- E aí, o que é que vai ser?

Era um dia frio no inverno em uma pequena cidade no interior da Sibéria. Faziam -15 graus centígrados do lado de fora da ourivesaria e Anatolyi tentava negociar um colar de ouro que sua falecida mãe, Irina, havia lhe dado. Era legítimo, mas custava-lhe vender aquilo que era a última lembrança de sua mãe. Depois do trágico destino, quando ela morreu dois anos antes de tuberculose, sua família, que já sofria os efeitos da pobreza, se desestruturou. Seu pai se tornou um alcoólatra violento que deixava Anatolyi e seus irmãos gêmeos Sasha e Misha a própria sorte. Anatolyi, por ser o mais velho de seus irmãos, no alto de seus 14 anos, tomou para si a responsabilidade de tomar conta da família. Naquele dia, Sasha e Misha completariam 7 anos e Anatolyi queria lhes fazer algum agrado.

- Desculpe-me, senhor, mas 1000 rublos é muito pouco. Preciso de mais para poder cuidar de minha família.
- Isso não é problema meu. Não dou mais que 1000 rublos.
- Não é justo.
- Isso aqui não é caridade, são negócios, saia de minha loja.

O ourives vira-se com displicência e volta a polir a prataria que estava disponível no balcão. Anatolyi precisava daquele dinheiro, mas não dava pra receber tão pouco por um objeto tão querido. O ourives estava distraído atrás de seu balcão empoeirado, ignorando a presença de Anatolyi. O dinheiro estava visível, varias notas enroladas de rublos, atrás do vidro engordurado e vários pensamentos contaminavam a cabeça do garoto. Aquele dinheiro... seria suficiente para comprar comida por muito tempo. E seria um preço razoável pelo colar. Mas era a lembrança de sua mãe. O que fazer?

- O que faz ainda aqui, garoto?

O dono do estabelecimento percebeu que Anatolyi ainda estava ali. Também percebeu que, em sua visão, cobiçava o dinheiro atrás do balcão. Com um gesto frio, chama alguém que estava no aposento de trás. Cochicha algo que Anatolyi não pode escutar.

Quem se aproxima é um gigante de mais ou menos dois metros, um monstro se comparado com o franzino Anatolyi. Com um semblante de indiferença se aproxima do menino, o cobrindo totalmente com a sombra. Quando Anatolyi levantava o rosto para ver-lhe o rosto, sua visão enegrece, some por instantes e é jogado no meio da neve do lado de fora do estabelecimento. Um pouco tonto, ergue-se olhando para o gigante, agora já de costas.

- Por que me fez isso?

O gigante o ignorava, já tinha lhe dado as costas. Porém, não ignorou uma forte pancada na nuca. Ao passar a mão no lugar e colocá-la sobre os olhos, viu seu próprio sangue. Ao chão, havia uma pedra. Anatolyi se mantinha imóvel, na mesma posição em que a havia lançado. Seus olhos fixavam-se no rosto do gigante. Este, sem mudar um músculo de sua expressão, olhou novamente para o moleque. Aproximou-se novamente bem devagar.

- Boris, é só um mendigo que veio a loja com intenção de roubar-me. Dê-lhe o que merece, melhor, mate-o de uma vez.

O ourives gritava, agora, da porta da loja, onde fora ao perceber que Boris, seu ajudante, não tinha voltado ainda.

- Roubar? Eu não ia roubar ninguém! Eu nem sequer me movi, por que me julga um ladrão?
- Vi como olhou para meu dinheiro, seu ladrãozinho de uma figa. Queria me roubar, essa é a verdade!

Antes que Anatolyi pudesse responder novamente sentiu os pés de Boris esmagar os ossos de sua face e, novamente, foi arremessado na neve. Seu rosto doía, seus cotovelos doíam, seu corpo doía. Naquele momento, não havia ninguém na rua, e se alguém testemunhasse aquilo das janelas da vizinhança, apenas acharia que um ladrãozinho estava recebendo o que merece.

Com dificuldade, Anatolyi novamente se levanta.

- Arf... arf... volto... a repetir... eu não tinha a intenção de roubar.

