.
Cuddy riu e olhou para seu chá.
- Não... isso não parece algo que você faria.
- Posso saber porque não? – Ela se fingiu ofendida.
- Porque a toda certinha Lisa Cuddy não levaria para casa alguém que ela não conhece só para ter algo de uma noite.
- Tem razão. – Ela riu. – Mas não vamos falar de mim. Por que você veio?
- Não quero falar sobre isso agora. – De repente o sorriso sumiu e deu lugar a uma expressão triste. – Eu estou cansada da viagem. Vou dormir.
- Tudo bem. – Cuddy tentou parecer o mais compreensiva possível. – Boa noite, meu bem.
- Boa noite, mamãe. – Ela deu um beijo em Cuddy e saiu.
O despertador tocou às seis horas. Cuddy levantou e seguiu sua rotina matinal. Às oito ela estava pronta. Não tinha nenhum compromisso importante naquela manhã, então poderia chegar um pouquinho mais tarde.
Antes de sair passou pelo quarto da filha para lhe dar um beijo. Ela estava atravessada, ocupando toda a cama. Metade do cobertor jogado no chão. Cuddy sorriu e a cobriu direito. Eles se pareciam em tantas coisas, até na forma espaçosa de dormir. Uma lembrança percorreu sua mente.
"House." Tentou empurrá-lo. Ele estava todo esparramado na cama. "Chega pra lá. Eu to quase caindo." Falou meio sonolenta. Ele apenas a abraçou, puxando-a para perto, e enterrou a cabeça em seus cabelos.
Cuddy balançou a cabeça, espantando as memórias e deu um beijo na cabeça da filha. Seguiu até a cozinha e deixou um bilhete sobre o balcão.
"Anne,
Fui para o hospital. Qualquer coisa que precisar me liga. Tem comida na geladeira, é só esquentar. Se for sair não deixa de se agasalhar bem. Está frio lá fora. Mais tarde eu ligo. Te amo.
Mamãe."
Anne acordou eram quase duas da tarde. Levantou da cama e tremeu de frio. Se enrolou no cobertor e levantou. Abriu uma das malas e tirou uma roupa, jogando-a sobre a cama. Depois de um banho bem quente e demorado resolveu comer alguma coisa. Ela leu o bilhete e sorriu com a preocupação da mãe.
Abriu a geladeira, mas seu estômago pedia por algo mais do que simples comida vegetariana. Anotou mentalmente que precisava ir no mercado comprar comida de verdade. Decidiu sair. Tirou as outras malas do carro e foi.
As portas do hospital se abriram e uma mulher alta com volumosos cabelos negros chamou a atenção de todos. Os óculos escuros cobriam-lhe os olhos, mas seu rosto era extremamente familiar. Ela andou pelo hospital com uma altivez única. O caminhar firme e dicidido que herdara da mãe. Os que a conheciam se surpreenderam por vê-la ali. Os outros apenas a admiravam.
Percorreu os olhos pelo local e logo avistou um rosto conhecido. Wilson estava inclinado sobre o balcão da entrada lendo uma ficha quando uma voz animada o chamou.
- Tio James! - Anne chamou animada, apressando-se até ele.
- Ann! - Wilson respondeu quando a viu. - Que saudade. - Abraçaram-se. - Como você está?
- Bem. - Sorriu. Estava feliz em revê-lo.
- Não sabia que você estava na cidade.
- Cheguei ontem de madrugada.
- Seu pai sabe que você está aqui?
- Na cidade ou no hospital?- Ela brincou.
Wilson pensou por um momento antes de responder.
- Nos dois.
- Não. Na verdade eu estava querendo comer alguma coisa antes de ir falar com ele.
- Então eu vou com você. Ainda não almocei.
Sairam conversando animadamente sobre qualquer coisa e caminharam até um pequeno restaurante que ficava próximo ao hospital.
