SAL E MANTEIGA

Prólogo

Atenas, 1998

A figura alta e esguia de uma mulher destacava-se entre as lápides daquele pequeno cemitério. Rezava absorta diante de um túmulo recente, sob a sombra de uma frondosa oliveira, a única naquele lugar árido. Vestia luto, seu vestido negro ondeava com vento e seus longos cabelos ruivos estavam cobertos por uma mantilha de renda igualmente negra.

Finda a prece, ela observava em silêncio os velhos templos e ruínas ao longe. Ainda que estivesse na moderna capital grega, ali o tempo havia parado. Pouca coisa mudara nesses doze anos. Como já era costume, vinha quase todos os anos visitar aquele lugar. Um dia antes comparecera ao enterro da velha Mirthes. Além de enfrentar antigos fantasmas, dessa vez teve também que enfrentar a morte de uma amiga.

O vento soprava forte e aliviava o calor sufocante de mais um típico dia de verão. Aguardava ansiosa uma autorização para se aproximar das doze casas zodiacais, um lugar proibido para simples mortais. Mas não para ela, já que convivera com os mais extraordinários guerreiros que já existiram.

- Mamãe, ainda vai demorar muito? As flores estão murchando...

Sua atenção é desviada para um melancólico garoto de doze anos, com cabelos castanhos até os ombros e olhos verdes-esmeralda. Ela sorriu. Conseguira convencer o filho a acompanhá-la, há muito que queria mostrar o lugar onde ele nascera.

- Tenha um pouco mais de paciência, Sidharta. Não podemos sair daqui enquanto não recebermos a resposta.

- Vou ver a casa do meu pai?

- Sim, meu querido, verá.

Um homem moreno com cabelos grisalhos aproximou-se da mulher e de seu filho. Trajava uma túnica branca plissada até os joelhos e levava aos pés sandálias de couro. Ao encontrar os olhos do menino, não pôde deixar de sorrir. Aquele guri parecia demais com o pai.

- E então Alexis? – ela perguntou em grego – Podemos ir até às doze casas?

- Sim, Anna, mas não devem demorar por lá. Foi difícil convencer o chefe da guarda, mas tudo foi resolvido. Vamos?

A paisagem pedregosa e acidentada da Grécia impressionava o jovem Sidharta. A expectativa de ver o local onde o seu falecido pai morou fazia seu coração bater rápido. Depois de quase vinte minutos de caminhada por entre as rochas, chegaram à imensa escadaria de mármore escuro que os levaria até a casa de Áries. A subida foi penosa devido ao forte calor, todos suavam em bicas. Finalmente se viram diante do imenso templo. Anna reparou que haviam restaurado a fachada da casa e a imensa cratera que havia diante desta não passava agora de uma suave depressão. Ao longo dos anos, terra e pedras foram sendo depositadas justamente no intuito de cobrir aquele imenso buraco. Ela emocionou-se. A última vez que estivera ali foi três dias após a batalha que ceifara a vida do seu amado. Sidharta tinha apenas três meses de nascido. Ela ajoelhou-se e depositou o buquê de cravos brancos que trouxera diante da casa. Não havia túmulo, pois o corpo dele jamaisfoi encontrado. Mas ela sabia que seu espírito rondava ali. Suas lágrimas haviam secado há muito tempo; entretanto, sua dor continuava viva assim como o amor que sentira.

De pé, ao lado da mãe, Sidharta a observava em silêncio . Ele sabia que ela sofria ainda, apesar dos anos e apesar de ter constituído uma nova família. Tentou ser solidário com a tristeza da mãe ajoelhando-se também, mas essa atitude lhe pareceu hipócrita. Era frustrante, não conseguia sentir nada além de curiosidade, pois não conhecera o pai, era ainda um bebê quando ele morreu lutando. Alexis ficara um pouco afastado. Fazia aquilo porque gostava muito de Anna e daquele menino; e porque sua mãe adotiva a considerava como se fosse uma filha. Mas, em contrapartida, detestava aquele lugar cheio de lembranças tristes. Não importava o quanto fosse sagrado, em sua opinião aquele lugar não passava de um imenso mausoléu. Um ruído de passos o fez olhar para trás. Um homem esquisito vestindo uma armadura reluzente, observava a cena. Alexis o chama:

- Aproxime-se, Ichi!