Boris se aproxima de Anatolyi. O menino perdeu um ou dois dentes, seu rosto estava inchado, os cotovelos e joelhos ralados. Com o mesmo olhar impassível, carregou o menino pelo pescoço e se preparava para quebrar-lhe. Não havia testemunhas, e ninguém daria falta de um suposto garoto de rua.

Anatolyi geme tentando respirar. A agonia de ter o pescoço esmagado e ter a respiração bloqueada era insuportável. Mas, em sua mente, ele lutava. Não queria morrer, não podia morrer. Seus irmãos ficariam a própria sorte, ele ainda tinha que cuidar deles. Não, não podia morrer.

Um barulho de ossos quebrando-se ecoa. Anatolyi agora estava deitado no chão.

Porém, Anatolyi se levanta. Não era seu pescoço que tinha quebrado.

Por um instante, o menino foi mais forte que o gigante. Por alguma razão, pôde sobrepujar sua força. Anatolyi estava vivo. Sabia que tinha se livrado do enforcamento, mas não sabia muito bem como. Já de pé, olhava para suas mãos e não acreditava no que tinha acontecido. Era como se o universo estivesse correndo por seu corpo.

Eram os braços de Boris que tinham se quebrado, e gemia contidamente com a dor. Porém a dor era menos importante do que tentar entender o que tinha acontecido. Como seus braços se quebraram? Como aquele menino teria forças para isso?

Vendo Boris nessa situação, Anatolyi se encheu de coragem. Não acreditava no que estava acontecendo, mas era real, ele realmente tinha quebrado os braços dele.

Anatolyi dirige-lhe a palavra:

- Como eu dizia antes, eu não roubei nada. Peço, por favor, que me deixe em paz.

O velho ourives, que havia entrado na loja, dessa vez voltou com um rifle na mão. Antes que Anatolyi esboçasse qualquer reação, o velho disparou e a bala seguia em direção ao cranio de Anatolyi. Com os olhos cerrados, o garoto não pôde ver o que aconteceu.

A bala congelou e caiu no chão antes de atingí-lo. A neve, que caia doce e esparsa, agora caia em forma de cristais. A neve cintilante no céu parece agora jóia brilhando no ar, mas essa beleza também representa o frio e a morte dos seres vivos. O povo do ártico, com uma mistura de terror e orgulho, chama o fenômeno de pó de diamante.

Um jovem, com um capuz cobrindo o corpo todo e parte do rosto, se aproxima de Anatolyi. Em frente a ele, lhe dirige a voz, doce e tenro.

- Você está bem?
- Estou bem. Foi você quem parou a bala, não é?

Boris e o velho se mantinham imóveis, ignorando aquilo que se passava. A essa altura, Boris desistira daquilo. O velho ignorava o que acontecia e novamente apontava a arma. Boris segura o rifle.

- É inútil, Nazar. Não vê que esse garoto não é normal?

Boris dirige-se ao garoto e ao desconhecido.

- Peço perdão pelo inconveniente. Admito minha incapacidade, e digo que fui inconseqüente ao julgar-lhe um ladrão.
- Do que você está falando, Boris? Ele é apenas um fedelho! Vou matá-lo e vou matar, o seu cúmplice.

Boris ignora e vai embora. Consigo mesmo pensa "Imbecil, não vê que aquele que acaba de chegar é um...

Aquele desconhecido, como em um passe de mágica, deslocou-se de onde Anatolyi estava e arrancou a arma das mãos de Nazar. Nazar não entendeu nada que estava acontecendo, e percebeu que suas mãos haviam congelado, estavam presas dentro de uma grossa cobertura de gelo.

- Ahh.. ahh.. aah.. minhas mãos.

Boris, mais a frente, cai inerte no gelo. Em algum momento que Anatolyi não pode acompanhar, também fora atingido pelo estranho.

- Quem é você? Como pode ser tão forte?

O estranho lhe sorri, mesmo através das sombras de seu capuz. Anatolyi, que até agora resistia aos ferimentos, não suporta mais e cai. O estranha o segura em seus braços e, antes que desmaiasse, sussurra.

- Sou Valentin, um cavaleiro de Atena.