Wilson conhecia Anne desde que ela tinha uns dez anos. Ela era como uma filha para ele. Quando Anne brigava com os pais e resolvia fugir de casa era para a casa dele que corria. Eles sempre foram grandes amigos. Depois que ela foi para a faculdade eles se viam poucas vezes. Não que ela morasse longe. Nova York era até bem perto. Mas ele não tinha muito tempo para ir visitá-la. Então, eles só se viam quando ela estava na cidade.
Chegaram ao restaurante e sentaram-se numa mesa de canto. O lugar era pequeno e aconchegante. Era lá que Wilson almoçava com Cuddy toda quinta-feira. Fizeram seus pedidos e continuaram a conversar. Tinham muitas coisas para contar.
- Quando você volta para Nova York?
- Não pretendo voltar. - Respondeu seca.
- Como não? E a faculdade?
- Vou pedir transferência para a Universidade de Princeton. Isto é, se eles me aceitarem.
- Eles não seriam loucos de não aceitarem. Você é uma das alunas mais brilhantes que Columbia já teve. - Disse animado. - Mas e o Sam?
Os pedidos chegaram, ajudando Anne a evitar o assunto. Sam Gardner. A última pessoa que ela queria lembrar e a única que não conseguia esquecer. Eles se conheceram na faculdade há alguns anos. Há dois anos foram morar juntos. Ela cursava medicina e ele direito. Ela estava no quarto ano, ele no último.
- Então? - Wilson insistiu, fazendo Anne lamentar por dentro. - Você e o Sam?
- Nós terminamos.
- Como? - Ele quase engasgou com o suco de maçã. - Mas...
Anne suspirou. Tudo era muito recente. Sua mente ainda tentava entender o que estava acontecendo. Mas ela sabia que ia ter que falar sobre isso com alguém em algum momento. Ninguém melhor do que Wilson. Ela se sentia muito confortável para conversar com ele.
- Nós tivemos uma discussão. Digamos que... foi uma grande discussão.
- Hmm.
- Eu simplemente fui embora. - Suspirou. - Peguei algumas coisas e vim pra cá. - Lágrimas começaram a se acumular nos seus olhos azuis. - Sabe, Jimmy, não quero falar sobre isso. Conte-me o que as minhas crianças andam aprontando fora da minha presença. - Disse referindo-se aos pais.
Wilson apenas acenou e eles logo mudaram de assunto.
House estava deitado sobre sua poltrona, quase pegando no sono. Tinha despachado a equipe para a clínica e aproveitou o pequeno momento de tranqüilidade para descansar um pouco.
- Eu acho que a sua chefe não te paga pra dormir. – Anne disse alto o suficiente para acordá-lo.
- Eu não estou dormindo! – Ele fingiu estar ofendido..
Anne caminhou pela sala e sentou-se na cadeira dele, colocando os pés sobre a mesa. Olhou para ele que ainda mantinha aquela expressão confusa no rosto. Sorriu e pegou uma ficha que estava sobre a mesa.
- Quando você voltou?
- Ontem à noite.
Era natural a preocupação de todos com ela, mas tudo que Anne queria nesse momento era não precisar responder a todas aquelas perguntas.
- O que a sua mãe disse?
- Fez algumas perguntas.
- Que você não respondeu. - Ele deu um sorriso esperto e presunçoso, fazendo-a sorrir também.
House a compreendia melhor do que ninguém. Eles eram tão parecidos que, às vezes, era quase como se um soubesse o que o outro estava pensando. Isso facilitava muito as coisas para ambos. Ele entendeu que ela não queria conversar agora e respeitaria o espaço dela.
- Você não tem trabalho a fazer, não? - Implicou. House apenas balançou a cabeça infantilmente. - E essa ficha na sua mesa?
- Foi tão fácil que qualquer um dos médicos idiotas desse hospital poderia ter diagnosticado. - Deu de ombros.
- Aah, claro. - Anne disse. - Você sabia que a clínica está cheia de gente doente pra ser atendida?
- Por isso mandei meus escravos pra lá.
- Sabe, House, eu me pergunto o que a sua chefe iria pensar se soubesse que você mandou seus empregados cobrirem as suas horas na clínica. - Pontuou cada palavra, arqueando as sobrancelhas. Conversar com ele é uma das coisas que ela mais sente falta quando está longe.