O guerreiro atendeu ao chamado e ficou ao lado de Alexis. Seus olhos escuros e fundos demonstravam pouca piedade, tinha um ar sofrido e ao mesmo tempo arrogante. Inúmeras cicatrizes marcavam o rosto e os braços daquele homem. Uma tira de cabelo nascia do alto da cabeça e descia, espalhando-se pelos ombros, o que lhe conferia um visual um tanto quanto moicano.Olhou para o garoto ajoelhado e perguntou:

- Então, aquele moleque é o filho de Mu?

Alexis sorriu:

- Sim, é muito parecido com ele, não acha?

- É... parece que estou diante daquele ariano...

Os dois riem. O som das risadas ecoou pelos templos e atraiu a atenção de Sidharta, que levantou-se subitamente ao verificar que Alexis não estava mais sozinho. Anna também se levantou ao perceber a surpresa do filho.

- Quem é aquele, mamãe?

Ela olhou de soslaio para o recém-chegado e soltou um suspiro resignado. Embora não gostasse muito de Ichi, tinha que suportar sua presença. Afinal de contas, ele ainda era o chefe da guarda. E é pelos santos que se beijam os altares. Por isso...

- Vamos, Sidharta...

Ichi detém um olhar frio sobre o garoto que se aproximava. Podia ser fisicamente parecido com Mu, mas com certeza era um desses adolescentes cheio de vontades. Bah, que forma mais besta de se criar os filhos homens hoje em dia! Grudados na barra da saia da mãe, para depois se tornarem um daqueles engravatados com nariz empinado...

- Humpf! Pode ser parecido, mas não tem a determinação do pai...

- Vá com calma , Ichi! O menino só tem doze anos...

- E daí? Com idade dele eu já socava um homem feito! E o pai dele já era um guerreiro da elite. Esse garoto nunca deveria ter saído daqui!

- Eu espero sinceramente que você não seja grosseiro com eles! – diz Alexis entredentes.

- E quem é você para dizer o que devo ou não fazer?

Alexis balançou a cabeça desaprovando a atitude do outro. Vai ter um gênio ruim assim no inferno!

Anna aproximou-se dos dois homens. Ichi curva-se diante da mulher, fazendo uma reverência:

- Minha senhora...

- Olá Ichi, como vai? – o cumprimenta secamente, incomodada com aquela atitude sarcástica.

- Bem... – responde Ichi no mesmo tom, fitando o menino, que ficara atrás da mãe, intimidado com a presença dele. – Esse rapazinho perdeu a língua?

- Cumprimente o moço, Sidharta – ordena Anna, lançando um olhar não muito amigável a Ichi.

Sidharta sai detrás da mãe e estende a mão para o homem. Ichi ficou surpreso com a atitude, mas retribuiu o gesto com um sorriso nos lábios.

- Meu nome é Ichi, filhote do Mu. Como se chama?

- Sou Sidharta O'Riordan. Muito prazer. – respondeu o garoto em um grego impecável.

- Ah, fala grego... isso é bom. E então, veio conhecer o território do seu pai?

- Sim... Essa sua armadura é de prata?

Ora, ora. O moleque estava bem informado. Talvez não fosse tão idiota o quanto imaginara.

- Não, sou um Santo de Bronze... Que tal dar uma volta pelo Santuário?

Por essa Anna não esperava. Ichi não era afeito a gestos de cordialidade e educação. Muito pelo contrário, era frio e calculista, por muitas vezes grosseiro. O que deu nele? Alexis sorriu. O jeito meigo e polido de Sidharta conseguira amolecer o coração de pedra do guerreiro de Hidra. Sidharta, por sua vez, ficara entusiasmado com a possibilidade de conhecer aquele lugar ciceroneado por um guerreiro sagrado. Um guerreiro igual aos das histórias que sua mãe costumava contar.

- Posso ir mãe? – seus olhos verdes brilhavam ansiosos.

Anna olhou aflita para Alexis. A idéia de deixar seu filho sob a responsabilidade de Ichi a desagradava profundamente. Alexis percebeu a angústia dela e se ofereceu para acompanhá-los:

- Não se preocupe. Eu cuidarei dele... - ele pousa a mão em um dos ombros dela delicadamente - É só um passeio, voltaremos logo.

Ela sorri para o grego. Alexis sempre foi um bom amigo, era solícito e protetor. Mesmo sofrendo com a perda recente da mãe, ele se importava com seu bem-estar. Ela então olha para o filho e recomenda:

- Obedeça ao Alexis, sim? Eu vou ficar te esperando aqui...