- Minha chefe é louca por mim.
- Acho que você esqueceu de contar isso pra ela.
Ficaram em silencio por algum tempo. House pegou sua bolinha cinza e vermelha e começou a girá-la.
- Onde está a minha? - Acenou com a cabeça para a bola nas mãos dele.
- No lugar de sempre.
Anne abriu a primeira gaveta ao lado da mesa e pegou uma bolinha cinza e rosa, um pouco menor que a dele.
House lia um artigo médico em seu escritório quando notou um pequeno ser de cabelos escuros e olhos azuis o observando atentamente.
- Anne, vem cá. - Ele chamou.
Ela andou até ele com suas perninhas pequenas e rápidas. A menina sentou na cadeira em frente a ele e o encarou curiosa.
- O que você está fazendo aqui?
- Mamãe disse que hoje ia me trazer para o trabalho. - Disse mexendo nos papéis sobre a mesa. House levantou os olhos das páginas da revista e voltou sua atenção para ela.
- Para o trabalho da mamãe ou para o meu?
Anne deu de ombros e continuou procurando algo para rabiscar mais um de seus desenhos. Acabou pegando a ficha de um paciente.
- Eu gosto mais de ficar com você. - Essa afirmação fez House sorrir.
Não demorou muito para Anne largar o desenho que estava fazendo e pegar outra coisa para brincar. Pegou a bolinha cinza e vermelha que estava sobre a mesa e começou a brincar com ela, apesar do objeto ser maior do que as suas mãozinhas. House tirou seu brinquedo das mãos dela e guardou.
- É minha bolinha. - Ele disse para a menina que começou a fazer cara de choro.
Era difícil saber quem era a criança ali.
- Eu te odeio. - Anne disse bem séria, com as sobrancelhas juntas como se realmente quisesse dizer aquilo. House apenas riu.
- Hmm... - Ele parou por um momento antes de continuar. - O quanto você me odeia?
- Muito!
- E o que eu posso fazer pra você parar de me odiar?
Anne pensou um pouco.
- Me dar a bolinha. - Sorriu orgulhosa de si mesma, como se isso fosse a coisa mais esperta que ela já tivesse dito.
- Eu tenho uma ideia melhor. - House disse, deixando a menina curiosa. - Vamos comprar uma bolinha para você.
- Igual a sua? - A animação na voz dela era nítida.
- Tem que ser menor. A minha bolinha é muito grande pra essas suas mãos gordinhas de bebê.
- Eu não sou um bebê! - Disse ofendida. - Eu já tenho seis anos.
- Você quer a sua bolinha de que cor?
- Rosa! - Os olhinhos dela brilharam.
Anne levantou e foi até ele. Deu o abraço mais apertado que seus bracinhos conseguiam e um beijo um pouco babado na bochecha dele.
- Você ainda me odeia? - Perguntou colocando a filha sentada sobre a sua perna.
- Não, papai. - Anne sorriu. - Eu te amo!
- O quanto você me ama?
- Muito! - Abriu os braços para tentar mostrar o tamanho do amor. - Muito assim.
- Eu também te amo, criança. - Deu um beijo na cabeça dela. Colocou Anne no chão e levantou, pegando-a pela mão. Caminhou sem pressa com a filha.
- Vamos comprar uma bolinha para você.
- Ei. - Ele a chamou com a mão, um pouco impaciente. - Vamos.
- Para onde? - Perguntou, levantando e indo na direção dele.
- Embora. Estou cansado. - Colocou a mão na teste, em um sinal de falso cansaço.
Caminharam lado a lado. Era sempre assim entre eles.
- Ann. - Chamou, sem olhar para ela.
- Hmm. - Parou.
- Você está bem? - Ele encarou seus olhos, analisando-a.
Anne mexeu o maxilar e mordeu os lábios, como sempre fazia quando estava triste ou nervosa. Abaixou a cabeça e balançou negativamente. House assentiu e a abraçou. Gostaria de dizer que tudo ficaria bem, mas ela era a única pessoa para quem ele não gostava de mentir.