Sidharta a abraça e ela deposita um suave beijo na testa do filho. Ichi, de braços cruzados, observava impaciente a cena.

- Anda, que eu não tenho o dia todo. Seu filho não vai para a Lua, vai só conhecer o lugar onde nasceu... – ele olhava sério para Anna – Você pode ficar aqui... Vou deixar um dos soldados de minha confiança cuidando para que ninguém a incomode. Está bem assim?

- Obrigada, Ichi... – ela esboça um leve sorriso, concordando.

Anna observa os dois homens se afastarem levando Sidharta. Logo em seguida, viu um soldado se posicionar nas proximidades. Devia ser o tal homem de confiança do Ichi. Ela se aproximou um pouco mais do templo. Ali passara sua última noite de amor... Estava escuro e silencioso, quem sabe aguardando o próximo guerreiro a habitá-lo, aquele que honraria novamente as vestes sagradas de Áries. Ela ergueu o olhar, pensativa. Decerto as outras casas estariam assim também, sombrias e solitárias. Alexis tinha razão: agora era um local triste e fantasmagórico. Muito diferente da época em que havia morado em uma das inúmeras vilas do Santuário. Ela sentou-se em um dos degraus da casa e abriu sua bolsa, retirando de dentro desta um rosário tibetano feito de jade. Observa o objeto cuidadosamente, deslizando as contas entre os dedos. Ele o entregara em suas mãos uma semana antes de morrer. Ela o enrolou no pulso direito, do jeito que ele fazia. Ele...Mu. A palavra ficou martelando em sua mente. Há anos que não pronunciava esse nome, o sufocara da mesma maneira que sufocara as mágoas, a dor. Só assim pôde seguir em frente. Sua história de amor não tivera um final feliz, aliás, nunca foi um conto de fadas. Ela estava cansada de carregar aquele fardo, cansada de aprisionar seus sentimentos. E cada vez que olhava para o filho, extremamente parecido com o pai, doía terrivelmente.

"Prometa-me que nunca mais vai chorar por minha causa..."

Sim, ela havia cumprido a promessa, só Deus sabe com que sacrifícios. Nunca mais derramara uma lágrima sequer, embora, às vezes, sentisse um nó na garganta quando se lembrava dele. Então engolia seco e escorraçava as lembranças como se afugentasse um inseto incômodo. Porém, havia um detalhe curioso em todo esse drama: ela sentira a presença dele por diversas ocasiões. Não era exatamente uma presença, mas um calorzinho que percorria seu corpo e aquecia seu coração. O mesmo calor que sentia quando estava com ele. Às vezes a sensação era tão forte, que podia jurar que se ele materializaria à sua frente. Fechava os olhos e pedia a Deus para ver aquele sorriso mais uma vez. Mas quando abria os olhos, decepcionava-se. E isso acontecia principalmente quando alguma coisa não ia bem ou em algum momento importante. Como no dia em que Sidharta completara sete anos, por exemplo; ou então, quando ela e família escaparam de um terrível acidente de carro praticamente ilesos. Podia relatar muitos outros momentos, mas nunca, nunca vira nada. Bom, se bem tivera um sonho bem estranho com ele recentemente. E justamente por causa deste sonho ela estava ali. Foi um sonho tão real... Ele parecia triste, e estava de pé no mesmo lugar onde ela estava sentada. Ela interpretou aquilo como um aviso, pois duas semanas depois Mirthes morrera. Mas ali, sozinha, percebeu que não foi apenas um aviso, mas também um pedido. Ele queria que ela viesse ali. Colocou a mão direita sobre seu coração e pressionou o rosário contra o peito.

- Eu estou aqui... Fale comigo, Mu.

Ela lembrou-se de um mantra que havia aprendido com ele. Começou a entoá-lo baixinho, até que sua mente aquiesceu. De olhos fechados, deixou que sentimentos e lembranças há muito guardados viessem à tona. Sua mente voltou treze anos antes, quando o conhecera...

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O título desta fic faz referência a uma triste lenda tibetana, na qual dois jovens amantes só conseguiram ficar juntos quando se transformaram em sal e manteiga eforam misturados ao chá. No Tibete, costuma-se preparar o chá acrescentando ao mesmo sal e manteiga, batendo-se a mistura. Daí a lenda...

Prefiro utilizar as palavras "guerreiro" e "santo" ao invés de "cavaleiro".